Quem Ve Cara, Nao Ve Coraca

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E&G - REVISTA ECONOMIA E GESTÃO ISSN 1984-6606 194 Revista Economia & Gestão – v. 14, n. 36, jul./set. 2014 QUEM VÊ CARA, NÃO VÊ CORAÇÃO: ASPECTOS DISCURSIVOS E EUFEMÍSTICOS DA SEDUÇÃO ORGANIZACIONAL QUE DISFARÇAM VIOLÊNCIA E SOFRIMENTO NO TRABALHO “WHAT IS SEEN DOES NOT REVEAL WHAT IS INSIDE”: DISCURSIVE AND EUPHEMISTIC ASPECTS OF ORGANIZATIONAL SEDUCTION THAT DISGUISE VIOLENCE AND SUFFERING AT WORK Fernando de Oliveira Vieira Universidade Federal Fluminense [email protected] Submissão: 17/12/2013 Aprovação: 06/10/2014 RESUMO Esse ensaio tem o intuito de trazer ao debate o uso de aspectos discursivos e eufemísticos da sedução organizacional, que podem disfarçar violência e sofrimento no trabalho. Discute-se o conceito de sedução organizacionalcomo um recurso discursivo. Este atrai o indivíduo para defender qualquer ideia ou ação, em nome da produtividade no trabalho. A dinâmica encontra-se calçada no gerencialismo, sobre o qual se imputam práticas perversas de gestão. Sugere-se pensar tal paradoxo das relações de trabalho, por meio de referenciais críticos de gestão, tais como a Psicodinâmica e Clínica do Trabalho. Cumpre defender a manutenção do sofrimento criativo, por meio da inteligência prática, dos coletivos de trabalho e do reconhecimento, como balizadores importantes à saúde mental do trabalhador. Palavras-chave: Discurso organizacional. Sedução organizacional. Psicodinâmica e Clínica do Trabalho.

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Sobre a violência nas organizações

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    194 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    QUEM V CARA, NO V CORAO: ASPECTOS DISCURSIVOS E EUFEMSTICOS DA SEDUO ORGANIZACIONAL QUE DISFARAM

    VIOLNCIA E SOFRIMENTO NO TRABALHO

    WHAT IS SEEN DOES NOT REVEAL WHAT IS INSIDE: DISCURSIVE AND EUPHEMISTIC ASPECTS OF ORGANIZATIONAL SEDUCTION THAT DISGUISE

    VIOLENCE AND SUFFERING AT WORK

    Fernando de Oliveira Vieira

    Universidade Federal Fluminense

    [email protected]

    Submisso: 17/12/2013

    Aprovao: 06/10/2014

    RESUMO

    Esse ensaio tem o intuito de trazer ao debate o uso de aspectos discursivos e eufemsticos da

    seduo organizacional, que podem disfarar violncia e sofrimento no trabalho. Discute-se o

    conceito de seduo organizacional como um recurso discursivo. Este atrai o indivduo para

    defender qualquer ideia ou ao, em nome da produtividade no trabalho. A dinmica

    encontra-se calada no gerencialismo, sobre o qual se imputam prticas perversas de gesto.

    Sugere-se pensar tal paradoxo das relaes de trabalho, por meio de referenciais crticos de

    gesto, tais como a Psicodinmica e Clnica do Trabalho. Cumpre defender a manuteno do

    sofrimento criativo, por meio da inteligncia prtica, dos coletivos de trabalho e do

    reconhecimento, como balizadores importantes sade mental do trabalhador.

    Palavras-chave: Discurso organizacional. Seduo organizacional. Psicodinmica e Clnica

    do Trabalho.

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    ABSTRACT

    This paper has the intention to debate the use of euphemistic and discursive aspects, that may

    disguise violence and suffering at work. The concept of organizational seduction is

    discussed as a discursive resource. This one attracts individuals to defend any idea or action,

    in the name of productivity at work. This dynamic is based on managerialism, which is

    considered responsible for perverse management practices. It is suggested to think this

    paradox of work relations by CMS Critical Management Studies, such as the

    Psychodinamics and Work Clinical Approach. It is recommended that the maintenance of

    creative suffering be worked by practical intelligence, collective of work and recognition, as

    an important basis to mental health workers.

    Keywords: Organizational discourse. Organizational seduction. Psychodinamic and

    Work Clinical approach.

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    Introduo

    As pesquisas identificadas como Estudos Crticos Organizacionais j revelaram e

    tm explicado o carter exageradamente prescritivo de modelos de gesto (Qualidade Total,

    Reengenharia etc.) e de suas respectivas filosofias, conhecidas como tayloristas, fordistas,

    toyotistas etc (MERLO; LAPIS, 2007; PAULA, 2008; FERNANDES; GOMES, 2012). A

    Psicodinmica e Clnica do Trabalho, por exemplo, parte do pressuposto de que o real do

    trabalho no permite o controle de gesto, pretensamente normatizado no discurso

    organizacional. Esse real complexo e escapa ao previsvel (DEJOURS, 2000, 2006, 2012;

    GAULEJAC, 2007; MENDES, 2007; VIEIRA; MENDES; MERLO, 2013; MERLO

    MENDES; MORAES, 2013).

    Argumenta-se que muitos trabalhadores modernos so capturados por um discurso

    organizacional, que lhes promete bem-estar psicolgico e emocional, caso sejam leais e

    obedientes. No nvel do discurso, quanto mais seduzidos pelo imaginrio social e

    organizacional modernos (FREITAS, 1999), mais os indivduos se prendem nas teias

    organizacionais (ENRIQUEZ, 1997) e sujeitam-se servido voluntria (DEJOURS, 2006;

    LA BOTIE, 2009).

    Nesse processo, os indivduos acatam, produzem e reproduzem ideias e aes, que

    podem ocultar violncia psicolgica a si prprios e a outrem. Em nome da produtividade, so

    convidados a dar a sua contribuio, mesmo que isso signifique promover injustias sociais,

    para salvar a economia financeira da empresa. O objetivo desse ensaio pensar esse

    cenrio, por meio da Psicodinmica e Clnica do Trabalho. Tem-se o intuito de se discutir

    aspectos discursivos e eufemsticos, em contextos de precarizao da sade psquica do

    trabalhador. Trata-se de se debater como ideias aparentemente inofensivas e ligadas ao bem-

    estar psicolgico dos indivduos podem disfarar violncia e sofrimento no trabalho.

    O texto est organizado em trs sees, alm dessa introduo e das consideraes

    finais. Na primeira parte, busca-se pensar bases conceituais sobre aspectos discursivos e

    seduo organizacional, numa perspectiva ideolgica, ancorada, principalmente, em Eugne

    Enriquez, Maria Ester de Freitas e Marcus Siqueira. A segunda seo visa trazer ao debate

    como as organizaes empresariais contemporneas conseguem adeso para ampliar e

    solidificar esse discurso. Trazem-se exemplos que auxiliam a visualizar a materializao de

    tais ideias e prticas. Por ltimo, sugere-se pensar esse processo em uma dimenso que

    ultrapassa o aspecto semntico e que se reconstri continuamente. Apontam-se conceitos-

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    chave da Psicodinmica e Clnica do Trabalho, como teoria e mtodo de diagnstico de

    problemas relacionados com o binmio prazer x sofrimento no trabalho.

    1 Aspectos discursivos e seduo organizacional

    O conceito de discurso pode ser definido como um fenmeno complexo, sobre

    o qual no h consenso. H diferentes vertentes sobre discurso, que tentam caracterizar os

    respectivos elementos lingusticos e contextuais, os quais do vida aos processos dinmicos

    de comunicao e de relaes sociais.

    Nesse ensaio, trata-se de apontar como aspectos discursivos um conjunto de

    conhecimentos produzidos socialmente e que servem aos interesses dos atores sociais de

    determinado contexto (NATIVIDADE; PIMENTA, 2009, p. 25).

    Discursos so conhecimentos e mensagens (implcitas e explcitas) socialmente

    construdos. Podem ser relativamente cristalizados, dependendo do jogo de foras, da

    conscincia crtica e da apropriao lingustica, em vias de (trans)formar a realidade de seus

    atores (LIMA et al., 2009).

    Um discurso pode ser relativamente solidificado, ao usar ideias, palavras,

    imagens, valores, gestos, entonaes, artefatos e outros elementos subjetivos. Revela de onde

    se fala e para quem se fala, caracterizando um determinado pblico, que vai reagir

    positivamente ou no a esses elementos. Pode ocultar contradies, pois nem sempre

    consegue sustentar relativa coerncia entre as ideias e aes que determinam a sua dinmica.

    Um discurso pode ser delineado via ideologia. Esta pode ser conceituada como

    um processo de dominao. Para se sustentar, o discurso ideolgico composto por espaos

    em branco, por lacunas; ele no pode se mostrar por completo; caso contrrio a mensagem

    explcita revelaria a dominao e a violncia. O discurso ideolgico se sustenta, justamente,

    porque no pode dizer at o fim aquilo que pretende dizer. Se o disser, se preencher todas as

    lacunas, ele se autodestri como ideologia [...](ROCHA, 2013, p. 127).

    A ideologia se apresenta com direta conexo e correlao com o discurso.1 Nesse

    texto, entende-se por discurso um conjunto de elementos que vo desde o contexto no qual

    determinados grupos esto inseridos, tais como caractersticas da Economia e da Poltica, na

    1 Para aprofundar entendimento sobre diferentes noes de ideologia, pode-se recorrer a DUNKER, 2008, p.

    185-214. Alm deste artigo, ver, tambm, outras referncias, tais como ALTHUSSER, 1999, p. 275-283,

    MZAROS, 2004 e MARX; ENGELS, 2002.

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    atualidade, at a linguagem, que traduz as palavras, os smbolos, as conexes, a entonao, o

    explcito, o implcito etc.

    Rocha (2013, p. 124-130), destacando os Escritos de Marilena Chau, explica que

    a ideologia pretende coincidir o que diz sobre a realidade com a prpria realidade; que o

    trabalho especfico do discurso ideolgico consiste em realizar a lgica do poder, [...]

    fazendo com que as divises e as diferenas apaream como simples diversidade das

    condies de vida de cada um [...]. Estabelece-se um entrelaamento harmnico, com ares de

    universalidade.

    No que se refere ao carter de dominao ideolgica, de valores, crenas e

    artefatos do discurso organizacional, Gaulejac (2007) aduz que a gesto se apresenta como

    uma cincia, pretensamente neutra, cuja funo seria estabelecer os princpios da eficincia,

    da inovao e da melhoria contnua de produtividade. A falsa neutralidade dos instrumentos

    de gesto contestada por esse autor, ao questionar a forma autoritria como so construdas

    suas bases, sem dilogo com os principais atores, que desempenharo seus papis, no

    cotidiano organizacional.

    Torna-se imprescindvel apontar a funo que a ideologia gerencialista exerce na

    manuteno desse poder das organizaes. Para Gaulejac (2007, p. 65) Designar aqui o

    carter ideolgico da gesto mostrar que, por trs dos instrumentos, dos procedimentos, dos

    dispositivos de informao e de comunicao encontra-se em ao certa viso de mundo e um

    sistema de crenas. Ora, a prpria ideologia se apresenta como racional, neutra, mas que

    dissimula seu carter de dominao.

    A seduo organizacional ser entendida, nesse texto, como um fenmeno que se

    localiza nas entrelinhas, nas insinuaes, nos espaos subentendidos, nos cdigos, na

    linguagem subjacente, no que agua a curiosidade. Trata-se de um aspecto discursivo.

    A seduo pode ser descrita, originalmente, como um processo ligado a uma

    perspectiva ertica e sexual. Geralmente, no nvel popular, a primeira analogia que se faz

    seduo remete-se figura de Dom Juan, o cavalheiro encantador, bonito, elegante,

    conquistador, que tem mais prazer na seduo do que na conquista em si; quer dizer, quando o

    objeto desejado se rende, quando sua vitima capturada, o conquistador parte para a prxima

    conquista, pois, para ele, o prazer est mais na seduo, no processo de inebriar o outro, de

    faz-lo dependente psicolgica e emocionalmente do sedutor. Nesse sentido, o papel do

    sedutor seria alimentar essa dependncia, num jogo em que a(o) seduzida(o) esteja disposta(o)

    a dar sua vida, em troca do suposto amor do conquistador.

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    199 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    esse um dos aspectos que Freitas (1999, p. 158) confere ao conceito de

    organizao sedutora, que:

    [...] assim como o carisma ultrapassa o mbito individual e pode ser desenvolvido

    por uma empresa atravs de sua misso ou de seu projeto nobre, a seduo um

    processo que no se restringe apenas relao sexual, podendo tambm manifestar-

    se nas organizaes modernas atravs de suas tentativas de personificao e

    apropriao do raro.

    Essa organizao sedutora prope um jogo, uma fantasia, na qual os indivduos

    so levados a crer que somente alguns privilegiados podem fazer parte desse grupo. Conforme

    complementa Freitas (1999, p. 158): O conjunto de qualidades excepcionais que forma essa

    imagem ou aparncia encantadora no est disponvel para todos, mas apenas para um grupo

    seleto que, de to privilegiado, responde com adeso revigorada.

    Os imaginrios social e organizacional modernos se confundem como se fossem

    um s. Os valores, smbolos, ideias de sociedade passam, no limite, pela aprovao ou

    reprovao das grandes organizaes. So elas que ditam as regras e que defendem o

    desenvolvimento do mundo moderno.

    O progresso e a civilizao dos tempos atuais, sobretudo nas referncias

    ocidentais, so subordinados aos ditames da Economia. Primeiro, o desenvolvimento

    econmico, ao qual todas as outras esferas devem estar subordinadas. Em outras palavras, os

    desenvolvimentos social, psicolgico, cultural e humano devem pedir beno ao universo

    econmico. H uma crena quase dogmtica no consumo como ponto de partida para se ser

    algum na vida.

    As organizaes, sobretudo as grandes organizaes empresariais, usam a

    legitimidade, conferida pelo poder econmico para se institurem como o nico projeto

    possvel de desenvolvimento das sociedades, em tempos de globalizao (SANTOS, 2000).

    H muitas empresas com riqueza superior ao PIB Produto Interno Bruto de

    muitos pases (SIQUEIRA; MENDES, 2009). Se, por um lado, essas organizaes recolhem

    impostos e empregam, por outro, determinam, em ltima anlise, como devem ser as relaes

    sociais, em nveis macro, meso e micro.

    Em um universo mais amplo, se as autoridades governamentais (federal, estadual

    e municipal) no atendem s reivindicaes das grandes empresas, estas ameaam deixar o

    territrio e recolher impostos/dar empregos em outras comarcas. Ou pelo menos essa ameaa

    est implcita.

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    200 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    Dentro das estruturas organizacionais, em nvel meso, muitos altos executivos se

    submetem quase religiosa lgica de Mercado (PAGS et al., 2008), para dar continuidade

    ao jogo agressivo da competio. Estes indivduos incorporam os projetos organizacionais

    como se fossem suas prprias vidas. Creem que preciso doar-se integralmente, sacrificando

    suas vidas pessoais, inclusive, para realizarem tais projetos (FREITAS, 1999, p. 131-132).

    Em nvel micro, as comunidades onde as grandes organizaes esto inseridas

    podem usufruir de benfeitorias, sob a classificao de responsabilidade social e ambiental.

    E, para os indivduos, no lado psicolgico, preciso se esforar, para chegar l. Dedicar-se,

    para merecer fazer parte, por exemplo, do status das melhores empresas para se trabalhar.

    Todo esse quadro permite compreender a fora das organizaes na nossa forma

    de pensar e agir, no mundo contemporneo. A esse respeito Pags et al. (2008) revelaram

    como O poder das organizaes se constitui como uma doutrina, que busca a adeso

    voluntria de fiis, para, em nome do progresso, do consumo, do conforto material e do bem-

    estar dedicarem-se integralmente liturgia organizacional, por meio do trabalho. Se preciso

    for, haver sacrifcios pessoais, pois uma causa est em jogo.

    Do lado dos indivduos, muitos esto predispostos a serem alcanados por essa

    seduo (LA BOTIE, 2009). O processo s se concretiza porque tais indivduos desejam

    entrar na fantasia, no mundo imaginrio sugerido pelas Organizaes (FREITAS, 1999). Na

    medida em que a promessa organizacional lhes alcana, pois, em muitos casos, o Estado

    falha, por exemplo, em oferecer satisfaes de necessidades bsicas, tais como Sade e

    Educao, as organizaes preenchem essa lacuna, por meio de planos de benefcios,

    extensivos aos familiares. Logo, pertencer ao quadro de uma grande organizao pode

    significar poder ser atendido por planos de sade privados etc.

    Ao prometer o paraso, no nvel imaginrio, a dimenso do prazer acionada. Se

    aqui na terra o sofrimento humano faz parte do cotidiano, pois h maldade nele, a recompensa

    est no porvir. Dedicao, f, obedincia, esperana e, sobretudo, muito trabalho, como

    aduziu Weber (1974), em A tica protestante e o esprito do capitalismo.

    Siqueira (2009, p. 119-123) analisa o discurso organizacional da gesto de

    pessoas, explicando como algumas categorias conceituais fazem parte de um jogo sedutor,

    que convida o trabalhador a se entregar de corpo e alma dinmica do trabalho na e pela

    Organizao. O sucesso, nesse caso, implica em fomentar o super-homem organizacional,

    para que o exemplo seja seguido e os territrios continuem sendo desbravados.

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    201 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    No stio da empresa Petrobras, na rea especfica sobre Recursos Humanos,2 as

    chamadas aos processos seletivos, por meio de concurso pblico, deixam implcitos e

    explcitos alguns elementos desse discurso acima citado. Uma imagem com jovens sorridentes

    e bonitas acompanha o seguinte texto: Voc um profissional dedicado e apaixonado pelo

    que faz? Ento participe de nossos concursos pblicos e trabalhe na maior empresa do

    Brasil.

    E para ilustrar um pouco mais esse discurso organizacional caracterizado acima, o

    final da mensagem da rea de Recursos Humanos conclui: Junte-se a ns. Contamos com a

    sua energia para ir cada vez mais longe! Aponta-se o recurso discursivo inicialmente como

    elemento sedutor (FREITAS, 1999).

    A seduo se traveste de uma promessa. Concorra!. O lugar para poucos!

    Mas os que conseguirem sero recompensados, pois vo trabalhar na maior empresa do

    Brasil!. Queremos ir cada vez mais longe. E contamos com sua energia juvenil, para isso!.

    Dedicao. Recompensa.

    O conceito de seduo organizacional remete-se ao que no est explcito, ao

    que no dito, mas est l, para ser decifrado. Nesse sentido, entende-se que a seduo uma

    parte do discurso, pois est subjacente. A anlise do discurso organizacional vai alm da

    linguagem, pois tenta interpretar a dinmica que envolve interesses distintos. Busca, tambm,

    entender como as pessoas utilizam estratgias comunicativas, para revelar ou ocultar esses

    interesses (SIQUEIRA, 2009).

    Resumindo: a seduo organizacional delineada, nesse debate, como um aspecto

    discursivo, que tem o intuito de alimentar uma ideologia, uma dominao, segundo a qual os

    trabalhadores so convidados a vestir a camisa da empresa, mesmo que isso lhe custe

    sacrificar sua sade pessoal.

    Na prxima seo, pretende-se discutir de que forma esse discurso se materializa

    no cotidiano organizacional. Trazem-se exemplos de ideias e aes, muitas vezes perversas,

    travestidas de recursos lingusticos e discursivos aparentemente inofensivos e comprometidos

    com o bem-estar psicolgico dos indivduos.

    2 Disponvel em: . Acesso em: 10 out.

    2013.

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    202 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    2. Quem v cara, no v corao: aspectos discursivos e eufemsticos que disfaram

    violncia e sofrimento no trabalho

    Defende-se que a seduo organizacional, recheada de recursos discursivos e

    eufemsticos, disfara o controle da subjetividade, a violncia e o sofrimento no trabalho. Um

    exemplo clssico de um eufemismo das relaes de trabalho pode ser caracterizado por

    chamar os empregados de colaboradores, associados ou parceiros, muitas vezes,

    imersos em contextos precarizados (VIEIRA; NOGUEIRA, 2013).

    Nesse particular, algumas empresas tm lanado mo de um recurso conhecido

    como sala de descompresso. 3 Tal ambiente tem o intuito de aliviar o estresse do

    trabalhador que lida diretamente com o pblico ou que tem outro tipo de desgaste.

    Dependendo da empresa, esses espaos so projetados para dar o maior conforto possvel aos

    empregados. Em muitos casos, trata-se de arquiteturas modernas, com som ambiente e cores

    aconchegantes. Ilustra-se, dessa forma, a dinmica da seduo organizacional (FREITAS,

    1999) ou da naturalizao de ambientes precarizados, tendo em vista o nmero de

    desempregados ainda mais vulnerveis a esse sistema.

    A esse respeito, Enriquez (2008, p. 191) destaca que a estrutura estratgica da

    empresa de hoje um misto de racionalidade e paixo. Por um lado, seduz, ilude e engana.

    Por outro, exige que o indivduo se conforme com as demisses injustificadas, com mtodos

    cruis de gesto tais como o assdio moral e sexual etc. [...] A empresa diz de forma direta, e

    tambm de forma subliminar, o quo descartvel o indivduo, tanto nos nveis mais baixos

    quanto mais altos da hierarquia.

    Em nome da qualidade de vida no trabalho, os colaboradores podem receber

    uma massagem, jogar sinuca, ouvir msica relaxante etc., em alguns momentos de interrupo

    do expediente. Podem, inclusive, fazer ginstica, para manter a sade em dia. Nesse sentido,

    interessa organizao o atleta corporativo (SIQUEIRA, 2009). No entanto, no se trava

    um debate em torno da organizao do trabalho ou do desgaste provocado por suas condies

    precrias (MERLO; LAPIS, 2007). Aparece um discurso naturalizado do Mercado, que faz

    parte do jogo. No h lugar para fracos. Todos precisam ser fortes, o tempo todo, e saber lidar

    com adversidades. Chegou no seu limite, v relaxar por um instante! Depois, volte para o

    contexto de trabalho e se adapte.

    3 Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2013.

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    203 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    Por sua vez, os ditos colaboradores reproduzem o discurso organizacional, ao

    tentarem seduzir seus clientes. Sabe-se de bancrios que banalizam vendas diversas a pblico

    de baixa renda. Usam estratgias eufemsticas (VIEIRA; NOGUEIRA, 2013), quando

    oferecem segurana aos correntistas e suas respectivas famlias: seguro de vida, ttulos de

    capitalizao etc.

    O colaborador, ento, convidado a entrar no discurso de colaborar, que

    contribui com algo. Que ajuda. Que solidrio. Os vocbulos colaborar e contribuir

    podem, inclusive, ser travestidos de violncia. Sobre esse aspecto, Gaulejac (2007, p. 23-33)

    analisa um dilogo entre gestores e seu superior hierrquico, em que cada gestor deveria

    trazer uma contribuio para o perodo, a saber: cada gestor deveria indicar a demisso de

    um de seus funcionrios, para a meta de reduo do quadro de pessoal da empresa. Enquanto

    o diretor tenta banalizar a conotao da violncia, usando o termo contribuio, para o

    cumprimento das demisses, alguns gestores revelam um sentimento de angstia, pois sabem

    o que pode significar uma demisso, tanto para o demitido, quanto para seus familiares e

    colegas de trabalho. E, ainda, para eles prprios, gestores, como aqueles que contriburam

    com o sofrimento de algum que perde uma possibilidade de sustento. Ao se colocarem no

    lugar de seus funcionrios, sentem na pele a perda de confiana, a frustrao e outros

    sentimentos de angstia. Mas precisam ser fortes. Faz parte do jogo.

    Outra ilustrao, que envolve o uso de eufemismos nas relaes de trabalho pode

    ser configurada pela chamada flexibilidade no horrio de trabalho e/ou na possibilidade de

    o colaborador administrar sua carga horria laboral, por meio de um banco de horas

    (VIEIRA; NOGUEIRA, 2013). Para tanto, algumas estratgias gerenciais so adotadas, pois

    executivos recebem da empresa telefones inteligentes (smartphones). So estimulados a usar a

    internet e redes sociais, para se comunicarem com superiores imediatos, com seus pares e com

    subordinados.

    Trata-se de uma forma de controle da subjetividade, na medida em que se instaura

    uma neurose coletiva de se responder a mensagens de trabalho, instantaneamente, para aderir

    ideologia da excelncia (SOBOLL; HORST, 2013). Alguns, inclusive, so punidos, quando

    demoram a responder chamadas, mesmo se estiverem fora de seu horrio de trabalho. Outros

    talvez se autopunam, j tendo incutido a ideia que precisam estar on line 24 horas, sob pena

    de perderem seus empregos. Ou sob o entendimento de que, para se sentirem includos e

    participarem do que h de supostamente mais moderno na atualidade precisam estar on line

    24 horas. Muitos sequer desligam os aparelhos telefnicos inteligentes.

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    204 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    A esse respeito, uma consultoria de RH Recursos Humanos, no Rio de Janeiro,

    publicou em um anncio de vaga, para processo seletivo, que o futuro analista de TI

    Tecnologia de Informao teria que apresentar, como requisito candidatura,

    disponibilidade 24 x 7 x 30, ou seja, estar on line 24 horas por dia, 7 dias por semana, 30

    dias no ms. Ao ser questionada, a consultora argumentou que no se tratava,

    necessariamente, de fomentar dependncia eletrnica, como parte da cultura organizacional. E

    que o futuro funcionrio no trabalharia 24horas. Seria apenas uma questo de diferentes

    possibilidades de arranjos de turnos de trabalho, j que a empresa atendia a chamadas de

    diferentes partes do mundo.

    Eis no supracitado exemplo mais uma forma de eufemizar as relaes de trabalho

    (VIEIRA; NOGUEIRA, 2013). Ora, usar o termo 24 x 7 x 30 pode ser naturalizado por

    alguns setores da sociedade. Muitos jovens, inclusive, podem acreditar que essa deve ser a

    nica alternativa, pois, no mundo moderno, quem no estiver conectado pode ser excludo

    socialmente. Trata-se do uso de um recurso discursivo, que alimenta uma ideia de incluso

    social, sob o preo da violncia psicolgica.

    Alis, com o advento das TIC Tecnologias de Informao e Comunicao, tem-

    se o desafio de se estabelecer fronteiras entre horrio de trabalho e horrio de lazer. Trabalho

    e vida pessoal se misturam de tal sorte que muitos entram em indcios de dependncia

    eletrnica; alm disso, pode-se identificar outras formas de adoecimento (DEJOURS, 2000;

    MENDES; ARAJO, 2011).

    Cumpre registrar, que h dois anos, tentamos organizar um projeto de pesquisa,

    com intuito de estudar como se sentiam os indivduos em relao s TIC.

    Surpreendentemente, de uma mdia de 150 pessoas consultadas, apenas 1 aceitou participar

    do projeto, que estava organizado da seguinte forma: os sujeitos analisados teriam que ficar

    um final de semana sem acessar internet e sem usar aparelhos de telefone celular.

    O fenmeno seria descrever como se sentiam, sem o uso desses aparatos. O nico

    que se submeteu 2 se alguma parte de seu corpo tambm lhe faltasse. Os demais estudantes de

    graduao e de ps-graduao, que haviam recusado a participar da pesquisa, alegaram que,

    para eles, seria praticamente impossvel ficar um final de semana sem telefone celular e sem

    acessar a internet, pois se sentiriam excludos socialmente. Estariam estes sujeitos entrando na

    zona do sofrimento patognico (DEJOURS, 2000; MENDES; ARAJO, 2011)?

    Na nossa avaliao, sob a justificativa de estarem conectados, a tal flexibilidade

    sugere ideia de modernidade e liberdade. Modernidade porque as tecnologias trazem noo de

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    205 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    atualizao, facilidade e praticidade. Liberdade, pois os horrios fixos de trabalho de outrora,

    com hora para entrar e hora para sair, so substitudos pela autogesto do horrio. O

    funcionrio agora pode administrar seu prprio tempo. Inclusive, sabe-se de bancos que

    travam os sistemas, a partir de determinados horrios, para forar os empregados a

    terminarem sua jornada dentro da empresa. Porm, as metas continuam altas, o que faz com

    que muitos levem trabalho para casa.

    Os tempos so outros. Discursos organizacionais criticam o workaholic. No

    entanto, estimulam a dedicao extrema do executivo por meio de outros artifcios, mais sutis,

    tais como convnios com academias desportivas ou instalao de equipamentos de ginstica

    dentro da prpria empresa, para no se perder tempo com o trnsito, para se elaborar

    programas de qualidade de vida etc.

    O atleta corporativo (SIQUEIRA, 2009, p. 135) no pode ser um estressado

    como era o ultrapassado workaholic. Precisa saber administrar esse estresse. No pode

    aparentar sofrimento. O homem moderno cuida da sade, estimulada, inclusive, pelo

    programa de qualidade de vida da empresa. No entanto, questiona-se, por trs dessa aparente

    qualidade de vida, se existe sade psicolgica e mental do trabalhador.

    No site da empresa Google, h a divulgao de uma lista intitulada Dez verdades

    em que acreditamos.4 Nesse rol, a dcima mensagem chama a ateno: Ser excelente

    apenas o ponto de partida, no a linha de chegada. Estipulamos metas que sabemos que ainda

    no podemos atingir porque acreditamos que o esforo para atingi-las resultar em um

    trabalho melhor do que o esperado.5

    Embora a mesma lista defenda que a sexta verdade seja possvel fazer dinheiro

    sem fazer o mal; e, ainda que sejamos a favor da inovao contnua e da busca por

    excelncia em produtos e servios, a questo aqui passa pelo preo psquico que alguns

    indivduos pagam para alcanar essas metas. Quando se l que [...] estipulamos metas que

    sabemos que ainda no podemos atingir [...], nos perguntamos se no pode haver uma

    mensagem implcita, sugerindo dedicao e sacrifcios alm da normalidade. Como

    estabelecer fronteiras entre o sucesso e o fracasso, quando se estipula metas que se sabe, de

    antemo, inalcanveis?

    4 Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2013.

    5 Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2013.

  • E&G - REVISTA ECONOMIA E GESTO ISSN 1984-6606

    206 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    Sabe-se que o controle uma funo clssica e necessria da Administrao. E

    no se nega seu papel na conduo de uma atividade qualquer. Porm, tem-se colocado o ser

    humano a servio do controle, no o contrrio.

    Ao discutir Management, Managers and Manageriarialism, Cunliffe (2009)

    observa que, embora a gesto e os gestores sejam papis sociais importantes na sociedade

    moderna, o gerencialismo tem se tornado uma ideologia, no sentido de dominao. Torna-se

    uma filosofia de vida, na qual um dogma passa a ser reverenciado por muitas pessoas. Em

    ltima anlise, a vida se resume ao que pode ser gerencivel. H, inclusive, um dito

    popularizado em algumas organizaes, que diz que no se pode melhorar o que no se pode

    ser medido. Medir, aqui, entendido como gerencivel.

    Para se manter o poder relativo do discurso organizacional, preciso ocultar

    aspectos duros da realidade do trabalho. A palavra pode ser um recurso discursivo, que

    atenue, inclusive, ideias e prticas de violncia nas relaes de trabalho, como mostrado

    anteriormente, nesse texto, com o exemplo da contribuio.

    Em outro episdio, conta-se o caso de um executivo que havia implantado trs

    pontes de safena. Para cada uma delas, colocou um apelido referente ao projeto de trabalho,

    que teria lhe gerado cada um dos estresses laborais. Supunha-se que esses projetos teriam sido

    as causas dos distrbios do corao. Esse lado eufemstico do discurso oculta uma violncia,

    uma perversidade. Em outras palavras, nesse exemplo, a possibilidade de se manter no nvel

    hierrquico superior da organizao pode esconder o respectivo preo psicolgico que se

    paga, para ser um gestor de sucesso, como analisou Gaulejac (2007) em Gesto como

    doena social.

    Como uma defesa, para no admitir que seu corpo falha, que frgil e que tem

    limitaes, preferiu eufemizar os infartos. O curioso que o trabalhador parece ter banalizado

    o risco de morrer por causa do trabalho. E parte desse discurso manifestada por meio de um

    recurso lingustico: um eufemismo (VIEIRA; NOGUEIRA, 2013). No exemplo acima, o

    apelido gracioso dado a cada uma das pontes de safena oculta a realidade dura da enfermidade

    no corao.

    Resumindo, o processo de seduo organizacional poderoso. Engendra uma

    lgica, na qual o indivduo torna-se sujeito e objeto dessa dinmica. Ao mesmo tempo que se

    torna uma vtima de controle e violncia no trabalho, pode ele mesmo ser um portador de

    reproduo do sistema. Segundo Vieira e Lemos (2014), vrias organizaes empresariais se

    apresentam com uma imagem de melhores empresas para se trabalhar, mas aparecem, ao

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    207 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    mesmo tempo, encabeando listas de assdio moral coletivo e outras formas de violncia

    subjetividade, em smulas trabalhistas dos tribunais do trabalho. E o mais curioso que

    muitos indivduos comeam a naturalizar um discurso que d sustentao a esse cenrio.

    3 Psicodinmica e Clnica do Trabalho: uma possibilidade de enfrentar o real

    O que fazer? Entendemos que a abertura de espaos pblicos de discusso podem

    fomentar o pensamento crtico, que ajude o trabalhador a elaborar, coletivamente, estratgias

    de enfrentamento ao real do trabalho. A Psicodinmica e Clnica do trabalho (DEJOURS,

    2000, 2006, 2009; MENDES et al., 2007; MENDES; ARAJO, 2011; GAULEJAC, 2007;

    VIEIRA; MENDES; MERLO, 2013) pode ser um referencial importante, para se lutar por

    mais sade mental no trabalho, por meio de elementos da inteligncia prtica, do

    reconhecimento, da cooperao e do coletivo do trabalho.

    Partindo do princpio de que o trabalho torna-se central na formao das

    identidades dos indivduos, banalizar a precarizao dos empregos, os processos de

    terceirizao, as demisses em massa, em nome de preceitos economicistas faz com que a

    sociedade de hoje naturalize o sofrimento humano no trabalho em nome da produtividade.

    De um lado, os sem trabalho sofrem. De outro, os que trabalham tambm sofrem.

    Os primeiros, muitas vezes, no visualizam outra alternativa, a no ser sujeitarem-se a

    condies desumanas de trabalho, quando buscam uma oportunidade de sobrevivncia. Os

    segundos, para no carem no primeiro grupo, acabam submetendo-se a regras impostas pelo

    chamado mercado de trabalho. Ruim com ele, pior sem ele, um dos jarges disseminados

    pelo senso comum da banalizao da violncia.

    Em muitas empresas, denunciam-se casos de sofrimento humano no trabalho, que

    ultrapassam a linha da normalidade, tais como doenas fsicas (LER leses por Esforos

    Repetitivos, gastrites, lceras, infartos etc.), doenas psicossociais (depresso, dependncia

    qumica, TOC Transtorno Obsessivo Compulsivo etc.) e acidentes de trabalho, que

    invalidam e/ou matam milhes de pessoas anualmente.

    A esse respeito, segundo Arajo (2008, p. 54), de acordo com a OIT

    Organizao Internacional do Trabalho, a cada ano, ocorrem cerca de 270 milhes de

    acidentes de trabalho, com cerca de dois milhes de mortes, resultantes de acidentes ou

    doenas adquiridas no trabalho. Acrescenta, ainda, esse citado autor, que, no caso especfico

    do Brasil, no ano de 2003, ocorreram 390.180 acidentes de trabalho, com 2.753 bitos

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    208 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    (mdia de sete a oito mortes por dia) e a incapacitao permanente de 12.038 trabalhadores.

    Por ltimo, mas no menos importante, sabe-se de muitos casos de suicdio e de outros graves

    problemas de adoecimento e morte, decorrentes da precarizao de condies materiais e

    sociais das relaes de trabalho (BASTOS; GONDIN, 2010; LIMA, 2010; SANTOS et al.,

    2010).

    Para estudar essas relaes e as respectivas interfaces, que ajudam a formar as

    subjetividades, pode-se recorrer a vrias abordagens das Cincias Humanas e Sociais, dentre

    as quais se destaca a Psicodinmica e Clnica do Trabalho. Em A loucura do trabalho: estudo

    de Psicopatologia do trabalho, Dejours (2000) levanta questionamentos importantes acerca

    do binmio prazer e sofrimento, na produo de subjetividade. O contedo do trabalho

    destitudo de significado, nesse sentido, e os indivduos so levados a acreditar que no h

    outra sada, a no ser suportar uma sobrecarga fsica e psicolgica, naturalizada por polticas e

    modelos de gesto. Isso pode lev-los ao adoecimento, a acidentes e morte.

    Para aprofundar esse debate, em A banalizao da injustia social, Dejours

    (2007)6 questiona, por que, em nome da competitividade, empresas se utilizam de mtodos

    cruis de Administrao. Tanto no nvel individual, quanto no coletivo, registram-se

    contradies nas relaes de trabalho, que ajudam a visualizar desequilbrios na sade mental

    de muitos trabalhadores, por causa de um sistema que se fortalece, graas a uma face

    repugnante das organizaes (MORGAN, 1996).

    No Brasil, vrios estudos tm ajudado a compreender esses tipos de problema, por

    meio da Psicodinmica e da Clnica do Trabalho. Os principais campos empricos de anlise

    desses fenmenos tm sido a administrao pblica e privada, os sindicatos, os hospitais

    pblicos, o setor bancrio etc. (MENDES; ARAJO, 2011; MENDES, 2010; LANCMAN;

    SZELWAN, 2004). As pesquisas tm sido balizadas por meio de diagnsticos e de um

    mtodo de interveno. A Clnica do Trabalho trata de uma sistematizao de encontros, que

    visam a auxiliar os trabalhadores a fortalecerem os coletivos de trabalho, como uma

    estratgia de enfrentamento s manifestaes de sofrimento patognico (MENDES;

    ARAJO, 2011).

    Quando modos perversos de gesto seduzem ou foram os indivduos a

    suportarem as sobrecargas do trabalho acima dos limites, tais profissionais podem adoecer ou

    at mesmo morrer, por conta de ambientes doentios e degradantes das relaes de trabalho.

    6 H vrias edies das publicaes de Christophe Dejours desde seus primeiros estudos relacionados com a

    Psicopatologia do Trabalho at passar para a abordagem conhecida hoje como Psicodinmica do Trabalho.

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    209 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    A administrao do medo pode ser um mtodo de gesto propulsor de aumento da

    produtividade. O medo do desemprego. O medo da incompetncia, do fracasso etc. H,

    tambm, uma presso para se trabalhar mal, aquela causada por uma discrepncia entre os

    valores ticos e morais do cidado trabalhador, que se v pressionado a aderir a valores e

    sistemas desumanos (ou que imputa risco ao coletivo), em nome de ajustes produtividade

    etc. (DEJOURS, 2006).

    Nesse sentido, pode haver desesperana de reconhecimento, um balizador

    importante para a sade mental do trabalhador. Dejours (2006, p. 34) aduz que Do

    reconhecimento depende na verdade o sentido do sofrimento. Quando a qualidade do meu

    trabalho reconhecida, tambm meus esforos, minhas angstias, minhas dvidas, minhas

    decepes, meus desnimos adquirem sentido. Quando h precarizao do trabalho e do

    ambiente de trabalho, aumenta-se o risco de sofrimento psquico, na medida em que no se v

    sentido no trabalho.

    Para lutar contra esse sofrimento psquico, os trabalhadores lanam mo de

    defesas. Individuais e coletivas. Para fazer a manuteno da aparente normalidade, na medida

    em que no se pretende sofrer, os trabalhadores podem negar uma realidade, fechando os

    olhos para o seu prprio sofrimento e para o sofrimento alheio.

    Agravando um pouco mais esse quadro, verifica-se um enfraquecimento de

    organizaes sindicais, em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil. Nesse particular, a

    possibilidade de mobilizao subjetiva, para enfrentar as adversidades e as injustias no

    mundo do trabalho, parecem nfimas. No nvel poltico, os cidados tornam-se vulnerveis,

    sendo capturados por uma ideologia que lhes faz acreditar que tem que ser cada um por si,

    Deus por todos.

    Os mtodos e modelos de gesto, inspirados nos EUA e Japo, passam a sugerir

    que no h futuro, no h progresso, sem tais preceitos e sistemas.

    Essas novas utopias, [...] sustentavam que a promessa de felicidade no estava mais

    na cultura, no ensino ou na poltica, mas no futuro das empresas. Proliferam ento as

    culturas empresariais com novos mtodos de recrutamento e novas formas de gesto, sobretudo dos recursos humanos. A empresa, ao mesmo tempo em que era o ponto de partida do sofrimento e da injustia (planos de demisses, planos sociais), acenava com a promessa de felicidade, de identidade e de realizao para os que soubessem adaptar-se a ela e contribuir substancialmente para seu sucesso e

    sua excelncia. (DEJOURS, 2006, p. 41)

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    210 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    Esse quadro s possvel porque, alm dessa apatia e passividade dos

    trabalhadores, h a colaborao dos gerentes, que passam a cumprir um papel ativo, de

    desenvolver a distoro comunicacional, por meio da mentira, por exemplo, do cinismo

    organizacional, como principal propagador das injustias. Estas so vistas como

    consequncias inevitveis do sistema, na guerra econmica contra os concorrentes, onde

    impera a lei dos mais fortes.

    Dejours (2006, p. 65) afirma que:

    A eufemizao do real do trabalho e do sofrimento de quem produz no tem nada de

    novo em si. Tambm a mentira comercial bastante antiga. A novidade a

    orientao das prticas discursivas de valorizao para dentro da empresa, visando aos atores da organizao. Em virtude mesmo das prticas discursivas adotadas

    pelos atores sociais, em particular pelas organizaes sindicais, com relao

    segurana, aos acidentes, s doenas profissionais, aos conflitos internos da empresa

    etc., parece pouco realista, ultimamente, tentar uma propaganda de tipo comercial

    voltada para os prprios empregados.

    O que fica mais surpreendente que a eufemizao das relaes de trabalho no

    s oculta o significado de colaborador na perspectiva de mais alienao do trabalhador, para

    doar-se, mesmo que sob pena de adoecer, mas pelo sentido perverso que deturpa (VIEIRA;

    NOGUEIRA, 2013). O mal se passa por bem. Colaborar passa a significar contribuir com a

    demisso em massa, com as injustias sociais, com a administrao do medo, sem peso na

    conscincia ou sem sentimento de culpa. Para se apagar os vestgios das mentiras

    organizacionais, demitem-se os funcionrios mais antigos, que teriam histrico da empresa e

    das maldades institudas. Aparece uma manipulao do discurso comunicacional.

    Dejours (2006) revela que h poucos gestores paranoicos e de personalidade

    perversa. O que mais intriga que a grande maioria de gestores e demais empregados

    moralmente de bem se submetem e se sujeitam ao trabalho sujo. Parece no verem outra

    alternativa. Anestesiam-se, de modo defensivo, para no enxergarem as injustias.

    Portanto, o mal se configura como a tolerncia mentira, de prticas cnicas, em

    relao s leis trabalhistas e aos consumidores, em geral. A virilidade apresenta-se como uma

    verdade absoluta. Dejours (2006, p. 81) afirma que: mede-se exatamente a virilidade pela

    violncia que se capaz de cometer contra outrem, especialmente contra os que so

    dominados, a comear pelas mulheres.

    A racionalidade instrumental se reveste de uma estratgia coletiva de defesa, que

    consiste em acreditar que se precisa fazer o mal para continuar na batalha. E mesmo que se

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    211 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    tenha um senso moral que lhe acuse a conscincia, em nome da virilidade, ele precisa

    continuar no jogo, pois se no o fizer, algum o far.

    Faz-se importante destacar, que nessa racionalizao implementa-se, ainda, uma

    ideologia na qual se defende toda e qualquer ideia e ao economicista de modo doutrinrio.

    Qualquer reao crtica a esse sistema pode ser interpretada como pouco inteligente. A f na

    cincia, que se procura passar por erudio, funciona aqui como um imaginrio social e

    desqualifica a reflexo moral e poltica. Assim, a colaborao no trabalho sujo pode conferir

    aos colaboradores a condio de cidados esclarecidos (DEJOURS, 2006, p. 95).

    Em A banalizao do mal, baseado no caso Eichmann, analisado por Hannah

    Arendt, defende-se a tese que Eichmann no era um perverso do tipo mais crtico, que se

    conhece na psiquiatria. Tratava-se de um burocrata, que assumiu a funo social de

    contribuir com a eficincia do sistema. Seu modo de pensar e de agir revelavam um

    normopata, ou seja, uma pessoa que passa a tratar com normalidade a violncia, pois esta

    seria um detalhe. O mais importante seria cumprir com a obrigao de cumprir as metas. No

    importa o senso moral.

    A deficincia desse senhor est muito mais na falta de capacidade imaginativa, no

    sentido de ser, em ltima anlise, desprovido da capacidade de pensar. Faz-se uma clivagem,

    o indivduo bloqueia parte do seu sistema de pensamento. Em outras esferas capaz de

    racionar e de imaginar, mas, no trabalho, quando lhe solicitado que cumpra uma misso, que

    bata uma meta, o importante cumpri-la, sem questionamento.

    Aps essas explicaes, que fundamentam boa parte da necessidade de se criticar

    o universo doentio das relaes de trabalho, cumpre defender um pensar essa realidade. A

    Psicodinmica e Clnica do Trabalho tm, pois, suas bases nos estudos de Christophe Dejours,

    cuja tese central denuncia a inrcia moral e intelectual de pessoas de bem, em contribuir com

    a banalizao das injustias sociais.

    A normalidade, para esta abordagem, traduzida como uma luta permanente do

    indivduo, para no adoecer. Nesse sentido, delineada pelo que se defende como um estgio,

    no qual se encontra o sofrimento criativo. Trata-se de uma dinmica segundo a qual as

    mobilizaes subjetivas devem ser ancoradas por trs sustentaes: a) inteligncia prtica; b)

    cooperao; c) reconhecimento. Quando estes trs elementos funcionam, h mais chances de

    os indivduos permanecerem na zona de normalidade, evitando o adoecimento.

    A inteligncia prtica seria a capacidade de o indivduo usar a astcia, a

    inventividade, o pensamento, para agir sobre o real. Significa poder ultrapassar o prescrito, o

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    212 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    organizado, tendo em vista a complexidade e as surpresas do dia a dia de trabalho. Envolve

    cognio e afetividade. Nas palavras de Vasconcelos (2013, p. 238), para ajustar de forma

    criativa a prescrio ao real do trabalho, mobilizada uma forma especfica de inteligncia,

    denominada inteligncia prtica que envolve cognio e afetividade ao transgredir a

    organizao do trabalho. E essa transgresso, nos limites do que seria permitido e do que

    seria censurvel, legitimaria relativa autonomia dos indivduos em suas atividades laborais.

    A cooperao est baseada como elemento central da formao de um coletivo de

    trabalho, sem o qual se pode cair em individualismo. Trata-se de se fomentar a confiana e a

    solidariedade, sem as quais o trabalho pode perder o sentido para o trabalhador. Dejours

    (2011, p. 80) afirma que a relao da cooperao com o trabalho envolve [...] a vontade das

    pessoas de trabalharem juntas e de superarem coletivamente as contradies que surgem da

    prpria natureza ou da essncia da organizao do trabalho. E a cooperao seria um desafio

    permanente, pois, segundo Ghizoni (2013, p. 100) envolve confiana. Torna-se pois uma luta

    constante, j que h questes de poder e outras complexidades nas relaes de trabalho. No

    entanto, a cooperao seria mais do que uma orientao, mas um exerccio, que daria

    sustentao normalidade acima citada, juntamente com o fomento da inteligncia prtica e

    do reconhecimento.

    O reconhecimento diz respeito dimenso simblica e de julgamento. Refere-se

    ao significado da mobilizao subjetiva para a realizao de um trabalho. Nesse particular, a

    psicodinmica do reconhecimento tem a ver com o julgamento que os colegas, os superiores

    hierrquicos e os clientes fazem da qualidade de trabalho do indivduo. Trata-se,

    especificamente, de se submeter ao julgamento de utilidade, sobre o qual os superiores

    hierrquicos, subordinados e eventuais clientes lhe conferem. E, tambm, ao julgamento de

    beleza, aquele proferido pelos pares, caracterizado pelo status que esse trabalhador conquista

    diante daqueles que conhecem a fundo o real desse trabalho. Para que seja efetivo, o

    reconhecimento tem que estar associado cooperao e inteligncia prtica (DEJOURS,

    2009; LIMA, 2013). Mendes (2008, p. 21) destaca que estudos recentes consideram o

    reconhecimento como elemento central para o processo de sade-adoecimento, na medida em

    que pode fortalecer ou enfraquecer o coletivo de trabalho.

    Para se fazer a manuteno do sofrimento criativo, a Psicodinmica e a Clnica do

    Trabalho defendem, ento, que se analise as trs dimenses supramencionadas (inteligncia

    prtica, cooperao e reconhecimento). A materializao dessa anlise pode ser elaborada por

    meio do que tem sido testado, na Frana, no Brasil e em outros pases, como clnicas do

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    213 Revista Economia & Gesto v. 14, n. 36, jul./set. 2014

    trabalho, que so dividas em: a) clnica da cooperao, quando se prope potencializar a

    mobilizao subjetiva, a construo de regras coletivas de ofcio e de convivncia para um

    coletivo imerso no mesmo cotidiano de trabalho; trata dos indivduos que ainda no esto

    adoecidos; b) clnica das patologias, que visa a levar os sujeitos adoecidos a resgatar os

    sentidos do trabalho e a reconstruir sua histria, tendo em vista o adoecimento e/ou violncia

    a que foram submetidos; c) clnica da incluso, destinada a aposentados, desempregados e

    outros indivduos no inseridos formal e ativamente no mercado de trabalho, buscando

    auxili-los no processo de reinsero ou ressignificao do trabalho. Cabe ao clnico-

    pesquisador identificar em qual das trs situaes dever conduzir a anlise (MENDES;

    ARAJO, 2011, p. 57; ALVES, 2013, p. 46).

    A abordagem da Psicodinmica do Trabalho tem se configurado como um mtodo

    que explica contradies do binmio Capital x Trabalho. Busca decifrar enigmas que se

    inscrevem nas relaes intersubjetivas do trabalhador, no processo de formao de sua

    identidade. Nesse ensaio, especificamente, apresentou-se como uma possibilidade de se

    criticar aspectos discursivos e eufemsticos, que suscitam violncia psicolgica aos

    trabalhadores de um modo geral.

    Do ponto de vista acadmico-cientfico, faz-se necessrio analisar os limites desse

    modelo, com o intuito de melhorar a preciso dos diagnsticos. Sugere-se, por exemplo, que

    se estude a sustentabilidade da Psicodinmica e Clnica do Trabalho, diante de um contexto

    social e poltico to poderoso (PAGS et al., 2008), como mencionado nesse debate. E, ainda

    que se identifiquem contradies nessa abordagem, defende-se que essa seja uma alternativa

    vivel, para se revelar os desafios de gesto de pessoas e de relaes de trabalho, no que

    tange, especificamente, sade mental do trabalhador, como elemento imprescindvel

    inovao e ao progresso econmico e social. Utpico? Talvez. No entanto, acredita-se que um

    primeiro passo o debate pode auxiliar nessa tarefa.

    Consideraes finais

    O objetivo desse ensaio foi trazer ao debate como aspectos discursivos podem se

    travestir de ingenuidade e romantismo, ocultando violncia psicolgica e perversidades nas

    organizaes contemporneas.

    A seduo organizacional apresenta-se como uma estratgia, segundo a qual os

    indivduos so convidados a entrar na fantasia de que, assim como as empresas, podem ser

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    grandiosos, chegar l, ser algum na vida. Na sociedade que valoriza mais a aparncia do

    que a essncia, um programa de qualidade de vida pode ser identificado como um exemplo de

    seduo organizacional.

    Mas, ao enfrentar a realidade, tais indivduos podem preferir fazer de conta que

    so imortais: cuidam da sade atletas corporativos (SIQUEIRA, 2009), estimulados por

    programas de qualidade de vida; banalizam a injustia social (DEJOURS, 2007), por meio

    das contribuies para a sade econmica e financeira das empresas; aprendem a ser

    resilientes, sugerindo adaptao contnua. E, nesse sentido, so os indivduos que tm que

    aprender a se ajustar aos modelos, no o contrrio.

    impressionante, nessa ideologia, como os indivduos so praticamente os nicos

    responsveis pelo alto nvel de estresse no trabalho contemporneo. Ao se tornar pblico um

    diagnstico dessa natureza, rapidamente aparecem solues mgicas, que podem aliviar a

    sobrecarga psicolgica e emocional dos indivduos no trabalho: basta seguir uma dieta

    saudvel, fazer ginstica laboral, dormir oito horas por dia, no levar trabalho para casa etc.,

    que tudo fica melhor. Especialistas em Recursos Humanos tm sugerido, inclusive, a prtica

    de atividades artsticas, tais como o teatro e a msica, para ajudar os trabalhadores a lidarem

    melhor com o estresse organizacional.

    Ser? Por que no se questiona se o volume de trabalho desse trabalhador est

    adequado para sua capacidade fsica e mental? Por que no se discutem as bases da

    organizao do trabalho? Sabe-se que a informatizao de vrios setores da economia reduziu

    os postos de trabalho nos ltimos anos. Atualmente um funcionrio faz o trabalho que era

    realizado por dez, quinze ou mais trabalhadores. No se est defendendo que tanto o exerccio

    fsico quanto as atividades artsticas e todo o manancial de esforos rumo qualidade de vida

    no sejam importantes para a manuteno da sade. Nosso argumento est nas intenes

    dessas atividades que, por meio de recursos discursivos, ocultam realidades precrias de

    trabalho.

    Um programa de qualidade de vida, nesse sentido, pode ser entendido como uma

    defesa, pois, para suportar a presso, tem-se que preparar o corpo e a mente. Paradoxalmente,

    por outro lado, quando as estratgias psicolgicas de defesa desses trabalhadores falham,

    frente ao real do trabalho, eles adoecem. E nesse sentido, quem v cara, no v corao!

    Estamos cuidando da aparncia dos atletas corporativos, que podem at estar em dia com os

    exames peridicos da empresa, mas acabam se acostumando com a manuteno do estresse

    laboral das organizaes modernas, usando vrias alternativas, tais como o lcool e drogas

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    diversas, ou mesmo alimentando um discurso de que faz parte das caractersticas do nosso

    tempo ter que lidar com um cotidiano competitivo, pois no h lugar para todos. E, nesse

    jogo, tem-se que lutar para vencer. Na nossa empresa, no h lugar para perdedores!

    Sabe-se que, dentro de um sistema capitalista, o binmio capital x trabalho tem

    sido analisado, revelando que o primeiro prevalece custa do segundo. Quer dizer que o

    trabalho ou o trabalhador tem sido submetido s regras da objetividade exagerada do capital

    que, nas palavras de Gaulejac (2007) foram traduzidas como o fenmeno da quantofrenia, no

    qual se instaura a doena da medida. A subjetividade, nesse caso, torna-se refm da

    objetividade. No entanto, h estudos que discutem a necessidade de se defender a qualidade

    da sade psicolgica dos trabalhadores como recurso importante da Administrao.

    Nessa direo, no se trata de analisar o ambiente de trabalho de modo romntico

    ou ingnuo, acreditando que essa ou outra abordagem pretensamente crtica ir solucionar,

    definitivamente, as mazelas do sistema capitalista. Todavia, entende-se que, dentro do que se

    considera como Estudos Crticos Organizacionais, tal perspectiva pode auxiliar a enfrentar

    esse poder, com esperana de se adoecer menos e se transformar relaes de trabalho, nas

    quais os indivduos lutem cotidianamente, para serem protagonistas.

    Por outro lado, como os aspectos discursivos revelam contextos e caractersticas

    de um tempo, a Psicodinmica e a Clnica do Trabalho ou quaisquer outras estratgias de

    enfrentamento violncia, nas organizaes, no podem ser consideradas como alternativas

    definitivas. A produo de um discurso ou da prpria seduo organizacional dinmica. E

    pode refletir o jogo de interesses dos atores envolvidos nesse contexto.

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