Quilombo anastacia costa

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Anastácia, Manuel Barbosa e Ferreira-Fialho, famílias e territórios negros: tradição e dinâmica territorial em Gravataí e Viamão, RS. LUCIANO SOUZA COSTA Orientador: Prof. Dr. Sérgio Baptista da Silva Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - Programa de Pós Graduação em Antropologia Social Dissertação. Porto Alegre, 2007

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  • 1. 0UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DISSERTAO DE MESTRADOANASTCIA, MANUEL BARBOSA E FERREIRA-FIALHO, FAMLIAS E TERRITRIOS NEGROS: tradio e dinmica territorial em Gravata e Viamo, RSLuciano Souza CostaOrientador: Prof. Dr. Srgio Baptista da Silva Porto Alegre, 2007

2. 1UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DISSERTAO DE MESTRADOANASTCIA, MANUEL BARBOSA E FERREIRA-FIALHO, FAMLIAS E TERRITRIOS NEGROS: tradio e dinmica territorial em Gravata e Viamo, RSDissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.Luciano Souza CostaOrientador: Prof. Dr. Srgio Baptista da SilvaPorto Alegre, 2007 3. 2... Dos sonhos, porem, acordamos todos e agora eis-me no diante do sonho realidade, mas da concreta e possvel forma do sonho. Por isso me limitarei a escrever: Isto um livro sobre o Alentejo. Jos Saramago, sobre sua obra Levantado do Cho 4. 3AGRADECIMENTOSOs agradecimentos necessrio so muitos e nunca sero o suficiente. Gostaria de agradecer ao Programa de Ps Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul por ter depositado em mim seu voto de confiana, malgrado as condies adversas que j anunciavam desde meu ingresso, na condio de aluno e trabalhador com carteira assinada. Agradeo aos meus colegas do Controle da Arrecadao e Depsito a Discriminar, Ronaldo, Acira, Liane, Estevo e Karoll, pela fora, incentivo e compreenso em minhas muitas horas de ausncias permitidas acumuladas neste perodo do mestrado. Agradeo em especial aos meus gestores, Csar Augusto Perell e ngela Pianca Scangarelli, pela confiana, pelo incentivo e por abraarem um projeto distante de suas realidades imediatas com os olhos de quem pensa alm das fronteiras locais. Mrcia e ao Gustavo pelo apoio e por terem lido e corrigido verses desta dissertao. Helosa, Patrcia e ao Gustavo, pela solidariedade imensurvel e pela formatao e correo ortogrfica dos originais desta dissertao. Difcil encontrar palavras para agradecer ao meu orientador, professor e amigo Srgio Baptista da Silva, pelas muitas sugestes e tentativas de transformar esta dissertao em um produto muito mais consistente. No pude honrar plenamente seus esforos, mas sou enormemente grato por sua confiana e pelo senso de respeito que demonstra em todas as ocasies e para com todos ao seu redor - e por ser, antes de tudo, um mestre e professor em toda a acepo dos termos. Outros mestres estiveram neste caminho, e a professora Daisy Barcellos, alm de minha especial orientadora durante a graduao, foi tambm uma grande incentivadora deste meu projeto de cursar o Mestrado mantendo meu emprego regular. Agradeo Helosa, pelo carinho, solidariedade e compreenso nestes tempos difceis do mestrado. s comunidades de Manuel Barbosa, Anastcia e Ferreira-Fialho, cuja acolhida e amizade possibilitaram o dilogo que resultou neste trabalho. Agradeo ao Antnio Fialho Costa, pelas muitas trocas e conversas que se prolongam no tempo. A todos de Mato Alto com quem convivi, em especial ao Jairo, Clia , D. Maria Augustinha, Zadir e ao seu Ado Fialho, por compartilharem seus tempos e suas memrias. Ao seu Francisco, de Manuel Barbosa pelos dilogos e conversas impagveis e por compartilhar sua casa, suas prticas e suas memrias. Ao pessoal do Passo da Caveira ao Telmo e Clareci em especial, cujo afeto e acolhida e os exemplos de uma socialidade familiar imprimiram sua marca no apenas neste trabalho, mas em mim pessoalmente. Aos meus familiares, pelo carinho e pelo suporte, na proximidade e na distncia. v Zilda e ao v Jubal, em especial, este trabalho foi feito com vocs. 5. 4RESUMOEste trabalho pretende abordar as vivncias cotidianas de trs comunidades negras rurais dos municpios de Gravata e Viamo, na Regio Metropolitana de Porto Alegre, de modo a salientar a importncia da territorialidade, das redes de relacionamentos destas coletividades entre si e com os demais humanos e no-humanos.ABSTRACTThis work aims to deal with daily living of three black comunities from Gravata and Viamo, at the Metropolitan Region of Porto Alegre, RS, as a way to emphasize the importance of territorial settlemment, social networks and human-nonhuman relationships among these collectivities. 6. 5SUMRIO LISTA DE FIGURAS...........................................................................................................6 INTRODUO.....................................................................................................................9 CAPTULO 1. HISTRIA E CONTEXTO.....................................................................22 1.1. ANTECEDENTES ..........................................................................................................22 1.2. ALGUNS DADOS DESTE PANORAMA .............................................................................23 1.3. GRAVATA E VIAMO: ORIGENS HISTRICAS .............................................................24 CAPTULO 2. REFERNCIAIS TERICO-CONCEITUAIS.....................................32 2.1. COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO RS.........................................................................32 2.2. COMUNIDADE..............................................................................................................36 2.3. ESTUDOS DE COMUNIDADE NO BRASIL........................................................................37 2.4. COMUNIDADE NEGRA RURAL ......................................................................................38 2.5. PARENTESCO ...............................................................................................................39 2.6. ETNICIDADE ................................................................................................................42 2.7. TERRITORIALIDADE.....................................................................................................44 CAPTULO 3. O CAMPO, NA PRTICA ......................................................................49 3.1. ETNOGRAFIA DAS REDES ANCESTRAIS........................................................................49 3.2. LUZES SOBRE O PASSADO - MANUEL BARBOSA...........................................................55 3.3. LIGAES ANCESTRAIS ...............................................................................................60 3.4. COMPANHEIROS DE BATALHAS ...................................................................................62 3.5. COMUNIDADES E TERRITRIOS ....................................................................................77 3.6. CLARECI, TELMO E O PASSO DA CAVEIRA ...................................................................82 3.7. CLIA, JAIRO E AS REDES DE MATO ALTO ...................................................................94 CAPTULO 4. VIVNCIAS E PRTICAS..................................................................104 4.1. COLETIVOS LOCAIS ...................................................................................................104 CAPTULO 5. CONSTITUIO DOS TERRITRIOS: MORFOLOGIA E DINMICA .......................................................................................................................112 CONCLUSES.................................................................................................................117 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................119 ANEXOS............................................................................................................................128 Anexos 1 documentos ......................................................................................................128 Anexos 2 fotos .................................................................................................................137 7. 6LISTA DE FIGURASFigura 1: Amrica do Sul 1650. Em destaque a localizao dos Territrios do Guair e Tape24Figura 2: Misses Jesuticas na Amrica do Sul Sculo XVII26Figura 3: Rio Grande do Sul e Regio da Grande Porto Alegre onde se encontram as comunidades estudadas50Figura 4: Rio Grande do Sul e reas abrangidas pelas comunidades, nos Municpios de Viamo e Gravata51Figura 5: Regio de Gravata e Viamo - Comunidades e Grupos Negros Estudados51Figura 6: Rio Grande do Sul Comunidades Negras Estudadas em Relao a Algumas Comunidades Quilombolas da Regio Litornea do Rio Grande do Sul52Figura 7: D. Idalina ( esq), Zaida (centro) e Denise ao fundo, em reunio com pesquisadores da convnio INCRA-FAURGS, em 07/01/200659Figura 8: Seu Francisco, D. Eva Barbosa e Zaida (filha de Eva), em 07/01/200659Figura 9: Os irmos Antnio Francisco Ramos Barbosa (seu Francisco esquerda) e Marino Ramos Barbosa em 09/11/200661Figura 10: Antnio Freitas ( dir.) e o sobrinho Andr, neto de Francisco, capinam o terreno de Francisco em Manuel Barbosa, 07/11/200661Figura 11: Genealogia de Ado Fialho dos Santos63Figura 12: D. Maria Augustinha Fialho em sua casa em Gravata, Mato Alto Gravata, 07/200566Figura 13: Ado Fialho no terreno de sua sobrinha Zadir, Mato Alto, Gravata, 08/11/200666Figura 14: (suprimida) Figura 15: Ascendentes de Idalina68Figura 16: Adoes de Fialhos por parte de Fonsecas69Figura 17: Localizao da rea das antigas terras da famlia Ferreira-Fialho76Figura 18: Localizao comparativa dos territrios ancestrais das famlias dos descendentes de Manuel Barbosa, Crispim Ferreira e Anastcia de Souza Reis78 8. 7Figura 19: Genealogia das Famlias de Manuel Barbosa, Crispim Gomes Ferreira e Jos Fialho79Figura 20: Mapa Geral - Territrios ancestrais e novos territrios: Anastcia, Ferreira-Fialho, Manuel Barbosa81Figura 21: Residncia atual de Telmo e Clareci85Figura 22: Derrubada das rvores na casa do Japons, 16/11/200686Figura 23: Fogo a lenha na cozinha velha de Clareci 11/200688Figura 24: Katielen brinca enquanto Clareci lava roupas, 14/12/200690Figura 25: Clareci visita prima Ilza na comunidade Manuel Barbosa, em 15/11/200691Figura 26: Chimarro no fim da tarde em frente casa de Clareci e Telmo. Vizinho (em p), Valdemir, Clareci, Luciana, vizinha e Telmo, 16/11/200691Figura 27: Sandra, Bruno e Giovana na cozinha velha de Clareci, 17/11/200691Figura 28: Gilberto com a gua Lacraia, 17/11/200691Figura 29: Redes de Clareci e Telmo no Loteamento Santa Ceclia92Figura 30: Telmo e o compadre Valdemir. Festa de aniversrio de Clareci e Luciana, 15/11/200693Figura 31: Clareci ( esq.), Telmo e Luciana. Festa de aniversrio de Clareci e Adriana, 15/11/200693Figura 32: Clareci conversa com D. Lucinda e olham Telmo trabalhar. Casa do Japons, 16/12/200693Figura 33: Clareci conversa com D. Lucianda enquanto Telmo trabalha. Casa do Japons 16/12/200693Figura 34: Antnio Fialho,Juraciara, Antnio Carlos, Milady, Geraldo e Jlio, 16/06/200795Figura 35: Foto da casa de Jairo, no Mato Alto, 16/06/200795Figura 36: Foto em frente casa de Geraldo, no Mato Alto, 16/06/200796Figura 37: Jairo, em frente a sua casa no Mato Alto, 16/06/200796Figura 38: Acesso casa de Jairo, no Mato Alto, 16/06/200797Figura 39: Vista da Vila Mato Alto 16/06/200797Figura 40: Casas dos sobrinhos de Jairo e Clia, Mato Alto, 16/06/200797 9. 8Figura 41: Clia e D. Noercy em Barragem-Viamo, 05/03/200597Figura 42: Mapa Gravata Mato Alto: Locais de Moradia de Membros das Comunidades Negras Estudadas98Figura 43: Genealogia Fialhos Anastcia99Figura 44: Jairo mostra as ervas que cultiva, Mato Alto, 03/11/2006101Figura 45: Roseira de Jairo e Clia, Mato Alto, 03/11/2006101Figura 46: Reunio Quilombo Anastcia, casa de Geraldo, Mato Alto, 30/06/2007103Figura 47 e 48: Clareci mostra a casa velha da av Anastcia em Barragem, Viamo. 11/05/2006105Figura 49 e 50: Figuras 49 e 50: Clareci, na casa velha da av Anastcia em Barragem, Viamo. 11/05/2006106Figura 51: Genealogia de Trajano Fialho107Figuras 52 a 55: Animais de Seu Francisco em Manuel Barbosa109Figura 56: Telmo passeia na gua Lacraia com a neta Katielen, 14/01/2006110 10. 9INTRODUO Este trabalho que ora apresentamos sob a forma de dissertao de mestrado representa uma tentativa de resumir um conjunto de experincias, vivncias, dilogos e reflexes que vimos desenvolvendo1 ao longo dos ltimos anos, fruto de nossa aproximao com os integrantes de algumas comunidades negras de origem rural das regies de Viamo e Gravata, Regio Metropolitana de Porto Alegre, RS. Durante a realizao do curso de graduao em Cincias Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul teve incio nossa aproximao com uma das comunidades negras aqui representadas. Entre os anos de 2001 e 2003, realizamos pesquisas que resultaram em um trabalho de concluso de curso (TCC) a respeito de parentesco e casamento intertnico, envolvendo um grupo familiar de etnia negra, auto-reconhecidos como descendentes de Anastcia de Souza Reis (COSTA, 2003). Esta famlia especfica habita h pelo menos quatro geraes uma regio denominada Barragem, prximo ao local denominado Passo dos Negros, no municpio de Viamo, RS. Mas antes de entrar nos relatos que iro compor o objeto desta dissertao propriamente dita, talvez caibam algumas palavras que podem ilustrar o porqu de este trabalho ter assumido esta determinada configurao, ter abordado estes assuntos, estar sendo apresentado nestas condies, possuir os defeitos que tem e, eventualmente at, possuir algumas das qualidades pelas quais possa ser julgado favoravelmente. Durante as fases de elaborao do projeto que daria origem a esta dissertao, chegamos a ter como inteno tratar da existncia de uma matriz negra e indgena que estariam mestiadas (misturadas) nestes grupos - algo que uma pesquisa de memrias pudesse eventualmente evocar. Havia os relatos como os de D. Eva Barbosa, uma senhora de aproximadamente 86 anos, da comunidade de Manuel Barbosa, de que sua av seria de origem bugra e teria sido caada no mato, a cachorro mas somente ela conhecia esta1Com o inestimvel suporte de meus orientadores e de diversos interlocutores de dentro e de fora da academia. 11. 10histria na famlia e no se sabia de algum que tivesse mais detalhes sobre o caso. Havia a histria de vida de D. Dila, 75 anos, vinda de fora e casada com um descendente de Anastcia de Souza Reis; o pai de Dila teria sido ndio mesmo, do mato embora este pai no a tivesse criado. Havia ainda a histria de Anastcia, que era descrita como sendo meio bugra, com o cabelo liso e a pele cor de cuia; sua casa era descrita como sendo do tempo dos escravos dos jesutas, mas ningum nas comunidades sabia dizer quem eram estes jesutas. Conforme veremos no captulo dedicado ao histrico da constituio dos municpios da regio, a presena indgena na formao, principalmente de Gravata, foi realmente uma questo importante. No entanto, ainda no decorrer da fase de pesquisas exploratrias foi-se tornando claro que estes indcios no se revelariam sob a forma de relatos de uma memria mais consistente acerca desta ancestralidade indgena. As histrias de antepassados indgenas haviam passado para alguns grupos familiares como parte da construo de suas auto-imagens, mas atualmente estes grupos identificavam-se mais como negros (ou como morenos tambm, muito freqentemente) do que como indgenas e no mantinham relatos de detalhes deste suposto passado indgena; por mais que esta matriz indgena esteja ou possa estar incorporada a muitas de suas prticas e saberes. O mbito, a durao e as condies exigidas para uma pesquisa deste tipo no permitiram que este projeto fosse levado adiante neste momento.Dentre as condies limitantes para a realizao da pesquisa, pode-se citar o pouco tempo disponvel para permanncias em campo, as quais teriam que ser realizadas em nossas folgas, frias e licenas remuneradas a que tnhamos direito no vnculo empregatcio atual - uma vez que optamos por manter esta relao de emprego durante toda a realizao do mestrado2. Outra questo limitante passava pelo custeio da pesquisa em si custos como os de deslocamentos, manuteno, reciprocidades, livros e gastos em geral2Mantivemos durante a realizao do Mestrado vnculo empregatcio com a Caixa Econmica Federal. As possibilidades de opo, mesmo existentes, so restritas: licenas no-remuneradas tm um alto custo monetrio e profissional, demisso nunca esteve em questo. Assim, optamos por realizar o mestrado contando apenas com as folgas regulamentares acumuladas para a realizao dos trabalhos de campo frias, licena-prmio e ausncias-permitidas. 12. 11deveriam ser suportados pelo pesquisador, j que, com a manuteno de nosso emprego pblico, no poderamos ter acesso a bolsas ou outras subvenes de origem pblica.As pesquisas precedentes e pesquisas exploratrias levaram-nos a constatar a existncia de muitos grupos de famlias negras que habitavam e faziam uso de uma mesma grande regio e que formavam redes de relacionamentos entre si - redes estas que envolviam parentesco, alianas matrimoniais, sociabilidade, festas, religiosidade, formas de trabalho, lealdades e interaes com determinadas redes socio-tcnicas que se sucederam (ou se sobrepuseram) no espao de tempo em que as geraes de descendentes destas comunidades vivem e viveram. Tais condies - de grupos familiares profundamente entrelaados h vrias geraes - conferiam-lhes a possibilidade de compartilharem diversos aspectos de suas formas de vida e levaram-nos a colocar como questo de pesquisa a investigao de at que ponto estas condies comuns de vida e de sociabilidade corresponderam ou correspondem a formas especficas de prticas e de relacionamentos destes grupos com os seus territrios, suas divindades e com todos os seres humanos e nohumanos que os acompanham.Alm das visitas feitas em finais-de-semana (que continuaram sendo feitas, esporadicamente), os perodos de estadia mais prolongados em campo ocorreram primeiramente entre os dias 16 de outubro e o dia 04 de novembro de 2006, quando alugamos uma casa de um dos integrantes das comunidades localizada no bairro do Mato Alto, em Gravata. Em seguida, a partir do dia 9 e at o dia 18 de novembro de 2006, mudamo-nos para uma outra pequena casa situada na Vila Santa Ceclia, dentro do terreno de Clareci e Telmo (da famlia de Anastcia) onde pudemos ter acesso mais fcil tanto aos integrantes deste grupo familiar como comunidade Manuel Barbosa, situada a 2 ou 3 quilmetros dali. O trabalho de campo para esta dissertao foi circunscrito a alguns dos integrantes de trs grandes troncos familiares3 - com os quais tivemos contato principalmente a partir3A circunscrio da pesquisa a estes grupos familiares deveu-se a questes prticas da realizao da pesquisa e tambm de proximidades de relacionamentos nossos no interior destas redes. Estamos cientes, pelos 13. 12dos laos que mantivemos com os descendentes de Anastcia de Souza Reis (op. cit., 2003). Tais grupos podem ser agrupados como: a) os descendentes de Anastcia de Souza Reis; b) os descendentes de Jos Fialho e Matheus Crispim; e c) os descendentes de Manuel Barbosa dos Santos. Estes grupos familiares formam comunidades negras de origem rural que se relacionam entre si e habitam h pelo menos um sculo diferentes localidades dentro de uma mesma grande regio, situada na divisa sudeste do municpio de Gravata com o municpio de Viamo (at a margem do rio Gravata) e a regio norte do municpio de Viamo, Regio Metropolitana de Porto Alegre. O foco principal desta dissertao ser a questo da territorialidade destas famlias e comunidades, mas h que se fazer alguns reparos quanto questo geogrfica, da localizao dos indivduos que fazem parte destes grupos. As formas de ocupao do territrio ancestral, por mais que sejam essenciais na confeco deste trabalho, precisam ser complementadas e problematizadas com outros elementos de suas prticas concretas. Tal como apontou Rosane Rubert (RUBERT, 2007), o questionamento da imagem dos territrios quilombolas como unidades circunscritas e fronteiras bem definidas j vem sendo feito por diversas etnografias dos territrios negros e territrios quilombolas e a autora cita os exemplos de ODwyer (2002), Dos Anjos e Baptista da Silva (2004) ao que ns acrescentamos o prprio caso de Rosane Rubert (RUBERT, 2007). Naquele texto a autora afirma: O que a experincia das comunidades estudadas informa que a rede de relaes que a compe no est limitada aos seus domnios territoriais zonais. Seus tendes se estendem para outros locais, prximos ou longnquos, situados no meio rural ou em centros urbanos (...) (RUBERT, 2007, p. 12).A necessidade de considerar uma territorialidade geograficamente descontnua, alargada em relao territorialidade ancestral, faz com que se tenha uma imagem da prprios dados que surgiram em campo, de que as redes de relacionamentos envolvendo grupos negros da regio so bastante mais extensas do que os casos que pudemos incluir nesta pesquisa. Como exemplos de comunidades e grupos que esto localizados para alm destes e que foram referidos pelos grupos negros com que estivemos em contato, cito os casos de grupos negros residentes na regio conhecida como as Lombas, 14. 13territorialidade destes grupos que no necessariamente coincide com aquela territorialidade catalogada nos relatrios tcnicos utilizados por rgos pblicos, como o INCRA ou o Ministrio Pblico, na instruo dos processos de regularizao fundiria dos remanescentes de comunidades de quilombo, como o caso de alguns destes grupos por ns estudados. No caso daqueles relatrios tcnicos (e muito compreensivelmente) a preocupao mais premente est nos marcos fsicos, histricos, etnogrficos e culturais da ocupao ancestral de um mesmo territrio; no caso do presente trabalho, o limite dos territrios ser a totalidade das formas de ocupao reais por parte das pessoas que se reconhecem e so reconhecidas como fazendo parte das comunidades estudadas. Os elementos que iremos considerar nesta dissertao, e que daro o relevo aos processos de territorialidade destes grupos, sero as suas formas de existncia concreta, nos diversos territrios constituidos e incorporados ao territrio ancestral. Sero ainda seus relacionamentos entre si, com seus territrios e com os demais humanos, animais, plantas e divindades encontrados ou representados como fazendo parte destes territrios. A preocupao de fundo ser a de fazer ressaltar o quanto estes aspectos relacionam-se com as formas de ocupao negra de um grande territrio e, ao fim de tudo, o quanto estas formas relacionam-se ou no com uma forma cultural negra, brasileira, gacha e da regio metropolitana de Porto Alegre, de ocupao e existncia (e porque no, resistncia) em seus territrios. Ao longo deste processo, procurarei salientar as dinmicas territoriais e sociais e o quanto os enquadramentos e as mudanas de enquadramento em determinadas redes sociotcnicas (LATOUR, 1994) - enquadramentos estes aos quais eles tm ou tiveram, provavelmente, muito pouca autonomia de deciso - podem alterar as relaes e as formas de relao deles com seus territrios e deles entre si, mas tambm, por outro lado, o quanto mudanas internas dos grupos so levadas a cabo de maneira a manter determinadas relaes tradicionais. Tambm pretendo abordar as redes de alianas, de parentesco e redes de sociabilidade que ligam estas comunidades entre si e com outras redes de pessoas da mesma regio. Estas relaes podem envolver tanto o fazer parentes - relaes de zona leste de Viamo e grupos negros habitantes da regio conhecida como Paredo, zona Norte de 15. 14casamento, compadrio, relaes de amizade, cooperao, trabalho, diverso - como ainda as relaes deles com o meio ambiente, com suas terras, com os animais, plantas, objetos, com as divindades, com o imaginrio, e ainda com os poderes constitudos ou difusos. A comunidade Quilombo Manuel Barbosa uma destas comunidades negras rurais que tem laos ancestrais com outras comunidades negras da mesma regio. Est localizada no municpio de Gravata, prximo regio conhecida como Barro Vermelho, em um lado oposto margem do rio Gravata onde se localiza a comunidade de Barragem ou Anastcia. Estas duas comunidades esto envolvidas, cada uma a seu ritmo e com histrico prprios, em processos de reivindicaes de seus direitos territoriais mediante processos de reconhecimento como comunidades quilombolas. Estes processos foram ou esto sendo alvo de pesquisas que, do lado da comunidade de Anastcia, j resultaram na elaborao da dissertao de mestrado intitulada De Gente da Barragem a Quilombo da Anastcia: um estudo antropolgico sobre o processo de etnognese em uma comunidade quilombola no municpio de Viamo/RS, de Vera Regina Rodrigues da Silva (2006)4. No caso da comunidade de Manuel Barbosa, recentemente, no final de 2006, foram divulgados pelo INCRA o Relatrio Scio-Histrico-Antropolgico da Comunidade de Manoel Barbosa (Gravata) e o Relatrio Scio-Econmico da Comunidade Manoel Barbosa (Gravata), relatrios estes realizados atravs de convnio firmado entre o INCRA e Fundao de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FAURGS). Tais relatrios fazem parte dos requisitos que o INCRA5 estabelece ao lidar com comunidades que fizeram sua Gravata. 4 Vera Regina Silva foi minha colega no curso de Cincias Sociais e parceira em vrias etapas da realizao de nossos trabalhos de campo na Graduao. Esta fase de colaborao direta, mesmo que no tenha tido continuidade durante nossa ps-graduao, viu seus efeitos prolongarem-se at o presente momento, dado que, sempre que possvel, continuamos trocando opinies e discutindo aspectos de nossos respectivos trabalhos de campo. 5 De acordo com informaes disponveis na pgina da SEPPIR/Presidncia da Repblica (Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial), tais relatrios fazem parte das etapas de elaborao de um relatrio mais completo, o RTID - Relatrio Tcnico de Identificao e Delimitao. Este ltimo descrito como o instrumento utilizado pelo INCRA em sua tarefa de regularizao fundiria dos territrios quilombolas no Pas, determinada pelo Decreto 4.887/2003. composto por sete peas, entre as quais os estudos scio-histrico-antropolgicos e os [estudos] scio-econmicos. Prossegue a pgina da SEPPIR: Depois da publicao do RTID segue-se um perodo para contestao de 90 dias. Esgotado o prazo ou resolvidas as contestaes apresentadas, pode ento haver a decretao de desapropriao das reas 16. 15declarao como comunidades quilombolas e que requereram regularizao fundiria, como o caso da comunidade Manuel Barbosa6. Neste mesmo aspecto, tambm a comunidade Anastcia encontra-se envolvida no pleito como comunidade quilombola. Em 2004, representantes da comunidade protocolaram junto ao INCRA e Fundao Cultural Palmares (FCP) sua auto-declarao como comunidade quilombola. Foi dado incio tambm organizao da Associao de Moradores, que no entanto ainda no possui registro efetivo. Independente disso, tm sido realizadas reunies e demandadas aes junto ao Ministrio Pblico Federal e ao INCRA, pedindo a interveno e a mediao daqueles rgos, como no caso do pleito de fazendeiros que, em setembro de 2006, queriam ocupar parte de suas terras com uma nova barragem no rio Gravata. Contudo, h disputas e clivagens internas a respeito de se a comunidade deve ou no pleitear a interveno do INCRA para demarcao dos antigos limites de suas terras. A questo da propriedade coletiva, que a condio presente na legislao e a desintruso (como trata o INCRA) das pessoas de fora da comunidade e que estejam ocupando as terras so os temas que suscitam as maiores desavenas internas. A terceira das comunidades talvez seja a menos visvel em termos do que se espera encontrar quando se refere a comunidade, tendo em vista ser a nica que no possui mais (ou no est de posse mais) do territrio tido como de propriedade de famlia, ancestralmente. Trata-se dos descendentes de Crispim Gomes Ferreira e de Jos Fialho, um grupo familiar cujos integrantes encontram-se em ncleos mais ou menos coesos de moradores, em bairros vizinhos a suas terras, nas regies de Mato Alto e Cavalhada, em Gravata, e tambm em Canoas uma vez que tiveram as terras da famlia na regio da Cavalhada perdidas por expulso e esbulho ao longo dos anos. Desde o incio de 2007, um grupo dos integrantes deste grupo familiar resolve requerer junto Fundao Cultural envolvidas, se for o caso, procedendo-se titulao da comunidade. Em http://www.planalto.gov.br/seppir/noticias/2006/403.htm (acesso em 29/09/2207). 6 Ainda de acordo com a pgina da SEPPIR, as 18 famlias da comunidade de Manoel Barbosa, em Gravata descendem do casal Manoel Barbosa dos Santos e Maria Luiza Paim de Andrade, que habitaram a regio no sculo XIX. Desde a herana de Manoel Barbosa at os dias de hoje, vrias reas foram perdidas pela comunidade, que ficou restrita a um pedao de 18 hectares longe das melhores terras e recursos hdricos. O relatrio antropolgico concluiu por um territrio pretendido de 123,5 hectares. As famlias, que esto divididas em trs ncleos, concordaram com a delimitao. A comunidade receber os relatrios sciohistrico-antropolgico e scio-econmico. (idem). 17. 16Palmares o seu enquadramento como remanescentes de comunidade de quilombo e o retorno da posse das terras dos ancestrais. At o presente momento, ainda no h o protocolo por parte da FCP, como resposta requisio, mas pode-se dizer que eles encontram-se em etapas iniciais de um processo de organizao e mobilizao pelas terras de seus antepassados. Nossa inteno nesse trabalho, contudo, no a de abordar como foco central a questo das reivindicaes ou das demandas por reconhecimentos de direitos vinculadas ou resultantes da aplicao do artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias (ADCT) da Constituio de 1988, embora (e mais adiante abordaremos este tema) estejamos cientes de que no podemos tampouco estar alheios a esta conjuntura. Assim, embora este trabalho pretenda abordar temas e conceitos que so caros especialmente antropologia vinculada aos laudos e relatrios de reconhecimento de comunidades quilombolas, nossa inteno tambm a de demarcarmos nossa distncia prtica e epistemolgica em relao queles trabalhos, que visam instruir os poderes na tomada de deciso favorvel ou contrria ao pleito das comunidades ou resolver impasses e embargos daqueles que se opem ao pleito. Devo dizer que os trabalhos antropolgicos produzidos sob a demanda dos laudos ou dos relatrios tcnicos serviram-nos como bagagem de conhecimento e estmulo intelectual. Mas no ser demais insistirmos neste ponto, de que o foco desta dissertao ser a territorialidade destas famlias e comunidades negras territorialidade esta que ser considerada para alm dos territrios ancestrais. Ou seja, interessar-nos-o todas as relaes e dinmicas territoriais que envolvem estas famlias e indivduos, relaes estas que podem ajudar a ressaltar as formas de existncia que ocorram tambm fora dos territrios ancestrais, mas que, segundo concebemos, tambm podem ser vistas como essenciais ou como fazendo parte das condies de existncia destas famlias e de manuteno dos prprios territrios originais. Mais especificamente, nossa inteno ser a de procurar entender como se d a inter-relao entre os territrios fsicos, concretos, e este territrio alargado, compreendido em sua concretude e em sua representao, em conjunto com as redes sociais que envolvem parentesco, alianas e etnicidade destes indivduos e grupos. Com isto, mantemos a esperana de tambm contribuir para a discusso da constituio e reconhecimento de 18. 17direitos que no estejam unicamente vinculados matria fsica do territrio, mas propor pensar tambm, dentro daquela conjuntura, a busca e defesa dos direitos territoriais e culturais e sociais e tnico-raciais. Nesta dissertao estes temas esto relacionados com as possibilidades de conceber formas especficas de relacionamento homem-natureza: formas caracterizadas por Bruno Latour como formas hbridas de relacionamento homem-natureza, as quais configuram o que este autor chamou de coletivos natureza-sociedade; aquilo que est entre a matria e a representao, em conjuno com as duas realidades que a cincia moderna procurou sempre separar: natureza e cultura (LATOUR, 2004[1999]). No caso do espao e dos territrios propomos pensar o espao geogrfico em conjuno com o espao das redes, com o espao das alianas, com o espao tnico, com o espao fsico, geogrfico e com a representao simblica do espao dos territrios.O trabalho que pretendemos desenvolver envolver, como dissemos, a abordagem dos conceitos de parentesco, territrio, territorialidade, e etnicidade. Envolver ainda as inter-relaes possveis de serem traadas entre estes conceitos, ao serem aplicados para abordagem do caso concreto de comunidades negras dos municpios de Gravata e Viamo na Regio Metropolitana de Porto Alegre. Assim, procuraremos tratar no apenas dos conceitos em si, mas, igualmente, de at que ponto estes conceitos descrevem situaes que, em uma situao prtica, os implica mutuamente. Mas, se por um lado o recorte da questo poltica e da mobilizao das comunidades quilombolas no estava sendo enfocado diretamente por este trabalho, por outro lado, procuramos no perder de vista o fato de que as comunidades estavam e esto de fato - cada qual em seu ritmo - engajadas em processos de reconhecimento enquanto comunidades quilombolas. A questo tica envolvida na elaborao de laudos em comunidades mobilizadas politicamente foi abordada, por exemplo, por Arruti (2004), em uma entrevista ao site Comcincia7. Ao responder a respeito da elaborao dos laudos, ele afirma que o antroplogo no devia se furtar a descrever as situaes de politizao e de 7Disponvel em http://www.comciencia.br/entrevistas/memoria/arruti.htm (acesso em 20/09/2005). 19. 18disputa que estivessem ocorrendo na comunidade, na medida em que esta situao parte da realidade a ser descrita; o prprio campo de disputas deve entrar como parte do objeto a ser descrito, o que implica tambm em um esforo para que o antroplogo consiga objetivar sua prpria posio ou seja, compreender e ser capaz de descrever o papel que ele prprio desempenha na disputa poltica (ARRUTI, 2004). Essa questo da objetivao da posio do prprio pesquisador tem sido abordada como um dos elementos do chamado aumento da responsabilidade do autor, como escreve Tereza Pires Caldeira (CALDEIRA, 1988) - uma necessidade qual a Antropologia tem de estar atenta. De fato, esta mesma autora expressou em um texto anterior (CALDEIRA, 1981) preocupaes igualmente legtimas a respeito das vicissitudes da posio do antroplogo em campo, a questo de seu poder desigual, a questo da qualidade de seus dados e dos usos que podem ser legtimos (e ticos - ou no) de serem feitos quanto aos dados qualitativos que o antroplogo obtm em campo. Para uma aproximao ao universo do parentesco faremos uso tambm das genealogias, cujo uso se justifica no s como uma ferramenta que permite uma maior aproximao pesquisador-pesquisado, mas por proporcionar tambm as condies para uma atualizao da memria social do grupo (BAPTISTA DA SILVA, 2004). Ao mesmo tempo em que permite uma maior compreenso dos laos familiares, pode levar ao compartilhamento de informaes que quase sempre so restritos a alguns membros das famlias, mas que neste momento da pesquisa passam a ser novamente atualizados e a circularem no grupo, trazendo muitas vezes efeitos alentadores dos laos familiares. Tratase tambm (desde que combinada com o uso de uma metodologia voltada para isso) de uma ferramenta que permite enxergar as alianas ao longo do tempo. Estas genealogias permitiro, por exemplo, o cruzamento dos dados sobre quem so os atores identificados como pertencentes a determinados grupos familiares cujas alianas so mais frequentes; no caso de casamentos intertnicos, que tambm j sabemos, vm ocorrendo h algumas geraes, importa saber como so apresentados e representados estes "outros", "brancos" qual a origem concreta dos indivduos e grupos familiares que estabelecem relaes de alianas matrimoniais com estes grupos negros. Tudo isto no depende unicamente dos 20. 19mapas genealgicos, mas eles sero um importante instrumento de visualizao e caracterizao destas alianas. Se a legitimidade do mtodo de pesquisa etnogrfica o trabalho de campo no est em discusso, pelo menos o carter dos dados assim obtidos tem sido objeto de um debate contemporneo bastante acalorado. A questo do poder e da legitimidade do pesquisador em propor interpretaes sobre os informantes est no centro dessa discusso que envolve uma antropologia identificada como ps-moderna, a qual questiona o papel do antroplogo que se convencionou chamar de clssico, enquanto autor de discursos e ou de interpretaes sobre o outro - vide, por exemplo, James Clifford (CLIFFORD, 2002 [1994]) e tambm Clifford Geertz (GEERTZ, 2002[1988]). Muito embora no aspiremos intervir de maneira propositiva, terica ou metodologicamente, sobre essa discusso, estamos cientes tambm de sua incidncia sobre nosso trabalho e do quanto modificaes no contexto do campo da Antropologia podem afetar as possibilidades de disposio dos nossos dados sob a forma da dissertao, assim como a recepo por parte de seus leitores. Ainda a respeito da questo da produo de narrativas, possvel verificar, dentro da rea acadmica, a existncia de determinados vises, formados historicamente e que afetam as condies de produo e recepo das narrativas dos antroplogos. Isto o que afirma Edward Bruner em A Etnografia como Narrativa (BRUNER, 1986). As contribuies deste autor mostram-nos, alm disso, que podem-se formar, nos meios acadmicos ou culturais da sociedade em geral, determinados ciclos de narrativas. Assim, Bruner cita o exemplo da narrativa do ndio romntico e romantizado - o outro extico trazida pelos primeiros viajantes e cronistas. Em seguida h o ciclo da narrativa dos ndios vitimizados e da resistncia indgena, e tantas outras narrativas que se encaixam em modelos prvios de produo e recepo destes produtos intelectuais. Por outro lado, estas narrativas produzidas pelos antroplogos ou cronistas - e o prprio contato dos antroplogos com as comunidades e grupos - ajudam a construir uma auto-imagem nativa. No decorrer destes processos, podem ocorrer tambm apropriaes nativas das categorias usadas e das descries feitas pelos antroplogos. Bruner tambm (op. cit.) 21. 20quem apresenta o exemplo dos indgenas Pueblo, que estariam encenando as teorias dos antroplogos. Assim tambm no Brasil, referido por diversos autores o fenmeno da apropriao, por parte dos indgenas, dos conceitos usados pelos antroplogos (ou pelo homem branco), como o caso dos conceitos de cultura, patrimnio material, propriedade intelectual, dentre outros (vide COELHO DE SOUZA, 2005). Certamente estes vises influenciam as condies de produo e de receptividade dos trabalhos antropolgicos desde antes do momento de serem produzidos - e esta narrativa etnogrfica certamente no uma exceo a isto. Trata-se tambm de um campo de disputa quanto aos discursos que sero feitos e em que a produo de determinadas narrativas esperada interessadamente, seja por parte das prprias comunidades, seja por parte de determinados setores dos movimentos sociais, como por exemplo o movimento negro, seja tambm por parte de organismos ou pessoas representando foras as mais diversas - polticas, jurdicas, econmicas, partidrias, religiosas, acadmicas, dos meios de comunicao e tantas outras, quanto mais complexas forem as situaes apresentadas. No caso das comunidades negras quilombolas, trata-se de um campo de estudos que teve um impulso muito grande nos ltimos anos, especialmente por conta das atribuies delegadas pelos poderes executivo e judicirio, ao demandarem trabalhos a serem realizados especificamente por profissionais com formao em antropologia social para fins de elaborao de laudos ou relatrios tcnicos uma situao nova, discutida e tematizada nos encontros normativos da principal entidade de classe dos antroplogos como a Associao Brasileira de Antropologia (ABA)8. Assim, pretendemos defender, com os casos aqui apresentados, a existncia de um territrio negro que se estende para alm das fronteiras de cada um dos territrios ancestrais - Anastcia, ou Manuel Barbosa ou das terras dos Ferreira-Fialho na Cavalhada tomados isoladamente; nosso ponto ser tentar mostrar a existncia de uma inscrio social deste mapa, em uma geografia descontnua, mas que propomos que deva passar a ser vista8No ano 2000, a ABA produziu e publicou a Carta de Ponta das Canas, em que divulga para a classe dos antroplogos os procedimentos e cuidados que os antroplogos devem ter ao assumirem as tarefas demandadas de elaborao de laudos de reconhecimento tnico, territorial ou de impacto scio-ambiental. 22. 21tambm em sua categoria de totalidade: pode haver uma descontinuidade espacial e fsica, mas em termos afetivos e representacionais, estes territrios so representados como fazendo parte de um mesmo territrio negro. Dessa forma, territorialidade, parentesco, redes scio-tcnicas e etnicidade sero conceitos que pretendemos abordar individualmente e tambm em conjuno uns com os outros. Mas, como dissemos, pretendemos tambm, atravs da abordagem destes temas, salientar a existncia de formas culturais prprias a estes agrupamentos humanos9. Formas que podem estar, e certamente esto, em constante processo de mudana, mas que, em um determinado momento, situado entre um passado recente e o presente etnogrfico que presenciamos, assumiram, para ns, uma forma que se aproxima dos relatos que tentaremos trazer a seguir.9Formas culturais estas que certamente relacionam-se ou encontram algum paralelismo com outras formas culturais, como as das comunidades rurais do sul do Brasil ou de outras comunidades quilombolas ou indgenas ou seja, no esperamos encontrar um cultura especfica e inteiramente desvinculada de outras culturas regionais ou nacionais 23. 22CAPTULO 1. HISTRIA E CONTEXTO1.1. Antecedentes A ateno que o tema das comunidades negras e comunidades remanescentes de quilombo tem recebido nos ltimos anos gerou uma j significativa e diversificada produo de trabalhos acadmicos, que vieram lanar luzes no estudo de uma parcela da populao que at ento havia merecido pouca ateno enquanto segmento especfico: as comunidades negras - rurais ou urbanas - do Brasil. Um aspecto referido por diversos autores, tais como Ilka Boaventura Leite, Ruben Oliven, Jos Carlos Gomes dos Anjos, entre outros em perodos que antecederam esta fase mais recente de ecloso de estudos sobre populaes negras no Brasil, de que houve um perodo marcado tanto por uma invisibilidade social, imposta s populaes negras, quanto por uma pouca ateno dada ao prprio tema das comunidades negras urbanas ou rurais como objeto de pesquisa acadmica. No caso do estado do Rio Grande do Sul, esta invisibilidade pode ter sido ainda mais agudamente sentida: sendo um estado que, durante seu processo de constituio e incorporao ao Estado brasileiro, sofreu sucessivas e distintas aes de colonizao e imigraes, comeando com a vinda dos imigrantes aorianos, no sculo XVIII, e que tiveram continuidade, mais tarde (j no contexto das tentativas de branqueamento da populao brasileira), com a vinda dos imigrantes alemes e italianos no sculo XIX (e de outras aes de colonizaes menores, j no sculo XX, letes, russos, poloneses, japoneses, dentre outras etnias). Todo este contexto contribuiu, sem dvida, para a caracterizao deste como sendo um dos estados da federao de maior influncia branca e europia. Mas nem por isso os grupos negros deixam de ter uma influncia marcante que, no entanto, no se refletiu nem nas concepes dominantes acerca da influncia cultural destes grupos no estado, e nem nas concepes que os estudos sociais e histricos nos traziam acerca desta influncia, para alm dos itens j incorporados brasilidade como o samba, o carnaval, a feijoada e o futebol. 24. 23No caso do Rio Grande do Sul, ento, esse conjunto de trabalhos mais recentes, abordando comunidades quilombolas rurais e urbanas das mais diversas localidades e regies10, traz-nos a condio para vislumbrarmos um panorama da ocupao negra no estado. Com este trabalho, composto de dados etnogrficos e relatos abordando grupos e comunidades negras de origem rural de uma regio especfica, localizada nos municpios de Gravata e Viamo, na Grande Porto Alegre, pretendemos acrescentar peas a este panorama - o que poder, por sua vez, indicar lacunas e novos rumos de pesquisas no estudo das comunidades negras do Rio Grande do Sul e do Brasil.1.2. Alguns dados deste panorama Levantamentos quantitativos da populao escrava nas provncias do Brasil no ano de 1874 mostravam a provncia de So Pedro do Rio Grande como a 6 provncia brasileira com maior nmero absoluto de escravos (BERND e BAKOS, 1991). Atualmente, o estado do Rio Grande do Sul possui uma populao em torno dos dez milhes de habitantes, dos quais, aproximadamente um milho e trezentos mil (13%) declararam-se pretos ou pardos11, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domiclios (PNAD) de 1999. um percentual bastante inferior mdia nacional (45,34% segundo dados da mesma PNAD), mas se levarmos em conta a distribuio da populao negra nos municpios gachos chegaremos a dados que apontam que o percentual dos que se declaram pretos na regio metropolitana de Porto Alegre , de fato, superior mdia nacional (6,53% contra 5,39%), o que um dado at certo ponto surpreendente para um estado da federao em que a influncia negra no considerada como muito relevante. bem verdade que estes dados devem ser entendidos dentro de contextos bastante mais amplos que envolvem desde a maior tendncia endogamia de cor (casamentos10Segundo Ana Paula C. Carvalho, citando dados do NUER-SC e dos movimentos negros no estado, haveria no RS um total de 130 comunidades quilombolas passveis de se identificarem como remanescentes de comunidades de quilombos (CARVALHO, 2007) e destas, at o ms de setembro de 2007, 32 haviam solicitado ao INCRA a abertura de processo administrativo de regularizao fundiria. 11 Os dados censitrios no Brasil captam as informaes de cor dos respondentes baseados na pergunta qual a sua cor?, em que as respostas possveis so preta, parda, branca, indgena e amarela (contribuio do professor Jos Carlos Gomes dos Anjos). 25. 24dentro dos mesmos grupos de cor) das populaes negras e pardas no RS, (BARCELLOS, 1996) at um possvel entendimento diferenciado, conforme os estados brasileiros, das prprias categorias negro, pardo, branco, indgena e amarelo no Brasil (categorias utilizadas nos censos demogrficos e em outras pesquisas do IBGE, tais como a PNAD). Mas mesmo com estas ressalvas, inegvel que a presena dos negros e pardos no RS esteve marcada por aquela mencionada invisibilidade social o que se refletia na ocupao de lugares de pouco destaque social, na acomodao a empregos e ocupaes de baixo status social, na ausncia de polticas pblicas que visassem aquela parcela especfica da populao, na pouca ou nenhuma visibilidade de suas manifestaes culturais e religiosas e, para culminar, na pouca ateno dada pelos estudos acadmicos a estes estratos sociais.1.3. Gravata e Viamo: Origens Histricas Ao investigarmos as origens histricas e demogrficas das cidades de Gravata e Viamo, necessrio mencionar que a presena de grupos populacionais autctones na regio data de pelo menos 9.000 anos antes do perodo atual. Isto porque, segundo pesquisas arqueolgicas mais recentes, teria havido sucessivas ocupaes por parte de tradies indgenas antecessoras, por exemplo, aos grupos Charrua, Guarani e Kaingangues - nomes atuais de algumas das etnias contatadas pelos homens brancos que comearam a aventurar-se pela regio a partir do incio do sculo XVII .Segundo Goldmeier e Schmitz (apud Francisco NOELLI et alli, 1997), possvel, a partir dos fragmentos deixados, determinar uma seqncia histrica aproximada da ocupao da regio, conforme a seguir: A) Tradio Umb:+- 9.000 A.P*B) Tradio Humait:+- 6.600 A.PC) Tradio Vieira ( Minuano):+- 1.800 A.PD) Tradio Taquara (Kaingang):+- 1.600 A.PE) Tradio Guarani :+- 1.800 A.P(* AP: antes do presente) Fonte: Goldmeier e Schmitz , apud NOELLI et alli, 1997. 26. 25Assim, a fundao dos primeiros ncleos de fazendas de sesmeiros na regio, que trouxeram, alm do homem branco, os escravos negros (e eventualmente indgenas tambm), no encontrou uma terra despovoada de populaes indgenas. Ao contrrio, tratava-se de uma terra povoada e utilizada por grupos indgenas nos deslocamentos que caracterizavam sua mobilidade nos territrios tradicionais constitudos. Por outro lado, a origem da cidade de Gravata, conforme veremos a seguir, esteve ligada transferncia de aproximadamente 1.000 ndios Guaranis, provenientes da dissoluo dos Sete povos das Misses os quais, em 1762-63, comearam a chegar aos campos de Viamo, s margens do rio Gravata, fundando a Aldeia de Nossa Senhora dos Anjos, primeiro ncleo da futura Vila de Gravata.Figura 1: Amrica do Sul 1650. Em destaque a localizao dos Territrios do Guair e TapeGuairTapFonte: Atlas Cartes Gnrales de la Gographie Ancienne et Nouvelle, reproduzido de Mapoteca Min. Rel. Exteriores. Em www.novomilenio.inf.br/santos/mapas (acessado em 18/08/2007). 27. 26A expanso dos domnios portugueses e espanhis na regio do Tape e do Guair envolveu conflitos entre estas duas coroas e tambm teve as populaes indgenas, ora como aliadas, ora como adversrias. Bartolomeu Meli caracteriza assim a situao: En los siglos XVI y XVII, los espaoles, a medida que avanzaban en sus viajes de exploracin y en sus expediciones de conquista y los misioneros en su conquista espiritual encontraron a los Guaran formando conjuntos territoriales ms o menos extensos, que llamaron provincias, reconocidas por sus nombres propios: Cario, Tobatin, Guarambar, Itatn, Mbaracay, gente del Guair, del Paran, del Uruguay, los del Tape... Estas provincias abarcaban un vasto territorio que iba de la costa atlntica al sur de So Vicente, en el Brasil, hasta la margen derecha del rio Paraguay, y desde el sur del ro Paranapanema y del Gran Pantanal, a lago de los Jarayes, hasta las Islas del Delta junto a Buenos Aires. (MELI, Bartolomeu, 1991, apud LADEIRA, 2003)Figura 2: Misses Jesuticas na Amrica do Sul Sculo XVIIAdaptado de: MONTEIRO, 1995.O incio do povoamento da regio encontra-se, assim, relacionado com todo um contexto de estratgias coloniais e disputas polticas, militares e de fronteiras que envolveram as coroas portuguesa e espanhola em torno da posse e usufruto das terras meridionais ao sul do paralelo 28 (sul de Laguna) e at a foz do Rio da Prata, em sua chamada Banda Oriental (margem esquerda). Envolveu ainda a dissoluo das redues indgenas, erigidas e comandadas por padres jesutas que desde 1610 organizavam-se em 28. 27um amplo territrio de ambos os lados dos rios da Prata, Rio Uruguai, rio Paran, regies do Guair, Tape e Itatim (MALDI, 1997). O avano portugus, em territrio espanhol, as incurses dos bandeirantes pelo apresamento de indgenas, so todos fatos que demandaram que soluo diplomtica fosse tentada atravs do tratado de Madrid (1750). Conforme Moacyr Flores, este tratado: (...) estipulava a transmigrao dos Sete Povos para a outra margem do rio Uruguai e a sada dos jesutas como medida de segurana para evitar futuras rebelies contra os colonos portugueses que deveriam se estabelecer nestas terras. (FLORES, 1990, p.36) A resistncia dos Guaranis em serem transferidos e sua determinao em permanecerem nas antigas terras ocasionaram a Guerra Guarantica de 1751. Os confrontos que envolveram as duas coroas ibricas tinham os ndios Guaranis ora como elemento humano para milcias, ora como objeto de troca, ora como perigo a ser evitado. Um novo confronto armado entre Portugal e Espanha ocorre em 1762 e fez com que os espanhis retomassem a Colnia de Sacramento e avanassem at a regio da vila de Rio Grande, fazendo os portugueses recuarem em seu domnio at os limites dos campos de Viamo e margem esquerda do rio Jacu at Rio Pardo. Ainda segundo Moacyr Flores, os portugueses, temerosos de que ndios guarani que j estavam aldeados em Rio Pardo debandassem para o lado espanhol, resolvem, em 1762, transferir este aldeamento para as margens do rio Gravata, regio pertencente vila de Viamo, fundando, na margem norte daquele rio, a Aldeia de Nossa Senhora dos Anjos. Moacyr Flores comenta ainda que a motivao dos portugueses no seria a colonizao do continente: A nica inteno da transmigrao dos ndios para a Aldeia dos Anjos era de diminuir o potencial blico dos espanhis que se apoiavam em grande parte nas milcias guaranis. (idem, p.42) No a mesma opinio de Corsino Medeiros dos Santos, que afirma: Na verdade, a fundao da Aldeia de N. Sa. dos Anjos representou mais uma tentativa de organizao de uma colonizao dirigida, assim como o fora a importao de casais das Ilhas e seu assentamento no Rio Grande, como o ser a fundao da Real Feitoria do Linho-Cnhamo. (DOS SANTOS, 1990, p.48) 29. 28De toda forma, este aldeamento viria a ser temporrio e, apesar de ter recebido outros contingentes de ndios que vagueavam pela provncia, sua populao, de um total de 3.500 ndios em 1762, esteve em permanente decrscimo. Em 1784, a populao registrada j era de 1.362 ndios. Em 1803, ocorre o fim da administrao da Aldeia dos Anjos e os ndios so liberados para irem aonde quisessem (FLORES, 1990, p.41). Em 1814 os registros falam de apenas 300 ndios na mesma regio. (id. ibid.) Mas estes dados merecem ser analisados sob a tica da prpria poltica de integrao, promovida pela administrao portuguesa, na qual era estimulada a mestiagem do ndio com o elemento branco, a fim de incorporar as famlias resultantes ao abrigo da relao de vassalagem para com o rei de Portugal. Denise Maldi fornece um interessante estudo sobre o desenvolvimento das polticas Portuguesa e Espanhola de utilizao do elemento indgena e na manuteno das fronteiras de cada reino: (...) a relao estabelecida entre os portugueses e os ndios das fronteiras durante o sculo XVIII [caracterizava-se]: por um lado, [pelo] reconhecimento (...) da existncia de povos definidos, com perfis prprios, que sero, ora naes, ora confederados, por outro (...), se amigos de Portugal, tratados com deferncia, se inimigos, perseguidos. (MALDI, 1997, p. 203) Na poca em que a Aldeia dos Anjos foi criada, a incorporao do gentio (as gentes da terra os ndios) somente era possvel quando deixassem de fazer parte de naes indgenas. Ou seja, somente deixando de serem ndios - que os ndios poderiam ser incorporados plenamente populao vassala do rei. Este processo de desaparecimento ou a incorporao da populao de 3.500 indgenas populao local um aspecto que esteve, durante um certo tempo, como uma das pistas e um possvel horizonte de pesquisas, enquanto este trabalho ainda estava em sua etapa de elaborao do projeto com vistas produo desta dissertao de mestrado. A despeito do xito econmico do aldeamento, atestado pelos dados tanto de Moacyr Flores (idem, p.41) como de Corcino M. Dos Santos (idem, p.66), o destino destes 3.500 ndios (e de outros que certamente j viviam na regio ou constituam ali seus territrios de uso 30. 29tradicional) que no perodo de 50 anos aproximadamente (1763 at 1814) desaparecem fato que merece, sem dvida, ser melhor estudado. O artigo de Rodrigo Weimer (2002) aborda esta questo tendo como ponto de partida a mesma dvida: quais os motivos da rpida mudana demogrfica que levou dissoluo da Aldeia dos Anjos em 1798. Um dos elementos analisados pelo autor foi, por um lado, o confronto de interesses e de estratgias entre a Coroa Portuguesa e os sesmeiros, proprietrios de terras da regio de Viamo e Gravata. O interesse dos proprietrios era poder empregar a mo de obra e os saberes dos ndios aldeados, acostumados ao cultivo daquela regio e lida com o gado, que haviam aprendido nas misses. Por outro lado, a inteno da coroa e da administrao pombalina nesta poca (1750) era povoar a regio com estas populaes, que se tornariam, no entanto, submissas diretamente Coroa, e no aos proprietrios de terras estes ltimos interessados, sempre que possvel, em escravizlas. A Coroa Portuguesa e a administrao local editam diversos decretos e instrumentos jurdicos para evitar a administrao dos indgenas por particulares, ou pelo menos evitar que o uso da mo-de-obra indgena fosse feito de forma no remunerada, j que no era proibido aos ndios prestarem servio a terceiros, fora dos aldeamentos. Mas na prtica, foram as fugas, vinculadas ao emprego dos ndios como agregados em estncias da regio, o principal fator da dissoluo do aldeamento: Uma vez foragidos do aldeamento, acreditamos ter sido o destino da populao Guarani estabelecer-se como reserva de mo-de-obra disposio dos lusobrasileiros, seja sob a forma de agregao, seja atravs de peonato. Podemos lembrar que nas regulamentaes para o aluguel de ndios, verificam-se especializaes vinculadas s lides rurais (domador, peo, trabalho na roa) do Rio Grande de So Pedro que no sculo XVIII tinha atividades econmicas ganadeiras e tritcolas. Percebe-se outra evidncia quando verificamos que as fugas desta populao indgena eram efetuadas em alguns meses especficos, coincidentes com os momentos de alta demanda laboral no calendrio agrrio: dezembro a maro (tempo de colheita do trigo) e de junho e julho (tempo de plantio do trigo e tambm de acmulo de trabalhos pecurios). Resta saber atravs de quais relaes scio-produtivas concretizou-se a apropriao desta mo-de-obra, sendo necessrios, para isso, novos estudos. Contudo, evidente que a explorao do trabalho indgena foi determinante para a diminuio da populao aldeada. (WEIMER, 2002, p.3) 31. 30A questo da miscigenao da populao indgena certamente foi outro fator importante para a dissoluo dos aldeamentos, e este um aspecto abordado por Ruben Neis (1975). Analisando a questo da constituio de Viamo e Aldeia dos Anjos, dedica um captulo ao tema da mestiagem. Uma das pistas para o desaparecimento dos ndios do aldeamento poderia estar nos prprios registros cartoriais. Segundo o autor, os registros de nascimentos dos descendentes de brancos com ndios consideravam estes filhos como brancos a partir da segunda gerao: ... o controle dos nascimentos de mestios se torna um tanto difcil, no s por ter havido poucos casamentos e muitos filhos naturais, mas tambm porque os descendentes de brancos e ndias so muitas vezes considerados brancos na segunda gerao. [...] Todos admitem que havia muitos ndios casados com mulheres pretas ou pardas, e muitos pretos, at escravos, casados com ndias. Nos livros de registros do sculo 18 so muitssimo freqentes tais ocorrncias (...)E em triunfo nos dez primeiros anos de freguesia, de 1758 a 1767, foram registrados no livro de casamentos dos pretos, pardos e ndios 47 casamentos. Em 29 deles, ambos os noivos eram pretos ou pardos, escravos ou livres, um preto ou pardo casava com ndia ou vice-versa, e houve dois casos de casamentos de aorianos com ndias (NEIS, 1975, apud LIMBERGER, 2007).Enfim, a questo da miscigenao certamente pode ter estado presente, muito mais na questo de gerao de filhos e menos na questo dos casamentos. Isto porque, ainda segundo Neis, embora houvesse um Alvar Real de 1755 estabelecendo a no discriminao das unies em casamento dos portugueses com os filhos da terra, na prtica e na vivncia local havia uma discriminao, tendo havido at mesmo um edital local de 1773, do governador Jos Marcelino de Figueiredo, estabelecendo distines para que, na distribuio de terras, tivessem preferncia aqueles de bom procedimento e sangue limpo (ou seja, no miscigenados). Assim, o nmero de filhos de unies entre brancos e ndios foi sempre muito superior ao nmero de casamentos registrados. Mas no que se refere, contudo, aos casamentos e unies entre ndios e negros, os dados so ainda mais difceis de serem obtidos. Como dissemos, tivemos, a certa altura deste trabalho, a inteno de pesquisarmos uma possvel memria desta miscigenao negro-indgena na regio de Gravata e Viamo e que vamos presente nos relatos de alguns 32. 31de nossos informantes. Minha experincia de campo mostrou que, a despeito de ser reconhecido por muitos deles uma ascendncia indgena, isto no se reflete na existncia de uma memria das formas de vida ou sociabilidade auto-reconhecidas como indgenas, ou na existncia de uma memria de um possvel processo de incorporao (ou mistura ou fuso, como se queira chamar) das populaes indgenas s populaes (negras) que para l se deslocaram. Este foi o fator que nos motivou a abandonarmos esta linha de investigao a qual, para poder ser levada a cabo, talvez requeresse uma etnografia bastante mais extensa, e o uso de metodologias outras (tais como a arqueologia, a gentica avanada), alm das fontes documentais (sempre escassas quando se trata das populaes no-brancas no perodo colonial e imperial do Brasil), inviabilizando que este objetivo pudesse estar no mbito deste trabalho, muito embora permanea como um horizonte de possibilidades e indcios a serem perseguidos. Assim, no caso do estudo que estamos propondo aqui, abordaremos as populaes negras de uma regio situada na divisa dos municpios de Gravata e Viamo. A especificidade da dinmica territorial da populao negra do Rio Grande do Sul o principal aspecto que este estudo pretendeu abordar. Nossa inteno mnima podermos contribuir para firmar um ponto de comparao com relao a outras comunidades do estado do RS e do pas, fazendo crescer a compreenso sobre as condies de existncia, suas necessidades e as especificidades das formas culturais destas populaes negras. 33. 32CAPTULO 2. REFERNCIAIS TERICO-CONCEITUAISDiversos trabalhos j nos mostraram a relao intrnseca existente entre famlia, parentesco e territrio - algo enfatizado, por exemplo por Ilka Boaventura Leite (LEITE, 1996), Jos Maurcio A. Arruti (ARRUTI, 2001), entre outros, ao investigarem comunidades etnicamente diferenciadas, em especial as comunidades negras. Tambm no caso das comunidades que estamos investigando, achamos que fora da ligao deles com o territrio de origem permaneceu e permanece atuante, como pudemos mostrar no trabalho anterior (COSTA, 2003) [ver tambm Vera Regina Rodrigues da Silva (RODRIGUES DA SILVA, 2003), Trabalhos de Concluso do curso de Cincias Sociais, UFRGS].2.1. Comunidades quilombolas do RS Um dos primeiros trabalhos a respeito de comunidades negras do Rio Grande do Sul, feito com a inteno de apresentar um laudo antropolgico sobre a situao de uma comunidade que reivindicava a posse de terras, tidas como legado de antepassados escravos, foi realizado na comunidade de Casca, prximo aos municpios de Mostardas, regio litornea do estado. Este trabalho foi reunido no livro O legado do testamento: a comunidade de Casca em percia, de Ilka Boaventura Leite (LEITE, 1999). Trata-se de um trabalho encomendado pela Procuradoria Geral da Repblica do Estado do Rio Grande do Sul e realizado pelo Ncleo de Estudos sobre Identidade e Relaes Intertnicas (NUER) da Universidade Federal de Santa Catarina. uma obra pioneira que consegue reunir tanto o rigor da pesquisa de fontes documentais e histricas como a utilizao dos mtodos da Antropologia: utilizao das genealogias detalhadas, relacionamento prolongado com a comunidade em campo - um campo marcado pela mobilizao e pelo conflito. Trata-se, assim, de um trabalho em que este envolvimento em campo foi sempre marcado pela questo da elaborao do laudo e pela questo poltica envolvida, no que era, 34. 33afinal, a sua razo de ser. Mas nesta elaborao, Ilka ao mesmo tempo constri um marco, um padro de elaborao de um trabalho que procura apresentar ao seu principal demandante a Justia Brasileira a complexidade do campo e os elementos necessrios para que a justia fosse feita. Nesse percurso, Ilka constri, problematiza e discute categorias que nos sero extremamente teis em nosso trabalho. Assim, por exemplo, a noo de territorialidade nativa quanto s terras legadas em testamento (testamento este que tinha uma clusula especfica de proibio de venda das terras), os embates com os vizinhos, herdeiros ou no, e com os poderes pblicos em vrios nveis so todos fatores que se conjugam em representaes que marcam a vida da comunidade e sua relao com seu territrio. Outro importante estudo a tratar de uma comunidade quilombola do RS foi o trabalho multidisciplinar, coordenado por Daisy Macedo de Barcellos, que resultou no livro intitulado Comunidade Negra de Morro Alto: historicidade, identidade e territorialidade (BARCELLOS et alli, 2004). O estudo, viabilizado sob a forma de convnio entre a UFRGS e o Ministrio Pblico Federal, foi encomendado tambm para instruir o processo de reconhecimento dos direitos territoriais de uma populao negra habitante da regio de Morro Alto, na divisa dos municpos de Osrio e Maquin, RS. Naquele trabalho, so enfocados diversos aspectos histricos, geogrficos, ambientais, sociais e culturais dos relacionamentos das redes de famlias negras que ocupam um territrio conflagrado em disputas e em resistncia aos avanos e ameaas de esbulho que sofrem e sofreram ao longo do tempo. Trata-se tambm de um estudo exemplar, de grupos que tm uma proximidade muito grande com as redes que fazem parte deste nosso estudo tanto proximidade geogrfico-espacial (perto de 60 km de distncia), que faz com que estejam, por vezes, em contato em um circuito mais amplo de trocas e fluxos, quanto de compartilhamento de um histrico semelhante, de submisso a redes de trabalho e produo (por vezes os mesmos proprietrios de terras da regio empregavam trabalhadores destas vrias comunidades) o que no significa que no tenham tambm muitas diferenas e especificidades no que se refere s circunstncias de seus relacionamentos com os territrios e as memrias que mantm do tempo da escravido. 35. 34Outro trabalho que lida com a tarefa da construo de laudo para duas comunidades o livro So Miguel e Rinco dos Martimianos: ancestralidade negra e direitos territoriais, que tem como autores-organizadores Jos Carlos Gomes dos Anjos e Srgio Baptista Silva (2004). Dessa feita, os autores e colaboradores lidam com duas comunidades negras rurais profundamente imbricadas por laos de parentesco e reciprocidade localizadas no municpio de Restinga Seca, RS. uma situao bastante semelhante quela encontrada nas comunidades com as quais trabalharemos, embora naquele caso (Restinga Seca) os laos de parentesco e a imbricao mesma das comunidades parece ocorrer em escala maior do que os nossos estudos preliminares apontaram para o caso de Anastcia, Manuel Barbosa e Ferreira-Fialho. Dentre as contribuies que podemos citar como sendo de grande valia para o nosso trabalho est a defesa de que tanto as comunidades negras rurais quanto as comunidades indgenas possam estar enquadradas no conceito de sociedades tradicionais. Este conceito, conforme de Da Matta (1981, apud BAPTISTA DA SILVA, 2004) compreende sociedades em que a noo de indivduo residual, em que a categoria totalidade prevalece sobre as partes. Isso nos levar possibilidade de fazer uso de conceitos e categorias (tais como etnicidade, territorialidade e parentesco) que j tm todo um acmulo terico no uso especfico na abordagem do tema das sociedades indgenas e tradicionais. So contribuies como estas que permitiro ver tambm, tal como j havia sido relatado por Ilka B. Leite (op. cit., 2002), como se d a administrao dos territrios, as regras de sucesso, o estabelecimento ou no das partilhas da terra, a questo da etnicidade e a emergncia destas questes nas comunidades negras rurais com as quais tratamos. O tema da emergncia tnica ou etnognese em uma comunidade quilombola questo principal abordada em um outro trabalho, de autoria de Vera Regina Rodrigues da Silva, em sua Dissertao de Mestrado intitulada De Gente da Barragem a Quilombo da Anastcia: um estudo antropolgico sobe o processo de etnognese em uma comunidade quilombola no municpio de Viamo, RS (RODRIGUES DA SILVA, 2005). Vera constri seu campo tratando da comunidade de Barragem, ou Quilombo Anastcia - 36. 35justamente uma das comunidades de que nos ocuparemos em nossa pesquisa - a qual, tal como descrito no prprio trabalho, ao longo dos anos ltimos anos (e a exemplo de outras comunidades tambm envolvidas na legalizao de suas terras, tais como a comunidade Manuel Barbosa, sua vizinha) resolve reivindicar seu enquadramento como comunidade quilombola e assumir uma (nova) identidade de integrantes do Quilombo Anastcia. No trabalho de Vera R. R. da Silva, a nfase foi dada ao processo de etnognese a questo da negociao de (novas) identidades - uma situao presente na maior parte das comunidades envolvidas nestes processos de reconhecimento. Mas para os fins que nos interessam aqui, torna-se tambm importante o fato do trabalho de campo trazer como pano de fundo o relacionamento interno aos grupos de famlias negras - justamente algumas das famlias negras com as quais desenvolveremos este trabalho (de fato, uma parte da pesquisa de campo at aqui foi feita de maneira compartilhada). Assim, o respectivo contraste e complementaridade dos nossos trabalhos pode ser visto, por um lado, pela questo da emergncia da etnicidade e por outro lado, na questo do idioma do parentesco, que, segundo entendemos, perpassa a maior parte dos processos envolvendo os membros destas comunidades (incluindo a etnicidade). Mas, como dissemos, um dos objetivos desta pesquisa ser explicitar as relaes entre territorialidade, parentesco e prticas culturais e de sociabilidades que envolvem estas comunidades negras ao longo das geraes. Este estudo envolver, portanto, pelo menos trs conceitos fundamentais; um deles o de parentesco, com todos os desdobramentos que a histria do desenvolvimento da disciplina antropologia nos legou; o segundo deles o de etnicidade (idem); e o terceiro deles, de uso mais moderno, o de territorialidade. Comearemos pelo conceito de comunidade. 37. 362.2. ComunidadeO conceito de comunidade um destes conceitos que possui um longo histrico de reflexes, prticas e problematizaes dentro do mbito das Cincias Sociais e da Antropologia em particular. As definies mais clssicas de comunidade costumam fazer referncia a um grupo de pessoas vivendo segundo instituies sociais comuns, integradoras e interdependentes (VARELLA, 2005). O Dicionrio Crtico de Sociologia (BOUDON & BOURRICAUD, 1993 [1986]), registra uma problematizao acerca de uma das definies clssicas, aquela baseada no pensamento de Ferdinand Tnnies. Tnnies diferenciava a Gemeinschaft (comunidade) de Gesellschaft (sociedade ou associao), de forma que comunidade representasse o plo da integrao social ...integrada, pr-industrial, em pequena escala, baseada em parentesco, amizade e vizinhana, em que as relaes sociais so ntimas, duradouras e multiintegradas, enquanto que a sociedade (tambm definida como no-comunidade), aparece simbolizando os laos impessoais, annimos, contratuais e amorais caractersticos da sociedade industrial moderna. O problema destas concepes, segundo os autores do Dicionrio, alm do vis ideolgico de imputar sociedade capitalista os males da desagregao comunitria, estaria na pouca correlao do conceito com as situaes prticas. Tnnies tratava dos conceitos atravs do mtodo de consider-los na forma de tipos normais (semelhantes ao tipo ideal weberiano); mas, continuam os autores do dicionrio, mesmo nas sociedades industriais, produtivamente organizadas e modernas, poder-se-iam encontrar elementos de comunitarismo em diversos grupos e associaes e, em direo oposta, mesmo em grupos pequenos, agrrios e ou marginais sociedade capitalista moderna, pode no haver uma vida comunitria multiintegrada. Para os autores, portanto, a comunidade : no constitui uma relao social simples e primitiva. Ela ao mesmo tempo complexa (...) e aprendida, uma vez que somente graas a um processo de socializao, que a rigor nunca termina, aprendemos a participar de comunidades solidrias. Ela jamais pura, j que vnculos comunitrios esto associados a situaes de clculo, conflito ou mesmo violncia. (BOUDON, op. cit.,1993, p.74) 38. 37Max Weber um dos autores clssicos que atribua grande importncia vida comunitria, mas, apesar disto, no deixou uma definio muito precisa de comunidade a no ser por seu carter de relao e por sua importncia em modelar a ao social - como ele afirma nestas passagens:"(...) o conceito de comunidade mantido aqui deliberadamente vago e conseqentemente inclui um grupo muito heterogneo de fenmenos. (...) Chamamos de comunidade a uma relao social na medida em que a orientao da ao social, na mdia ou no tipo ideal, baseia-se em um sentido de solidariedade: o resultado de ligaes emocionais ou tradicionais dos participantes." (WEBER, 1987 pp 77 e 79, apud RECUERO, 2001, pp 1 e 3) Apesar no ter definido claramente o que entendia por comunidade, o conceito Weberiano de comunalizao, descrito como um efeito muito visvel na formao das comunidades emocionais ou msticas (que o exemplo de onde ele deduz o conceito) apontado pelos autores do referido dicionrio como um conceito passvel de ser utilizado em outros tipos de fenmenos de formao de comunidades: os processos de organizao e institucionalizao da comunidade emocional podem aparecer tambm como componentes na formao de comunidades econmicas, polticas, cientficas e quaisquer outras.2.3. Estudos de comunidade no Brasil Dentro do mbito da prtica de pesquisas de campo e pesquisas qualitativas, uma linha de estudos que teve no Brasil uma grande repercusso foram os chamados estudos de comunidade. Tais estudos surgiram e desenvolveram-se a partir dos anos 30 e 40 do sculo passado, principalmente a partir da Escola Livre de Sociologia e Poltica de SP e sob influncia de autores da Escola de Chicago. Pesquisadores oriundos ou influenciados por aquela instituio como Donald Pierson, Charles Wagley e Marvin Harris - e tambm autores formados inicialmente no Brasil, como Oracy Nogueira e Florestan Fernandes conduziram muitos dos trabalhos hoje considerados clssicos da sociologia brasileira, principalmente dentro dos chamados estudos urbanos. 39. 38Contudo, nas cincias sociais, o uso do termo comunidade promovido pelos estudos de comunidade suscita ainda hoje muitas controvrsias. Dentre as principais crticas, sobressai a que afirma que estes estudos promovem uma confuso entre unidade ecolgica e unidade sociolgica (WOORTMANN, 1972). H ainda a crtica ao carter de unificao e homogeneizao cultural que o uso do termo potencialmente promove perante grupos que podem no apresentar estas caractersticas de homogeneidade to exacerbadas (MARCUS, 1991)12. Neste trabalho iremos abordar mais detidamente o alcance do termo comunidade para cada um dos trs grupos considerados, mas achamos que ele permanece uma unidade de anlise vlida na medida em que um conceito utilizado tambm localmente pelas pessoas ao referirem-se aos seus prprios grupos. Assim, seria um conceito mico ou que foi incorporado pelos grupos e logo veremos de que modo isto ocorre na prtica.2.4. Comunidade negra rural O conceito de comunidade negra rural foi descrito por Linhares (2000) como tendo, no perodo anterior Constituio de 1988, um uso interessado por parte de organizaes sociais tais como grupos do movimento negro, que reivindicavam polticas de reparaes para comunidades rurais e que preferiam o uso deste termo por ser mais geral e inclusivo do que o termo quilombo. Pouco mais adiante, o texto da Constituio de 1988 criou a figura jurdica, at ento inexistente, dos remanescentes das comunidades de quilombos. Nesta nova realidade, diversas instncias da sociedade - movimentos sociais, comunidades negras, poder Judicirio, Estado, partidos, mercado, universidade, etc. - passaram a disputar (alguns) e a estudar (outros) o alcance do novo termo: ou seja, uma das questes passou a ser decidir quais seriam aquelas comunidades negras que poderiam ver legitimado seu 12Segundo o comentrio de Magnani: Nesse artigo, Marcus prope problematizar o conceito de comunidade, tradicionalmente referida a uma localidade especfica e a uma identidade determinada: preciso dissolver as conotaes de solidez e homogeneidade implicadas nessa relao, j que a formao de identidades depende de atividades desenvolvidas em muitos locais (MAGNANI, 2003). 40. 39enquadramento como comunidades quilombolas. Mais recentemente, surgem contendas envolvendo comunidades negras que no eram mais ou nunca foram comunidades rurais, mas que mesmo assim reivindicam seu acesso terra onde habitam mediante requisio de seu enquadramento como comunidades quilombolas - urbanas desta vez -, cujo exemplo mais prximo o caso do quilombo Famlia Silva de Porto Alegre, RS13.2.5. Parentesco O tema do parentesco representa, dentro da histria da formao da disciplina (ou da Cincia, se quisermos) da Antropologia o estatuto de um dos seus temas fundantes. Desde os pioneiros evolucionistas, Morgan, por exemplo, passando por (funcionalistas como) Malinowski e Radcliffe-Brown, em uma linha de crescente confiana na legitimidade do tema, at chegar a Lvi-Strauss, que nos traz a chamada Teoria Estrutural do Parentesco, o fato que famlia e parentesco constituiu-se em um tema obrigatrio de anlise e objeto de vivas discusses tericas que prolongaram seu mpeto at pelos menos meados dos anos 60 e 70. por volta desta poca que, ao menos no mbito da antropologia feita nos Estados Unidos e na Gr-Bretanha, a obra de David Schneider, American Kinship: a cultural account (1968) veio lanar a grande e impactante dvida; no seriam a maior parte das discusses sobre parentesco meras projees dos conceitos tirados da prpria cultura (ocidental) dos pesquisadores, que sub-repticiamente imporiam seus problemas, seus sistemas classificatrios e tentariam enxergar nas sociedades locais as mesmas categorias das sociedades ocidentais Euro-Americanas. A questo da (impossibilidade da) traduo lana na dvida e no ceticismo a maior parte dos estudos do parentesco que, especialmente na Amrica do Norte, passam a perder terreno para os estudos de gnero (CARSTEN, 2000).13Em 26/10/2006 a rea do quilombo Famlia Silva foi desapropriada em nome das 12 famlias que j haviam recebido a certido de reconhecimento como comunidade quilombola, emitida pela Fundao Cultural Palmares desde 2003 (Fonte: http://www.fomezero.gov.br/noticias/). 41. 40Antes disso, os estudos do parentesco j se haviam enredado, por vezes, em celeumas lingsticas, e outras tantas vezes enrijeceram-se em formalismos esquemticos, mas esta nova crise foi mais profunda e prolongou-se at pelo menos a dcada de 90 do sculo passado. bem verdade tambm que isto no impediu Louis Dumont (1968) e outros autores importantes, inclusive no Brasil, de continuarem a fazer estudos retrospectivos e prospectivos sobre o parentesco e de este tema continuar a ser um horizonte de pesquisa e de discusso para toda uma comunidade intelectual no totalmente dependente das discusses anglo-americanas (vide VIVEIROS DE CASTRO, 1976, 1978, 1992 e 1993; CARNEIRO DE CUNHA, 1993, entre outros tantos). Mas no contexto anglo-americano, na dcada de 90 do sculo XX que todo um conjunto de produes reaviva a discusso sobre um (agora) novo parentesco bem verdade que dessa vez em uma nova chave. Autores como Marilyn Strathern, Sarah Franklyn, e a prpria Janet Carsten, tomam a crtica de Schneider a srio, mas retomam conceitos importantes de autores como Bruno Latour (1993) para chegarem a anlises dos novos tipos de parentesco: um parentesco que seja capaz de dar conta tanto das representaes do corpo, da manipulao e representao gentica, do sangue e de substnciacompartilhada,quantodosaspectosrelacionaisligadossformascontemporneas de paternidade e maternidade fertilizao in-vitro, novas tecnologias reprodutivas e (novas e antigas) formas relacionais do parentesco. Alis, no de se estranhar que estas produes, quando feitas em lngua inglesa tenham, o mais das vezes, preferido utilizar o neologismo relatedness (parentesco que inclui a relao de afinidade) ao invs do termo mais tradicional kinship (que reportado como portador de uma insupervel associao com o parentesco de sangue, filial, j que kin = filhos, descendentes) vide a prpria Janet Carsten (2000, op. cit.) - embora neste quesito, as lnguas latinas tenham ficado imunes discusso, uma vez que o termo parentesco das lnguas latinas no carrega a mesma associao to presente com a descendncia, podendo representar igualmente os parentes consangneos e os afins. A crise com os universalismos foi absorvida e enfrentada, mas singularmente, as solues desses dois conjuntos de autores Franco-Sul-Americanos e BritnicoAmericanos aproximaram-se por vias diversas. A discusso dos hbridos de Latour 42. 41tambm estimulou a produo de Viveiros de Castro dentro do marco do Perspectivismo. Mas seguindo por esta via a da produo de afinidades - ser necessrio voltarmos a LviStrauss, no apenas o autor de As Estruturas Elementares do Parentesco, mas tambm de Anlise Estrutrual em Lingistica e Etnologia. Nesta ltima obra, a existncia quase universal do tabu do incesto no algo a ser explicado pela maior ou menor cultura de um povo, ou um sinal de seu estgio civilizatrio; ao contrrio, a cultura e a civilizao a necessidade de se fazer relaes, de se estabelecer alianas, obter aliados, fora da famlia, que seriam os verdadeiros fundamentos da existncia de sociedades humanas e de civilizaes. Esta inverso universal de obrigao em proibio gerou a teoria da aliana e da toda uma vertente terica que poder ter implicaes nas anlises dos grupos com os quais estamos tratando. Contudo, como vimos j em anlises na comunidade de Anastcia, se por um lado h a necessidade de se fazerem alianas (que envolvem a troca de mulheres) nem por isso quaisquer alianas sero feitas, e a que intervm os fatores que nos interessam ver em conjuno: etnicidade, territorialidade e criao de parentes neste conjunto de comunidades negras das cidades de Gravata e Viamo. neste ponto que achamos que a produo de Eduardo Viveiros de Castro (2002, op. cit.) sobre o idioma do parentesco e a afinidade potencial nos povos da Amaznia pode ser muito til e trazer elementos de comparao para se pensar nos processos de se fazerem parentes entre as comunidades negras com as quais nos estaremos relacionando; mesmo tratando-se de grupos que, segundo entendemos, possuem muitas diferenas em relao ao estatuto de compartilhamento de uma mentalidade e uma cultura ocidental (indgenas das terras baixas da Amaznia versus comunidades negras do RS), os exemplos dos povos amaznicos podem servir como problematizadores dos tipos e dos limites de alianas possveis e dos limites dos grupos com as quais a trocas podem ou no ser feitas. 43. 422.6. EtnicidadeA anlise da etnicidade vem recebido diversas contribuies recentes no campo das Cincias Sociais e dentre estas contribuies, certamente a obra de Fredrick Barth Os Grupos tnicos e suas Fronteiras tornou-se uma das mais influentes. Na obra Teorias da Enicidade, Poutignat e Streiff-Fenart (1998) procuraram apresentar uma viso geral destes debates e contribuies atuais mais importantes em torno do tema. Uma das concluses dos autores, no entanto, a de no ser possvel apontar uma teoria de etnicidade que se destaque das demais. Um dos motivos apontados para a multiplicidade de matrizes tericas pode estar, segundo os autores, na diversidade de escalas que o problema comporta. Mesmo que diversos pontos de vista tenham em comum a crtica das chamadas concepes primordialistas e substancialistas, tem ocorrido que tericos tomem situaes to diversas como, por exemplo, o novo tribalismo africano e os grupos catlicos da Irlanda do Norte como se fossem fenmenos tnicos de mesma magnitude e passveis de serem abordados pela mesma matriz terica. Mas diversos autores concordam, afinal, de que existe uma diversidade de situaes por trs do mesmo conceito, e Poutignat e StreiffFenart assim descrevem essa diversidade como vista pelos autores: existe etnicidade e etnicidade: etnicidade tradicional e nova etnicidade (Gumperz 1989); etnicidade interacional e reativa (Hechter, 1976), etnicidade real e simblica (Gans, 1979; Mc Kay, 1982) (1998, pp.120-121). Glazer e Moynihan (1975, apud POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998), em uma obra de catalogao das definies utilizadas pelos cientistas sociais quanto questo tnica, apontam que, em geral, as definies referem-se: ...ou a um conjunto de atributos, ou de traos tais como a lngua, a religio, os costumes, o que a aproxima da noo de cultura, ou ascendncia comum presumida dos membros, o que a torna prxima da noo de raa. (1998, op. cit., p.87) Um paralelismo da noo de etnicidade com os termos raa e nacionalidade encontra-se registrado tambm em Weber (1922). Ocupando-se do tema das relaes 44. 43comunitrias, Weber tratou a questo do pertencimento a uma comunidade ou uma raa como possvel fundamento da ao social de tipo comunitria. Este autor procura enfatizar o carter poltico com que a afirmao das etnicidades costuma vir acompanhado. Mas para ele, as disposies hereditrias somente conduziriam a uma comunidade quando houvesse o sentimento do pertencimento. A definio que Weber d para grupo tnico envolve, mais do que elementos externos e objetivos, a crena subjetiva na procedncia comum que seria importante para o estabelecimento do que ele chamou as relaes comunitrias tnicas (WEBER, 1922). Agudizando a questo da centralidade da interao entre grupos sociais tnicos e a chamada sociedade englobante, a obra de Fredrik Barth trouxe a contribuio decisiva de considerar a etnicidade no mais em termos de caractersticas primordiais, essenciais ou necessrias que pudessem ser arroladas ou classificadas, mas do ponto de vista do processo (e da permutabilidade) da eleio daquelas caractersticas que o grupo seleciona e se auto-atribui com vistas a manter as fronteiras tnicas que os diferencie dos demais grupos. Assim, os chamados sinais diacrticos aqueles traos que so escolhidos como fundamento da separao entre ns (os membros do grupo ou comunidade tnica) os outros (outsiders) - estariam relacionadas a momentos de apropriao e negociao mediados pelos contatos externos. Essas marcas e sinais selecionados como importantes poderiam, portanto, variar com o tempo, mas o que permanece a existncia da fronteira tnica. Em outras palavras, para Barth (e para os grupos tnicos) no importa tanto o doque-a-fronteira--feita (quais so os sinais escolhidos), mas antes, que-a-fronteira-exista. Esta questo, da fronteira tnica e da fronteira cultural possui tambm uma interpretao que critica o reducionismo terico que seria considerar o uso da etnicidade com um sentido apenas pragmtico por parte das populaes. Mas no caso destas comunidades da regio de Gravata e Viamo foroso reconhecer que a etnicidade tem estado cada vez mais em discusso para os membros das comunidades, em especial aqueles mais envolvidos no processo de reconhecimento como comunidades quilombolas, quando se discute agora, alm de uma etnicidade negra ou morena, uma identidade e uma etnicidade quilombola. Da se verifica ento que o componente poltico pragmtico, se 45. 44quisermos est presente nesta situao de afirmao e ostentao das fronteiras, em uma condio em que a luta pelas fronteiras territoriais tambm uma realidade. Mas levando adiante esta situao, e tomando emprestado os exemplos trazidos pelos estudos de grupos como os ndios do nordeste brasileiro ou ndios misturados, dos trabalhos de Joo Pacheco de Oliveira e outros pesquisadores, talvez seja possvel discutir tambm como a etnicidade pode ser uma estratgia de sobrevivncia ou ter um uso poltico para os grupos mesmo quando as fronteiras so relaxadas ou deixam de existir. Os estudos tratam de populaes que os autores caracterizam como de pouca distintividade: populaes mestias, em geral, e que podem ter permanecido por largo tempo sem ostentarem sua etnicidade aqueles sinais diacrticos de que fala Barth. No caso de algumas destas populaes que hoje reivindicam ou procuram ostentar sua etnicidade indgena, como nos relatam os autores, pode ter havido diversos ciclos em que a luta pela sobrevivncia dependeu da maior ou menor distintividade que pudessem ter em relao s populaes locais, inclusive momentos em que a associao e fuso com outros grupos por exemplo, grupos negros ou caboclos, locais - foi a estratgia para no serem aniquiladas. Isto nos leva a pensar nesta situao de uso interessado, na negociao das identidades justamente atravs da no-ostentao. No caso das populaes indgenas e das populaes negras, esta negociao de identidades pode estar na raiz daqueles processos histricos de assimilao dos indgenas da Aldeia dos Anjos de Gravata, e pode ser visto em alguns grupos como na comunidade Anastcia, onde alguns de seus membros identificavam-se como morenos ou puxados pra bugres o que no os impedia de participar da mesma rede de sociabilidade dos morenos do barro vermelho e dos grupos negros da regio.2.7. TerritorialidadeA questo dos chamados territrios negros, analisada por Arruti (2001), surgiu do bojo no debate poltico feito pelos movimentos sociais que procuraram uma aproximao entre a questo dos chamados territrios indgenas e essas novas formas de 46. 45reivindicao por regularizao fundiria para grupos etnicamente diferenciados (como os referidos pelo artigo 68 do ADCT). A importncia que assume um territrio como fora de memria social e identidade de um grupo, nos parece, pode ser vista tambm nessas trs comunidades, o que permite que se faa uma aproximao com as definies de territrio e territorialidade, tais como tratadas por Muniz Sodr e Ilka Boaventura Leite, citados por Carvalho e Doria (1996) em O Quilombo do Rio das Rs. Assim, para Muniz Sodr, territorializao: [define-se] como fora de apropriao exclusiva do espao (resultante de um ordenamento simblico) capaz de engendrar regimes de relacionamento, relaes de proximidade e de distncia. (SODR, Muniz, apud CARVALHO e DORIA, 1996, p.115) J Ilka B. Leite compara as noes de terra, territrio e territorialidade, enfatizando o carter de inscrio subjetiva e existencial presente neste ltimo conceito: A terra sugere uma base fsica, o lugar sob o qual a existncia do grupo torna-se possvel, seja para residir, encontrar, produ