Química - Cadernos Temáticos - Atividade Biológica

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    1/10Cadernos Temticos de Qumica Nova na Escola N 3 Maio 2001

    Frmacos estruturalmente inespecficos

    Os frmacos ditos estrutu-ralmente inespecficos soaqueles que dependem nica

    e exclusivamente de suas proprie-dades fsico-qumicas, (coeficiente departio, pKa) para promoverem o efei-to biolgico. Os anestsicos gerais soum exemplo clssico de substnciasque pertencem a esta classe de fr-macos, uma vez que seu mecanismode ao envolve a depresso inespe-cfica de biomembranas lipo-proticas,elevando o limiar de excitabilidadecelular ou a interao inespecfica comstios hidrofbicos de protenas do sis-tema nervoso central, provocando per-da da conscincia. Neste caso espec-fico, em que a complexao do frma-co com macromolculas da biofased-se predominantemente atravs deinteraes de Van der Walls, a potnciado frmaco est diretamente relacio-nada com a sua lipossolubilidade,como est exemplificado comparati-vamente na Figura 1, mostrando queo halotano mais potente que isofu-rano (Foye e Williams, 1995).

    Em alguns casos, a alterao daspropriedades fsico-qumicas decorren-tes de modificaes estruturais de umfrmaco pode alterar seu mecanismode interao com a biofase. Umclssico exemplo encontra-se naclasse dos anticonvulsivantes. O pen-tobarbital (3) estruturalmente espec-fico e tem ao sobre o receptor GABA

    ionforo. A simples substituio de umtomo de oxignio por um tomo deenxofre produz o tiopental (4), cujalipossolubilidade maior e tem aoanestsica inespecfica (Figura 2)(Foye et al., 1995, Gringauz, 1997).

    Frmacos estruturalmente especficos

    Os frmacos estruturalmente espe-cficos exercem seu efeito biolgicopela interao seletiva com uma deter-minada biomacromo-lcula alvo, que apre-senta na maior partedos casos proprieda-des de enzima, protenasinalizadora (receptor),canal inico ou cidonuclico. O reconhe-cimento do frmaco(micromolcula) pelabiomacromolcula de-pende do arranjo espacial dos grupa-mentos funcionais e das propriedades

    de superfcie da micromolcula, quedevem ser complementares ao stio deligao localizado na macromolcula,o stio receptor. A complementaridadenecessria para a interao da micro-molcula com a biomacromolculareceptora pode ser ilustrada simpli-ficadamente pelo modelo chave-fechadura (Figura 3). Neste modelopodemos comparar a biomacromo-lcula com a fechadura, o stio recep-

    tor com o buraco dafechadura e as dife-

    rentes chaves comligantes do stio re-ceptor, isto , regiesda micromolculaque vo interagirdiretamente com am a c r o m o l c u l a .Neste caso espe-cfico abrir a porta

    ou no abrir a porta representariamas respostas biolgicas desta inte-

    Figura 1: Correlao entre as propriedades fisico-qumicas e a atividade biolgica dosfrmacos estruturalmente inespecficos (1) e (2).

    Carlos Alberto Manssour Fraga

    As interaes de um frmaco com o seu stio de ao no sistema biolgico ocorrem durante a chamada fasefarmacodinmica e so determinadas por foras intermoleculares: interaes hidrofbicas, polares, eletrostticase estricas. Considerando os possveis modos de interao entre o frmaco e a biofase, podemos classific-losde maneira genrica em dois grandes grupos; estruturalmente inespecficos e estruturalmente especficos.

    interao frmaco-receptor, foras de interao, reconhecimento molecular

    Os anestsicos gerais soum exemplo clssico de

    frmacos estruturalmente

    inespecficos, uma vez que

    seu mecanismo de ao

    envolve a depresso

    inespecfica de biomem-

    branas lipo-proticas

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    rao. A anlise da Figura 3 permite-nos evidenciar trs principais tipos dechaves: a) a chave original, que seencaixa adequadamente com a fecha-dura, permitindo a abertura da porta,corresponderia ao agonista natural (en-dgeno) ou substrato natural, que inte-

    rage com o stio receptor da biomacro-molcula localizado respectivamenteem uma protena ou enzima, desenca-deando uma resposta biolgica; b) achave modificada, com propriedadesestruturais que a tornam semelhantes chave original e permitem seu acesso fechadura e a abertura da porta, cor-responderia a um agonista modificadoda biomacromolcula, sinttico ou deorigem natural, capaz de reconhecercomplementarmente o stio receptor edesencadear uma resposta biolgica

    qualitativamente idntica quela doagonista natural; e c) a chave falsa, queapresenta propriedades estruturais m-nimas que permitem seu acesso fe-chadura, sem ser capaz entretanto depermitir a abertura da porta, correspon-deria ao antagonista, sinttico ou deorigem natural, capaz de ligar-se aostio receptor sem promover a respostabiolgica e bloqueia a ao do agonis-ta endgeno e/ou modificado, ocasio-

    nando uma resposta qualitativamenteinversa quela do agonista.

    Nos trs casos podemos distinguirduas etapas relevantes na interao da

    micromolcula ligante com a bioma-cromolcula que contm a subunidadereceptora:

    a) interao ligante-receptor pro-priamente dita: expressa quantita-tivamente pelo termoafinidade, traduza capacidade da micromolcula secomplexar com o stio complementarde interao;

    b) produo da resposta biolgica:expressa quantitativamente pelo termo

    atividade intrnseca, traduz a capaci-dade do complexo ligante-receptor de-

    sencadear uma determinada respostabiolgica (Wermuth, 1996). A Tabela 1 ilustra estas conside-

    raes com o exemplo das substn-cias (6-8) que atuam como ligantes dereceptores benzodiazepnicos, onde ofrmaco diazepam (5) atua com pro-priedades agonistas, responsveis pe-lo efeito sedante e anticonvulsivantedesta classe teraputica. Vale a penadestacar que as substncias (6-8) soligantes com afinidade distintas, umavez que so reconhecidas diferencia-

    damente pelos stios localizados noreceptor. Neste caso, o composto pir-rolobenzodiazepnico (8) aquele queapresenta maior afinidade pelo recep-tor benzodiazepnico, seguido do deri-vado imidazolobenzodiazepnico (7) epor fim o derivado (6). Uma maior afi-nidade no traduz a capacidade doligante produzir uma determinada res-posta biolgica, como podemos evi-denciar pela anlise comparativa dos

    derivados (7) e (6), que apresentamatividades intrnsecas distintas dantagonista e agonista, respectivamente. Considerando-se a ao terapu

    tica desta classe, predominantementedevida ao agonista sob receptorebenzodiazepnicos, podemos concluque o derivado (6) , apesar deapresentar uma menor afinidade poeste receptor, um melhor candidato frmaco que o derivado (7).

    Foras relevantes para o reconhecimento

    molecular: Ligante/stio receptor

    Do ponto de vista qualitativo, o graude afinidade e a especificidade daligao micromolcula-(stio receptor

    so determinados por foras intermoleculares: eletrostticas, de dispersohidrofbicas, ligaes de hidrognio eligaes covalentes (Foye et al., 1995Gringauz, 1997, Taylor e Kennewel1981, Wolff, 1995). Em uma interaofrmaco-receptor tpica normalmentocorre uma combinao dessas foras, sendo no entanto necessrio estud-las separadamente, de modo areconhecer sua natureza e assim propor modelos para interaes ligante stio receptor.

    Foras eletrostticas

    As foras de atrao eletrostticaso aquelas resultantes da interaoentre dipolos e/ou ons de cargaopostas, cuja magnitude diretamentedependente da constante dieltrica domeio e da distncia entre as cargas. Agua apresenta elevada constantedieltrica ( = 80), devido ao semomento de dipolo permanente

    Figura 2: Influncia da modificao molecu-lar no mecanismo de ao dos barbituratos(3) e (4).

    Figura 3: Modelo chave-fechadura e o reconhecimento ligante-receptor.

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    podendo diminuir as foras de atraoe repulso entre dois grupos carrega-dos e solvatados. Desta forma, na

    maior parte dos casos, a interaoinica precedida de desolvataodos ons, processo que envolve perdasentlpicas e favorecido pelo ganhoentrpico resultante da formao demolculas de gua livres (Figura 4). Afora da ligao inica, ~5 kcal.mol-1, dependente da diferena de energiada interao on-on vs. a energia dosons solvatados (Figura 4) (Foye et al.,1995, Gringauz, 1997, Taylor e Kenne-well, 1981, Wolff, 1995).

    Alguns aminocidos componentes

    de protenas apresentam um terceiro

    grupo ionizvel, alm da carboxila e dogrupo amina, entre os quais forma-sea ligao peptdica. Este terceiro grupo

    encontra-se ionizado em pH fisiolgico(7,4). o caso dos aminocidos bsi-cos, arginina e lisina (com carga posi-tiva) e dos aminocidos cidos, gluta-mato e aspartato (com carga negativa).Frmacos que apresentem gruposcarregados negativa ou positivamentepodem interagir com aminocidos pre-sentes em protenas de stios recep-tores. O flurbiprofeno (9), antiinflama-trio no esteroidal que atua inibindoa enzima prostaglandina endoperxidosintase (PGHS), provoca sua ao por

    ligaes com resduos de aminocidos

    da enzima, dentre as quais destaca-se a interao do grupamento carboxi-lato da forma ionizada de (9) com oresduo de arginina na posio 120 daseqncia primria desta protena(Figura 5) (Lages et al., 1998). Vale apena destacar que uma ligao inicareforada por uma ligao de hidro-gnio, como no exemplo discutido

    acima, resulta em expressivo incre-mento da fora de interao de~10 kcal.mol-1.

    Adicionalmente, as foras de atra-o eletrostticas podem incluir doistipos de interaes, que variam ener-geticamente entre 1-7 kcal.mol-1: a) on-dipolo, fora resultante da interao deum on e uma espcie neutra polariz-vel, com carga oposta quela do on;e b) dipolo-dipolo, interao entre doisgrupamentos com polarizaes decargas opostas (Figura 6) (Foye et al.,

    1995, Gringauz, 1997, Taylor e Kenne-well, 1981, Wolff, 1995). Esta polariza-o decorrente da diferena de eletro-negatividade entre um heterotomo,por exemplo o oxignio, e um tomode carbono, produz espcies que apre-sentam um aumento da densidadeeletrnica do heterotomo e uma redu-o da densidade eletrnica sobre otomo de carbono, como ilustrado naFigura 6, para o grupamento carbonila.

    A interao do substrato natural -endoperxido cclico de prostaglan-dina H2 (10) - com a enzima trombo-xana sintase (TXS) (que contm ferropresente no grupo heme), envolve aformao de uma interao on-dipoloentre o tomo de ferro do grupamentoheme e o tomo de oxignio em C-11,que apresenta carga parcial negativa(Figura 7). Este reconhecimento mo-lecular que leva transformao daPGH2 (10) no autacide trombognicotromboxana A2 (TXA2), pode ser explo-rado no planejamento de frmacosantitrombticos que atuam como inibi-dores de TXS (TXSi) (Kato et al., 1985).

    Foras de disperso

    Estas foras atrativas, conhecidascomo foras de disperso de Londonou interaes de van der Walls, carac-terizam-se pela aproximao de mol-culas apolares apresentando dipolosinduzidos. Estes dipolos so resultadode uma flutuao local transiente (10-6

    s) de densidade eletrnica entre gru-

    Atividade biolgica

    Substncia Afinidade do ligante Atividade instrnsecaensaio de binding, IC50 (nM) do ligante

    6 45 agonista

    7 7,2 antagonista

    8 0,1 agonista

    IC50 = concentrao da substncia necessria para produzir interao com 50% dosreceptores.

    Tabela 1: Afinidade e atividade intrnseca de ligantes de receptores benzodiazepnicos.

    Figura 4: Interaes inicas e o reconhecimento frmaco-receptor.

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    pos apolares adjacentes, que noapresentam momento de dipolo per-manente (Foye et al., 1995, Gringauz,1997, Taylor e Kennewell, 1981, Wolff,1995). Normalmente, estas interaesde fraca energia (0,5-1,0 kcal.mol-1),ocorrem em funo da polarizaotransiente de ligaes carbono-hidro-gnio (Figura 8) ou carbono-carbono(Figura 9).

    Atividade biolgica

    Figura 5: Reconhecimento molecular do flurbiprofeno (9) pelo resduo Arg120 do stio ativoda PGHS, via interao inica (Lages et al., 1998).

    Figura 6: Interaes on-dipolo e o reconhecimento frmaco-receptor.

    Figura 7: Reconhecimento molecular da PGH2 (10) pelo resduo Fe-Heme do stio ativo datromboxana Sintase, via interao in-dipolo.

    Figura 8: Interaes on-dipolo pela polarzao transiente de ligaes carbonohidrognio.

    Apesar de traduzirem fracas ener-gias de interao, as foras de disper-so so de extrema importncia parao processo de reconhecimento mole-cular do frmaco pelo stio receptor,uma vez que normalmente se caracte-rizam por interaes mltiplas que,somadas, acarretam contribuiesenergticas significativas.

    Interaes hidrofbicas

    Como as foras de disperso, asinteraes hidrofbicas so individuamente fracas (~1 kcal.mol-1), e ocorrem em funo da interao em cadeias ou sub-unidades apolares. Normalmente, as cadeias ou sub-unidadehidrofbicas presentes tanto no stioreceptor como no ligante encontramse organizadamente solvatadas pocamadas de molculas de gua. Aaproximao das superfcies hidrofbicas promove o colapso da estruturaorganizada da gua, permitindo a interao ligante-receptor custa do ganho entrpico associado desorganzao do sistema (Foye et al., 1995Gringauz, 1997, Taylor e Kennewel1981, Wolff, 1995). Em vista do grandnmero de sub-unidades hidrofbicapresentes em peptdeos e frmacosesta interao pode ser considerada

    importante para o reconhecimento dmicromolcula pela biomacromolcula, como exemplificado na Figura 10para a interao do fator de ativao

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    plaquetria (PAF) com o seu biore-ceptor, atravs do reconhecimento dacadeia alqulica C-16 por uma bolsalipoflica presente na estrutura daprotena receptora.

    Ligao de hidrognio

    As ligaes de hidrognio so asmais importantes interaes no-cova-lentes existentes nos sistemas biolgi-cos, sendo responsveis pela manu-teno das conformaes bioativas demacromolculas nobres como -hli-ces de protenas (Figura 11) e intera-es purinas-pirimidinas dos cidosnuclicos (Figura 12) (Foye et al., 1995,Gringauz, 1997, Taylor e Kennewell,1981, Wolff, 1995).

    Estas interaes so formadas en-

    tre heterotomos eletronegativos comooxignio, nitrognio, enxofre e o tomode hidrognio de ligaes O-H, N-H eCF2-H (Erickson e McLoughlin, 1995),como resultado de suas acentuadaspolarizaes (Figura 13).

    Inmeros exemplos de frmacosque so reconhecidos molecularmenteatravs de ligaes de hidrognio po-dem ser citados; dentre eles podemos

    destacar ilustrativamente a interaodo antiviral saquinavir (13) com o stioativo da protease do vrus HIV-1 (Figura14) (Leung e Fairlie, 2000). O reconhe-cimento do inibidor enzimtico (13)envolve fundamentalmente a partici-pao de ligaes de hidrognio comresduos de aminocidos do stio ativo,diretamente ou intermediada pormolculas de gua (Figura 14).

    Ligao covalente

    As interaes intermoleculares en-

    volvendo a formao de ligaescovalentes so de elevada energia,(77-88 kcal.mol-1), considerando quena temperatura usual dos sistemasbiolgicos (30-40 C), ligaes maisfortes que 10 kcal.mol-1 dificilmente soclivadas em processos no enzim-ticos. Isto implica que complexosfrmaco-receptor envolvendo ligaesdesta natureza so raramente desfei-tos, culminando com uma inibio

    Atividade biolgica

    Figura 9: Interaes on-dipolo pela polari-zao transiente de ligaes carbono-car-bono.

    Figura 10: Reconhecimento molecular do PAF (11) via interaes hidrofbicas com a bolsalipoflica de seu bioreceptor.

    Figura 11: Ligaes de hidrognio e a manuteno da estrutura terciria da calmodulina.

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    enzimtica irreversvel ou inativao dostio receptor (Foye et al., 1995, Grin-gauz, 1997, Taylor e Kennewell, 1981,Wolff, 1995).

    Esta interao, envolvendo a forma-o de uma ligao sigma entre doistomos que contribuem cada qual comum eltron, ocorrem com frmacos queapresentam grupamentos com acen-tuado carter eletroflico e bionucle-filos orgnicos. A aspirina (14) e abenzilpenicilina (15) (Foye et al., 1995,Gringauz, 1997) so dois exemplos de

    frmacos que atuam como inibidoresenzimticos irreversveis, cujo reconhe-cimento molecular envolve a formaode ligaes covalentes.

    O cido acetil-saliclico (14) apre-senta propriedades antiinflamatrias eanalgsicas decorrentes do bloqueioda biossntese de prostaglandinas

    inflamatognicas e pr-algsicas, devi-do inibio da enzima prostaglandinaendoperxido sintase (PGHS). Estainterao frmaco-receptor de natu-reza irreversvel em funo da forma-o de uma ligao covalente resultan-te do ataque nucleoflico da hidroxilado aminocido serina530 ao grupamen-to eletroflico acetila presente em (14)(Figura 15).

    Um outro exemplo diz respeito aomecanismo de ao da benzilpenici-lina (15) e outras penicilinas sintticas,

    que atuam inibindo a D,D-carboxipep-tidase, enzima responsvel pela forma-o de ligaes peptdicas cruzadasna peptideoglicana da parede celularbacteriana, atravs de processos detranspeptidao (Figura 16). O reco-nhecimento molecular do frmaco (15)pelo stio cataltico da enzima funo

    de sua similaridade estru-tural com a subunidade ter-minal D-Ala-D-Ala da pepti-deoglicana. Entretanto, a li-gao peptdica inclusa no

    anel -lactmico de (15) ca-racteriza-se como um centroaltamente eletroflico, comoilustra o mapa de densidadeeletrnica descrito na Figura16. Desta forma, o ataquenucleoflico da hidroxila doresduo serina da trade ca-taltica da enzima ao centroeletroflico de (15) promovea abertura do anel de quatro

    Atividade biolgica

    membros e a formao de uma ligaocovalente, responsvel pela inibio

    irreversvel da enzima (Figura 16).

    A estereoqumica e o reconhecimento

    molecular: Ligante / stio receptor

    Apesar do modelo chave-fechadura ser til na compreenso dos eventoenvolvidos no reconhecimento molecular ligante-receptor, este modelo umarepresentao grosseira da realidadeuma vez que a interao entre a biomacromolcula e a micromolculapresenta natureza tridimensional dinmica. Desta forma, a dimenso molecular do ligante, as distncias interatmicas e o arranjo espacial entre ogrupamentos farmacofricos constituem aspectos fundamentais na compreenso de diferenas na interaofrmaco-receptor. A Figura 17 ilustra anatureza 3D do complexo bio-macromolcula-micromolcula, com destaque para o arranjo espacial dos amnocidos que constituem o stio ativo(figura adaptada da obtida empdb.life.nthu.edu.tw/)

    Configurao absoluta e atividadebiolgica

    Um dos primeiros relatos da literatura que indicava a relevncia da estereoqumica, mais particularmente dconfigurao absoluta na atividadebiolgica, foi feito por Piutti (1886), descrevendo o isolamento e as diferentepropriedades gustativas dos enantimeros do aminocido asparagina (16(Figura 18). Essas diferenas de

    Figura 12: Ligaes de hidrognio e a manuteno da estrutura dupla fita do DNA.

    Figura 13: Principais grupos doadores e aceptores deligaes de hidrognio.

    Figura 14: Reconhecimento molecular doantiviral saquinavir (13) pelo stio ativo daprotease do HIV-1, via interaes de hidro-gnio (Leung et al., 2000).

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    propriedades organolpticas expressa-vam diferentes modos de reconheci-mento molecular do ligante pelo stioreceptor localizado nas papilas gusta-tivas, traduzindo sensaes distintas.

    Entretanto, o sentimento da impor-tncia da configurao absoluta na

    Figura 15: Mecanismo de Inibio irreversvel da PGHS pela aspirina (14), via formao deligao covalente.

    Figura 16: Mecanismo de inibio irreversvel da carboxipeptidase bacteriana pelabenzilpenicilina (15), via formao de ligao covalente.

    atividade biolgica permaneceu ador-mecido at a dcada de 60, quandoocorreu a tragdia decorrente do usoindiscriminado da forma racmica dosedativo talidomida (17) por gestantes,resultando no nascimento de aproxi-madamente 12.000 crianas deforma-

    das (Barreiro et al., 1997). Posterior-mente, o estudo do metabolismo de(17) permitiu evidenciar que o enanti-mero (S) era seletivamente oxidadolevando formao de espcies eletro-flicas reativas do tipo areno-xido, quereagem com nuclefilos bioorgnicos,induzindo teratogenicidade, enquantoo antpoda (R) era responsvel pelas

    propriedades sedativas e analgsicas(Figura 19) (Knoche e Blaschke, 1994).Este episdio foi o marco de nova

    era no desenvolvimento de novos fr-macos, onde a quiralidade passou ater destaque e a investigao cuida-dosa do comportamento de frmacosquirais (Borman, 1990) ou homoquirais(Ariens, 1993) frente a procesoscapazes de influenciar tanto a fasefarmacocintica (Wainer, 1993) (absor-o, distribuio, metabolismo eeliminao), quanto a fase farmacodi-

    nmica (Wainer, 1993) (interao fr-maco-receptor), como passaram a serfundamentais antes de sua liberaopara uso clnico.

    O perfil biolgico diferente de subs-tncias quirais foi pioneiramente racio-nalizado por Easson e Stedman (1933)(Testa, 1990), que propuseram que oreconhecimento molecular de um li-gante, que apresente um simples car-bono assimtrico pelo bioreceptor,deveria envolver a participao de pelomenos trs pontos. Neste caso, o

    reconhecimento do antpoda corres-pondente ao frmaco hipottico pelomesmo stio receptor no seria to efi-caz devido perda de um ou maispontos de interao complementar.Um exemplo desta aproximao, co-nhecida como modelo de trs pontosde Easson-Stedman (Easson eStedman, 1933) est ilustrada naFigura 20, considerando o mecanismode reconhecimento estereoespecficodo propranolol (18) pelos receptores-adrenrgicos. O enantimero (S)-(18)

    reconhecido por estes receptoresatravs de trs principais pontos deinterao: a) stio de interao hidrof-bica, que reconhece o grupamentolipoflico naftila de (18); b) stio dedoador de ligao de hidrognio, quereconhece o tomo de oxignio dahidroxila da cadeia lateral de (18); c)stio de alta densidade eletrnica, quereconhece o grupamento amina dacadeia lateral, atravs de interaes do

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    Cadernos Temticos de Qumica Nova na Escola N 3 Maio 200Atividade biolgica

    tipo on-dipolo. Neste caso particular,o enantimero (R)-(18) apresenta-sepraticamente destitudo das proprieda-des -bloqueadoras terapeuticamenteteis para o tratamento da angina,devido menor afinidade decorrenteda perda do ponto de interao (b),apresentando por sua vez proprie-dades indesejadas relacionadas inibio da converso do hormnio datireide tiroxina triiodotironina.

    Assim, segundo as regras denomenclatura recomendadas pelaIUPAC (1996), dizemos que o enanti-mero terapeuticamente til do propra-

    nolol,o (S)-(18),que apresenta maiorafinidade e potncia pelos receptores

    -adrenrgicos, deve ser chamado deeutmero, enquanto aquele que apre-senta propriedades indesejadas, oucaracteriza-se como um ligante de me-nor afinidade pelo bioreceptor,o (R)-(18), deve ser chamado de distmero.

    As diferenas de atividade intrnse-ca de frmacos enantiomricos queapresentam idnticas propriedadesfsico-qumicas, excetuando-se o des-vio do plano da luz polarizada, funoda natureza quiral dos aminocidos,componentes da grande maioria debiomacromolculas, que se caracte-rizam como alvos teraputicos optica-

    mente ativos. Ento, a interao en-tre antpodas do frmaco quiral comreceptores quirais, leva formao decomplexos frmaco-receptor diastere-oisomricos que apresentam proprie-dades fsico-qumicas e energias dife-rentes, podendo portanto elicitar res-postas biolgicas distintas (Barreiro et

    al., 1997); veja tambm artigo sobrequiralidade, na p. 32.

    Configurao relativae atividadebiolgica

    De forma anlo-ga, alteraes daconfigurao relativados grupamentos far-macofricos de umligante alicclico ouolefnico tambmpodem repercutir di-retamente no seu re-conhecimento pelobioreceptor, uma vez

    que as diferenas de arranjo espaciados grupos envolvidos nas interaecom o stio receptor implicam em perdade complementaridade e, conseqentemente, em perda de afinidade e atvidade intrnseca, como ilustra a Figura21 (Foye e Williams, 1995, Gringauz1997, Barreiro et al., 1997, Wainer, 1993)

    Um exemplo clssico que ilustraa importncia da isomeria geomtricana atividade biolgica diz respeito aodesenvolvimento do estrognio sinttico trans-dietilestilbestrol (19), cujconfigurao relativa dos grupamentos para-hidroxifenila mimetiza oarranjo espacial adotado pelas hdroxilas que apresentam carter farmacofrico para o reconhecimento doligante natural,i.e. hormnio estradio(20), pelos receptores de estrogniointracelulares (Figura 22). O estereoismero cis do dietilestilbestrol (21

    apresenta distncia entre os grupamentos farmacofricos inferior quelanecessria para o adequado reconhecimento pelo bioreceptor e, conseqentemente, apresenta atividadestrognica 14 vezes menos potentque aquela do derivado trans correspondente (19) (Figura 22).

    Figura 17: Representao tridimensional do complexo da acetilcolinesterase com o inibidortacrina (rosa), com destaque para os resduos de aminocidos que compem o stio re-ceptor (vermelho).

    Figura 18: Estereoismeros da asparagina(16).

    Figura 19: Estereoismeros da talidomid(17).

    Figura 20: Reconhecimento molecular dos grupamentos farmacofricos dos enantimeros do propranolol (18).

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    Cadernos Temticos de Qumica Nova na Escola N 3 Maio 2001

    Conformao e atividade biolgica

    As variaes de arranjo espacialenvolvendo a rotao de ligaes co-valentes sigma, associadas a um custoenergtico normalmente inferior a10 kcal.mol-1, so chamadas confor-maes. Este tipo particular de estere-oisomeria extremamente relevantepara o reconhecimento molecular de

    uma srie de mediadores qumicosendgenoscomo dopamina, seroto-nina, histamina e acetilcolina, expli-cando os seus diferentes perfis de ativi-dade biolgica dependentes da modu-lao de diferentes subtipos de recep-tores, como D1/D2/D3/D4/D5, 5-HT1/5-HT2/5-HT3, H1/H2/H3 e muscarnicos/nicotnicos, respectivamente (Casy eDewar, 1993).

    A acetilcolina, importante neuro-transmissor do sistema nervoso paras-simptico, capaz de sensibilizar dois

    subtipos de receptores: os receptoresmuscarnicos predominantementelocalizados no sistema nervoso perif-rico e os receptores nicotnicos locali-zados predominantemente no sistemanervoso central. Entretanto, os diferen-tes efeitos biolgicos elicitados sodecorrentes das interaes de diferen-tes arranjos espaciais dos grupamen-tos farmacofricos da acetilcolina como stio receptor correspondente (Foyee Williams, 1995, Casy e Dewar, 1993),isto , grupamento acetato e o grupa-

    mento amneo quaternrio, que po-dem preferencialmente adotar umaconformao de afastamento mximo,conhecida como antiperiplanar (IUPAC,1996) ou conformaes onde estesgrupos apresentam um ngulo de 60Figura 21: Configurao relativa e o reconhecimento molecular ligante receptor.

    Figura 22: Reconhecimento molecular dos grupamentos farmacofricos dos estereoismeros trans e cis-dietilestilbestrol (21).

    Atividade biolgica

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    Cadernos Temticos de Qumica Nova na Escola N 3 Maio 200

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    Figura 23: Variaes conformacionais da acetilcolina (22) e o reconhecimento molecularseletivo dos grupamentos farmacofricos pelos receptor muscarnicos e nicotnicos.

    entre si, conhecidas como sinclinais(IUPAC, 1996) (Figura 23). O reconhe-cimento seletivo dos ligantes de origemnatural muscarina (23) e nicotina (24)por estes subtipos de receptores,permitiu evidenciar que a conformaoantiperiplanar de (22) responsvelpela interao com os receptoresmuscarnicos, enquanto a conforma-

    o sinclinal de (22) responsvel pelainterao com o subtipo nicotnico(Foye e Williams, 1995, Casy e Dewar,1993).

    Consideraes finais

    Os aspectos abordados nestacomunicao destacam a interdisci-plinaridade caracterstica da qumicamedicinal e tornam evidentes que acompreenso das razes moleculares

    da atividade biolgica dependem dacompleta caracterizao das proprie-dades fsico-quimico-estruturais damicromolcula que codificam umamensagem, que ser lida aps atingirum endereo especfico: a biomacro-molcula receptora. Acentuaram-setambm as propriedades estereoqu-micas das molculas e dos fragmentos

    moleculares e sua importncia sobrea formao de interaes entre osligantes e o stio receptor.

    Agradecimentos

    O autor agradece ao Prof. CarlosRangel Rodrigues (LASSBio - Faculda-de de Farmcia - UFRJ) pelo auxlio naconfeco da Figura 17.

    Carlos Alberto Manssour Fraga ([email protected]), farmacutico formado pela Faculdade de Far-

    mcia da UFRJ (1988), mestre (1991) e doutor (1994em qumica orgnica pelo Instituto de Qumica da UFRJ professor adjunto da Faculdade de Farmcia da UFR(desde 1996) e orientador do programa de ps-graduao em qumica orgnica do Instituto de Qumicda UFRJ. Tambm pesquisador do LASSBio, atuandna rea de qumica medicinal e sntese orgnica.

    Atividade biolgica