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danilo arnaldo briskievicz
QUINTA-FEIRA
QUINTA-FEIRA
danilo arnaldo briskievicz
TIPOGRAPHIA SERRANA 2012
Nota do autor
A série de sete livros iniciou-se com Domingo e será encerrada
com Sábado. Toda visão da obra é a partir do Serro e das
horas passadas na minha cidade do interior que arranhou
eternamente a memória e contaminou de lirismo a alma. Até
hoje.
A SEMANA TEM SETE DIAS
Os dias da semana são sete. No Brasil, seguindo a tradição
portuguesa, a semana começa no domingo, considerado o
primeiro dia da obra divina segundo o livro do Gênesis. No
mito da criação judaico-cristão, Deus opera sua obra em sete
dias. Ou em sete processos contínuos. Deus cria a luz no
primeiro dia e depois aperfeiçoa a sua obra. Descansa no
sábado. Foi no Império Romano que a astrologia introduziu o
uso popular da septimana ou sete semanas, em latim,
convenção de origem babilônica. Inicialmente, os nomes dos
deuses orientais foram substituídos por equivalentes latinos.
Com o advento do cristianismo, o dia do Sol, solis dies, foi
substituído por dominica, dia do Senhor; e o saturni dies, dia
de Saturno, por sabbatum, derivado do hebraico shabbath, o
dia de descanso consagrado pelo Velho Testamento. Os dias
eram homenagens à Lua (segunda); Marte (terça); Mercúrio
(quarta); Júpiter (quinta) e Vênus (sexta-feira). O termo feira
surgiu em português porque, na semana da Páscoa, todos os
dias eram feriados - férias ou feiras - e os mercados
funcionavam ao ar livre. O domingo, que seria a primeira feira,
conservou o mesmo nome por ser dedicado a Deus, fazendo a
contagem iniciar-se na secunda-feria, segunda-feira. O sábado
foi mantido em respeito à antiga tradição hebraica.
5.º DIA: QUINTA-FEIRA
Deus disse: Que as águas fiquem cheias de seres vivos e os
pássaros voem sobre a terra, sob o firmamento do céu.
E Deus criou as baleias e os seres vivos que deslizam e vivem na
água, conforme a espécie de cada um, e as aves de asas,
conforme a espécie de cada uma. E Deus os abençoou...
MANHÃ
chove: a pequena fração de nuvens
em fina camada cobre a madrugada
e nada mais acontece, pois dormem
os homens da cidade
a chuva fina escorre em filetes
sobre os bichos empoleirados
nas árvores: os de penas e asas
esperam a madrugada levar o medo
da morte sempre presente na noite
e nada mais acontece: o relógio
da santa rita toca seus sinos
programados para quinze minutos
e de quinze em quinze as horas
se amontoam em meio ao silêncio
do relógio que refresca suas engrenagens
na alta madrugada fria e em vento leve
não é de se espantar: a calmaria da quinta-feira
emociona quando vista do alto e sei que deus
assim se satisfaz: sua criação adormece e quieta
refaz-se em sono e em sonhos profundos
os lampiões (mera cópia de passado
distante onde os homens usavam
o gás para fabricarem a luz para
as ruas desertas)
estão em pleno funcionamento
mas ninguém os perceberia
na alta madrugada: os olhos
do povo estão fechados em sono
decerto a luz de um lampião
jamais é inútil como a lua
cheia, cheia de si e bela,
jamais é inútil posto
que de suas emanações alguém se serve
para um beijo, para um suspiro,
para um assassinato ou para
simplesmente saber que ela existe
o lampião apenas ilumina
e das casas velhas do centro
quem perde o sono sabe:
a luz da madrugada é artifício humano
cenário de rara beleza:
do alto da santa rita
a chuva fina e os lampiões
brincam de ninar o sono
e passar o tempo da noite
já que a lua foi embora
e deixou o céu em nuvem
para umedecer as sementes
é função da madrugada
aquietar os homens
mas também despertar
os seres que dormitam
no fundo do solo
chamá-los à vida
deixa-los à mostra
para a realidade
a madrugada sossega
mas também se alegra
quando traz à tona
os subterrâneos
como é comum: ninguém
se preocupa com as flores
algumas dormem, outras
em jardins diversos
colhem da noite
para suas raízes
o orvalho refrescante
da noite
é preciso ficar sempre bela
caso o beija-flor esteja de
mau humor e escolha
entre as mais viçosas
para fazer sua polinização
em função d ordem natural
das coisas que por si só
se mantém (é um mistério
insolúvel a capacidade de viver
sem produzir que não seja
apenas uma cor vibrante
e uma haste que se inclina)
diante do vento e da tempestade
de qualquer parte do dia passando
sei bem: as flores são heranças dos
passos dos deuses entre nós
há de se esperar o sol da manhã
para acordar a seiva e nutrir-se
por dentro deixando na cidade
a marca da arquitetura biológica
tão funda na paisagem da cidade
que pouco se nota: os jardins
misturam tantas cidadanias
e por isso há em cada canteiro
da praça feia um quê de mistério
e de cosmopolita harmonia
(o zelador da prefeitura de manhã
corre os olhos para saber
se algumas das flores precisam
de adubo, de poda ou de uma
palavra cheia de carinho
para se embelezar)
em todo lugar se acha a necessidade
de um carinho especial para fazer
o dia nascer feliz e as cores
se tornarem mais radiosas
eles, os morcegos, dominam
o cenário da madrugada
vasculhando os frutos
das árvores
saciar a fome de madrugada
para, durante o dia, ficar
inerte de cabeça para baixo
enquanto os homens em sociedade
procuram colocar tudo em ordem
em sentido, em encadeamento lógico
abstrato e concreto, não importa
é sempre o hábito de ser fiel à rotina
os frutos da árvore não se preocupam
com os morcegos da madrugada
roubando o sabor de suas
cores tão vistosas
a árvore sabe do dia seguinte
do mês seguinte e mais:
da estação trazendo a chuva
para retemperar a semente
e fazê-la acreditar que é hora
a boa hora de lançar raízes ao solo
para repetir o ciclo das coisas
e dos morcegos
aposta por aposta
desejo por desejo
necessidade por necessidade
cor por cor e fome por fome
a madrugada é cenário
de neblina fechando o palco
para o dia nascendo entre
as matas densas e os pastos
repletos de vacas regurgitando
a grama do dia anterior: é quase
hora de repastar o capim
e deixar a vida mais forte
a madrugada não se abre
desiste apenas de ser bela
mesmo escura e fúnebre:
das trevas se faz a quinta-feira
(minha cidade do interior
terá o seu sol depois de muitas
cidades pelo mundo afora
o fuso horário não deixa
dúvidas: minha cidade está na terra
apesar de muitas vezes eu senti-la
fora da órbita dos fatos mais convencionais
do mundo atual)
em sua rota extraordinária de fatos
um após o outro virando notícia
minha cidade não é notícia importante
por isso, talvez, seja mais bela
porque não precisa dos jornais
para contemplar sua grandeza
ela é grande por si mesma
como as coisas belas precisam
apenas e nada mais
de um olhar belo
para lhe ser plena
revelação
notícia boa ou ruim não,
não tem não! mas tem outra
coisa fundamental: sabedoria
de vida para descer e subir ladeira
sem se desesperar com a vida
sabe-se que depois de morro
aparece um horizonte e depois
de horizonte vem alegria
e a madrugada vai cessando
orvalho, frio, sono profundo
e a luz vai se apagando
os postes deixam claro:
o dia vai nascer novamente
e em operação de abrir o palco
os postes silenciam a corrente elétrica
e passam a viver dos raios do sol
decerto que a padaria de zé congonhas
antes do sol nascer já tem massa pronta
para alimentar a população dos quatro
cantos da cidade
o padeiro é criatura da madrugada
e dorme cedo para cedo deixar
tudo pronto em cada mesa
nas casas espalhadas pelos morros
o fogo acende a alquimia dos pães
em tempo de frio o pão crocante
em tempo de calor o pão murcho
são as regras das estações
a fumaça do forno sai na chaminé
comunicando aos quatro cantos
da cidade na montanha: o pão
de cada dia está pronto no cesto
pegue quem tiver dinheiro
se assim não for, espere:
dia de santo antônio tem
pão de graça no alto do rosário
se não der para esperar
chame os vicentinos para
auxiliar a fome de cada dia
o estômago de ricos e pobres
é sempre o mesmo e têm necessidades
tão iguais: a natureza humana não
deixa nenhuma diferença fora
toda miséria humana é em sociedade
se não der para esperar
põe a panela no fogo
e a água fervendo
chamará ajuda
quantas vezes vi esse ritual
na infância distante: minha cidade
dá fome aos pobres como os ricos
mas a fome dos pobres é cruel
se não der para esperar
reza para nossa senhora
do rosário, do carmo,
das mercês, da conceição
a alma caridosa será abalada
de alguma forma e a panela
vai ficar cheia de novo:
o vento traz esperança, sempre
e pode ser que a tarde, chegando, seja
outra vez menos áspera para o amor
e menos ríspida para a ternura entre
os homens da cidade do interior
a fome ainda pula de casa em casa
feito miquinho procurando banana
é feio: passar a fome dos dias
não leva à filosofia
muito menos à transformação
das horas sofridas em mutação
da política emburrecida
em atraso barroco
talvez a tarde salve uma alma
por mais algumas horas: hoje
é dia de corpus christi e as ruas
se esquecem dos pobres do morro
TARDE
no feriado de corpus christi
a prefeitura sempre dá um jeito
de jogar montes de areia
para enfeitar as ruas
vai passar a hóstia santa
é quinta-feira mais uma vez
e jesus conduzido pelas mãos
do homem sacerdote
sairá para reparar na cidade
e sentir o vento dos dias
e notar se há mudança:
sua doutrina nunca paralisa
talvez, por sorte, ainda
em procissão, veja os
avanços das casas nos morros
e a derrubada das matas
distantes do centro velho
e jesus talvez veja uma flor
no jardim da praça feia:
ainda não é inverno
as mulheres do centro histórico
se ajuntam como formigas
em torno dos montes de areia
e a arte das mãos fazem tapetes
para passar o mestre dos mestres
em dia de singular pausa para
mais uma vez: rever a vida
passando na montanha
crianças também se ajuntam
para manchar a areia branca
com as cores fortes do xadrez
vermelho, azul, roxo
(na minha cidade o pó xadrez
serve para tingir areia e serragem
e depois virar desenho de tapete
ornando o caminho santo)
sempre na infância era jadir canela
o homem mais folclórico da cidade
entregando sua serragem da oficina
em sacos para os pedintes meninos
a cultura de um lugar
como o lugar de onde vim
mistura todo mundo
na necessidade eclesiástica
seria uma vergonha tão grande
ruas sem cobertura de tapete
para o rei dos reis: e o sacerdote
que diria das ruas iguais?
deixar o tapete pronto:
nunca chove na quinta-feira
de corpus christi e seguros
fazemos acordos divinos
é suave o vento no rosto
também não é agosto
para a ventania espalhar
serragem e areia embora
esforço: tapar os buracos
do pé-de-moleque em cores
e deixar as ruas fechadas
para os carros materialistas
não imporem seu ronco
ao silêncio da procissão
(que só deve ser quebrado
pela reza do terço
pelo coral de dona vilma
ou pelo dobrado da banda
que vinda do botavira
alegra a festa
zé nonato toca bombardino
no ritmo do bumbo de silvio boné
a alma dança leve pelas ladeiras
e até os pássaros cansados
entendem os sons dos homens
em instrumentos de metal
pratos, saxofones, tarol
e um som de fazer acordar
o sorriso de crianças, velhos
recém-nascidos: a música
é outro universo paralelo
à cidade em seriedade barroca)
na minha cidade do interior
quinta-feira de corpus christi
é dia especial em tapetes
fazendo o caminho
não que todos tenham em casa
sobre o piso em vermelhão
tapete persa ou tapete
de aladim em mil e uma noites
não que todos saibam que o tapete
é objeto luxuoso dos moradores
dos palácios medievais e dos ricos
do alto da cidade velha
o tapete para jesus tem flor natural
daquelas que saindo da alegria
no rosto da mãe de marlene miranda
ou de terezinha lá do alto da santa rita
perfumam os passos dos homens
e das mulheres guiados pelo ostensório
caminhando em busca da salvação
entre tropeços em pedras antigas
o tapete fica pronto bem antes
da procissão sair em sinos
espantando os pardais
da igreja matriz piedosa
há de se ter tempo para limpar
as mãos em xadrez multicolorido
há de se colocar a melhor roupa
para transitar entre o céu e a cidade
e o tempo passa tão rápido
entre os preparativos e
os anteriormentes de épica
procissão de quinta-feira
arrumar as crianças
convencê-las que deus existe
que o pecado existe
que o inferno existe
não: a vida das mães da minha cidade
em dia de procissão não é nada fácil
mesmo porque há uma inquietação
que não se mostra para ninguém
e se a procissão não servir para nada?
e se do tempo dedicado ao tapete
sobrar apenas o murcho aspecto
sombrio do dia seguinte em desespero?
mesmo assim se sabe: entre a dúvida
e a certeza levam-se as crianças
para comporem o cenário
(criança deve ser guiada e não guiar)
e antes que passe em sua marcha
elegante entre os tapetes estendidos
as flores caprichosas ainda perfumam
a tarde: que perfume de infância!
serragem, areia e flores:
muitas, de todas as cores
da alegria da fé do meu povo
espalhada como quadros
entre as casas antigas
que mais se parecem agora
renovadas: das tradições
da minha cidade do interior
o tapete de corpus christi
tem tanta dignidade
posto que é coletivo:
a cidade deseja salvar-se
o bico de papagaio
em vermelho extremo
lembra o sangue do cristo
e as uvas roxas em profusão
lembram o vinho bom
do dever cumprido
sempre assim: uma tradição
se impõe para todos, sem remissão
ainda se esperam os fogos:
eles virão de vários lados
remexendo os telhados
provocando as goteiras
de novembro sempre certas
mas os vivas dos fogos
têm causa justa:
são para jesus salvador
e mesmo que o patrimônio
impeça a mudança do telhado
para algo mais moderno:
ainda assim valerá a pena
ainda que as telhas andem
pelos trilhos de madeira
em direção ao chão:
ainda assim valer a pena
tudo para jesus vale a pena
sair de casa depois do banho
o sapato vermelho depois
da procissão
a dor nos joelhos depois
da missa e a vertigem
diante do céu abrindo:
todos se veem em entrada
triunfal pelos caminhos do céu
coral, banda de música, jesus
sacerdote, comoção geral:
corpus christi é desejo de futuro
decerto haverá os pecadores
que em restando em casa
servirão de contraposição
aos santos guiados pelo santo
decerto haverá as crianças
sem família tradicional
que não as enviará para o ritual
mas a vida lhes ensinará
a necessidade de deus
cedo ou tarde
entre dor e alegria
na vida longa
decerto os pardais em ovo
ainda não sabem da natureza
divina da procissão: mas vão saber
a hora certa de abrir o bico
e agradecer ao criador
a provisão de alimentos
deixados na rodioviária
em chão de terra vermelha
para encher suas barrigas
que dia após dia
se esvaziam e se enchem
faça sol ou chuva
decerto alguns homens
e algumas mulheres
(os nomes eu não declino
pois julgar não se deve):
não comungarão a hóstia santa
no dia da festa do corpo de cristo
estão distantes pelo pecado
criado por roma
como se jesus um dia
deixasse qualquer boca
em desejo de alimento
a vida tem coisas estranhas...
os pecadores são tantos
assistem à missa mas
não comungam: estão
mortos ainda de pé
o palco está montado:
tapetes coloridos
comunidade reunida
e soa então, o último sino
a irmandade do santíssimo
em homens de opa vermelha
composta em estilo nobre
sobem o pálio
de dourado espetacular
e debaixo o sacerdote
em capa solene leva
diante de si o ostensório
daqueles pesados em ouro
e prata saídos da américa latina
para a europa e retornados
em navios negreiros, digo,
navios estrangeiros
de além-mar, de mar tão longe
que só sei de seu vento
roçando a tarde de junho
(o único a saber do mar
distante é o pico do itambé
através da rede de rios
saindo de seu coração
a gente ainda não sabe
dessas coisas absurdas
mas um dia quem sabe:
as redes de rios serão
como redes de fios
ligando o mundo:
como parabólicas
satélites e telefones
eu já sei há muito tempo:
o pico do itambé dá
os rios e o mar manda
o vento para refrescar
o calor de pedra bruta
das montanhas velhas
do espinhaço já quase
corcunda de passado)
ninguém se assusta
não são as benzedeiras
nem as mulheres mais puras
da minha cidade
não são os homens mais cultos
de vida ilibada traduzindo virtude
ninguém tem o direito de levar
o ostensório: apenas o padre
ele foi feito para isso e conhece
os rituais de cor e salteado
e é o mediador entre deus
e alma dos homens
(se ele estará salvo
antes dos mais condenados?
quem poderá dizer:
jesus disse que sim...
mas esse assunto leva
à fogueira e à dissenção)
hoje é dia de festa religiosa
e a cidade pulsa salvação
deixe o padre levar o cristo
pelas ruas de tapetes lindos
daria muito trabalho inútil
escolher por votação
quem seria a pessoa
mais adequada para a função
deixar as coisas como estão
cria paz entre todos
se nem os trezentos anos
de cidade mudaram as coisas
por que uma disputa interna
mudaria tudo?
deixar tudo como sempre foi
não mexer com a ordem
natural das coisas
pensar no tempo de amanhã
quando em salvação pura
a alma não se lembrará
das mazelas e pequeninices
do corpo mortal
os fogos, os sinos, os tapetes
estão todos prontos para a festa
do corpo de cristo em ladeiras
e ruas do centro antigo
as casas estão ornadas
em janelas com rendas
e lindas colchas de retalhos
de dona milude
para segurar os panos
os vasos de samambaia
caem feito tranças longas
feito maria lavando os pés de jesus
a tarde se enche de dignidade
o céu e a terra estão unidos
mais uma vez pelo fantástico
homens e deus estão ligados
e mesmo que um bêbado
atravesse a rima comum
tudo é perdão: jesus não liga
e os homens também não vai ligar
e mesmo que algum não católico
torça o nariz por causa da idolatria
há de compreender sua mudança:
um dia ele também seguiu a procissão
e dentro de si traz as marcas
do chão pisado em esperança
atrás do ostensório, do padre
em fila indiana pela cidade
não tenho medo: a memória
dessas cenas são sempre
prazerosas para dar tristeza
são plenas de significado
quem, de fora, quiser ouvir
o coração dos fiéis jamais,
jamais conseguirá: só em
sendo coletivo ali
para saber o que pulsa
entre as filas de um
lado a outro desenhadas
por sobre os tapetes
insólito? talvez profundo
como um milagre em elétrica
fervura de sentimentos
múltiplos
menor? nunca menor!
na alma de cada um
se faz tanta grandeza
que o mundo fica miúdo
e até as profundezas do infernos
tremem diante da visão dos fiéis
é o céu na terra, é a terra no céu
é o homem em deus, deus no homem!
o primeiro passo do padre
sobre o tapete é na porta
da igreja matriz: ele passa
pelo centro da rua
e amassa o desenho, as flores
e deixa para trás um cheiro
de planta morta, de tapete
em total feiura
mas ele tem jesus nos braços
e para jesus foram feitos
os enfeites do dia de seu dia
de sair em procissão
para ver o povo
a cor das casas
as mudanças da cidade
o velho lote em casa recente
(quem se casou agora sabe:
jesus passou na porta
da sua casa para alegria
geral de quem vive)
jesus visita mais uma vez
a cidade depois de um ano
enclausurado no sacrário
da igreja matriz
os olhos ainda turvos
sabem mais dos homens
que qualquer homem
em vida longa
a procissão agora, em cantos,
não o conduzirão à cruz
o dia é de festa: é dia de cristo
dia de celebrar a ressurreição!
o sol vai declinando atrás,
bem atrás da pedra redonda
e depois do fim do mundo
e nos abandona em incerteza
depois de muito cantar
o coral já cansado espera
a hora de voltar para a igreja
e alegrar a missa festiva
nenhuma alma se deixa de fora
todos são envolvidos na fantasia
de céu e terra, de deus e homens
de mistura entre o belo e feio
já no seu meio, a procissão
desfez quase todos os tapetes
belos e perfumados
do trajeto
o que era para jesus
entregue a ele foi
uma dádiva perene
tapete em flor sem raiz
se sabe: amanhã, quando
o dia nascer todos vão se lembrar
da homenagem ao senhor lindo
em hóstia santa idolatrada
se sabe: amanhã, as mulheres
com suas vassouras, vão recolher
dos tapetes o passado e a graça
do gesto santo ficará como benção
para todos os fiéis
sem distinção de idade
(isso foi ensinado desde
muito sempre
e o que se aprende
com o de muito sempre
é que alguém sempre
tem a verdade)
NOITE
as velas produzem cera
líquida: queimam os dedos
escorrendo para o chão
da cidade
as ladeiras estão acabando:
a porta da matriz se vê,
de longe, em alegria
depois da caminhada
todos chegarão: homens
e mulheres e crianças
coral de dona vilma
exceto a banda de música
depois de chegar perto
dá volta e meia
e parte para o botavira
para se retirar da cena
(banda de música
é do mundo profano
coral é do mundo
sagrado
banda de música
tem espírito outro
de coral em te deum
ou laudamus)
o último degrau da matriz
é sempre um alívio
para os pés desgastados
dos fiéis
apagar a vela é preciso
já que outras dentro
do templo esperam
para queimar sua sina
achar um lugar é necessário
depois do cansaço da procissão
mas muitos chegaram antes
e não seguiram o pálio
na minha cidade ficar assentado
em templo no dia de festa
é uma arte de dissimulação:
procissão ou ficar assentado na missa?
os bichos da igreja matriz
se aquietam: andorinhas
dormem apesar da luz
e do barulho dos violões
os ratos dos porões
vão aguardar a alta hora
da madrugada para fazer
sua caminhada solitária
a coruja e seus filhotes
têm medo dos fogos
de artifício lá fora
e aguardarão a hora certa
as mariposas da noite
são as únicas agitadas
é que as luzes divinas
da igreja tricentenária
são ainda fogueira
da inquisição a queimar
os corpos dos bichos
vestidos em escuridão
tudo fica em silêncio
até a chegada do pálio
jesus está voltando
para o interior do sacrário
e depois vai virar alimento
para a fome dos espíritos
embaçados da caminhada
pelos tapetes da cidade
(lá fora os tapetes são pisados
sem vergonha ou timidez:
os meninos correm por cima
da serragem e da areia em cores)
o sagrado passou pela cidade
e deixou suas cores nas fachadas
das casas antigas: é que casa
não tem sorriso (só quem
mora lá dentro tem alma
de gente contente por jesus
em passos largos na visita
anual mais uma vez)
a noite na minha cidade
do interior mais profundo
se abre em vela e procissão
e corpo de jesus pelas ruas
a noite tem mistério fundo
cravado na imaginação
dos meninos e dos homens
de idade avançada
sempre há pelo ar da noite
um cheiro de dama da noite
renascendo o mito do amor
entre todos os lugares
minha cidade tem noite
com cheiro de carrinho
de pipoca de guido
da chácara do barão
depois da missa festiva
ele fica na porta da igreja
estourando pipocas sagradas
para quem da caminhada
longa fez a tarde e as crianças
apáticas na missa felizes
se tornam ao estouro
do milho amarelo
uma procissão na minha cidade
nunca é apenas uma procissão
tem início, meio e fim:
parece um arranjo teatral
crianças arrumadas
pais cobiçando salvação
vendedores anônimos
música em trama forte
tudo na procissão serve
para alguma coisa na noite
dar consolo para quem sofre
manter o poder de quem já o tem
não me espanto depois de anos
anos e anos a fio voltando ao cenário:
as coisas continuam do mesmo jeito
e a forma e conteúdo são sempre os mesmos
a procissão é uma redenção coletiva
até para quem não acredita em deus
os bêbados se sentem coagidos
pelo céu que brota dos cânticos divinos
há uma afetação contente
e a procissão se resume
na noite: olhar para o céu
e deixar o dia seguinte
se insinuar levemente
entre a obrigação do dever
cumprido e o prazer
das pequenas diversões
seguidas da procissão:
os meninos sabem que depois
dos joelhos gastos a pipoca
de guido da chácara
estará como banquete
à disposição dos famintos
por algo mais que céu:
o céu para os miúdos
fica longe demais
é tempo depois demais
é para um dia muito além
de agora
mas existe: e se sabe
como sempre se soube
que as crianças de hoje
serão os fiéis de amanhã
o tempo dos mais velhos
de mostrar a vida social
para os mais novos
é a procissão
nesses rituais coletivos
mudam-se as inclinações
malvadas trazidas
à carne pelo tempo
criam-se os espíritos seguidores
de andores e pálios dourados
e de sacerdotes consagrados
a salvar a comunidade
se serão todos salvos?
não se sabe: da noite
bem dormida depois
de todo dia
é que se conquista
uma alma pura
revelada em procissões
intermináveis em calendário
litúrgico e profano
tudo se mistura na vida
como é próprio daquilo
que é impuro
serão impuros os homens
em procissão? não se sabe:
quem de fora vê o ritual
sabe: há sempre esperança
a noite da minha cidade
do interior mais belo do mundo
depois de procissão e de missa
se resume em passar pela praça
(antes havia coreto e chafariz
para banda de música e sedentos
hoje não tem mais coreto
e o chafariz virou fotografia
na minha cidade as coisas
públicas não têm sentido
se perdem a utilidade
exceto as igrejas
meu povo tem medo
inacreditável do inferno
e teme a deus para salvar
sua alma
coreto e chafariz pra quê?
banda de música segue procissão
e a água benta tem mais valor
que água jorrando em público)
as famílias: pai, mãe, crianças
sobem da matriz para a praça
de nome antigo esquecido: cavalhada
e onde antes havia uma belo rancho
alguns adolescentes sem pais
ou mães aparentes e presentes
vão se dar à solidão dos passos
pela praça hoje de cimento
a salvação da praça antes bela
é o canteiro de rosas múltiplas
adornando o cimento ríspido
e sem graça
talvez o céu complete o disfarce
em estrelas tantas para se mirar
quem deseja ver minha cidade
em sua beleza própria
evite olhar para a praça feia
sepultadora de coreto e chafariz
e das marcas dos tropeiros
em rancho do carmo
talvez uma estrela cadente
roube o olhar na noite
entre as luzes foscas
da praça de cimento
eu, em infância, não via o feio
a praça era apenas lugar
para passar e depois de ver
e ser visto ir embora para casa
hoje, quando em retorno
ao tempo da vida alegre
e por isso mesmo idealizada
acho feiuras espalhadas
por lugares antes purificados
ou invisíveis ao olhar de quem
passa, passa e passa tantas
vezes sem colocar noção estética
em lugares hoje enfeados
pulsa a memória do tempo
dizendo fundo em mim:
o que passou, foi belo antes
e agora, em comparação
resta o contrário: crescer
é ter medidas outras
do que aquelas da infância
minha cidade do interior
era tão coisa única: hoje
em noites vividas em
outros tantos lugares
(sem a beleza evidente
da cidade encantada
geradora da primeira
percepção da vida
e do mundo)
minha cidadezinha tem
expressões pequenas
virou um lugarzinho
de lembranças tão fundas
que o rio jequitinhonha
passa em mim e ainda
lava a alma em frias águas
em frasco de perfume raro
a memória lhe guarda
sempre em expressão
de contentamento
e na noite mais uma vez
revisitada em saudade
(a verdadeira luz
interior de quem ama)
sei: o cheiro de estrela
e céu em plena convulsão
tem cheiro de pipoca
de carrinho
sei: a nobreza maior
é passear com jesus cristo
nos tapetes de serragem
e de areia coloridas
sei: do profano ao sagrado
eu, como muitos, de suas
tramas sociais surgidos
farão sua trajetória
pelo mundo afora
sei: cidade forma a alma
depois a gente passa
o tempo tentando deformar
mas será sempre tarde:
minha cidade é um jeito de corpo
com alma corrigida dentro
o problema: quando é que ouvimos
mais a alma que o corpo
em sentidos perdidos
na multiplicidade de prazeres
do mundo?
ter ficado entre a pedra redonda
e o pico do itambé de ventos tantos
talvez me fizesse mais correto
por dentro e por fora
mas outro olhar
de fora criado faz
o milagre na noite:
só quem viveu
o fim da noite em procissão
tem saudade profunda
de infinito e compreende
tão grandiosa obra divina
o interior de cada um
é consciência de si
no mundo vasto
mas que se resume
numa só crença plena:
ter se tornado gente
entre os rituais,
os ventos e as montanhas
faz toda diferença
para olhar estrelas
e dormir na noite
de consciência tranquila
DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ nasceu em Serro, no ano de 1972. Graduado, pós-graduado e
mestre em filosofia. É professor do ensino médio e universitário
(graduação e pós-graduação) em Belo Horizonte. Autor de livros e
textos de história, de fotografia, de filosofia e de poesia. Conserva,
na poesia, ligação umbilical com a cidade natal. Para se ter com a
grande aventura de ser brasileiro, mineiro e serrano, evoca no seu
eu poético um regionalismo próprio. Todos os livros estão
disponíveis para download gratuito no site oficial.
Copyright by Danilo Arnaldo Briskievicz
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Capa e contracapa
Fotografia a partir do coro da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição,
quinta-feira, de junho de 2011. Danilo Arnaldo Briskievicz. Texto sobre a
semana: http://mundoestranho.abril.com.br/materia/como-surgiram-os-
nomes-dos-dias-da-semana
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