Quintas de Recreio em Portugal

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ILIDIO DE ARAUJO QUINTAS DE RECREIO (Breve introdução ao seu estudo, com especial consideração das que em Portugal foram ordenadas durante o séc. XVIII) BRAGA 1974

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Quintas de recreio em Portugal, com especial destaque para as que foram criadas durante o séc.XVIII.Documento criado a partir de um original da autoria do arquitecto Ilídio Araújo , publicado em 1974.

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ILIDIO DE ARAUJO

QUINTASDERECREIO

(Breve introdução ao seu estudo, com especial consideração

das que em Portugal foram ordenadas durante o séc. XVIII)

BRAGA

1974

QUINTAS DE RECREIO

(Breve introdução ao seu estudo, com especial consideração das que em Portugal foram

ordenadas durante o séc. XVIII)

1-Dizem os lexicólogos, abonando-se com Lucrécio e Plínio, que para os escritores

latinos, e para o comum do povo romano, a palavra “recreare” tinha a significação de reparar,

restabelecer, restaurar, renovar, e ainda a de reproduzir. Cícero e Horácio empregaram-na

também na acepção de deleitar, alegrar, divertir e distrair, o que nos leva a pensar que já

então se entenderia que a renovação das faculdades humanas se consegue mais facilmente, se

não unicamente, pela via da distracção do espirito, deleitando os sentidos.

Desde tempos muito antigos que alguns homens mais favorecidos pela fortuna se

deram ao cuidado de ordenarem para si e para os seus familiares locais especialmente

preparados para neles se entregarem ao restauro, reparação, restabelecimento ou renovação

das suas energias ou faculdades físicas e psíquicas, isto é, à sua recreação, partindo

precisamente da consideração daquele pressuposto principio. É uma condição que todos

parecem ter considerado fundamental em tais locais para neles se poder operar aquela

recreação é a de as pessoas se sentirem ai perfeitamente protegidas de vistas, intromissões,

visitas ou acontecimentos inoportunos. Para isso certamente (embora não apenas por isso)

que todos os locais ordenados com vistas ao recreio privado eram circuitados por altos muros

circuitados, com acessos facilmente controláveis. Assim eram, segundo testemunhos de

autores gregos, os paraísos orientais (de que o Livro dos Cânticos nos dá uma imagem), e

também os Hortos dos tempos romanos de que o histórico Horto do Monte das Oliveiras (ou

de zambujeiros) em Jerusalém será um paradigma. Assim foram e são também as nossas

tapadas, cercas e hortos ordenados ou arranjados com idêntico objectivo.

Entre nós, a designação de horto restringiu-se vulgarmente a espaços de dimensões

reduzidas e submetidos a granjeios pelo menos na sua maior parte. Quando destinados

exclusivamente a recreio, os nossos hortos, a partir do séc. XIV, começaram a receber a

designação franco-italiana de “jardim”.

Quanto à designação de Cerca, ela é, segundo cremos, a tradução fradesca e latinizada

da vernácula tapada, que se aplicava genericamente a todos os domínios circuitados por

muros, quer se destinassem a cultivo agrícola, quer à caça, ou exploração florestal, ou

simultaneamente as três actividades.

O título desta comunicação deveria ser pois o de Tapadas de Recreio, mas na

linguagem corrente está mais vulgarizada a designação de “quintas de recreio”, talvez porque

na generalidade dos casos as tapadas abarcassem toda uma quinta ou actividade continua.

2-O ordenamento de quintas tapadas visando extremadamente funções recreativas,

ou simultaneamente o recreio e a produção de bens de consumo constitui uma arte cuja

história remonta como já disse às velhas civilizações neolíticas de tipo sedentário alicerçadas

simultaneamente na caça, na pastorícia e na horticultura.

Os paraísos das antigas civilizações da área Mesopotâmica, de que o livro do Genesis

(atribuído a Moisés-séc. XIII ou XIV a. C.) e o Cântico dos Cânticos (atribuído a Salomão- séc. X

a. C.) nos dão uma ideia bastante precisa não eram senão tapadas de recreio, conforme o

podiam ser numa civilização de tipo ainda predominantemente pastoril e cinegético.

Alguns “temenos” gregos e “villas” romanas, de que nos ficaram várias descrições e

até elucidativas ruinas, constituem outro marco de referencia na história desta arte, agora de

civilizações já de feição marcadamente agrária.

É muito provável que esta arte tenha sido introduzida na Lusitânia durante o período

da sua integração no Império Romano, a avaliar pelo requinte de construção que nos é

revelado pelas ruinas de algumas “villas” que têm vindo a ser assinaladas no nosso Pais. Já

parece menos provável que alguma tapada digna de ser classificada como “tapada de recreio”

tenha sido ordenada na Lusitânia durante a monarquia suévica.

Verdadeiras quintas de recreio tiveram-nas porém os príncipes árabes do Andaluz

muçulmano, conforme o atestam as notáveis ruinas de Madinat-Al-Zahra perto de Córdova

(séc. X), e os hortos reais do Alcazar e da Cartuja em Sevilha (ordenados, ao que se supõe no

séc. XII), além da preciosíssima e muito conhecida quinta de recreio do Generalife ordenada

em granada no princípio do séc. XIII.

Dentro do território português, estudos recentes de Correia de Campos levam-nos a

suspeitar que verdadeiras quintas de recreio poderão ter sido já, na dominação muçulmana as

quintas da Sempre Noiva, Água de Peixes, Vila Viçosa e Valverde no Alentejo, e também a da

Penha Longa em Sintra.

Justifica-se por certo um reconhecimento muito atento dessas quintas, assim como de

outras que no séc. XIV foram frequentadas pelos reis de Portugal, nomeadamente das que em

Belas e na serra das Pescarias teve D. Pedro I.

É, porém, a partir do séc. XVI que a arte das quintas de recreio adquire grande

incremento em Portugal. As tapadas de caça de Salvaterra e de Vila Viçosa, as cercas

conventuais da Pena e da Penha Longa, os eremitérios dos frades capuchos nas serras de

Sintra e da Arrábida, as quintas de Penha Verde, de Ribafria, do Fontelo, da Bacalhoa, do

Prado, de Santa Cruz da Maia, e de S. Martinho de Bencanta, são as que nesse século

ganharam maior notoriedade.

No século XVII nova vaga de quintas surge a atestar a continuidade e desenvolvimento

em Portugal de uma arte que, nos dois séculos precedentes, transformaram algumas villas

italianas em fulgurantes manifestações de criação artística, e neste mesmo século estava a

fazer surgir em França, com Le Notre, algumas das mais grandiosas composições paisagísticas

de todos os tempos. As quintas reais da Bemposta e da Ajuda, e as de Palhavã e de Fronteira

em Lisboa, a do Calhariz em Sesimbra, do Correio Mor em Loures, das Lapas e do Espanhol em

Torres Vedras, da Lameira em Portalegre, dos Marqueses de Ponte de Lima em Mafra, de

Simães em Felgueiras, dos Alões na Maia, bem como as cercas conventuais do Buçaco e de

Tibães, são algumas das que então atingiram maior fama no nosso Pais.

3-Antes de esboçar algumas considerações sobre as correntes estéticas na arte das

quintas de recreio do séc. XVIII, convirá recordar alguns dos aspectos sociológicos e

geográficos que estão por detrás dessas correntes.

Estas quintas, devido às funções que foram chamadas a desempenhar reflectem

bastante bem o padrão de vida daqueles que as ordenaram ou para quem foram ordenadas, e

a época em que viveram.

Em todas as épocas houve sempre algumas particularidades culturais que deixaram

bem vincada a sua marca nas quintas de recreio de qualquer país. Assim é que ao sentido de

ordem e À preocupação de formalismo que caracterizou a sociedade europeia do século XVII

muito enformada de poder autocrático e respeitadora de regras de ouro, correspondem

composições paisagísticas de formas rigorosamente geométricas e rigidamente simétricas em

relação a um eixo longitudinal, marcado por um enfiamento de escadas (em Itália), por uma

longa alameda (em Inglaterra), ou por um canal ou sucessão linear de “parterres” ou

“boulingrines” (em França). Em Inglaterra gozou de particular predilecção, como se disse, a

marcação desse eixo com uma longa alameda (a álea dos cavaleiros) apontada à casa

senhorial, citando-se casos de essa álea se prolongar ficticiamente para fora da propriedade

respectiva, através da supressão das árvores que, já nas propriedades vizinhas, se lhe situavam

no enfiamento. A marca do poder absoluto e autocrático estendeu-se até às inocentes árvores

e arbustos que foram frequentemente aparados para reproduzirem formas geométricas de

elipsóides, esferas, pirâmides, prismas, etc.

Quando chegou o séc. XVIII, a evolução dos conhecimentos científicos provocada pelos

contactos havidos durante o século anterior com novas paisagens e novas gentes, com

diferentes seres vivos e distintas culturas, veio tirar a certos conceitos a sua rigidez anterior. O

conceito de ordem na composição espacial, por exemplo, torna-se menos rígido ou autoritário,

tal como o conceito de simetria adquire um sentido mais naturalista e menos geométrico. As

formas naturais das árvores e arbustos, e até da modelação do próprio terreno, como aliás de

todos os elementos da paisagem natural passam a ser melhor apreciadas. Coincide isto aliás

com o aparecimento de uma plêiade de pintores paisagistas (entre nós representados por

obras de Quillard, Vieira Portuense e Pillement) e com a tomada de conhecimento do Ocidente

com as primorosas composições paisagísticas de caracter naturalista, e por vezes quase

miniaturais, da China e do Japão.

Tudo isto converge para imprimir às composições paisagísticas então executadas em

alguns países da Europa, novas nuances, que no entanto só bastante mais tarde se fazem

sentir em Portugal.

4-Independentemente destes aspectos culturais, o ordenamento das quintas de

recreio reflecte por outro lado as características próprias da paisagem em que se integram.

Isto pode verificar-se com perfeita clareza quando comparamos as nossas várias quintas de

recreio, cercas e tapadas de diversas épocas ou as mais conhecidas villas italianas, com os

grandes parques franceses da zona atlântica ou com as propriedades inglesas de qualquer

época.

Como só muito raramente a função recreativa constitui a determinante exclusiva do

ordenamento de grandes espaços particulares, na maior parte dos casos eram os campos de

cultura arvense, os prados, as matas, os pomares, tal como os hortos com as suas fontes e

tanques de rega, as servidões carrais e acessos às folhas de cultivo, os estábulos e pombais,

armações de vinha e outro equipamento, que eram dispostos e concebidos por forma a obter-

se, de par com a produção de bens de consumo, um ambiente repousante para o espirito, pela

via de uma composição paisagística daqueles elementos (devidamente tratados) em um

conjunto de agradável encanto para a vista e para os outros sentidos. Esta associação de

funções pôs aos paisagistas certos limites de concepção que estão na base de algumas

vulgares mas imprecisas classificações estilísticas.

Numa paisagem mediterrânica de verões secos, os cultivos estivais exigem a prática de

regas que, antes de divulgada a rega por aspersão, impunha o terraceamento das terras em

tabuleiros quase horizontais separados uns dos outros por socalcos. Aqui as quintas são

portanto constituídas geralmente por uma sucessão de terraços a diferentes níveis, ou

desníveis, mais ou menos pronunciados conforme a inclinação original do terreno. Esses

múltiplos terraços são suportados por muros de encosto a que frequentemente se apoiam

fontes e tanques de que irradiam complexos sistemas de rega. Foi sob este condicionalismo

que foram ordenadas a maior parte das mais famosas villas italianas e também quase todas as

nossas quintas de recreio, incluindo cercas conventuais, e particularmente as de beneditinos

(Fig.1,2, 3 e 6).

Diferentemente disto, em países como os do Centro da Europa e a Grã-Bretanha onde

as chuvas ocorrem mais ou menos uniformemente distribuídas ao longo de todo o ano, e onde

predominam suaves ondulações do terreno, o terraceamento deste não tem qualquer

justificação, e as obras de rega quase não existem ou não existem mesmo, acumulando-se

frequentemente a água das chuvas nas depressões, onde aparecem pequenas lagoas e

pântanos. É nestas condições que se encontram muitos dos mais famosos parques franceses e

ingleses, que em vez dos nossos tanques e fontes ostentam lagoas e canais como elementos

de recreio e composição paisagística. Acresce ainda que a suave ondulação do terreno e a

pobreza “arquitectónica” (chamemos-lhe assim) do relevo, sugerem que para quebra da sua

natural monotonia se recorra a uma criteriosa distribuição de maciços de arvoredo que

deverão enquadrar grandes espaços para se não sofrer a sensação de afogamento no âmago

de uma floresta. Nestes países, hortos, pomares, prados, searas e pastagens sucedem-se num

mesmo plano ou superfície continuam, separados quando muito por sebes ou cortinas de

abrigo. Deste modo as suas quintas apresentam uma fisionomia muito diferente da dos países

mediterrânicos.

Algumas famosas quintas inglesas ordenadas no século XVIII constituem exemplo

elucidativo da influência das circunstâncias de tempo e lugar na composição paisagística: o

desenvolvimento que, neste país, tiveram durante o século XVII a Marinha e a Indústria,

nomeadamente a de lanifícios, conduziram por um lado a um rápido desaparecimento das

matas, e por outro a uma preferência dos maiores proprietários pela criação de grandes

rebanhos de ovinos, provocando uma extensificação das pastagens em detrimento de outras

formas de aproveitamento do solo. A falta de madeiras e outros materiais lenhosos, sobretudo

de carvão vegetal, começou então a manifestar-se como uma perigosa ameaça para o futuro

desse país. É nessa contingência que surge o livro Sylva, de John Evelyn, a apontar aos seus

concidadãos uma forma atractiva de restabelecer o património florestal do País pela via do

embelezamento das suas herdades. E aconselhava-os a plantarem árvores em sebes,

bosquetes, cortinas de abrigo e maciços, segundo regras de composição espacial que

valorizando esteticamente os seus domínios, melhoravam também o respectivo ambiente

microclimático e a sua produção económica, pela via da melhoria dos pastos e da produção

lenhosa.

Foi da concretização destas ideias que surgiram as famosas composições paisagísticas

inglesas do século XVIII, de que Blenheim será um exemplo típico na sua fisionomia de

grandiosa pastagem arborizada com sua lagoa atravessada por uma ponte monumental, e o

arvoredo disposto por forma a abrir amplas perspectivas para as colinas dos arredores.

Condicionalismo algo semelhante a este, -de pastagem arborizada em terreno

suavemente ondulado, - temo-lo também nós no Alentejo onde algumas tapadas, como a de

Vila Viçosa, poderiam contrapor-se àquelas composições paisagísticas inglesas, se não fosse a

total despreocupação estética na abertura das clareiras na mata ou na distribuição de novos

maciços arbóreos, deficiência que se explicará pelo facto de se tratar de uma tapada de caça

mais do que local de residência habitual dos seus proprietários, e também pelo carácter aberto

do montado mediterrânico.

Fruto de outro diferente condicionalismo local, são as quintas de recreio constituídas

inteiramente por matas em terrenos acidentados, como são a quinta da Penha Verde

ordenada por D. João de Castro na serra de Sintra, os desertos dos frades capuchos na mesma

serra e na da Arrábida, e as matas de Santa Cruz em Coimbra e dos mosteiros de Tibães e

Santa Marinha da Costa.

5- Visto como as condições da paisagem local e o fácies cultural de cada época e de

cada povo influenciam em qualquer tempo e lugar o ordenamento das quintas de recreio,

tentaremos agora uma ligeira caracterização das nossas tapadas do século XVIII.

Com a ascensão, em 1706, de D. João V ao trono do reino português, começa nova

época para os costumes e para as artes em Portugal, e nomeadamente para a arte das quintas

de recreio. Pelo que a estas diz respeito, continua no entanto a manifestar-se uma sóbria

obediência aos condicionalismos locais e aos objectivos funcionais de cada uma, sem que se

note marcada influência de realizações de outros países que no séc. XVIII tiveram larga

repercussão em toda a Europa.

O formalismo rígido que no século XVII avassalara a Europa mal chega a surpreender-

se nas nossas quintas durante o século XVIII. Também é certo que o absolutismo se manifesta

entre nós apenas esporadicamente nos meados deste século com o Marquês de Pombal,

depois do período de ostentação, talvez um pouco vazia ou superficial, do reinado de D. João

V.

Teve contudo alguns adeptos entre nós a alameda rectilínea apontada à casa

senhorial, mas só muito raramente, devido à conformação do terreno, foi possível subordina-

la ao eixo da casa. Nasoni ensaiou essa solução nas quintas do Chantre e da Prelada, mas na

maior parte dos casos a alameda dirige-se para a casa a partir do canto da quinta por onde se

proporciona o acesso à via pública. A tal se viu forçado o próprio Nasoni em Santa Cruz do

Bispo (Figuras 5 e 7).

Uma cópia forçada, por despropositada, do reticulado geométrico de avenidas nos

parques franceses do século XVII, vemo-la no entanto na matinha de Queluz, e de certo modo

na mata da quinta de Mangualde. Com mais naturalidade e oportunidade resultou a aplicação

da mesma receita no parque do palácio de Queluz e no da quinta das Laranjeiras dos Condes

de Farrobo (Figuras 6, 7 e 8).

Onde durante o séc. XVIII a preocupação de simetria em relação a um eixo da casa

ganhou algum acolhimento foi na implantação do jardim-elemento quase constante em todas

as nossas quintas de recreio. Tendo começado por ser nos séculos XV e XVI um recatado horto

(nem sempre subordinado à casa) onde se cultivavam flores e plantas medicinais ou de virtude

e também espécie de discreto gineceu onde as damas tomavam Sol, no século XVII (talvez por

influência de algumas das mais conhecidas vilas italianas) aparece-nos quase sistematicamente

colado a uma das fachadas da habitação a ocupar um terreno rectangular aberto para a

paisagem envolvente, mas ainda com características de horto botânico onde se aclimatavam

espécies exóticas trazidas das zonas do Globo recentemente descobertas.

Neste século XVIII, por influência da corte de D. João V, agente de divulgação de modas

francesas (a começar por uma maior participação da mulher na vida social) o jardim,-tal como

acontecera no século anterior na França de Luis XIV,-deixa de ser o que era e passa a

desempenhar a função de palco de festas galantes, transformando-se a sua fisionomia de

acordo com essa nova função. Os homens invadem-no, e os arbustos e outras plantas floríferas

desaparecem do seu interior limitando-se as flores àquelas que as damas ostentam no colo ou

nos toucados. Os antigos canteiros pujantes de vegetação por entre a qual alvejavam delicadas

estátuas de mármore, dão lugar aos rasos “parterres de broderie”-verdadeiras tapeçarias de

areão e murta, por entre cujos rendilhados as damas e cortesãos passeiam os seus trajes

coloridos.

Quando hoje penetramos nesses jardins temos de facto, como já alguém notou, a

sensação de nos encontrarmos num palco que espera os seus actores. Por isso, a maior parte

deles, passada a moda das festas galantes nos jardins, desaparecidas as damas de colos

floridos, e morto o buxo ou a murta dos parterres, tomaram a forma algo indecisa de quem

ainda não descobriu a sua futura função; na maior parte dos casos persistem como relíquia

histórica de um passado longínquo.

Nota-se entre as nossas quintas de recreio um sensível predomínio de quintas

ordenadas por altos dignitários da Igreja, o que lhes confere por vezes uma atmosfera de certa

austeridade em oposição a outras quintas onde a sua função de cenário para festas galantes

transparece ainda. As quintas dos Cónegos, do Chantre, de Santa Cruz do Bispo na Maia; da

Sra. Das Dores em Verdemilho; do Paço de Palmeira em Braga; mesmo a do Freixo no Porto; as

da Mitra em Marvila e Santo Antão do Tojal, e a do Paço Episcopal de Castelo Branco, bem

como as cercas conventuais de Santa Marinha da Costa, Salzedas, Ganfei, Santa Cruz de

Coimbra, Landim, Santo Tirso, do Pópulo em Braga, dos Néris nas Necessidades em Lisboa,

bastarão para justificar o comentário feito acerca das primeiras.

A par delas surgem-nos, entre as segundas, as quintas reais de Belém, Queluz e Caxias,

a do Marquês de Pombal em Oeiras, as quintas de Belas e de Pinteus em Loures, da Raposa em

Mafra, dos Azulejos em Lisboa, da Ínsua, Santar, Mangualde, Cassurrães, Marzovelos,

Regueira, Almeidinha, e Ponte do Mondego na Beira Alta, as de Ramalde, Prelada, China, do

Rio, do Viso, Santo Ovídio no Porto, de Fiães e Boucinhas em Gaia, dos Biscainhos em Braga, de

Vila Flor e Vila Pouca em Guimarães, do Ribeiro em S. Lourenço do Douro.

Além dos jardins dos palácios reais de Belém, Caxias e Queluz, apresentam ainda

alguma monumentalidade os do palácio do Marquês de Pombal em Oeiras, da Palhavã em

Lisboa, do Freixo no Porto, dos Arrochelas na quinta de Vila Flor em Guimarães, e o do Paço

Episcopal de Castelo Branco, os quais ocupavam vários terraços, ordenados ou não

simetricamente em relação à respectiva moradia. Os nossos jardins nunca atingiram porém a

monumentalidade dos mais famosos da Europa. Durante os séculos XVII e XVII os nossos

aristocratas, (e até os nossos reis, salvo talvez D. José) conservaram quase todos uma certa

dose de rusticidade, ocupando a sua juventude em caçadas, pegas de touros, e cavalgadas.

6-Nas grandes composições paisagísticas da França, da Inglaterra e até da Itália,

verificamos que elas são verdadeiras extensões dos respectivos palácios e nelas tudo é, por

assim dizer, jardim, na medida em que tudo é palco para as festas palacianas. Em Portugal as

únicas realizações que se aproximam um pouco dessa concepção são as de Queluz (que no

entanto tem a sua horta e o seu pomar) e a quinta das Laranjeiras dos Condes de Farrobo (já

dos princípios do séc. XIX. Em todas as outras predomina a produção agrícola, e a casa atinge

raramente proporções monumentais, ocupando o jardim um simples terraço mais ou menos

discreto ao lado daquela. Outros motivos recreativos, além do jardim, dispersam-se pela

quinta, pois as pessoas, qualquer que fosse a sua condição social, não se coibiam de passear

pelos seus caminhos e carreiros e até de participarem nos trabalhos da lavoura, pelo menos

como despreocupados espectadores de um espectáculo sempre renovado em que o cenário

era a paisagem natural e os actores eram os camponeses e a s camponesas com seus trajes

garridos e suas canções alegres.

Nestas quintas, a vista, por vezes com o ouvido e o olfacto ( e por detrás deles o

espirito) deleitam-se na contemplação do primor decorativo com que os artistas e artífices

executaram e distribuíram fontes, tanques, muros de suporte e de vedação, mirantes e

atalaias, oratórios e capelas, aquedutos, pombais, portões, latadas, moinhos, azenhas, poços e

noras, falcoarias e outras gaiolas, a par de sebes, latadas, sítios de merendas e casas de fresco,

recintos para o jogo da bola, labirintos de buxo, além do jardim presente em quase todas as

quintas de recreio (e até em algumas que nem se quer aspiravam a essa classificação).

Um elemento decorativo e recreativo frequente nas nossas quintas de recreio do

século XVIII é a cascata de água. E uma das suas formas mais curiosas é aquela que aproveita

os sucessivos lanços de uma escadaria para proporcionar às pessoas que por ela sobem, em

ascensão algo esforçada, a música da água em sucessivas bicas. A primeira destas criações

(ainda no séc.XVII) será talvez a que é alimentada pela Fonte Fria na cerca do Buçaco. Não

muito posterior deve ser a que na cerca beneditina de Tibães se insere na escadaria que sobe

da horta conventual para a capela de S. Bento erigida no cimo do cabeço que lhe fica

sobranceiro. Escada semelhante, mas sem as fontes em cascata /embora tenha no cimo um

grande tanque circulara), foi construída na cerca de Santa Marinha da Costa, para dar acesso à

capela do Santo Cristo construída também na parte alta dessa cerca. Muito curiosa é a cascata

de cerca da cerca de Santa Cruz de Coimbra em que a água que jorra da Fonte da Nogueira, no

cimo da mata alimenta sucessivos repuxos situados em outros tantos patamares da escadaria

que do “jogo da bola” sobe até aquela fonte.

Estas cascatas têm a sua realização mais grandiosa e monumental nos escadórios dos

santuários do Senhor do Monte, em Braga e da Senhora dos Remédios, em Lamego.

De um modelo diferente e mais frequente nas regiões do Sul são as cascatas existentes

nas quintas de Queluz, Caxias, do Marquês em Oeiras, no recinto do jogo da bola em Santa

Cruz de Coimbra e, se a memória me não atraiçoa, também na Quinta do Monteiro-Mor, no

Lumiar (todas do século XVIII).

Também o “jogo da bola” deve ter constituído forma de recreio muito praticada no

século XVIII, pois para ele foram construídos recintos apropriados nas cercas de Landim, Santa

Cruz de Coimbra, e nas quintas de Mangualde e Almeidinha.

7-Nem sempre estes elementos recreativos se dispersavam por toda a quinta. São

muitas as quintas em que a zona recreativa se circunscreve àquilo que se pode chamar o

quintal, isto é, a zona murada que junto à casa delimitava a horta e pomares. Como exemplos

podemos citar as quintas de Ramalde, Prelada, Chantre, Boucinhas, Paço de Palmeira,

Biscainhos, do Ribeiro, de Vila Flor, etc. Outras vezes a quinta era tão pequena que se

identificava com um vulgar horto, tal como acontece com as quintas da Regueira, doas

Azulejos, da China, da Ponte do Mondego, etc.

O ordenamento destes hortos ou quintinhas obedece aos mesmos princípios das

grandes quintas, com a diferença de que nelas tudo surge mais concentrado. Em diferentes

terraços, ou ocupando um só plano, elas compreendem em geral o tabuleiro do jardim, os

talhos da horta, os quarteirões do pomar com suas diferentes espécies frutícolas, as fontes e

tanques, os caminhos cobertos ou não com latadas e ladeados frequentemente por bancos de

pedra encaixados em alegretes floridos.

Figura 1.Quinta da Raposa (Mafra)

Figura 2.Quinta da Mitra (Sto. Antão do Tojal)

Figura 3.Quinta das Boucinhas

Figura 4.Paço Episcopal de Castelo Branco

Figura 5.Quinta do Chantre (Matosinhos)

Figura 6. Quinta de Mangualde

Figura 7.Quinta das Laranjeiras (Lisboa)

Figura 8. Palácio e Matinha de Queluz