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Para citar esse documento: RODRIGUES, Bianca Bazzo. Pisando no mangue: a cultura das catadoras/catadores de caranguejo no estado de Sergipe como poética na criação em dança. Anais do IV Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança. Goiânia: ANDA, 2016. p. 718-728. www.portalanda.org.br

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Para citar esse documento:

RODRIGUES, Bianca Bazzo. Pisando no mangue: a cultura das catadoras/catadores de caranguejo no estado de Sergipe como poética na criação em dança. Anais do IV Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança. Goiânia: ANDA, 2016. p. 718-728.

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PISANDO NO MANGUE: A CULTURA DAS CATADORAS/CATADORES DE CARANGUEJO NO ESTADO

DE SERGIPE COMO POÉTICA NA CRIAÇÃO EM DANÇA

Bianca Bazzo Rodrigues (UFS)* RESUMO: A capital Aracaju e cidades vizinhas são marcadas pelo ecossistema do mangue. Nesse habitat encontramos com mulheres, homens, por vezes famílias inteiras que aprenderam a comunicar com esse local para dele extrair o sustento de suas casas. As diferentes técnicas de captura dos crustáceos, as gestualidades, as posturas, as histórias são vistas como ignições para a criação em dança quando da convivência nesse local. Tal proposta revela também as possíveis discussões para um ensino da complexidade nas atuações cênicas no ambiente acadêmico pautada na proposta de Almeida (2010) sobre os saberes populares e científicos, apresentando uma ideia de equidade nos discursos. Para as ressignificações corporais, o estudo é guiado pela metodologia de criação em dança, proposto por Machado (2007) que desenha e permite pisarmos no mangue no “Jogo da Construção Poética”. PALAVRAS CHAVE: Mangue. Catadoras/Catadores. Dança. Criação.

STEPPING IN MANGROVE: THE CULTURE OF ‘CATADORAS/CATADORES’ CRAB IN THE STATE OF

SERGIPE AS POETIC IN DANCE CREATION ABSTRACT: The capital Aracaju and neighboring towns are marked by the mangrove ecosystem. In this habitat found with women, men, sometimes entire families who have learned to communicate with that place for him to draw the sustenance from their homes. The different techniques to capture the crustaceans, the gesture, the postures and the stories are seen as ignitions for dance creation. This proposal also reveals the possible discussions to the teaching of complexity in performing actions in the academic environment guided the propose Almeida (2010) on the popular and scientific knowledge with a fair idea of the discourse. For body reinterpretation, the study is guided in the dance creation methodology, proposed by Machado (2007) that designs and allows we step in the mangroves in the "Play of the Poetics Construction". KEYWORDS: Mangrove. Catadoras/Catadores. Dance. Creation. Conhecendo o contexto

Apesar da frequente urbanização e crescimento das cidades - o que atinge

consideravelmente nossa capital Aracaju e cidades vizinhas - ainda é possível

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observar o ambiente dos manguezais delineando nossas margens do rio e do mar.

Não o suficiente para percebermos a importância desse espaço e pararmos para

refletir nas perdas que nos atingem quando da extinção desse berçário de vida e

sustento também de muitas famílias.

Os manguezais revelam um bioma essencialmente importante para o

equilíbrio do meio ambiente e é fonte de economia para muitas famílias da região.

No entanto, o que se vê é uma destruição cada vez mais crescente desses espaços.

Na cidade de Aracaju muitos bairros são fruto do aterramento de mangues,

responsáveis por uma ocupação desordenada no ambiente nativo e sem

planejamento das moradias. A ocupação acontece tanto de famílias menos

favorecidas economicamente quanto também de empreiteiras construtoras de

condomínios de alto valor de compra.

Essa crescente descaracterização natural dos manguezais que outrora foi em

Aracaju, Socorro, São Cristovão, Estância e outras cidades da região vêm afetando

a cultura socioeconômica da catação dos crustáceos (siris, guaiamus, caranguejos).

Atividade exercida por catadoras e catadores que vivem da coleta manual ou de

instrumentos rústicos para a captura desses animais. Essa prática econômica se

configura como uma atividade exercida por pessoas de baixo poder aquisitivo.

O desenvolvimento urbano vem acarretando problemas sérios nesse

ecossistema. O descarte irregular de lixo nos rios e córregos, o uso de produtos

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mangue para a construção da própria cidade, vêm contribuindo na diminuição desse

ambiente, afetando consideravelmente a população dos crustáceos. O que leva, por

sua vez, a afetar a renda das catadoras e catadores de caranguejos.

Pesquisas apontam que nos últimos anos está ocorrendo uma mortandade

em massa nos manguezais na região do Nordeste devido a uma provável

enfermidade nos caranguejos provenientes de um fungo, conhecida como doença

do caranguejo letárgico. Todos esses fatores levam a comprovar que a

sobrevivência da espécie encontra-se ameaçada em algumas regiões do Brasil. O

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que afeta consideravelmente as famílias que vivem dessa prática.

Diante o exposto, os órgãos governamentais criaram algumas leis e

proibições sobre a retirada dos crustáceos no mangue, fiscalizadas pelo IBAMA e

Polícia Ambiental. Dentre elas a proibição da captura, a coleta, o transporte, o

beneficiamento, a industrialização e a comercialização da espécie Ucides cordatus

que apresentam a largura da carapaça inferior a 6,0 cm no Estado do Pará na região

norte do país, e nos Estados do Nordeste, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do

Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. E nos meses de

acasalamento (que vai de Dezembro a Maio), conhecido como andada, é proibido a

retirada da fêmea nos manguezais (IBAMA, 2003).

Durante o período de defeso, os catadores de caranguejo são amparados

pelo governo por um seguro desemprego, como acontece também com os

pescadores no período que é proibido a pesca. No entanto, há uma divergência

tanto no que se refere a catação nesse período, quanto desse seguro que o catador

tem direito legal por lei. O dinheiro tende a demorar meses para ser entregue,

contribuindo para o sistema de agiotagem em que os catadores e pescadores

vendem seu seguro por um valor menor que o devido para outra pessoa. Apesar de

ilegal é o que garante pelo menos um dinheiro nos meses em que são proibidos de

exercer sua atividade econômica.

A prática do catar caranguejo no mangue, mais que econômica, na região

nordeste ela é cultural. Além de ser um alimento frequente na mesa dos cidadãos,

os crustáceos entram como produto da marca cultural do povo nordestino. Na cidade

de Aracaju no mês de agosto acontece o Festival do Caranguejo promovido pela

Prefeitura da cidade. Mas fica o questionamento se tal evento demonstra à

população todos os efeitos diretamente ligados a essa prática. O que pude

comprovar durante a investigação proposta nesse contexto é a pouca consciência

da realidade e das reais situações que envolvem a prática do catar caranguejo. O

que se estende para os fatores de risco de saúde de quem exerce essa atividade.

Hoje, o mangue oferece um risco considerável de saúde para quem vive dessa

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prática pelos próprios fatores de poluição já apontados acima.

Os pesquisadores Alves e Nishida (2004) que investigaram a realidade

socioeconômica específica da catação de caranguejo no estado de Pernambuco

evidenciam que a função governamental não pode simplesmente se configurar na

supervisão e controle da exploração. Faz parte desse diálogo a contextualização da

população local de catadores de caranguejos, observar as realidades, criar as

formas asseguradas de sustento e condições dignas de vida. Os quais são

geralmente ignorados pelas autoridades na elaboração de medidas que

regulamentam o uso de recursos.

Diante o exposto e o impacto tanto ambiental e econômico que afeta a prática

sociocultural dos catadores/catadoras de caranguejo, siri, guaiamus, aratus; como o

universo artístico da dança, no espaço acadêmico pode se alimentar poeticamente

dessa realidade para as provocações cênicas? E mais do que isso, como nos

assumirmos não só como artistas-intérpretes-criadores, mas como agentes e

cidadãos que buscam com sua arte vivenciar e expor de forma crítica as realidades

sociais? Denunciar os sistemas, educar uma população, sem deixar de lado sua

prática artística, pedagógica e investigativa. E no caso específico desse trabalho, as

práticas extensionistas que fazem parte do ambiente acadêmico e que revelou para

o trabalho suporte essencial na formação desse discente.

A disciplina Extensão em Dança

O Curso de Licenciatura em Dança do turno noturno da Universidade Federal

de Sergipe possui em seu componente curricular do oitavo período, a disciplina

Extensão em Dança, obrigatória para a formação discente. Para seu

desenvolvimento, a disciplina prevê na ementa a preparação do profissional em

dança através das inter-relações da dinâmica social.

Dessa forma, ao observar o contexto sociocultural e ambiental de Aracaju,

mais especificamente onde o curso está alocado, nos deparamos com a presença

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dos manguezais dividindo os limites terrestres do bairro e o avanço das marés do rio

Sergipe. O bairro 13 de Julho foi produto de um avanço ao bioma natural do

mangue, hoje os únicos remanescentes estão desempenhando mais uma função de

mata ciliar para proteger esse avanço. O trabalho econômico que outrora acontecia

nessa região da catação de caranguejos é inexistente.

Do limite, rio e terra, encontram-se uma das mais movimentadas ruas para

prática de exercícios físicos, como a caminhada e a corrida. Vale ressaltar que esse

bairro é considerado uma região nobre, seus moradores possuem um alto poder

aquisitivo e onde estão localizados os mais luxuosos empreendimentos imobiliários

da cidade. Seria o mangue hoje, apenas uma moldura arborizada para esse bairro?

Deixemos essa questão a parte.

Nesse contexto, propus aos alunos da disciplina a investigação da dinâmica

social e cultural dos mangues da cidade e região para uma possível problematização

das questões que envolvem esses espaços. Buscando reproblematizá-las a partir de

ações e intervenções artísticas. Dessa forma, foi preciso pensar no jeito de pisar

nesse ambiente que tanto desenha as cartografias geográficas do estado, e que

para muitos se encontram distante no conhecimento e interação com esse ambiente

em tempos globalizados.

Para introduzir e capacitar o discente numa primeira aproximação com esse

contexto sociocultural específico fiz uso da literatura de Josué de Castro, “Homens e

Caranguejos”, que possibilitou adentrar nesse ambiente pelo imaginário particular de

cada um. A leitura de trechos do livro ativou memórias e trouxe à tona, por meio da

arte, uma realidade de condição humana que atinge nossa região, lugar onde “tudo

aí é, foi, ou está para ser, caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela”

(CASTRO, 2003, p.08). As palavras foram transformando-se em poética sentida e

permissiva de ser reconfigurada no corpo, com a dança.

Dentro da leitura do livro “Homens e Caranguejo”, atividades e dinâmicas

corporais eram lançadas com o objetivo de experienciar como essas

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ressignificações se estruturavam em respostas de movimento no corpo de cada

discente. Memórias da infância, as histórias que os mais velhos contavam foram

sendo reativadas e trabalhas no “jogo da construção poética”, metodologia de

vivência prática e reatualização cênica proposto por Lara Machado em sua tese

intitulada, “O jogo da construção poética: processo criativo em dança”.

Para Machado (2007) é dessa essência do jogo do improviso entre campo de

pesquisa, das descobertas pessoais de movimento, das relações de diferentes

situações e diálogos corporais que prolifera a composição artística. E desse jogo de

relações entre as diferentes partes e proposições que transferimos essa essência

para o trabalho criativo. O jogo da construção poética é guiado por três etapas: os

laboratórios de criação, os exercícios de improvisação e a composição coreográfica.

Sobre o primeiro momento:

O intérprete deve estar totalmente disponível para o desconhecido, para a descoberta individual, o que impede de refletir sobre o que está acontecendo naquele momento; apenas será possível elaborar o material aflorado nos laboratórios num momento seguinte, onde então se inicia a improvisação desses conteúdos (MACHADO, 2007, p. 45).

Após esse primeiro momento em sala de aula, as idas ao campo começaram

a guiar o desenvolvimento da disciplina. A primeira aproximação aconteceu no

sentido de experimentar esse ambiente do mangue no corpo e na movimentação.

Transferimos as atividades que estávamos desenvolvendo em sala de aula para o

próprio mangue. Nesse contexto, o corpo foi se reestruturando e reagindo a

realidade. A forma de caminhar era outra, o conseguir atravessar o mangue pelas

diferentes espécies arbóreas que formam esse habitat ia estruturando o corpo para

aquela construção física do próprio ambiente.

O acachapar, o arrastar, o precisar se esconder na toca eram ações

necessárias para aquele espaço. Cada corpo foi se transformando nesses “seres

anfíbios – habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados

na infância com caldo de caranguejo: este leite de lama. Seres humanos que se

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faziam assim irmãos de leite dos caranguejos” (CASTRO, 2003, p.3).

O contato com a água o tempo todo beirando os sentidos, o cheiro, os seres

vivos presentes nesse ambiente. A troca, a toca entre os crustáceos. As diferentes

técnicas de catar o caranguejo, como a braçada que é introduzir o braço na toca do

animal e retirá-lo pelo dorso da carapaça, foram experimentadas durante a

convivência com as catadoras e catadores de caranguejo. Na dança já não

sabíamos mais se eram homens, se eram caranguejos.

A convivência do discente - nesse trabalho encarado como intérprete-criador -

junto ao campo de pesquisa, possibilitou um corpo carregado dos mais diversos

sentidos, imagens, gestualidades, sensações. O trabalho com os laboratórios de

criação permite que toda essa complexidade de símbolos, gestos, histórias e vidas

trazidas da convivência em campo sejam ativadas durante os laboratórios e possam

se constituir em movimento para a cena. Nesse processo de investigação, o intuito é

que sejam afloradas as percepções do ambiente vivenciado.

Como exemplo, em uma das aulas da disciplina, fomos realizar nossas

atividades práticas no calçadão do bairro 13 de Julho. Uma das primeiras propostas

foi conversar com as pessoas que ali iam para caminhar, correr ou apenas passear.

Perguntamos se eram do bairro, se conheciam as modificações que ocorrem ali

tempos atrás, se conheciam ou percebiam o mangue que vai margeando toda a

extensão do calçadão.

Das respostas recebidas, realizamos numa quadra de areia desse calçadão

alguns pequenos laboratórios. Buscamos ativar no corpo e na construção desse

personagem homem-caranguejo, as respostas provenientes dos próprios cidadãos

que “compartilhavam”, sem perceber em muitos casos, o ambiente natural do

mangue que está de um lado. Do outro lado há uma cidade fervendo de buzinas,

carros, bares, propagandas em outdoors. Essa cidade que foi ao longo dos tempos

empurrando o mangue para o rio. O rio por sua vez, bufando e avançando cada vez

mais para a cidade.

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Para agregar as ações extensionistas da disciplina como forma de entender

as atuações do discente do curso - além das práticas criativas em dança - buscou-se

complexificar o pensamento e a formação discente junto às relações com os

diferentes saberes existentes na sociedade e entendê-los como capacitadores e

formadores de conhecimento.

Na construção desse pensamento e reflexão sobre os diferentes contextos

socioculturais da sociedade, trouxemos como referencial as proposições de Almeida

(2010) que pauta-se numa transversalidade de debates entres os saberes dispersos.

O conhecimento produzido dentro do espaço acadêmico precisa dialogar e

reconhecer os conhecimentos fora da cientificidade, apresentando as diferentes

formas de viver nas relações de alteridade e diálogo entre os múltiplos territórios

sociais. Nesse sentido, a autora investe numa suspensão de nossos pontos de vista,

no intuito de desbloquear nossas estruturas de pensar tão arraigadas da nossa

educação formal.

Tal proposta veio de encontro com as questões vivenciadas no mangue. As

catadoras e catadores de caranguejo são conhecedores de uma realidade do meio

ambiente, de conversa com esse espaço, de técnicas de captura que não são

encontrados nos livros, que dificilmente alguém alheio àquela realidade consegue

interpretar de forma coerente com o local. Conhecem a maré, percebem as

mudanças climáticas pela lua, pelos movimentos dos crustáceos, pela organização

do próprio mangue. Seus conhecimentos foram passados pelos pais, ou aprendidos

na dura realidade e necessidade de viver, abraçando o mangue para dele e com ele

tirar alguma condição econômica de vida. Como evidencia a autora:

Ao lado do conhecimento científico, as populações rurais e tradicionais, ao longo de suas histórias, têm desenvolvido e sistematizado saberes diversos que lhes permitem responder a problemas de ordem material e utilitária tanto quanto têm construído um rico corpus da compreensão simbólica e mítica dos fenômenos do mundo (ALMEIDA, 2010, p. 48).

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Almeida (2010) propõe uma visão periférica quando abordamos esses

contextos em nossas ações educativas. Olhar para o lado e percebermos as formas

e padrões que nosso sistema político-educacional vem nos formando, na maior parte

do tempo excludente. Evidencia esses saberes a margem da educação formal e

denuncia que a exclusão dos conhecimentos dessas culturas “fora da rede”

compromete uma democracia cognitiva e subjuga a diversidade de saberes que

emergem nas margens do conhecimento científico. A autora propõe uma cosmologia

do pensamento que tem como intento o entrelaçamento dos diferentes cenários

cognitivos, numa aproximação sem compactar as partes e as estruturas.

E foi com essas problemáticas, com realidades sendo presenciadas tão

próximas ao nosso curso, tão próximas ao dia a dia dos discentes, que buscamos

com a dança reproblematizar esses contexto e apresentá-lo de uma forma poética.

Mas não tão menos crítica para a fruição daquele que assiste. O contato, a vivência,

a convivência com esse ambiente do mangue, com as catadoras e catadores de

caranguejo aproximou e deu inicio a uma outra possibilidade para as intervenções

cênicas. Uma formação discente muito mais próxima das reais situações que nos

cercam, em que o diálogo e a troca foram centrais nas ações extensionistas à

sociedade sergipana.

Considerações finais

O estado de Sergipe é marcado pelo ecossistema do mangue, no qual

diversas culturas e vidas são costuradas por esse habitat. Ao conviver no ambiente

do mangue, pudemos observar um contexto impregnado de poéticas para a criação

em dança, em que gestualidades, posturas, histórias e saberes populares

transformaram-se em ignições para o fazer artístico.

O intento da disciplina era mostrar a possibilidade do coabitar com essa

peculiar profissão de catar caranguejo e revelar discussões para um ensino da

complexidade nas atuações cênicas. O conviver com o ambiente dos manguezais

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trouxe a tona as problemáticas ambientais, os aspectos econômicos da região, as

realidades sociais e ecológicas da nossa região. Integrado nas nossas ações como

ser humano, nas nossas possibilidades artísticas de revelar uma realidade

marginalizada, apagada, esquecida ou forçada a esquecer. Quantas pessoas que

comem caranguejo num domingo a tarde na barraca da praia possuem a

consciência das duras realidades dessa profissão de catar caranguejo no mangue?

Experienciamos, por meio de atividades corporais, as possibilidades de

ressignificação para a criação cênica do contexto pesquisado. Misturamos com as

memórias, as conversas escutados de um lado do rio, onde dizem que do outro lado

estava o povo que catava caranguejo, que o mangue fedia, que era sujo e poluído.

Do outro lado do rio escutamos as pessoas que diziam que se o mangue morresse,

eles morreriam juntos, pois era dele que há anos tiravam o sustendo de casa. Já não

sabiam mais viver sem sentir o cheiro da maré, sem pisar na lama que abrem os

dedos como garras.

Perceber esse espaço foi olhar para as práticas econômicas, sociais e

culturais que atingem todo esse local, ampliando nossa visão apenas da

configuração do bioma natural (crustáceos, animais, plantas e etc.). Convivemos

com as catadoras e catadores de caranguejo, e da troca de saberes e conversas

com essas pessoas, realizando as atividades de catar o caranguejo no mangue,

nasceu um trabalho artístico, intitulado Caçuá, que significa balaio onde os peixes e

crustáceos são colocados para o transporte.

No nosso Caçuá tinham diferentes homens-caranguejos, seres que se

transformaram e continuam se transformando. O desejo de que continuem

transformando logo mais, novos pequenos homens-caranguejo em suas práticas

educativas, na convivência familiar, mostrando à população as situações que nos

cercam e as realidades que gritam da beira do rio. Permitindo-nos perceber as

diversidades históricas de cada região, a possibilidade de conhecermos as

linguagens simbólicas da compreensão do mundo que regem as comunidades, os

saberes das pessoas comuns que na maior parte do tempo são deixadas de lado e

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atropelados pelo nosso “conhecimento oficial”. Permitindo-nos a ser homem,

homem-caranguejo, caranguejos.

Referências

ALMEIDA, Maria da Conceição. Complexidade, saberes científicos, saberes da tradição. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2010. Alves, Romulo; Nishida, Alberto. Aspectos socioeconômicos e percepção ambiental dos catadores de caranguejo-uçá Ucides cordatus (L. 1763) (Decapoda, Brachyura) do estuário do rio Mamanguape, Nordeste do Brasil. Interciência. Caracas, vol. 28, ano 2003, p. 36-43. CASTRO, Josué. Homens e Caranguejos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. IBAMA. Portaria 034, de 24 de junho de 2003. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA. Disponível em www.ibama.gov.br . Acesso em 28 de agosto de 2016. MACHADO, Lara. O Jogo da Construção Poética: processo criativo em dança. Tese (Doutorado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, 2007. * Mestra em Artes Cênicas pela UFRN (2013). Bacharel e Licenciada em Dança pela UNICAMP (2008). É professora Assistente do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Sergipe. Tem como campo de pesquisa e criação em dança os contextos socioculturais, as manifestações populares brasileiras, os saberes populares e os saberes da tradição. E-mail: [email protected]