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Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXXII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Curitiba, PR 4 a 7 de setembro de 2009
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Telenovela e mediaes culturais na conformao da identidade feminina1
Lirian SIFUENTES2 Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS
RESUMO Este texto apresenta reflexes acerca do modo como os embates e complementaridades entre a audincia da telenovela e as mediaes famlia, escola e classe social conformam a identidade feminina de jovens mulheres de classe popular. Os estudos culturais latino-americanos so adotados como modelo terico-metodolgico, especialmente no que se refere teoria das mediaes culturais. O estudo configura-se como uma etnografia da audincia. A amostra analisada composta por 12 jovens com idade entre 16 e 24 anos, moradoras do bairro Urlndia, periferia de Santa Maria-RS. Percebe-se que aquilo que as receptoras veem como o ideal ser mulher est presente nas representaes da mulher na telenovela. As heronas, as supermulheres, as mulheres fortes, so o padro entre as protagonistas e a aspirao das garotas. PALAVRAS-CHAVE: identidade feminina; telenovela; classe popular; recepo. CONSIDERAES INICIAIS
A problemtica que norteia esta pesquisa pode ser resumida por meio da seguinte
indagao: Qual o papel da telenovela na conformao da identidade feminina? Dizendo
de outra forma, a inteno investigar como os embates e complementaridades entre a
audincia da telenovela e as mediaes famlia, escola e classe social constituem a
identidade feminina de mulheres de classe popular.
O interesse em estudar as relaes entre as apropriaes da mdia e o gnero
feminino nasce da comprovada insuficincia de pesquisas que abordem o gnero como
categoria terica e explicativa para a recepo televisiva no mbito dos estudos culturais
latino-americanos (ESCOSTEGUY, 2001). Ainda sobre a questo da mulher,
consideramos que no se pode deixar de discutir os aspectos da dominao masculina
no Brasil, a qual tem sido encoberta sob a capa das conquistas femininas. Especialmente
nas classes populares, a submisso feminina permeia toda a relao homem-mulher
(BOURDIEU, 2007).
A relevncia do estudo sobre classe social na pesquisa de recepo justifica a
escolha por destacarmos essa mediao como a grande estruturante dos modos de vida.
1 Trabalho apresentado no NP Fico Seriada do IX Encontro dos Grupos/Ncleos de Pesquisa em Comunicao, evento componente do XXXII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao. 2 Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Miditica da UFSM, bolsista CAPES. E-mail: [email protected].
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Conforme Martn-Barbero (2002) e outros, a posio social no uma mediao entre
as demais, mas, sim, a que articula os elementos identitrios.
A diferena de classe, ainda que mediada pela multiplicidade de distines introduzidas pela etnia, gnero, idade, entre outras, no uma diferena a mais, mas, sim, aquela que articula as demais a partir de seu interior e expressa-se por meio do habitus, capaz de entrelaar os modos de possuir, de estar junto e os estilos de vida (MARTN-BARBERO, 2002, p. 14).
A situao de classe um aspecto fundamental de significao. Ronsini (2007)
justifica o emprego do conceito de classe social em sua pesquisa afirmando que no
plano emprico a classe permanece um princpio organizador da sociedade capitalista,
da mesma forma que pauta diferenas profissionais, de renda, de educao, o acesso aos
bens culturais e aos centros de poder. A autora ainda afirma que o uso do conceito
parece ser ainda mais adequado em uma sociedade desigual e excludente como a
brasileira.
Este trabalho alinha-se s teorias desenvolvidas pelos estudos culturais, pois
considera que a pesquisa de comunicao no a que focaliza estritamente os meios,
mas a que se d no espao de um circuito de consumo da cultura miditica (JACKS;
ESCOSTEGUY, 2005, p. 39). A vertente latino-americana dos estudos culturais
central, pois adqua as investigaes iniciadas na Universidade de Birmingham, na
Inglaterra, realidade da Amrica Latina. Os latino-americanos Jess Martn-Barbero,
Nstor Garca Canclini e Guillermo Orozco Gmez so importantes representantes da
linha na Amrica Latina, e seus estudos, em maior ou menor medida, servem como
norteadores deste trabalho. Da escola inglesa, Stuart Hall, por meio dos estudos de
representaes e identidades culturais, traz as maiores contribuies. Para Lopes,
Borelli e Resende:
Os Estudos Culturais permitem uma problematizao mais elaborada da recepo, em que as caractersticas socioculturais dos usurios so integradas na anlise no mais de uma difuso, mas sim, de uma circulao de mensagens no seio de uma dinmica cultural. O plo de reflexo deslocado dos prprios meios para os grupos sociais que esto integradas em prticas sociais e culturais mais amplas (LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p. 29).
A amostra da pesquisa composta por 12 jovens mulheres com idade entre 16 e
24 anos3. A delimitao etria segue a diviso do IBGE, que define entre 15 e 24 anos a
faixa em que esto inseridos os jovens brasileiros. A classificao das entrevistadas, 3 As entrevistadas so (nomes fictcios): Bruna, Camila, Carol, Cauane, Emanuele, Letcia, Luciele, Natlia, Natiele, Paola, Rafaela e Raquel.
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pertencentes s classes baixa e mdia-baixa, foi definida mediante a metodologia da
estratificao scio-ocupacional, na qual a famlia classificada a partir do membro
melhor situado economicamente (QUADROS; ANTUNES, 2001).
Fazem parte dos instrumentos de coleta de dados entrevistas semi-estruturadas,
formulrios socioculturais, observao do espao domstico, com registro em dirio de
campo e a etnografia da audincia. Essa ltima est citada como uma etapa parte para
discriminar o momento em que o pesquisador assiste telenovela com os informantes.
Entretanto, abrange toda a pesquisa de recepo da forma como a empreendemos e
constitui-se do conhecimento originado na descrio do contexto de apropriao da
mdia e refere-se escrever a histria do consumo miditico pelo exame da vida
cotidiana, do bairro, da vizinhana, dos lugares da casa, de prticas sem registro, das
miniaturas uma tentativa de observar os agentes sociais como produtores de sentido
(RONSINI, 2007, p. 75).
O ESTUDO DA RECEPO E A CENTRALIDADE DAS MEDIAES
Na dcada de 1980, os estudos de recepo emergem na Amrica Latina como
uma nova forma de pesquisar a cultura de massas, alternativa aos estudos funcionalistas,
semiticos e frankfurtianos, ento predominantes (LOPES, 1999). Com os estudiosos da
Escola de Frankfurt, maiores representantes de uma forma de pensar a mdia como
manipuladora e alienante, perguntava-se o que os meios fazem conosco?,
considerando o pblico uma massa de indefesos e alienados. Reformulando o
questionamento frankfurtiano, Orozco prefere questionar Como se realiza a interao
entre televiso e audincia? (OROZCO, 1991, p. 53). O foco, nessa corrente, ento
deslocado para os receptores ou, de acordo com Martn-Barbero (1987), passa dos
meios s mediaes.
A pesquisa emprica da recepo miditica reconhece a existncia de receptores
reais, que deixam de ser apenas imaginados e compreendidos pela anlise dos
produtos miditicos, e passam a ser ouvidos e estudados com profundidade. Dar voz
audincia pode ser, para o objetivismo funcionalista, uma heresia que ningum poderia
levar a srio no altar da cincia; para a ortodoxia marxista, uma ingnua tentativa de
provar que nem s de alienao vive o homem (RONSINI, 2000, p. 15). No entanto,
para os estudos culturais, essencial para que a experincia miditica tenha sentido.
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As contribuies gramscianas com a reflexo sobre a hegemonia so
fundamentais para apreender os sentidos da recepo. A dominao, seja da mdia sobre
o pblico, de uma classe sobre outra, do homem sobre a mulher, do branco sobre o
negro, d-se por um processo contnuo em que o dominador seduz o dominado.
Escosteguy afirma que [...] o conceito de hegemonia de Antonio Gramsci permitiu
vislumbrar um movimento mais dinmico e complexo na sociedade, admitindo tanto a
reproduo do sistema de dominao quanto a resistncia a esse mesmo sistema
(ESCOSTEGUY, 2001, p. 91).
Foi com a perspectiva de que existem diferentes formas de leitura da mdia e
interpretaes variadas das mesmas mensagens, que Hall (2003) desenvolveu o modelo
codificao/ decodificao. Nessa proposta, supe-se que h uma leitura dominante
ou preferencial, onde o sentido da mensagem decodificado segundo as referncias
da sua construo; uma leitura negociada, em que o sentido da mensagem entra em
negociao com as condies particulares dos receptores; e, por fim, uma leitura de
oposio, que se d quando o receptor entende a proposta dominante da mensagem,
mas a interpreta segundo uma estrutura de referncia alternativa.
Segundo Lopes; Borelli; Resende (2002, p. 28), o conceito gramsciano de
hegemonia usado no modelo codificao/ decodificao (Hall) para examinar os
modos concretos pelos quais os significados dos meios podem ser negociados ou at
eventualmente subvertidos por audincias especficas. Uma das discusses cabveis a
esse modelo se, conforme considerava Hall, a mdia expe sempre um ponto de vista
hegemnico sobre os temas abordados. Uma hiptese levantada a de que observa-se
que o gnero [melodramtico] apresenta uma codificao predominantemente
preferencial no que diz respeito s relaes entre as classes, mas no necessariamente no
tocante aos costumes (Ronsini; Sifuentes, 2008, p. 3).
Entendendo ser possvel tanto a reproduo quanto a resistncia ao dominador,
como explica o conceito de hegemonia, os estudos de recepo, assim como no
concordam com as definies de um sujeito passivo, admitem o poder exercido pela
mdia: Resistncia e passividade andam de mos dadas (RONSINI, 2000, p. 65).
Stuart Hall considera que os meios de comunicao definem, no simplesmente
reproduzem, a realidade (HALL apud ESCOSTEGUY, 2001).
A partir da perspectiva adotada neste trabalho, a recepo da televiso no pode
ser compreendida sem que se estude o entorno cultural, ou seja, as mediaes. A
preocupao em investigar o espao da famlia, da escola, da classe social e da
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telenovela na conformao da identidade feminina deve-se ao entendimento de que
essas so instituies que afetam profundamente a socializao e a formao dos
sujeitos. Para Jacks, pertencer simultaneamente a vrias instituies resulta em um
referencial mltiplo e inter-relacionado, uma vez que cada instituio luta para impor
sua produo de significados como a mais legtima (JACKS, 1999, p. 55).
Pensando a comunicao a partir da cultura, Martn-Barbero (1987) desloca o
estudo dos meios em si para concentrar-se no entorno, nos artefatos, ou seja, nas
mediaes. As mediaes configuram-se em articulaes entre matrizes culturais
distintas, e podem ser os meios, os sujeitos, os gneros (televisivos) e os espaos
(cotidiano familiar, trabalho, escola). Elas encontram sua razo de existir na fuga do
dualismo, superando a bipolaridade ou a dicotomia entre produo e consumo (JACKS;
ESCOSTEGUY, 2005).
A concepo da teoria das mediaes, segundo Lopes; Borelli; Resende, teve o
mrito de relacionar mais profundamente a pesquisa em comunicao e a cultura,
fugindo do mediacentrismo a que a rea estava confinada.
Martn-Barbero, afirma que a mediao o lugar de onde se outorga sentido ao processo de comunicao, e esse lugar, para ele, a cultura. [...] O primeiro [mrito] o de ter exposto o determinismo meditico ou o mediacentrismo a que os estudos de comunicao estavam confinados, o que no quer dizer que o meio (mdium) no tenha importncia, antes pelo contrrio, a cultura como perspectiva de anlise permite perceber os meios em sua real e multifacetada importncia. O segundo mrito o de ter descentralizado e pluralizado teoricamente a anlise da comunicao, inserindo-a na ordem das prticas culturais (LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p. 43).
Na aproximao com o grupo estudado, famlia, escola e classe social
destacaram-se, de maneira fundamental, na conformao da identidade feminina e na
apropriao miditica das jovens. Por esse motivo, elegemos essas como as fontes
principais de mediao. Alm dessas, abordamos a telenovela como uma mediao
essencial na constituio da identidade de gnero, pois transmite, diariamente, o que
ser mulher, como agir, o que desejar, o que pode e o que no pode fazer, etc.
TELENOVELA NA SOCIEDADE DO HORRIO NOBRE
Programa de audincia compartilhada por milhes de brasileiros cotidianamente, a
telenovela tornou-se tambm um importante objeto de investigao. Para Martn-
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Barbero, a telenovela definida como o Relato de uma modernidade tardia, a
telenovela mistura a sagacidade do mercado no momento de contar histrias que
envolvem as maiorias com a persistncia de sua matriz popular, ativadora de
competncias culturais inerentes a ela (MARTN-BARBERO, 2002, p. 15).
Mesmo com antigas ou novas mdias competindo pela ateno do pblico, a
televiso continua soberana no que se refere preferncia nacional. O espao
privilegiado da televiso na vida das famlias brasileiras demonstrado por Assis;
Tavares (2007, p.1) com nmeros do IBGE: num pas de dimenses continentais, a TV
alcana praticamente todos os municpios (99,84%) e est presente em 91,4% dos
domiclios. Os autores ressaltam que mesmo que no Brasil muitas moradias no
possuam geladeira ou camas para todos os moradores, no deixam de possuir um
televisor, onipresente e muitas vezes entronizado, posto em local de destaque. Em sua
pesquisa de campo, Leal (1983, p. 33) percebeu essa valorizao do aparelho: As
casas na vila tm sempre a televiso como pea de frente.
Uma das queixas mais comuns ao gnero televisivo tambm uma de suas
principais ferramentas: a repetitividade de temas e modos de abordagem uma forma de
facilitar a aproximao do pblico, os sentimentos de conforto e segurana. Almeida
percebeu que esse padro faz parte de um contrato de leitura da telenovela. possvel
notar como as convenes do gnero narrativo criam expectativas bastante definidas
sobre o andamento da narrativa, com espaos para que se cumpra a repetio j
esperada de certas associaes simblicas (ALMEIDA, 2003, p. 188). Essas
associaes simblicas fazem parte de uma educao sentimental vivida pelos
telespectores da telenovela. S assim, um universo to amplo de consumidores
consegue compreender a mensagem que o produto quer passar (ibid.).
Com esse contexto em vista, os pesquisadores latino-americanos reconheceram a
representatividade do gnero e a conseqente necessidade de investigaes sobre a rea,
que teve incio no Brasil na dcada de 1970 (BORELLI, 2001). Para Lopes, essas
histrias narradas pela televiso so, antes de tudo, importantes por seu significado
cultural. Como bem o demonstra o filo de estudos internacionais, a fico televisiva
configura e oferece material precioso para entender a cultura e a sociedade de que
expresso (LOPES, 2004, p. 125).
No s no Brasil, mas na Amrica Latina de forma geral, assistir telenovela uma
tradio e o pblico criou hbitos de audincia, como guiar seus horrios da rotina pela
programao televisiva. Orozco destaca que os telespectadores desenvolvem costumes
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em torno disso. Por esse motivo, em muitos casos h um grau mnino de seletividade
pela audincia, pois estar em frente telinha j antes que uma escolha consciente, um
hbito (OROZCO, 2001).
A importncia da telenovela no pas inspirou Conrad Kotak a considerar o Brasil
como a sociedade do horrio nobre (apud HAMBURGER, 2005), ttulo que faz jus ao
carter noveleiro dos brasileiros, independentemente de sexo, idade ou classe social,
sejam do campo ou da cidade.
AS MEDIAES FAMLIA, ESCOLA E CLASSE SOCIAL
As condies econmicas do grupo so bastante limitadas, refletidas em casas
simples e pequenas, em que moram de duas a 10 pessoas; as famlias no tm carro ou
os carros so de modelos antigos; pais e irmos, alm das prprias garotas, tm baixo
grau de escolaridade, normalmente expressos pelo ensino fundamental incompleto.
Atualmente, apenas uma entrevistada trabalha, como bab, as demais so estudantes ou
donas de casa. Dentre as 12 jovens, cinco so mes, sendo que dessas, duas (de 18 e 21
anos) esto grvidas do primeiro filho, duas tm um menino e uma tem dois filhos.
O casamento civil no comum entre os pais das entrevistadas. Dentre as jovens,
duas tm pais casados, e so as duas garotas adotadas. Os pais das irms Bruna e Camila
moram juntos. Os pais de Letcia, Natlia e Rafaela so separados4 e nenhuma delas tem
contato com o pai, apenas com a me. Apenas no caso de Rafaela o padrasto substitui a
figura do pai. As mes de Natiele, Cauane e das irms Lucielen e Raquel so falecidas.
A me da primeira faleceu de AIDS e das demais, de cncer. Natiele perdeu a me h
dois anos, no registrada pelo pai e acabou indo morar com um tio, deixando de ter
contato com os irmos. O pai de Paola foi morto em uma briga quando ela tinha um ano
de idade.
As profisses dos pais so segurana em casa noturna (3), chapeador (2),
mecnico, construtor e pedreiro. As mes trabalham como empregada domstica (2) e
bab e cinco so donas de casa. As trs madrastas so cozinheiras. As profisses dos
maridos so pedreiro, soldado do Exrcito (2), repositor de produtos em mercado e peo
em fazenda. As rendas familiares variam de R$ 400,00 (Letcia e Natiele) at R$
1.600,00 (Emanuele). A renda familiar mdia de R$ 850,00.
4 No significa que tenham sido casados no civil.
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A novela o programa que mais assistem em famlia, uma rotina para oito
entrevistadas. Quando assistem TV em famlia, alguns pais costumam tecer comentrios
sobre os programas, enquanto outros falam pouco ou nada sobre o que veem.
A maneira como a famlia intervem/ no intervem na recepo da televiso um
dos determinantes para a apreenso que o jovem far de suas mensagens. Pensando
nisso, Orozco (1997, p. 140) classificou as famlias em quatro tipos:
a) Uma famlia que muito permissiva com os assuntos da televiso;
b) Uma famlia que limita o usufruto da televiso de algum modo, porm em
termos quantitativos, limitando quantas horas e em que horrio os filhos
podero ver TV;
c) Uma famlia que intervem por meio do dilogo com os filhos sobre o que
mostrado na TV, mais ou menos orientando e fazendo esclarecimentos para
que tenha uma apropriao adequada;
d) E, por ltimo, uma famlia totalmente proibitiva, que no permite que o filho
veja televiso ou que limita que assista em horrios determinados, como nos
fins de semana.
As famlias das entrevistadas dividem-se entre os tipos a, permissivo, e c, que
intervem pelo meio de dilogo, procurando orientar os filhos. Nenhuma famlia regula o
nmero de horas em frente ao televisor ou as probe de assistir algo.
Apesar de seguirmos aqui a determinao do IBGE sobre juventude, que engloba
pessoas de 15 a 24 anos, nota-se que para as entrevistadas no basta estar inserida nesta
faixa etria para se considerar jovem. Duas entrevistadas, Letcia e Paola, de 21 e 24
anos, no se consideram mais jovens, visto, entre outros fatores, as responsabilidades
que possuem. Para Paola, a juventude acabou depois que ganhou seu filho, quando tinha
16 anos. Me h oito anos, diz hoje possuir diversos hbitos de velho, pois quando se
compara s amigas da mesma idade, nota grandes diferenas, ilustrando com o exemplo
de que enquanto elas se ajeitam para ir balada, Paola est fazendo um po para a
famlia. Alm da diverso, ela sente falta de poder estudar sem outros compromissos
que exijam tanto dela. J Letcia afirma que ser jovem sair e curtir, o que no faz h
muito tempo. A outra me do grupo, Camila diz que se considera jovem, mas afirma
que muita coisa mudou em sua vida desde que teve filho.
Apenas duas nunca pararam de estudar: Bruna e Carol. Com exceo de Raquel,
que nunca repetiu de ano, as demais foram reprovadas no mnimo duas vezes. Nota-se
que o fim do ensino fundamental e o incio do ensino mdio so uma barreira para o
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grupo, especialmente quando enfrentam as dificuldades do ensino mdio de uma escola
estadual que, como elas dizem, mais difcil que a escola municipal da vila. Outro
forte impeditivo a gravidez, que vem como um balde dgua fria sobre as pretenses
de muitas. E as obrigaes com o filho no diminuem aps os primeiros meses,
afastando-as da escola. A nica me que estuda, Paola, j fez algumas tentativas de
retomar os estudos, mas a vida de adulto impe muitos desafios.
No entanto, mesmo as garotas que no tm filhos j reprovaram, refletindo que os
problemas escolares vo alm da maternidade. difcil precisar os motivos para as
reprovaes frequentes, mas o que se observa que embora exista um discurso familiar
da ascenso social pela educao, os pais nem sempre priorizam que as filhas estudem,
preconizando o trabalho ou a ajuda em casa. Apenas duas jovens nunca trabalharam, o
que reflete a necessidade de dedicao outra funo. H ainda os problemas de doena
na famlia, empecilho para o acompanhamento integral da escola. Adversidades de
ordem psicolgica, como as ocasionadas por abuso sexual, abandono e perdas
familiares, podem ser uma causa ainda mais complexa para os problemas escolares. Por
ltimo, pode-se destacar o preconceito racial e de classe que a maioria afirma j ter
sofrido ao menos uma vez na escola, colaborando para afast-las dos estudos.
Os percalos, contudo, no as fazem desistir. As jovens que esto afastadas da
escola ambicionam voltar e em nenhum momento demonstram em suas falas que podem
no realizar essa vontade e desistir deste sonho, que est entre os maiores das
entrevistadas. Esse desejo vai ao encontro do valor que do ao estudo como forma de
transformao de vidas e ascenso social. As garotas fazem uma relao direta e linear
entre estudos completos, bom emprego e ser algum na vida, sendo que o esforo
pessoal perpassa toda trajetria bem sucedida.
possvel separar aquelas que enfatizam causas individuais das que ressaltam
causas estruturais para a pobreza. Considerando a viso hegemnica como aquela que
atribui ao indivduo total responsabilidade por sua situao econmica, duas
entrevistadas demonstram uma viso dominante para o desemprego juvenil (Natlia,
Paola). Indo ao encontro do que Hall (2003) afirma, a maior parte executa uma leitura
negociada da pobreza, relacionando agentes individuais e estruturais (Bruna, Camila,
Cauane, Letcia, Natiele, Rafaela, Raquel). Carol, Emanuele e Lucielen apontam apenas
razes referentes estrutura social ao desemprego dos jovens, efetuando uma
decodificao opositiva.
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Ronsini; Sifuentes; Neves (2007) destacam a prevalncia de um modelo no qual a
mdia contribui para a formao de uma ideologia do desempenho. De forma destacada,
telenovela, famlia e escola colaboram para que os jovens acreditem na superao dos
problemas sociais e na ascenso de classe social por intermdio de qualidades pessoais,
como persistncia e esforo. Neste modelo,
Os receptores so estimulados a acreditar que a cidadania o exerccio da escolha individual e o bem-estar pessoal, conseqncia da habilidade para escolher, de forma que mazelas como a pobreza e o sofrimento so resultantes de decises inadequadas (RONSINI; SIFUENTES; NEVES, 2007, p. 157).
Galeano escreve algo semelhante ao refletir que a mdia colabora para aprofundar
as desigualdades, (re)produzindo que a pobreza um fracasso pessoal ou ento uma
fatalidade, e no fruto da injustia. Condena, assim, os pobres, no a injustia social. Os
pobres so os incompetentes, prega o discurso dominante (GALEANO, 2006).
CONSUMO CULTURAL E APROPRIAES FEMININAS
O principal meio de comunicao consumido pelas jovens a televiso. La
Pastina observa que para muitos telespectadores a TV a principal, se no a nica,
fonte de informao (LA PASTINA, 2006, p. 35). Entre as entrevistados, a reflexo do
autor se confirma. Elas leem pouco jornal, no consomem revistas ou livros, acessam
pouco a internet e, quando o fazem, as pginas mais acessadas so as redes de
relacionamento. Apenas trs entrevistadas (Cauane, Emanuele e Raquel) j foram ao
cinema, mesmo assim, no mximo trs vezes. Um pouco mais popular, mas ainda de
acesso restrito, a internet. Cinco entrevistadas nunca usaram a rede mundial de
computadores. O rdio, embora concorra com a televiso em tempo de consumo, serve
somente para ouvir msica.
consenso no meio acadmico, e objeto de dcadas de estudo, que a mdia possui
papel importante na formao de opinio. Percebe-se claramente isso entre as
entrevistadas no que diz respeito reflexo de assuntos da atualidade e na constituio
de sonhos, especialmente aqueles relacionados ao consumo. O tpico que mais as
estimula a pensar droga (Camila, Cauane, Natiele, Rafaela), apresentado nos
noticirios e nas telenovelas. Outros temas so violncia, doenas mentais, destacando-
se a contempornea Caminho das ndias, violncia sexual dentro da famlia e racismo.
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De forma semelhante, a TV estimula a imaginao e agua os sonhos das jovens.
Os desejos so variados. Camila e Natlia inspiraram-se nas vitrias conseguidas
atravs do esforo, costumeiramente apresentadas. Reformar a casa a partir de cartas de
telespectadores, como Gugu faz no quadro Construindo um Sonho, do Domingo Legal,
um sonho para Paola, que j enviou carta ao programa pedindo um quarto novo para o
filho. Bruna e Paola desejam conhecer os lugares que veem na telinha, especialmente a
praia. Cauane e Emanuele imaginam-se morando em uma casa/ apartamento como a das
novelas. Sempre penso 'ah, olha s, se eu trabalh eu posso, se eu estud, eu posso, eu
consigo' (Emanuele). A jovem tambm deseja ter um filho bonito e saudvel, aquela
criana bem limpinha, como os bebs da TV. Para Letcia, o mais importante seria ter
uma famlia feliz como as dos melodramas.
Segundo as garotas, a tpica mulher brasileira est representada nas novelas na
figura de algumas personagens. A principal deles Maria do Carmo, de Senhora do
Destino, citada por quatro jovens por sua alegria, autoestimo e por seu jeito guerreiro,
prprio da brasileira. Outras personagens citadas como representante da mulher
brasileira foram Donatela, de A Favorita, pois sincera, batalhadora e simples; Luciana
e Helena, de Mulheres Apaixonadas, esta ltima por estar sempre correndo para dar
conta de tudo; Cema e Ada, de Caminhos das ndias, ambas mes que se desdobram
para dar o melhor para os filhos; e Susana, de Trs Irms, pois namorado queria obrig-
la a se casar e cumprir suas ordens.
As mulheres apresentadas nas novelas, entretanto, proporcionam pouco que as
receptoras sintam-se representadas. o que sete afirmam. As outras cinco afirmam se
identificar com alguma personagem de novela. Camila reconhece-se em Catarina
porque ambas querem trabalhar para no precisar depender do marido: Que t
dependendo de homem ruim (Camila). Carol e Greice tm em comum a luta por um
emprego e a vontade de ser algum melhor (em termos financeiros) sem deixar de ser
uma pessoa boa (no que se refere ao carter). Cauane se v em Ediwiges em tudo,
especialmente com o namorado. Para Lucielen, tanto ela quanto Yasmin so loucas da
cabea. Raquel identifica-se com Maria do Carmo porque, como ela, considera-se uma
mulher firme e batalhadora.
Nota-se que em comum entre essas mulheres est o esprito guerreiro, a
persistncia e a abnegao, caractersticas da mulher que vive para os outros. A mulher
ocupa-se em dar conta, da melhor forma possvel, dos mais diversos aspectos da vida de
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sua famlia e da sua prpria. Essas tpicas mulheres brasileiras das novelas fazem parte
do modelo de mulher difundido pela mdia na atualidade e que Hamburger expe:
[...] valorizam tipos ideais de mulher que acumulam funes e responsabilidades, aproximando-se de um padro perverso de supermulher, que seria livre para escolher ter poucos filhos, se relacionar com diversos homens ao longo da vida, questionar a autoridade patriarcal de pais e esposos (HAMBURGER, 2005, p. 153).
Para as entrevistadas, ser mulher hoje tem diversos significados. Ter muitas
responsabilidades e dar conta de muitas tarefas, como o trabalho, os filhos e a casa, a
principal representao da mulher atual para cinco (Camila, Carol, Emanuele, Natiele,
Paola). As garotas lidam com isso de forma ambgua, pois ao mesmo tempo que
demonstram uma admirao por esse modelo, sabem a sobrecarga que isso acarreta.
Para Mattos, essa concepo do gnero feminino no trouxe as vantagens
pretendidas pelas mulheres. O que se deu foi uma masculinizao do feminino.
As mulheres no parecem ter descoberto uma forma expressiva de vivenciar sua condio, colocando em xeque os pontos centrais da dominao, mas sim, parecem ter tomado o modelo masculino como o modelo a ser seguido. Desta maneira, no se toca na estrutura da dominao, mas se luta para deixar de ser o plo dominado para passar a ser o plo dominante (MATTOS, 2006, p. 158).
Cauane, Rafaela e Raquel afirmam que a vaidade e o cuidado de si o que mais
representa a mulher hoje. Para Bruna, ser mulher sempre vai significar ser me. Natiele
considera que a coragem exprime o sexo feminino, e para Raquel, a delicadeza.
Natlia pensa que prprio da mulher estar sempre querendo surpreender e chamar a
ateno. Cauane ressalta que a mulher contempornea no pode esquecer de se dar ao
respeito. Percebe-se a reproduo de valores tradicionais, referentes beleza,
sexualidade e, fundamentalmente, maternidade. O mito do amor materno
(BADINTER, 1985) dominante entre as garotas.
O sucesso profissional est entre as principais ambies de dez jovens, incluindo
as que mencionam a vontade de conclurem o ensino superior, exercer alguma profisso
especfica (dentista, mdica, advogada, pastora) e aquelas que somente se referem a
terem um emprego. Percebe-se que entre as jovens mes comum que seu sonho de
vida seja proporcionar ao filho um futuro melhor, com uma situao financeira
confortvel e uma trajetria sem sofrimentos. o que querem todas as mes
entrevistadas. Cauane e Natiele so as nicas entrevistadas que no demonstram o
grande desejo de casar e ser me, assim como planejam seu futuro para si. Em relao
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Cauane, uma hiptese para esse sentimento diz respeito aos problemas recentes com o
ex-namorado, que a ameaou de morte aps o fim do namoro, o que fez com que ela
mudasse de telefone, bairro e escola. Natiele no foi registrada e nem conhece o pai e
recentemente perdeu a me vtima de AIDS. Ademais, refere-se aos exemplos negativos
de relaes homem-mulher que conheceu na famlia e que no pretende reproduzir.
CONSIDERAES FINAIS
Percebe-se que aquilo que as receptoras entrevistadas veem como o ideal de ser
mulher est presente nas representaes da mulher na telenovela. As heronas, as
supermulheres, as mulheres fortes, so o padro entre as protagonistas e a aspitao
das garotas. Conforme Hamburger, a fora e a fraqueza diferencia as boas personagens,
dignas de serem exemplos, das outras.
Freqentemente, relatrios de grupos de discusso citam trechos de depoimentos em que participantes julgam personagens femininas de acordo com o grau do que denominam fora, ou seja, valorizam personagens que se encaixam no que consideram mulheres fortes, independentes, em oposio ao que consideram mulheres fracas, dependentes e donas-de-casa (HAMBURGER, 2005, p. 58).
A admirao por essas mulheres ideais no se mantm apenas na contemplao,
querem tambm dar conta de tudo. No caso delas, o que lhes falta, dentro desse
modelo, especialmente uma profisso da qual possam se orgulhar. Para Mattos (2006),
as mudanas ocorridas nos ltimos tempos que resultaram em uma nova mulher so,
sobretudo, vivenciadas pela classe mdia e atingem de forma residual as classes
populares. Alm disso, a autora destaca que nem mesmo para a classe mdia isso
significa uma transformao na base das relaes entre os gneros, propiciando
autonomia, mas sim uma mudana de superfcie.
O destaque oferecido s personagens profissionais na fico no diferente da
forma como a carreira encarada na vida das jovens. Ser dona de casa o destino, no o
desejo. Assim como as mulheres das novelas, querem ter sua liberdade. No entanto, o
exemplo da TV no absorvido de forma integral. Isso se nota, principalmente, na forte
vinculao que as entrevistadas tm com a vida matrimonial e uma dependncia quase
intransponvel do marido. Ter sua profisso no significa necessariamente uma
independncia financeira, e sim uma no-dependncia. A diferena se nota porque as
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entrevistadas falam que, trabalhando, tero dinheiro para comprar alguns produtos para
si e ajudar em casa, mas ainda pensam que o marido ser o provedor do lar.
Um aspecto aspirado nas telenovelas o realismo, exigncia alcanada pelos
programas, na tica das informantes. Para as garotas, a fico, por se aproximar com o
que se deparam na vida real, serve como lio de vida, exercendo uma funo
pedaggica. O papel socializador da TV destacado por Ronsini (2000) entre os
camponeses, de forma que se aplica entre as mulheres de classe popular. A autora
afirma que a televiso ensina como atuar em pblico, como falar e como se comportar
diante de outras classes.
A identificao com as personagens das novelas parcial, porm existe. Mulheres
guerreiras e humildes so o que h em comum entre as da fico e elas. No entanto, o
que mais se ressalta, como o exposto aqui, uma projeo, no propriamente uma
identificao. Querem ser o que veem.
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