Raça.classe.etnia.cv

29
Afro-Ásia, 45 (2012), 143-171 143 RAÇA, CLASSE E ETNIA NOS ESTUDOS SOBRE E EM CABO VERDE: AS MARCAS DO SILÊNCIO Cláudio Alves Furtado * ma análise dos estudos realizados por pesquisadores cabo- verdianos, nas últimas cinco décadas, mostra que, independen- temente do quadro teórico no qual se inserem algumas catego- rias conceituais, erigidas como centrais, faz emergir ausências que de- notam escolhas, por vezes ideologicamente situadas e que singularizam a produção teórica e ensaísta sobre Cabo Verde. De forma específica, existe a percepção, a partir de uma leitura longitudinal e transversal, de que os estudos sobre Cabo Verde, produ- zidos essencialmente por pesquisadores locais, têm, em regra, sido omissos relativamente às dimensões da raça e da etnia na explicação da constituição e da transformação social da comunidade insular. Já as análises que têm como tema ou como centralidade as classes sociais aparecem com uma regularidade relativa, ainda que não possam ser consideradas estruturalmente marcantes. Em contrapartida, os estudos produzidos desde meados dos anos oitenta do século passado, sobretudo nos Estados Unidos da América e incidindo sobre Cabo Verde, têm tido como categorias analíticas cen- U * Professor da Universidade Federal da Bahia.

description

Raça e Classe em Cabo Verde

Transcript of Raça.classe.etnia.cv

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 143

    RAA, CLASSE E ETNIANOS ESTUDOS SOBRE E EM CABO VERDE:

    AS MARCAS DO SILNCIO

    Cludio Alves Furtado*

    ma anlise dos estudos realizados por pesquisadores cabo-verdianos, nas ltimas cinco dcadas, mostra que, independen-temente do quadro terico no qual se inserem algumas catego-

    rias conceituais, erigidas como centrais, faz emergir ausncias que de-notam escolhas, por vezes ideologicamente situadas e que singularizama produo terica e ensasta sobre Cabo Verde.

    De forma especfica, existe a percepo, a partir de uma leituralongitudinal e transversal, de que os estudos sobre Cabo Verde, produ-zidos essencialmente por pesquisadores locais, tm, em regra, sidoomissos relativamente s dimenses da raa e da etnia na explicao daconstituio e da transformao social da comunidade insular. J asanlises que tm como tema ou como centralidade as classes sociaisaparecem com uma regularidade relativa, ainda que no possam serconsideradas estruturalmente marcantes.

    Em contrapartida, os estudos produzidos desde meados dos anosoitenta do sculo passado, sobretudo nos Estados Unidos da Amrica eincidindo sobre Cabo Verde, tm tido como categorias analticas cen-

    U

    * Professor da Universidade Federal da Bahia.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52143

  • 144 Afro-sia, 45 (2012), 143-171

    trais precisamente as que se encontram ausentes nos estudos feitos porpesquisadores do arquiplago.1

    O presente texto pretende fazer emergir, a partir de uma reflexoainda em construo, eventuais pistas que possam ajudar a explicar osilncio e/ou a relativa ausncia de produes em Cincias Sociais queesbocem ou tenham como referencial explicativo os conceitos de clas-ses sociais, raa e etnia. Cremos que as fronteiras e os mutantes marca-dores identitrios, por um lado, e a sublimao e/ou a negao de valn-cias identitrias no hegemnicas, por outro, so cruciais para o enten-dimento desse silncio, das omisses ou das transmutaes conceptuais.

    Com efeito, tanto no perodo colonial quanto no ps-colonial,raras so as tentativas de se compreender sociologicamente como, emCabo Verde, os diversos atores emergem e se constroem enquanto su-jeitos histricos. muito mais comum encontrar-se uma preocupaoem situar e definir a especificidade do homem, da cultura e da socieda-de cabo-verdiana.

    Tal situao, num primeiro momento, parece-nos decorrer menosda busca da construo de uma identidade nacional ou de sua fixao, emais de uma necessidade de segurana ontolgica ou psicossociolgica.

    J num segundo momento, pode-se perceber, de forma mais oumenos orgnica e de cunho relativamente emancipador, uma preocupa-o com a construo, pela elite, de discursos identitrios nacionalmen-te assumidos.2

    Alguns deles, mais descritivos do que explicativos, fazem deter-

    1 O presente texto constitui o resultado parcial de um projeto de pesquisa mais vasto e queprocura analisar, de forma comparativa, as presenas e as ausncias das categorias classe,raa e etnicidade nos estudos em Cincias Sociais e Humanas sobre Cabo Verde. Umaprimeira aproximao reflexiva foi apresentada e discutida na Conferncia Lusofonia andAnthropology,organizada em abril de 2009 pelos Center for International Studies, Center forLatin American Studies, Center for the Study of Race, Politics and Culture, and the Departmentof Anthropology, da Universidade de Chicago.

    2 Gabriel Fernandes faz uma anlise extremamente fina dos diversos discursos e percursosidentitrios que marcam a trajetria do arquiplago crioulo durante o sculo XX, e que seespraiam numa luta tenaz por imposio de um discurso identitrio nacional legtimo. Volta-remos a esse autor mais frente. Cf. Gabriel Fernandes, A diluio da frica. Uma interpre-tao da saga identitria cabo-verdiana no panorama poltico (ps) colonial, Florianpolis:Editora da UFSC, 2002.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52144

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 145

    minadas incurses pelas dimenses classe e raa, essencialmente nabusca de modos de legitimao de uma sociedade que se forma a partirda extino da sociedade escravocrata.

    No raras vezes, os conceitos ou as dimenses raa e classe sesobrepem, sobretudo em contextos em que as condies scio-histri-cas tenderam a favorecer uma homogeneizao dessas duas categorias.

    Em contrapartida, a dimenso tnica referida no essencial, parajustificar a impossibilidade de sua anlise. Na verdade, a multiplicida-de de etnias, que teriam concorrido para o povoamento das ilhas deCabo Verde e a sua diluio no espao do arquiplago, erigida comofundamentos da emergncia de uma sociedade, de um povo e de umacultura particulares.3 Como sugere Jos Carlos dos Anjos,

    A violncia fsica e simblica, que destruiu grande parte da memriatnica dos escravizados, tem sido lida pelos intelectuais cabo-verdianoscomo fuso cultural de europeus e africanos. Essa fuso culturalnuma mestiagem geral percebida por uma parte da intelectualidadecabo-verdiana como positiva, no sentido de que se teria constitudo umaunidade nacional antes da implantao de um Estado nacional.4

    Em alguns casos, emergiram crticas s raras abordagens de na-tureza culturalista, centradas na questo tnica. Amlcar Cabral,5 embo-ra considere a luta de libertao com um ato de cultura, no deixa decriticar, assim como o faz Frantz Fanon, os que assentam a sua anlisenas determinantes identitrias ou raciais e tnicas, esquecendo, em con-trapartida, questes que se prendem s variveis econmicas, sociais e

    3 Antnio Carreira, no seu estudo,Cabo Verde, formao e extino de uma sociedade escra-vocrata (1460-1878), Praia: Instituto Nacional de Patrimnio Cultural, 2000, faz, a partir deuma vasta compilao documental, um inventrio dos grupos tnicos que tero concorridopara o povoamento do arquiplago, citando, especificamente, os mandingas, os jalofos e osfulas. Contudo, confessa que a diversidade do elemento humano com que se fez o povoamen-to coloca um conjunto de implicaes, sendo a maior a miscigenao. De igual modo, ElisaAndrade sustenta que a grande diversidade tnica torna a populao cabo-verdiana extrema-mente heterognea. Cf. Elisa Andrade, As ilhas de Cabo de Verde: da descoberta indepen-dncia nacional (1460-1975), Paris: LHarmathan, 1996, p. 51.

    4 Jos Carlos dos Anjos, Elites intelectuais e a conformao da identidade nacional em CaboVerde, Estudos Afro-Asiticos, ano 25, n. 3 (2003), p. 581.

    5 Amlcar Cabral, Unidade e luta, Lisboa: Nova Aurora, 1974.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52145

  • 146 Afro-sia, 45 (2012), 143-171

    polticas.6 No que diz respeito anlise de classes socais e raas, en-contramos uma tentativa de Antnio Carreira de caracterizar a estruturasocioeconmica de Cabo Verde no perodo colonial e, de forma particu-lar, no contexto da escravido.7 Trata-se de uma dmarche nitidamentefuncionalista em que, de forma sinnima, classe e raa se sobrepem.Com efeito, constata o autor que, durante os primeiros trs sculos dacolonizao, a sociedade cabo-verdiana estava estruturada em duasnicas classes: uma, a dos senhores (brancos, reinis ou naturais e al-guns mulatos), e outra, a dos libertos (negros ou mulatos) e escravos.8

    Elisa Andrade vir, mais tarde, recaracterizar a sociedade cabo-verdiana em sua configurao social atravs do marxismo, recorrendo aN. Poulantzas. Para alm da posio dos agentes no mundo da produoeconmica, a autora agrega outras dimenses, incluindo os que permitemo agrupamento, numa mesma classe, de sujeitos inseridos em bases eco-nmicas diversas, mas que partilham o mesmo quadro poltico e ideol-gico. No contexto colonial, a reconceituao de classes sociais permiti-ria, segundo a autora, captar especificidades de uma economia dependen-te, colonial e sem base industrial.9

    Grande parte dos estudos realizados no contexto ps-colonial ten-de a concentrar-se na questo identitria e na construo da nao. Nessecontexto, a problemtica da estruturao social e da pertena tnica ouracial inclina-se a estar omissa ou sublimada, para se privilegiarem asbases culturais diferenciadoras da nao e do homem cabo-verdiano, bemcomo de seu ethos especfico. Esses estudos, como se poder ver mais frente, no so homogneos. Comportam, antes, diferenas tericas epolticas marcantes, com consequncias societrias tambm diversas.

    De certa forma, e a ttulo de hiptese, poder-se-ia afirmar que adiscusso em torno da identidade tnica transmutada em identidade

    6 Michael G. Hanchard assinala essa crtica de Cabral e Fanon s abordagens culturalistas. Cf.Michael Hanchard, Orfeu e o poder: movimento negro no Rio e So Paulo, Rio de Janeiro:Editora da UERJ, 2001.

    7 Antnio Carreira, Cabo Verde: formao e extino; Antnio Carreira, Cabo Verde (aspectossociais: secas e fomes do sculo XX), Lisboa: Ulmeiro, 1984.

    8 Carreira, Cabo Verde, formao e extino, p. 288.9 Elisa Andrade, As ilhas de Cabo Verde.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52146

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 147

    cultural e/ou nacional, conhecendo oscilaes histricas entre a africa-nidade, a crioulidade e a europeidade cabo-verdianas, para, numa pos-tura por vezes intelectualmente cnica e vazia de capacidade heurstica,se afirmar que a identidade dos insulares, no se resume numa coisanem noutra: ela simplesmente cabo-verdiana.10

    A negao/sublimao/omisso da dimenso tnico-racial, tantono discurso das cincias sociais, quanto na prtica discursiva do quoti-diano, encontra eco no silncio das estatsticas demogrficas que, j noperodo colonial, em meados dos anos quarenta do sculo passado, dei-xaram de diferenciar os agrupamentos populacionais segundo a raa,no sentido fenotpico do termo, prtica continuada no perodo ps-co-lonial.

    Contudo, a partir da anlise das relaes sociais, podem ser sur-preendidos comportamentos estereotipados. Com efeito, parece-nos que,em muitos contextos, a etnicidade pode ser apreendida a partir de prti-cas que conduzem criao de esteretipos negativos, alocados a gru-pos populacionais provenientes de espaos sociais nacionais bem espe-cficos, ou seja, a etnicizao, no contexto do espao geogrfico inter-no, associada a outro contexto especfico, que provm do continente.Existiria, aqui, uma reapropriao e uma ressignificao do conceito deetnia, que no se caracterizaria, como sugere A. D. Smith, como exis-tncia de um nome prprio comum, de um mito de uma ancestralidadecompartilhada, de memrias histricas compartilhadas, de elementosde uma cultura comum, de um vnculo a um homeland, e de senso co-mum de solidariedade,11 mas, antes, como um outro, homogeneizadonuma designao tnica nica (mandjakus), legitimada pela origem geo-grfica continente e por uma racializao disforme negro.12

    10 Interessante observar que a oscilao tripolar se d entre africanidade/cabo-verdianidade/europeidade e no entre branquidade/crioulidade-mestiagem/negritude. A questo da corno parece ser analtica e discursivamente importante, podendo, antes, ser emocionalmenteperturbadora para uma identidade que se quer sui generis.

    11 Citado por Sergio Costa, As cores de Erclia: esfera pblica, democracia, configuraesps-coloniais, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, pp.123-4.

    12 Dizemos racializao disforme porque, embora a conotao primeira seja fenotpica, a hete-rodenominao de negro ao imigrante proveniente do continente pode ser estendida queles,tambm imigrantes, que so mestios.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52147

  • 148 Afro-sia, 45 (2012), 143-171

    Da mesma forma, e mais atualmente, as dinmicas interculturaisresultantes da imigrao de africanos provenientes da frica Ocidentalfizeram emergir, no discurso e nas prticas sociais e culturais dos cabo-verdianos, comportamentos assentes na diferenciao tnica e racial,com recortes que, por vezes, indiciam certa esquizofrenia comunitria.

    Situando o problemaLivio Sansone defende que etnia, etnicidade e demais derivados estona moda. Com efeito, no mercado, essas categorias tornaram-se produ-tos comercializveis, na poltica e na sociedade, termos politicamentecorretos na academia foram erigidos como categorias explicativas im-portantes para se compreender a dinmica das comunidades pluritnicase plurirraciais.13

    Para o autor, as possibilidades de uma utilizao contra-hegemni-ca dessas categorias explicativas, seja numa perspectiva epistemolgica,seja poltica, seriam remotas. Afirma Sansone estar mais ctico do quenunca a respeito de qualquer possibilidade libertria e emancipatria in-trnseca da mobilizao poltica em torno da identidade tnica e daraa.14 No contexto cabo-verdiano, essa possibilidade sequer se colo-ca, pela absoluta ausncia dessas categorias de anlise nos estudos e nasprticas discursivas quotidianas. Mesmo a questo do mercado tnicoapenas se coloca de forma extrovertida. Aplica-se s comunidades emi-gradas no exterior, na perspectiva em que podem ser consideradas comoimportantes segmentos de um mercado tnico para produtos cabo-verdianos, passveis de exportao.

    De um ponto de vista estritamente conceitual, parece adequadoter em conta que etnicidade constitui um constructo social de cartercontingente. Nesse sentido, no parece adequado e heuristicamenteprodutivo essencializ-la. No mximo colocar entre parnteses a etnici-dade, retirando sua dimenso contingente, a sua historicidade, enfim.

    Bader chama a ateno para o fato de o conceito de etnicidade

    13 Livio Sansone, Negritude sem etnicidade, Salvador/Rio de Janeiro: Edufba/Pallas, 2007.14 Sansone, Negritude, p. 10.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52148

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 149

    reagrupar, hoje em dia, sentidos mltiplos, transformando-se no quedenominou conceito contentor.15 Na verdade, seriam vrios os critriosque se imbricam para conformar o conceito:

    [...] caractersticas comuns reais ou presumidas da cor da pele etc., ter-ritrio, origens comuns (mticas), caractersticas comuns da histria, doidioma ou dialectos, da cultura (tnica ou poltica), do habitus e dosestilos de vida, da religio, bem como da cidadania - todos os grupospossveis ou impossveis, categorizveis de modo racista, so designa-dos como minorias tnicas tal como os indgenas na Austrlia, os bascos,os flamengos, os catlicos na Irlanda do Norte, os judeus ou armniosna dispora, os imigrantes na Alemanha, os imigrantes tnicos naAmrica do Norte, os estrangeiros legais, assim como ilegais etc.16

    De igual modo, tentando proceder busca de interfaces de etnici-dade e raa, Sansone chama a ateno para o perigo da naturalizaodesse ltimo conceito, ainda que, como sugere Costa, na mesma esteirade Guimares,17 se trate de um produto de formas de classificaessociais com implicaes substantivas para as oportunidades individuaisno interior dos diferentes grupos socais.18 Assim, uma leitura atentadas formas como o conceito de raa tem sido usado mostraria uma certaintercambialidade com o de etnia. Desse modo, pode-se considerar queos grupos sociais tm sido racializados, etnicizados e novamente raci-alizados, num processo que sempre funciona atravs de uma combina-o de foras dentro e fora de determinado grupo tnico.19 No entanto,ainda que, em muitos estudos, as categorias raa e etnia se encontremmescladas, quando no sobrepostas, uma diferenciao se impe. Seadstrito categoria raa esto critrios socialmente definidos e pass-veis de visualizao exterior, categoria etnia esto associados critri-os scio-histricos e/ou culturais. 20

    15 Veit-Michael Bader, Racismo, etnicidade, cidadania: reflexes sociolgicas e filosficas,Porto: Afrontamento, 2008.

    16 Bader, Racismo, etnicidade, p. 85.17 Antnio Srgio Guimares, Racismo e anti-racismo no Brasil, So Paulo: Editora 34, 199918 Costa, As cores, p. 142.19 Sansone, Etnicidade, p. 19.20 Bader, Racismo, etnicidade.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52149

  • 150 Afro-sia, 45 (2012), 143-171

    Essa perspectiva analtica mostra-se difcil de transportar para ocaso cabo-verdiano. Na verdade, parece-nos que essas categorias anal-ticas no emergem como explicativas para a questo identitria, oumesmo para se analisarem eventuais injunes entre a dimenso raciale as desigualdades sociais.

    A no polarizao analtica, em termos de identidade tnica eracial, quase uma transversalidade em toda a histria de Cabo Verde,e em todos os estudos sobre o pas.

    Nesse sentido, os estudos e as relaes sociais em Cabo Verdetenderiam, numa certa dimenso, mutatis mutandis, a se aproximar dasituao brasileira, referida por Sansone, segundo o qual as relaesintertnicas e a racializao dos grupos se caracterizariam

    () por um continuum racial ou de cor, em vez de um sistema nopolarizado de classificao racial, por uma cordialidade transracial nashoras de lazer, entre as classes mais baixas, por uma longa histria desincretismo no campo da religio e da cultura popular, e por uma orga-nizao poltica relativamente fraca com base na raa e na etnicidade,a despeito de uma longa histria de discriminao racial.21

    Essa aproximao , contudo, apenas aparente, uma vez que, pri-meiro, a questo tnica sublimada nas narrativas das cincias sociais ehumanas, a partir do momento em que se assume que o fato colonial,pelos mecanismos sincrticos, refundou um povo e uma sociedade etni-camente homogneos; segundo, a dimenso racial , ela tambm, subli-mada pela negao assertiva da africanidade (em termos culturais), valedizer negritude, e uma negao tmida do europesmo, levando a que sebusque a superao na formulao vazia de significado e de capacidadeheurstica nem frica nem Europa. Simplesmente Cabo Verde.

    Embora o contexto cabo-verdiano comporte algumas especifici-dades, quando comparado aos estados africanos ps-coloniais conti-nentais, as observaes de Mkandawire sobre a presena e/ou a ausn-cia de algumas categorias e dimenses na anlise da realidade africanano relevantes, e podem, mutatis mutandis, ajudar a melhor refletir ocaso cabo-verdiano. Sublinha esse autor que21 Sansone, Etnicidade, p.19.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52150

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 151

    Em qualquer caso, tendo aceitado as fronteiras coloniais, eles tiveramque lidar com o fato concreto de que as naes constituam de diversosgrupos tnicos e nacionalidades. O pluralismo social da frica, sua di-viso em mais de mil grupos tnicos, sempre foi uma fonte de preocu-pao em termos de modernizao, construo de nao, desenvolvi-mento e governana. s vezes esse pluralismo tem sido central na an-lise, enquanto em outros momentos tem sido totalmente banido. Mastem, como a espada de Dmocles, pairado sobre qualquer outracategorizao social utilizada na anlise social: nao, classe ou gne-ro, sempre ameaando tornar incoerente qualquer anlise com base nes-sas categorias.22

    Para as lideranas polticas dos estados ps-colonais, na era daeuforia (primeira dcada das independncias), o projeto de construo doEstado-Nao era, de certa forma, incompatvel com os planos alternati-vos de naes-estados, multiculturalidade, multietnicidade ou dimensomultirracial. Alis, pensar nesses termos e com essas categorias seria com-prometer o projeto poltico de unidade nacional e de implementao doprograma poltico de desenvolvimento.

    Em Cabo Verde, ao contrrio, pensar a realidade do pas na suaeventual multiplicidade tnica, cultural e racial seria negar o fato de anao preceder o Estado, negando a especificidade cabo-verdiana.

    A situao cabo-verdiana apresenta nuances, contudo, importan-tes. Por um lado, a situao colonial muda o contexto e o padro derelaes sociais e de poder, com consequncias na anlise da estruturasocial. Por outro, a tradio sincrtica, no campo da religio, muitomais fluida em Cabo Verde.

    De igual modo, no se pode descurar que a vivncia real ou ima-ginria e a reivindicao de uma identidade negro-africana, de africa-nismos ou da africanidade autntica, num contexto de distanciamentogeogrfico de fronteiras opostas do Atlntico, se colocam de forma di-ferente, quando se est a 500 km do continente, onde a pertena geogr-fica no pode ser questionada.

    22 Tandika Mkandawire, African Intellectuals. Rethinking Politics, Language Gender andDevelopment, Dakar: CODESRIA, 2005, p. 12.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52151

  • 152 Afro-sia, 45 (2012), 143-171

    Parece evidente que a contestao da pertena geogrfica de CaboVerde ao continente africano , de per si, impossvel, podendo-se ape-nas argumentar no distanciamento identitrio e cultural, mas no nadimenso tnica ou racial. Mais uma vez, a questo se colocaria, comomuitos o fizeram, na crioulizao e no na mestiagem.23

    Por sua vez, a dimenso racial raramente aparece como categoriade anlise, contrariamente ao que sucede, por exemplo, entre os brasi-leiros, quando, nos anos 70,

    o conceito raa, atravs, entre outros, da influncia da discusso norte-americana, ganha renovada importncia poltica no Brasil, funcionandocomo instrumento de ruptura da homogeneidade construda simbolica-mente pela poltica de mestiagem [...]24.

    Mesmo no quadro do processo de reafricanizao dos espritos,propulsionado pelos intelectuais orgnicos da luta de libertao, a ques-to racial no explicitamente colocada.

    Nos estudos sobre Cabo Verde, as categorias analticas centraistm sido, majoritariamente, a mestiagem e a crioulizao, como ele-mentos caracterizadores dos habitantes locais.

    Para o caso da mestiagem, trata-se, como o refere Srgio Costa,de uma noo sociolgica e no fenotpica, que fundamenta grande par-te dos trabalhos dos construtores da cabo-verdianidade.

    J o conceito de crioulizao fortemente polissmico, mudandode significado de acordo com autores e momentos histricos. No entanto,o que parece comum entre os autores, que o elegem como categoria expli-cativa, a dimenso lingustica, ou seja, a capacidade de produo de umnovo instrumento de integrao societrio, e a criao de um ethos cultu-ral especfico no passvel de ser subsumido nas suas matrizes.

    23 Jos Carlos dos Anjos no compartilha dessa perspectiva. Para ele, a definio dominante daidentidade cabo-verdiana a que, partindo do pressuposto de que houve uma fuso racial ecultural entre brancos e negros em Cabo Verde, torna-a mestia. Jos Carlos Anjos, Repre-sentaes sobre a nao cabo-verdiana: definio mestia da identidade nacional como ideo-logia do clientelismo em contexto de dominao racial. Fragmentos, n. 11/15 (1997), p. 13.Sustentamos que a dimenso racial apenas utilizada na sua negatividade, isto , para neg-la no seu sentido fenotpico.

    24 Costa, As cores, p. 249.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52152

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 153

    Pode-se, nesse caso, apontar um paralelismo entre algumas cons-trues identitrias e certas dimenses da cabo-verdianidade e a situa-o brasileira, aludida por Srgio Costa, como o que caracterizaria osidelogos da brasilidade de Freyre:

    A interveno estatal no campo da cultura baseia-se num conceitoessencialista de brasilidade, atravs do qual algumas formas culturaisso promovidas, enquanto outras manifestaes, igualmente existentesso sistematicamente desconsideradas; A brasilidade apresentada como uma identidade mestia no tnica,capaz de assimilar todas as outras representaes tnicas.A ideia de raa desqualificada enquanto instrumento dos discursospblicos, ainda que continue orientando a aco e as hierarquizaesestabelecidas pelos agentes sociais, cotidianamente. Assim, se constituio mito da democracia racial, componente indispensvel da ideologia damestiagem.25

    Num primeiro momento, pode-se argumentar que a desvaloriza-o da etnicidade, como categoria heuristicamente relevante para a com-preenso da sociedade cabo-verdiana, reside na dificuldade de se iden-tificar entre os ilhus as etnias de origem ou de pertena. Nesse sen-tido, a pertena ou a afiliao tnica no passaria por uma ideia geral deuma ancestralidade africana, cultural e geograficamente situada, mas,antes, pela busca de novos referentes ou pela construo de outros.

    Assim, a crioulizao da sociedade cabo-verdiana emergiria comoum processo de hibridao tnica, fator que torna mais complexa a an-lise, contrapondo-se mestiagem, que pode ser entendida comohibridizao racial, no sentido fenotpico do termo.

    Nos ltimos anos, contudo, a negao ou a sublimao da dimen-so tnica nos estudos sobre Cabo Verde, por um lado, e sua rejeio noplano social, por outro, so contemporneas da construo de uma novarelao de alteridade que a imigrao coloca. Com efeito, os afro-conti-

    25 Srgio Costa, As cores, p.122. Nitidamente, a perspectiva dos claridosos poderia ser inscritanesse quadro, ainda que Gilberto Freyre os tenha decepcionado. Cf. a esse propsito, BaltazarLopes, Cabo Verde visto por Giberto Freyre, Praia: Imprensa Nacional, 1956; David HopfferAlmada, Cabo-verdianidade e lusotropicalismo, Recife: Fundao Joaquim Nabuco, 1999.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52153

  • 154 Afro-sia, 45 (2012), 143-171

    nentais so reduzidos por um marcador tnico, mandjakos,26 que escon-de um marcador racial, negros.

    Anlises histrico-sociolgicas: da sobreposiode categorias s anlises das classes sociaisComo referido anteriormente, os estudos de natureza histrica, particu-larmente os considerados clssicos, conduzidos por Antonio Carreira,analisam a formao da sociedade cabo-verdiana, tentando determinaros aportes populacionais e culturais dos povos que concorreram para oseu povoamento.

    Nitidamente, a situao colonial-escravista condiciona o povoa-mento e, por conseguinte, o peso relativo dos sujeitos intervenientes.

    Analisando a formao social cabo-verdiana, num primeiro mo-mento, a partir do conceito de classes sociais, Carreira tem uma posturacrtica, relativamente aos estudos que concluem que a sociedade insu-lar teve por base indivduos de duas classes: os europeus (fidalgos) e osescravos africanos.27

    No entanto, e buscando uma anlise comparativa, o autor tende aconcordar com a anlise para o contexto brasileiro, feita por DonaldPierson, para quem aventureiros, degredados, jovens ambiciosos, no-bres empobrecidos, juzes e clero secular, judeus expulsos pela Inquisi-o, ciganos, prostitutas e rfs e robustos camponeses teriam sidomandados para o povoamento da Bahia. 28

    Esses elementos permitiram a Carreira concluir queas ilhas de Cabo Verde receberam, em maior ou menor nmero, elemen-tos de todas as classes sociais registradas por Pierson. E, como pioneirada colonizao lusada, pde fornecer ao Brasil alguns casais, brancos emestios, pardos e negros.29

    26 Mandjako uma etnia da Guin-Bissau e que concorreu com outras no povoamento de CaboVerde, em cujo contexto, atualmente, mandjako foi transformado no gentlico para definirtodos os imigrantes africanos continentais , independentemente de sua efetiva origem tnicae, por vezes, racial.

    27 Carreira, Cabo Verde, formao, pp. 281-2.28 Donald Pierson, Brancos e pretos na Bahia, So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1945.29 Carreira, Cabo Verde, formao, p. 283

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52154

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 155

    A concepo de classes por Carreira sui generis, marcadamentefuncionalista, tratando-se mais de grupos ou de categorias sociais.

    Essa anlise, que se assenta em classes, rapidamente se subsumeem categoriais raciais. Com efeito, Carreira comea por descrever opeso relativo de brancos e negros na estrutura social e econmica dasilhas e os papis sociais reservados a cada um desses atores. Da mesmaforma, emerge j a problemtica da mestiagem, com o surgimento depardos e mulatos. Diz ele: Formava-se desse modo uma sociedade mistae escravocrata.30

    Essa estrutura de classes, aproximando-se da situao da Bahia,descrita por Pierson, conhece, segundo Carreira, transformaes nocontexto das ilhas. Na verdade, nos finais do sculo XVIII, a estruturasocial seria essencialmente dual, composta por senhores, de um lado, elibertos e escravos, do outro.

    Nesse contexto, as dimenses classe e raa se cruzariam e se so-breporiam e, assim, diz o autor que A sociedade cabo-verdiana estavaestruturada em duas nicas classes: uma, a dos senhores (brancos, reinisou naturais, e alguns mulatos), e outra, a dos libertos (negros ou mula-tos) e escravos.31 Pode-se aqui inferir que, embora a categoria raavenha a ser um importante recurso metodolgico para a compreensoda conformao social cabo-verdiana e das eventuais desigualdadessociais, ela no constitui um fator nico, at porque, mostra o autor,mulatos j faziam parte da classe dos senhores. De igual modo, estudosrealizados, nomeadamente, no quadro da elaborao da histria de CaboVerde, evidenciam que, cedo, os brancos da terra passam a ser impor-tantes proprietrios, comerciantes e funcionrios.

    Nessa linha de ideias, como diria Jess de Souza para o casobrasileiro, o preconceito seria de marca,32 tornando-se importante a di-

    30 Carreira, Cabo Verde, formao, p. 285.31 Carreira, Cabo Verde, formao, p. 288.32

    O preconceito, no Brasil, seria de marca precisamente porque a cor da pele ou os traos fsicosso ndices de primitividade, passveis de serem tornados invisveis socialmente, desde que oindivduo de cor seja portador do habitus adequado ao trabalho produtivo, nas condies do mer-cado competitivo moderno. Um negro ou um mulato instrudo, disciplinado, inteligente e produti-vo, nesse contexto, tende a receber uma avaliao social positiva do meio, independentemente desua ascendncia ou de seus traos fsicos. Consultar a esse respeito, Jess de Souza (org.), Ainvisibilidade da desigualdade brasileira, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006, p. 89.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52155

  • 156 Afro-sia, 45 (2012), 143-171

    menso classe para o entendimento dos fundamentos da desigualdadesocial.

    De igual modo, Srgio Costa sublinha a necessidade de uma noutilizao generalizada da categoria raa na anlise sociolgica, umavez que o seu uso indiscriminado e construtivista tende a

    tomar a realidade social como sendo um reflexo unilateral da estruturasocioeconmica, no levando em conta a forma como os agentes sociaisdescodificam as estruturas e constroem os significados que orientamseus comportamentos e escolhas.33

    Assim, considera prudente e mais produtiva a utilizao, em de-terminados contextos, da categoria segregao.

    Voltando a Antnio Carreira, num outro estudo, ele introduz no-vas categorias de anlise (classes sociais), ainda que incorra na sobre-posio classes/raas. No seu estudo sobre aspectos sociais, secas e fo-mes no sculo XX, ao analisar a organizao da sociedade cabo-verdiana,afirma que, j a partir dos anos trinta do sculo passado, emergiu umanova burguesia, proveniente da emigrao, que viria substituir os bran-cos da terra. De igual modo, faz referncia a uma pequena burguesiaurbana, comercial e administrativa e a uma massa de trabalhadoresrurais e outros.

    Contudo, no resiste o autor a remeter para a questo racial omelhor entendimento dessas classes sociais, sem explicitar que tipos decorrelaes poderiam ser feitas, nem as inferncias passveis de seremproduzidas, a partir do cruzamento das duas variveis (classe e raa).Assim, diz expressamente que No sentido de se poder compreendermelhor a posio dessas camadas da sociedade insular, talvez no sejadescabido dar a conhecer a composio da populao segundo a cor,isto em relao aos poucos anos em que este atributo fez parte dos ins-trumentos de notao estatstica: 1910-1919, 1920-1929 e 1930-1936.34

    Elisa Andrade retoma a anlise da estrutura social cabo-verdiana,fazendo um exame longitudinal que vai da descoberta independn-

    33 Costa, As cores, p. 145.34 Carreira, Cabo Verde, aspectos sociais, p.143.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52156

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 157

    cia.35 Ancorando-se na tradio marxista, a autora analisa e concebeuma taxonomia que se aproxima da proposta por Carreira. Com efeito,para ela, a sociedade cabo-verdiana no final do perodo colonial estariaconstituda por trs classes: a burguesia local, dependente da metropo-litana, uma classe mdia, por ela denominada de pequena burguesia,constituda pelos funcionrios do Estado e do setor privado e, final-mente, a grande massa ou o povo, incluindo os assalariados urba-nos e os trabalhadores rurais.

    Esse tipo de estudo, que oscila entre o funcionalismo e o marxis-mo, com muitas dificuldades de categorizao e de base emprica, en-contra-se presente em vrios autores. Leila Hernandez e Michel Lessourdtambm incorrem na mesma linha de interpretao, ficando difcil aarticulao entre a categoria sociolgica classes sociais e a realidadeemprica que pretensamente pretendem explicar.36

    Em alguns momentos, tanto Carreira como Andrade, ensaiamquantificar o peso demogrfico relativo de cada uma dessas classes so-ciais, sem nunca explicitarem os fundamentos sociolgicos e estatsti-cos sobre os quais se assentaram os clculos.

    Maria Manuela Afonso afasta-se das anlises mais comuns, quetm centralidade na categoria classes sociais, tentando um exercciode reconceituao. Recusa a orientao marxista tradicional, porqueignora a origem poltica da mobilidade social, e acrescenta: consi-deramos as classes como categorias de pessoas que partilham interes-ses econmicos e polticos comuns e que surgem do seu acesso aospoderes e aos recursos pblicos e oportunidade de os controlar.37

    Assim, para a autora, a definio de classes sociais, no contextocabo-verdiano, deve ser construda a partir das relaes de poder e node produo. A aproximao de Pierre Bourdieu mostra-se evidente. o quantum de poder possudo e o posicionamento no campo poltico

    35 Andrade, As ilhas de Cabo Verde, pp. 235 e ss.36 Leila Hernandez, Os filhos da terra do sol: a formao do estado-nao em Cabo Verde, So

    Paulo: Summus, 2002; Michel Lessourd, Etat et socit aux les du Cap Vert, Paris: Karthala,1995.

    37 Maria Manuela Afonso, Educao e classes sociais em Cabo Verde, Praia: Spleen Edies,2002, p. 25.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52157

  • 158 Afro-sia, 45 (2012), 143-171

    que definem a posio de classe e que, por sua vez, permitem o acessoaos recursos econmicos. Existe, portanto, uma anterioridade do polti-co em relao ao econmico, sendo o primeiro a fonte da acumulaoprimitiva, para utilizar uma expresso marxista.

    O acesso ao poder e, por via desse, ao econmico, passa pelaeducao, importante via de mobilidade, tanto no perodo colonial quantono ps-colonial. A possibilidade de acesso administrao pblica co-lonial passa pela escolarizao e , tambm, por ela (posse de ttulosescolares) que, progressiva e solidamente, se tem acesso ao poder e aosrecursos pblicos no estado ps-colonial.

    No entanto, quando a autora procura fazer uma reconstruo hist-rica do processo de estruturao social em Cabo Verde, deixa de lado aproposio terica inicialmente feita para abraar as abordagens j tradi-cionais na historiografia local. O conceito de classes transmuta-se no deraa. Reconhece M. Afonso que fazer uma anlise evolutiva da estruturade classes, partindo dos resultados dos censos, mostrou-se impraticvel.38Afirma, porm, que, nos primeiros sculos de ocupao a diferenciaosocial existente era sobretudo racial,39 corroborando a concluso de Cor-reia e Silva, para quem, em sociedades crioulas, as fracturas tnicas ini-cialmente coincidiam com as de classe, fazendo do negro, escravo, e dobranco, escravocrata, daquele o gentio e deste o civilizado. Reconhe-cendo, embora, que no menos certo que a prpria dinmica histricadessas mesmas sociedades, ou seja, a luta entre as classes que as com-pem, faz baralhar estes dados (dinmica de crioulizao).40

    Como se pode ver, a perspectiva analtica da formao social cabo-verdiana, que tenha centralidade na categoria classes sociais, paraalm de ser pouco significativa e pouco substantiva, tende a perder asua capacidade explicativa, seja pela existncia de uma dissonncia entreas dimenses terica e emprica, seja porque, amide, se v subsumidana categoria raa.

    38 Afonso, Educao e classes, p. 82.39 Afonso, Educao e classes, p. 8340 Antnio Leo Correia e Silva, Histrias de um sahel insular, Praia: Spleen Edies, 1996.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52158

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 159

    Entre a mestiagem e a crioulizao: o tnico-raciale a especificidade culturalUma parte substancial dos estudos sobre Cabo Verde erige como cate-gorias analticas centrais a mestiagem e a crioulidade.

    Nessa perspectiva, a melhor forma de se compreender a forma-o social cabo-verdiana passa pelo entendimento do processo que ter,para uns, conduzido a uma hegemonia de uma populao e uma culturamestias e, para outros, emergncia de uma comunidade crioula.

    A noo de mestiagem aparece, em geral, oscilando entre a di-menso fenotpica e a categorizao sociolgica, ou ainda recobrindoas duas dimenses.

    Gabriel Mariano , sem dvida, o grande explicitador da defesade um Cabo Verde como sendo o mundo que o mulato criou. Sublinhaesse autor que, em Cabo Verde, tero desabrochado expresses novasde cultura, essencialmente mestias.

    Desde as suas origens mais remotas que no arquiplago puderam o ne-gro e o mulato apropriar-se de elementos da civilizao europeia e sen-ti-los como seus prprios, interiorizando-os e despojando-os das suasparticularidades contingentes ou meramente especificas do europeu. Comefeito, os elementos introduzidos com os portugueses, tanto materiaiscomo espirituais, puderam ser incorporados na paisagem moral do ar-quiplago, passando a ressoar com familiaridade, quer no comporta-mento do negro, que no mulato, influindo, por conseguinte, nas suasreaes mais ntimas. Da mesma forma que elementos levados pelosafro-negros foram assimilados pelo branco europeu, tornando-se irre-mediavelmente comuns aos dois grupos tnicos.41

    Antnio Carreira perfilha a posio de Gabriel Mariano, ao afir-mar a hegemonia de uma populao e de uma cultura mestias no con-texto cabo-verdiano. A fundamentao da tese repousa essencialmentena dimenso demogrfica. Com efeito, para Carreira, a reduzida pre-sena de mulheres brancas conduz a que os brancos reinis rapidamen-

    41 Gabriel Mariano, Cultura cabo-verdena: ensaios, Lisboa: Veja, 1991.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52159

  • 160 Afro-sia, 45 (2012), 143-171

    te se casem ou se amiguem com as negras, levando a miscigenaoaliada diminuio da entrada de novos homens negros.

    Essa tambm a concluso do estudo seroantropolgico realiza-do em Cabo Verde, sob a orientao de Almerindo Lessa e JacquesRuffi,42 para os quais o mestio ter acabado por dominar o espaofsico e intelectual do Arquiplago, tornando-o um dos mais extraor-dinrios fenmenos humanos de que reza a histria nacional, vale di-zer, portuguesa.

    Contrapondo-se mestiagem, encontramos um conjunto de es-tudos que analisa a sociedade cabo-verdiana na sua dimenso crioula.Alguns no vm a crioulidade como uma especificidade insular, masantes como um trao de formaes sociais que se constituem em espa-os ilhus, resultantes de um povoamento intertnico e intercultural.

    Nesse caso, a formao social cabo-verdiana se inscreveria nomesmo quadro classificatrio que S. Tom e Prncipe e das Antilhas.

    Essa a perspectiva de Antonio Correia e Silva, para quem acrioulidade, [] que simultaneamente cultural, social e histrica, deri-va da criao de uma sociedade a partir da integrao de europeus e afri-canos sobre a hegemonia poltica dos primeiros.43 Trata-se, por conse-guinte, de uma sociedade que emerge de um processo de hibridizaotnico, social, poltico e cultural, caldeado pela dimenso geogrfica. Porisso, cada sociedade crioula tem a sua especificidade que resulta de lu-tas, tenses, acontecimentos que nela tiveram e tm lugar.44

    De forma diversa entende Brito-Semedo a crioulidade.45 Ela vista como uma especificidade identitria, mas tambm social e espaci-al. Nesse sentido, a categoria crioula, tal como ela apropriada, nopode ser transposta, enquanto conceito, na busca de explicao paraoutras sociedades que, eventualmente, tenham tido percursos scio-his-tricos semelhantes. Mais ainda, encontra-se subjacente a essa catego-

    42 Almerindo Lessa & Jacque Ruffi, Seroantropologia das ilhas de Cabo Verde, Lisboa: Juntade Investigaes do Ultramar, 1960.

    43 Correia e Silva, Histrias de um sahel, p. 59.44 Correia e Silva, Histrias de um sahel, p. 60.45 Manuel Brito-Semedo, A construo da identidade nacional: anlise da imprensa entre 1877

    e 1975, Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2006.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52160

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 161

    ria uma dimenso de subjetividade humana que conduziria autonomizao identitria. Afirma o autor que

    [...] todo esse ambiente ter proporcionado ao mestio nascido dessecruzamento, ainda sem uma identidade tnica definida, o confronto en-tre as diferenas culturais dos seus progenitores a europeia do pai e aafricana da me e criar uma identidade cultural prpria, a culturacrioula, que se caracterizava, essencialmente, por um sentimento dediferena.46

    A apropriao dessa concepo de crioulidade e, mais ainda, deetnia, de uma forma problemtica, leva o autor a, numa perspectivanitidamente ideolgica, valorizar, de forma oposta, as dimenseseuropeia e africana que concorreram para o processo de miscigenao.Com efeito, diz ele que

    Ao lado de costumes e hbitos de importao europeia, encontram-sereminiscncias de formas sociais, costumes e processos negro-africa-nos; amalgamando-se com pratos de cozinha puramente portuguesa,existem formas de alimentao de origem ou influncia negro-africana;ao lado da famlia legitimamente constituda, detecta-se uma acentuadatendncia poligmica; a par da cano portuguesa ou ocidental, ondulampelo ar a morna, o batuque, a finaom. 47

    Como se pode ver, positividade dos aportes europeus contrape-se a negatividade dos valores africanos; no adjetivao fenotpica dacontribuio europeia ope-se a dimenso negra contribuio africana; hegemonia dos hbitos europeus tm-se as reminiscncias africanas; aocasamento monogmico europeu tem-se a poligamia africana.

    Dessa anlise por oposio, o autor chega, por negao, e de cer-ta forma paradoxal, sociedade crioula que, resultando embora do cal-deamento das duas contribuies, no se resume a nenhuma delas enem tampouco constitui a sua sntese. Seria, afirma o autor, com umacerta mistificao, um caso sui generis.

    46 Brito-Semedo, A construo da identidade, p. 69.47 Brito-Semedo, A construo da identidade, p. 70.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52161

  • 162 Afro-sia, 45 (2012), 143-171

    Manuel Ferreira foi dos primeiros autores a, de forma mais sus-tentada terica e empiricamente, defender a existncia de uma socieda-de cabo-verdiana crioula. Com efeito, faz recurso a uma vasta literaturaem cincias sociais, que estudam as sociedades que experimentaramrelaes intertnicas, especialmente o Brasil, as Antilhas etc., para bus-car corroborar a especificidade crioula de Cabo Verde que, para ele,seria desconhecida, porque no suficientemente estudada. As poucasanlises feitas acabaram por se revelar enviesadas, no sentido em quecontrariam as proposies do autor.48 No seu livro Aventura Crioula, oautor afirma que [] o problema da cor, o da origem racial, deixouliteralmente de ter significao no Arquiplago [].49 Com efeito, res-salta, constata-se uma transmutao da dimenso raa para a social.Nesse sentido, a referncia cor tem um significado sociolgico e nofenotpico.

    Ali a prpria designao gente branca e aspectos derivativos: casa degente branco, cheiro de gente branca se esvaziaram do seu contedotnico para, semanticamente, incorporarem um significado em ntimaconexo com as alteraes sofridas nas estruturas econmicas do Ar-quiplago que, desde cedo, permitiram uma permeabilizao social alheia cor do indivduo.50

    Contestando autores precedentes, que teriam sublinhado a fortepresena de elementos africanos no contexto social cabo-verdiano, comoAuguste Chevalier e Gilberto Freyre, Ferreira sublinha o carter ideol-gico das proposies desses autores. Em contrapartida, ressalta a singula-ridade cabo-verdiana, resultante da emergncia de uma cultura nova, fru-to do cruzamento de contribuies negras e europeias.

    Esse essencialismo crioulo, refere o autor, pode ser constatado[...] atravs da msica, da poesia, da dana, da culinria, do crioulo, daliteratura oral e do pessoalismo que as gentes imprimem a mil e umamanifestaes da vida quotidiana [...].51

    48 No queremos, contudo, afirmar que os posicionamentos desses autores fossem terica eempiricamente slidos.

    49 Manuel Ferreira, A aventura crioula, Lisboa: Pltano Editora, 1985, p. 45.50 Ferreira, A aventura, p. 325.51 Ferreira, A aventura, p. 326.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52162

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 163

    Africanidade, europeidade e cabo-verdianidade:dilemas identitriosDe forma sistemtica, a reivindicao da dimenso africana na forma-o social cabo-verdiana aparece com os intelectuais orgnicos da lutade libertao nacional. Tanto sob a forma de crtica aos intelectuaisdefensores do regionalismo crioulo, como numa perspectiva que se clas-sifica de emancipatria no quadro das lutas anticoloniais, percebe-senitidamente a busca do resgate dos valores culturais do arquiplago.Manuel Duarte refere explicitamente que

    Ns, os cabo-verdianos, estamos tnica e historicamente ligados tanto frica como Europa, acrescendo sobremaneira no sentido da africanida-de, a situao geogrfica, o condicionamento climatrico, a predominnciada corrente imigratria negra no povoamento das ilhas, originariamentedesertas, em suma, o fenmeno colonial e suas necessrias implicaes.52

    Essa assuno da africanidade, num contexto sociopoltico im-portante, configura, como ressalta Gabriel Fernandes, uma reafricani-zao dos espritos e o retorno s origens, ainda com alguma ambigui-dade que, no entanto, atinge maior radicalidade com Amlcar Cabral.Esse posicionamento de Manuel Duarte ressalta, pela positividade, adimenso africana da cultura cabo-verdiana.

    Jos Luis Hopffer Almada caracteriza a populao do arquiplago,do ponto de vista racial, como essencialmente mestia. Sem apresentardados demogrficos e/ou fontes histricas que atestem a afirmao, sus-tenta que Do ponto de vista racial, a comunidade se subdivide em mes-tios (a maioria, com predominncia mulata), pretos e brancos (estes,com uma relativamente fraca expresso numrica, quer histrica querpresentemente).53 No entanto, acrescenta que [...] em Santiago, os mes-tios e os brancos so minoritrios em relao aos pretos, ainda que, doponto de vista absoluto, a grande ilha seja aquela que alberga o maiornmero de mestios e brancos.54 Alguns problemas, como referido ante-

    52 Manuel Duarte, Cabo-verdianidade e africanidade, Praia: Spleen, 1999, p. 27.53 Jos Lus Hopffer Almada, Homogeneidade e heterogeneidade da cabo-verdianidade, Frag-

    mentos, n. 11/15 (2007), p. 28.54 Hopffer Almada, Homogeneidade e heterogeneidade, p. 28.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52163

  • 164 Afro-sia, 45 (2012), 143-171

    riormente, se colocam, em primeiro, as estatsticas demogrficas deixa-ram, ainda no perodo colonial, de classificar a populao segundo a raa.55Em segundo lugar, a taxonomia proposta no se encontra fundamentada,assim a diferenciao dos mestios em subgrupos, nomeadamente osmulatos, no alicerada nem do ponto de vista da categoria, nem de suabase emprica.

    Da mesma forma, sublinha que a miscigenao cultural trans-versal a populaes somaticamente diversas e a ilhas com distribuiopopulacional, em termos raciais tambm diferenciados.

    Tal situao, na perspectiva desse autor, resulta do fato de se tra-tar de uma cultura crioula que emerge num

    [...] arquiplago africano, macaronsico saheliano e atlntico, integra,por outro lado, o Novo Mundo, pois que o seu processo histrico resul-tou do surgimento das disporas negro-africanas e europeias, sendo oseu corolrio a nossa crioulidade. [Para arrematar que] o cabo-verdiano, em todas as ilhas, portador de uma idntica cultura crioula, miscigenadana sua substncia e formas de expresso.56

    Partilhando a mesma linha analtica, encontramos tambm DavidHopffer Almada, para quem no se devem negar as contribuies ne-gro-africanas e europeias na conformao sociocultural cabo-verdiana.Assim, sugere que

    [...] a identidade nacional e cultural cabo-verdiana se assenta menos emcada um dos elementos referidos (hibridizao, insularidade e ruralismotropical) e mais na frontalidade das relaes culturais tnicas, permitindoo surgimento de uma cultura no nova mas resultante dos vetores vriosque confluram ao arquiplago, preservando-se no como sobrevivnciasmas como reelaboraes de traos culturais originrios de grupos tnicosque outrora aportaram s ilhas.57

    Observa-se que, de forma sistemtica, a anlise e a caracteriza-o da formao social cabo-verdiana colocam grande parte dos auto-

    55 Carreira, Cabo Verde, formao.56 Hopffer-Almada, Homogeneidade e heterogeneidade, p. 29.57 D. Hopffer-Almada, Pela cultura e pela identidade. Em defesa da cabo-verdianidade, Praia:

    ICNL, 2006. p. 73.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52164

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 165

    res, antes analisados, em armadilhas tericas e identitrias importantes.Com efeito, a busca da singularidade de Cabo Verde, tanto do ponto devista tnico como do cultural, leva a uma aceitao/rejeio do alinha-mento a espaos tnicos e culturais outros. A aceitao dos aportes eu-ropeus, africanos ou atlnticos na estruturao das ilhas, perpassa todasessas anlises, ao mesmo tempo em que demonstra que esses contributosdeixaram de ser o que eram, para deles emergir uma formao socialnova. Da a rejeio.

    A sociedade crioula, mestia e atlntica seria, nessas anlises,transtnica e transracial. Por isso, as categorias raa e etnia aparecem,apenas, marginalmente sem qualquer pretenso explicativa.

    Reposicionamentos analticosTem-se assistido, ainda que minoritariamente, a um esforo terico ex-tremamente slido de um reposicionamento analtico sobre a estrutura-o da sociedade cabo-verdiana, desconstruindo perspectivas analticasat ento hegemnicas.

    Um dos primeiros contributos nesse domnio vem de Jos Carlosdos Anjos que, analisando os discursos e as construes identitriascabo-verdianas, os coloca num novo quadro epistemolgico.

    A identidade nacional vista como uma construo poltico-dis-cursiva e objeto de disputa nos diferentes campos que estruturam a for-mao social cabo-verdiana.

    Um segundo aspecto importante tem a ver com o fato de esteautor fazer emergir, da anlise dos diversos discursos sobre a identida-de, dimenses tnicas e raciais sublimadas, negadas, rejeitadas ou noassumidas.

    Com efeito, a mestiagem cultural reivindicada colocada, peloautor, na sua posio numa estrutura de dominao racial.58 Contestao que no tem sido questionado, isto [...] em que correlaes de fora(numa situao de dominao racial) surgiu o conceito de crioulo (en-

    58 Anjos, Representaes sobre a nao, p. 14.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52165

  • 166 Afro-sia, 45 (2012), 143-171

    quanto mistura), a que interesses servia a percepo da realidade socialpermeada por tal categoria.59

    A centralidade analtica posta, por um lado, nas relaes sociais,econmicas, polticas e de poder entre grupos diversos e, por outro, naforma como a categoria tnico-racial mestia resulta de um produto decorrelaes sociais de fora. Mais ainda, essa nova abordagem, salien-tando a hegemonia da identidade mestia no campo da luta por imposiode princpios identitrios, a transmutao de um conceito e de uma per-tena grupal (mestio) para um todo (nao), apagando as diferenas so-ciais e tnico-raciais e essencializando eventuais comunidades.

    Gabriel Fernandes vem, de uma forma ainda mais profunda, mo-dificar todo o quadro terico e analtico dos estudos sobre Cabo Verde,no que diz respeito interpretao sobre a constituio e a representa-o da nao. Trata-se, sem dvida alguma, de um trabalho que induz auma renovao epistemolgica nos estudos sobre Cabo Verde.60

    Erigindo, como outros o fizeram, a crioulidade/crioulizao comocategoria analtica de grande centralidade, Fernandes considera-a comopoltica e heuristicamente importante para a compreenso da saga iden-titria cabo-verdiana e como veculo emancipatrio.

    Mais do que analisar a formao da sociedade mestia, a pers-pectiva analtica introduzida conduz compreenso da crioulizaoem ao, da dimenso cosmopolita do discurso de crioulizao, dasestruturas de ao e dos processos de negociao entre os vrios atoresprotagonistas.

    Assim, prope como recurso metodolgico, por um lado, traba-lhar nos interstcios das relaes entre os discursos nacionais e as prti-cas coloniais e, por outro, os condicionamentos estruturais da socieda-de cabo-verdiana, que tero influenciado os seus caminhos.

    Operacionalizando essa dmarche metodolgica, a anlise centra-se nas seguintes dimenses: i) a forma como a crioulizao ter dificul-tado a percepo da alteridade e, dessa maneira, a fragiliza enquanto

    59 Anjos, Representaes sobre a nao, p.17.60 Gabriel Antnio M. Fernandes, Em busca da nao: notas para uma reinterpretao do

    Cabo Verde crioulo, Florianpolis/Praia: Editora da UFSC/IBNL, 2006.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52166

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 167

    marco identitrio e recurso mobilizador; ii) a educao como facilitadorada autoconscincia crioula; a diasporizao que ultrapassa a dimen-so territorial da nao; e iii) os constructos poltico-ideolgicos quetero dificultado a subjetivao nacionalista crioula e potencializado asua marcha transnacionalista.

    Nesse autor, a crioulidade ganha uma nova conceituao, per-mitindo, diferentemente de outras abordagens, surpreender novas de-terminantes da estruturao social e identitria de Cabo Verde, numquadro translocal.

    Mais recentemente, novas anlises tm surgido, procurando com-preender e surpreender os discursos e as prticas classificatrias hete-roimpostas, resultado das dinmicas relacionais e de confronto, coloca-do pela presena de uma forte e crescente comunidade imigrada, prove-niente dos pases da CEDEAO (Comunidade Econmica dos Estadosda frica Ocidental).

    Com efeito, parece que as dinmicas interculturais, resultantesda presena de africanos provenientes da frica Ocidental, fizeramemergir, no discurso e nas prticas sociais e culturais dos cabo-verdianos,comportamentos assentes na diferenciao tnica e racial, com recortesque, por vezes, indiciam certa esquizofrenia social.

    Eufmia Rocha, num estudo recente, sublinha a existncia de umaidentidade mandjaka imposta pelos cabo-verdianos em relao a essesimigrantes (provenientes dos pases da costa ocidental africana) queno , para muitos deles, uma identidade assumida.61

    Essa identidade imposta resultaria, segundo a autora, de uma su-posta superioridade dos cabo-verdianos, e que decorria de sua condiomestia. Nesse caso, a dimenso raa emerge como categoria importan-te, uma vez que permite captar a percepo da diferenciao e da impo-sio de marcas de estigma no heteroclassificado.

    Aqui, os marcadores identitrios se apropriam da categoria, ma-nipulando a dimenso tnica e negando a prpria condio racial (feno-

    61 Eufmia Rocha, Mandjakus so todos os africanos, todas as gentes que vm da frica: xeno-fobia e racismo em Cabo Verde (Dissertao de Mestrado, Universidade de Cabo Verde,2009), p. 13.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52167

  • 168 Afro-sia, 45 (2012), 143-171

    tpica) do sujeito produtor da classificao. Com efeito, a designaomandjako, porque de uma etnia se trata, tem como base de apropriaoa raa (negro-africana), negando a condio negra do cabo-verdiano,uma vez que esse se assume como mestio. Citando a autora antes refe-rida que, por sua vez, transcreve a fala de um dos imigrantes, o cabo-verdiano considera e classifica: mandjakus so todos os africanos, to-das as gentes pretas que vm da frica.62

    guisa de conclusoEm termos conclusivos, pode-se depreender da anlise dos estudos decincias sociais sobre Cabo Verde, sejam eles produzidos por pesquisa-dores locais, sejam por estudiosos estrangeiros, que tendem, na sua gran-de maioria, a no centrar a anlise da estrutura e da formao socialcabo-verdianas em torno de categorias socioantropolgicas clssicas,como o so as de classe, etnia e raa.

    Em regra geral, quando utilizadas, etnicidade e raa so, amide,transmutadas de uma categoria de conformao identitria, tendo a di-menso racial como elemento caracterizador exterior importante, paraa da mestiagem ou a da crioulidade.

    Com efeito, a mestiagem, quando aparece nesses estudos, uti-lizada na sua dimenso cultural e identitria e no fenotpica. Trata-se,parece-nos, de um recurso analtico, mas tambm poltico e sociopsico-lgico, para situar e estruturar a formao social que, se quer sui generis,no pode ser reduzida a nenhuma das partes que concorreram para suaconstituio, salvo quando a positividade existencial e ideolgica justi-fica a aproximao de uma das partes com a consequente subalternizaoda outra.

    Essas oscilaes perpassam os diversos perodos histricos anali-sados, tendo tambm formulaes diversas consoante os autores.

    Resulta tambm da leitura dos estudos analisados em que, na maiorparte dos casos, a centralidade das dimenses tnica e racial apareceessencialmente como categoria de anlise do processo da formao, e

    62 Rocha Manddjakus, 73.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52168

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 169

    no como categorias analticas da estruturao da formao social cabo-verdiana.

    verdade, contudo, que, mais recentemente, tem-se assistido auma inflexo paradigmtica nos estudos sobre a construo da nao,fugindo da perspectiva, at ento hegemnica, que a idealizava e a iden-tidade cultural como essencialistas, orgnicas e homogeneizadoras. Es-sas abordagens no veem a nao como uma comunidade imaginada,uma construo e uma resultante de lutas por imposio de vises dasociedade cabo-verdiana.

    Oscilando entre a predominncia europeia e a africana, na con-formao identitria, ou na emergncia de uma cultura, de um povo e deuma nao sui generis e ex-novo, essas anlises, que ainda continuamhegemnicas, comportam ou esto fortemente imbricadas em posicio-namentos polticos e ideolgicos bem concretos, que perpassam a his-tria colonial e ps-colonial.

    Contudo, comeam a emergir, como referido anteriormente, an-lises que buscam situar a questo da nao e da identidade num novomarco terico, tomando como referencial analtico, ora a categoria demestiagem, ora a de crioulidade.63

    Para o primeiro tipo de abordagem, a crioulizao, central nodiscurso de construo identitria e presente nos das elites letradas cabo-verdianas, revela ser uma categoria eminentemente ideolgica, que buscaanular os antagonismos raciais que a presena de negros e brancos com-porta, pretendendo apagar a prpria dimenso fenotpica da categoriamestio/mestiagem.

    Para o segundo, a crioulizao, no contexto cabo-verdiano, emergecomo uma categoria heuristicamente importante e politicamente eman-cipatria, ainda que, nessa ltima acepo, comporte importantes limi-tes mobilizao e enquanto marco identitrio.

    A reconfrontao entre cabo-verdianos e africanos continentais,na ltima dcada, em decorrncia dos fluxos migratrios dos pases da

    63 Jos Carlos dos Anjos, Intelectuais, literatura e poder em Cabo Verde: lutas de definio daidentidade nacional, Porto Alegre/Praia: Editora da UFRGS & INIPC, 2002; Fernandes, Embusca da nao.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52169

  • 170 Afro-sia, 45 (2012), 143-171

    costa ocidental para o arquiplago, recoloca em anlise a questo tnicae racial, j agora num novo patamar.

    As categorias etnia e raa sobrepem-se e tornam-se sinnimos,com o fito de homogeneizar os outros, reforando o eu. Como refe-re Rocha, a categoria tnica mandjaku transformada num marcadoridentitrio racial, tornando todos os negros africanos continentais numauniformidade tnica, no obstante a multiplicidade de pertenas tnicase, portanto, identitrias dos imigrantes.64

    J as anlises da formao social cabo-verdiana, que erigem acategoria de classes sociais como centralidade explicativa, utilizam esseconceito de uma forma que oscila de um funcionalismo e um instru-mentalismo conceptual a uma abordagem marxista, aplicada a pasesperifricos e dependentes, primeiro num contexto colonial e, mais tar-de, num de economias subdesenvolvidas perifricas.65

    Em ambos os casos, percebe-se uma grande dificuldade de ope-racionalizao do contexto e de sua aplicao realidade emprica ana-lisada, que resulta da prpria dissonncia entre o quadro terico no qualse inserem a categoria analtica e a realidade, ela mesma.

    Com efeito, a limitao explicativa, proposta por A. Carreira, resi-de na sobreposio por ele feita entre raa e classe ou estamento, semuma explicitao conceptual e sem uma base sociodemogrfica de supor-te. J para Elisa Andrade, os limites da abordagem proposta encontram-se na pouca flexibilidade terica e na dificuldade de sua transposiopara uma sociedade no industrial, colonial e perifrica.

    So esses limites aos modelos tericos clssicos, centrados noconceito de classes sociais, que levaram M. Afonso a introduzir umainflexo no conceito, atribuindo dimenso poltica um papel impor-tante na conformao dessa categoria.66 Se, na modelizao terica, aautora consegue, de fato, fazer um importante exerccio de reconceitu-alizao, que poderia permitir melhor entendimento da estrutura socialcabo-verdiana, quando procura utilizar tal conceito para uma anlise

    64 Rocha, Mandjakus.65 Carreira, Cabo Verde, formao; Andrade, As ilhas de Cabo Verde.66 Afonso, Educao e classes.

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52170

  • Afro-sia, 45 (2012), 143-171 171

    diacrnica da sua formao, acaba por cair nas armadilhas das aborda-gens clssicas, o que limitou a qualidade do trabalho desenvolvido.

    Independentemente das limitaes encontradas nos estudos e nasanlises sobre a formao social cabo-verdiana, constata-se um proces-so promissor emergente de novas perspectivas analticas, seja em ter-mos de sua capacidade explicativa, seja emancipatria. So, na sua es-sncia, abordagens que emergem internamente e que, numa relaodialtica interessante entre a dimenso emprica e o processo de cons-truo de interessantes modelos de anlise, buscam propor novos cami-nhos para o entendimento dessa realidade mutante e, como sublinhaFernandes, translocal e cosmopolita.

    Texto recebido em 29/04/2011 e aprovado em 8/9/2011

    ResumoO presente texto busca problematizar e compreender a forma como o contextosocial influencia o processo de produo de conhecimento e como, implcitaou explicitamente, tambm influencia as escolhas temticas e terico-conceptuais, conduzindo a simulaes e dissimulaes, presenas e ausncias.Centrando no caso cabo-verdiano e, especificamente, nos estudos de cinciassociais e humanas sobre Cabo Verde e, majoritariamente produzidos por cabo-verdianos, mostra-se existir, de forma quase unnime, uma ausncia de catego-rias analticas relevantes, tais como classes sociais , raa e etnia/etnicida-de, para o estudo explicao da formao social cabo-verdiana. Em contra-partida, categorias, como identidade, cultura, nao, cabo-verdianida-de tendem a ser regidas como conceitos explicativos de referncia.

    Palavras-chave: Cabo Verde - classes sociais - raa - etnicidade

    AbstractThis paper seeks to understand the influence of social context in the process ofknowledge production and how, implicitly or explicitly, it also shapes the choice ofthemes, theories and concepts, leading to simulations and dissimulations, presencesand absences. Taking Cape Verde as a case study, specifically studies of thisarchipelago conducted in the social sciences and humanities, in the most part byCapeverdean researchers, the present paper reveals an almost complete lack ofrelevant analytical categories such as social class race and ethnic/ethnicityin explaining the social formation of Cape Verde. In contrast, concepts such asidentity, culture, nation, and Capeverdean-ness tend play a central role.

    Keywords: Cape Verde - social class - race ethnicity

    claudio.pmd 12/7/2012, 10:52171