RACIONALIDADE DO RACISMO DA PUBLICIDADE … · um avançado controle sobre os processos de...
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RACIONALIDADE DO RACISMO DA PUBLICIDADE IMOBILIÁRIA EM
CURITIBA: UM CASO DE ONTOLOGIA NEGATIVA DO SER SOCIAL DO NEGRO
ANA CAROLINA SPREIZNER1
IVO PEREIRA DE QUEIROZ2
GILSON LEANDRO QUELUZ3
Resumo: A escrita deste texto tomou como eixo central este problema: Em que sentido a
racionalidade do racismo na publicidade imobiliária, em Curitiba, configura um caso de
ontologia negativa do ser social do negro? A introdução argumenta que, na publicidade
imobiliária, em Curitiba, via de regra, as pessoas negras são ignoradas. O artigo prossegue
com a noção de ontologia do ser social; propõe que a colonialidade impôs um padrão
ontológico negativo ao povo negro e racionalizou em favor da conversão da gente negra em
mercadoria e mão de obra escravizada. Contemporaneamente, a colonialidade permanece
como pano de fundo da cultura dominante no Brasil e do imaginário das elites, as quais são
refratárias aos processos de emancipação do negro. Demonstra-se, factualmente, uma
racionalização do desaparecimento do povo negro do Brasil. Sustenta-se que a publicidade
imobiliária, braço do capital, opera como agência multiplicadora daquela ontologia negativa,
ao invisibilizar a presença negra nas peças publicitárias. A alienação dos/as negro/as na
publicidade imobiliária comprova a contradição presente na sociedade brasileira, pois tais
trabalhadores/as constituem poderoso fator da mão-de-obra da indústria da construção civil,
porém, são hostilizados como suspeitos pelos agentes de segurança dos prédios, e,
inversamente, invisíveis nas propagandas das obras que fizeram.
Palavras-chave: Colonialidade. Ontologia negativa. Publicidade Imobiliária. Racismo. Ser
Social.
INTRODUção O filme Gataca
4, uma distopia orientada pelo “programa do esclarecimento”
5
(ADORNO; HORKHEIMER,1985:19), retrata a violenta opressão e discriminação de
pessoas, por causa da condição genética. A sociedade onde se desenvolve a trama alcançou
um avançado controle sobre os processos de manipulação genética, a ponto de engenheirar os
embriões humanos, evitando defeitos e aperfeiçoando condições físicas do corpo e os níveis
de inteligência. Em termos operacionais, uma partícula qualquer, recolhida do corpo de
1Universidade Tecnológica Federal do Paraná / Brasil. E-mail: [email protected].
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, DAESO, Brasil. E-mail: [email protected]
3Universidade Tecnológica Federal do Paraná, DAESO, Brasil. E-mail: [email protected]
4Gataca: a experiência genética. Roteiro e direção de Andrew Niccol. Interpretado por Ethan Hawke. Filme de
1997. 5“No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de
livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores.” (ADORNO; HORKHEIMER,1985:19).
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alguém, depois de examinada num scanner portátil, faria aparecer na tela do scanner a foto da
pessoa e a classificação de válido ou inválido. Inválido seria o indivíduo nascido pelos
processos naturais, sem a intervenção da engenharia genética.
Outra obra que retrata a situação classificatória, foi escrita por Foucault. No início do
livro As palavras e as coisas, o autor compartilha esta anedota:
Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba
todas as familiaridades do pensamento — do nosso: daquele que tem nossa idade e
nossa geografia —, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que
tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por
muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. Esse texto cita “uma
certa enciclopédia chinesa” onde será escrito que “os animais se dividem em: a)
pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e)
sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i)
que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino
de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe
parecem moscas”. No deslumbramento dessa taxinomia, o que de súbito atingimos,
o que, graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro
pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso.
(FOUCAULT, 2000, sp.).
Para Foucault, o texto borgiano desvela os processos de naturalização das diversas
taxionomias do ser e do pensamento, ao considerar os animais a partir de um tipo de critério
inédito aos parâmetros comumente estabelecidos. O conjunto de práticas sociais de toda
coletividade humana apoia-se na visão de mundo que configura o espírito do tempo em que
aquelas pessoas vivem. Cosmovisão, discursos, paradigmas, sistemas de pensamento,
superestrutura, dentre outros, são alguns dos nomes dados àquelas bases dos comportamentos
dos indivíduos e grupos. Em linhas gerais, os filósofos ocidentais desenvolveram conceitos e
teorizações sobre a realidade, postulando um sentido para o mundo e os humanos dentro dele.
Ontologia, é um dos nomes genéricos desta articulação e taxinomia da realidade a partir do
pensamento.
A classificação imaginária de animais que provocou a reflexão de Foucault,
evidencia que o intelecto humano sente a necessidade de ordenar os seres. Estabelecer uma
ordem para os seres é construir ontologias. E também antropologias, pois na ordem geral dos
seres, configurada a partir de critérios considerados válidos numa dada cultura, tempo e
ambiente, decide-se também o lugar dos seres humanos. Dependendo das circunstâncias
históricas, as pessoas são classificadas em lugares que lhes são favoráveis ou desfavoráveis...
Neste sentido, pode-se falar em ordem superior ou inferior de subjetivação, isto é, alguns
humanos passam a ser considerados válidos ou inválidos num determinado contexto social,
como vimos no filme Gataca.
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Em que sentido a racionalidade do racismo na publicidade imobiliária, em Curitiba,
configura um caso de ontologia negativa do ser social do negro? Esta pergunta consiste no
problema central deste texto, porque se suspeita que haveria uma silenciosa antropologia
social negativa do ser negro. Ou seja, as pessoas negras seriam classificadas numa ordem
inferior de subjetivação, pelo menos no marketing imobiliário, porque é observável a ausência
ou presença mínima de pessoas negras nos anúncios imobiliários em Curitiba.
Semelhantemente ao filme Gataca, talvez a publicidade imobiliária, curitibana, considere
inválidas as pessoas negras.
GREGOS E A ORDEM DAS COISAS NO MUNDO Na velha Grécia, por volta do séc. V a. C., iniciou-se um movimento intelectual a
que mais tarde denominaram filosofia, cuja primeiro interesse foi compreender e explicar o
sentido do universo. Durante quase um século, especularam sobre o princípio radical da
realidade. Conforme bem formulou Tales de Mileto, queriam saber “de que são feitas todas as
coisas? ” O tema suscitado por Tales foi de tal modo inquietante, para os vizinhos e outros
curiosos, que se espalhou pelas Grécia e demais colônias ao longo do mar Egeu e também do
Mediterrâneo, despertando interesses e levando a uma multiplicidade de respostas. Um tema
surpreendente e de difícil solução que lhes apareceu durante o trajeto foi o do movimento e da
mudança. Por estes princípios, tiveram que admitir que nem tudo é fixo, pois observamos as
modificações das coisas. Ora, como o intelecto pode compreender e explicar o que deixou de
ser o que era e se tornou outra coisa? Como conhecer o que ainda não é? Como saber algo
sobre aquilo que já não é mais?
As reflexões chegaram ao ponto em que o intelecto exigia uma permanência, algo
imutável, para conhecer. Mas os pensadores reconheciam que o movimento e a mudança
significavam uma ameaça à possibilidade de o pensamento conhecer a realidade. A solução
foi a conclusão de haverem duas dimensões, uma, a da permanência; e outra, a mudança ou do
movimento. Parmênides, um filósofo da cidade de Eléia, colônia grega na Itália, propôs a
existência de dois mundos, um inteligível, das permanências e, outro, das mudanças e do
movimento. Com isso, chegou-se também à noção de contingência, a realidade passageira.
O mundo da permanência consistiria naquele da realidade, do ser de verdade,
idêntico a si mesmo, que não se altera, portanto, pode ser conhecido e sobre o qual se pode
almejar a possibilidade da verdade. Este mundo da realidade imóvel, imutável, eterna, infinita,
una, corresponde ao plano das ideias, dos elementos permanentes no nível intelectual.
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O mundo do movimento e da mudança, o transitório, das aparências, finito, temporal,
móvel, mutável, efêmero, passageiro, enfim, não é necessário, afinal, está condenado ao
desaparecimento, refere-se às coisas materiais, que se modificam, se estragam, deixam de ser
o que são...
Segundo a visão proposta por Parmênides e, mais tarde, adotada por Platão, o
conhecimento da verdade é possível apenas no plano do pensamento, considerando-se que no
âmbito da realidade material tem-se a mudança e o movimento a impedir o conhecimento das
coisas. Tem-se aqui, a noção de necessidade. Aristóteles utilizou as categorias essência e
acidente para se referir a necessidade e contingência, respectivamente. É importante ressaltar
que, na perspectiva consagrada pelos gregos, o ser verdadeiro é aquele da essência, por ser o
que perdura, daí a conclusão de que produziram uma ontologia essencialista, segundo a qual o
verdadeiro ser é a ideia e não a coisa material, física.
ONTOLOGIA NEGATIVA DO SER SOCIAL DO NEGRO Na era burguesa, no alvorecer das condições históricas que propiciaram o surgimento
da sociedade capitalista, que culminaram na modernidade, edificou-se outra concepção
ontológica. Tal concepção enfatizou o empenho em desvencilhar a nova classe social –
burguesia – das amarras e controle exercidos pelas autoridades eclesiásticas. Erigiram, então,
uma sociedade onde os homens posicionavam-se como o principal critério de validade do
conhecimento e do poder, o centro de referência para a ação no mundo. Este espírito
antropocêntrico levou os sujeitos a estabelecer como meta a busca da felicidade neste mundo
material. Valorizou-se o imaginário do ter, do poder e do prazer neste mundo terreno. Ao
pensar a si mesmo, os humanos identificaram uma natureza humana. Neste processo,
conhecer e dominar a natureza tornou-se uma contraditória meta do conhecimento, envolta em
um jogo de múltiplos interesses, políticos, religiosos, econômicos e epistemológicos.
A natureza humana do burguês é a de ser proprietário privado. Segundo o filósofo
Thomas Hobbes, este proprietário privado é dominador, egoísta, mau, violento, ardiloso,
sanguinário, voltado à competição, tendo em vista a obtenção de lucro (HOBBES, 1999). Por
ser desconfiado, mantém-se atento à própria segurança e, vaidoso, busca a glória, cioso da
própria reputação. O contexto social anterior à centralização do poder político, onde cada qual
obedece à própria natureza para se preservar caracteriza a violência estrutural. No dizer de
Hobbes, o que havia seria “uma Guerra que é de todos os homens contra todos os homens.”
(HOBBES, 1999: 108-9).
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Instigados pelo ideário de acumular riquezas, os burgueses lançaram-se a todo tipo
de aventuras, das quais o projeto das grandes navegações foi o mais proeminente. Vencidas as
dificuldades tecno-científicas, desembarcaram no continente americano e iniciaram a longa
aventura colonial. A entrada dos colonizadores europeus, particularmente os portugueses em
terras brasileiras, foi um evento extremamente violento. Como nuvens de gafanhotos
devastando lavouras ou correição de formigas saúvas, a cortar e transportar folhas das
plantações para os formigueiros, os colonizadores exerceram um poderoso ataque, impondo a
própria cultura e sistemas políticos, à revelia dos valores e das cosmovisões dos povos –
nativos e africanos –, a quem subordinaram pela força das armas e das operações ideológicas,
sobretudo pela mão dos missionários católicos.
Como a colonização produziu a ontologia negativa do ser social do negro?
O intento de explorar a terra e os recursos dela, para enviar riquezas à metrópole foi
solucionado por meio da exploração da mão-de-obra de africanos escravizados. A depender
das demandas locais, os colonos encomendavam africanos com domínio de determinados
processos técnicos e tecnológicos. Deste modo, agricultores, pastores, artesãos do ferro e da
madeira, mineradores, dente outros, foram trazidos para solucionar problemas de agronomia,
metalurgia, carpintaria, marcenaria, construção civil e muitos outros. (CUNHA JR, 2010).
À medida que a presença de negros africanos se tornou marcante na paisagem social
da colônia e o regime da escravidão precisou de reforço técnico e ideológico para a
manutenção do controle dos grupos escravizados – em permanente mobilização para os
boicotes e as fugas –, os colonos foram fortalecendo os investimentos superestruturais, isto é,
endureceram as medidas de controle da gente negra escravizada e a formulação do imaginário
racista. Os colonos operavam como se os negros estivessem a meio caminho na linha
evolutiva entre o macaco e o homem (Fanon, 1980).
Os africanos não sabiam que eram negros, pois isto foi uma invenção europeia. A
construção do negro foi um processo crescente, onde as marcas negativas ganhavam novos
detalhamentos. Ignorante, feio, animal, mal-cheiroso, malvado, cabelo ruim, pecador, raça
ruim, raça de Cam, feiticeiro; imoral, mentiroso, ladrão, tarado, puta... Devido às tipologias
artificialmente fabricadas, buscava-se justificar a transformação da gente negra em
mercadoria, que se comprava e vendia como investimento, bem como a exploração do
trabalho daquela gente, e também o uso e abuso dos corpos negros para atividades sexuais.
Max Weber desenvolveu as teorias da racionalidade, pelas quais demonstrou que as
pessoas procuram sempre justificar as próprias ações. Ao fazer isso, realizam operações de
cálculos, isto é, racionalizam. Noutros termos, estabelecem relações entre meios e fins. O
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racismo é um processo de racionalizações, por meio das quais o explorador empenha-se em
justificar, perante a própria consciência, as ações criminosas que pratica. Seguindo a
perspectiva grega, pode-se inferir que o esquema ontológico desenvolvido durante o
escravismo brasileiro converteu a classe social dos senhores em seres necessários ou
essenciais e, os negros africanos, passaram a ser vistos como contingentes ou acidentais.
Segundo a perspectiva marxiana, a existência humana será mantida e renovada se
houver uma ação coletiva de reprodução dela (Marx; Engels, 1996) . E isto se dá por meio do
trabalho. É o trabalho que possibilita aos humanos a manutenção e reprodução da própria
vida. Para tanto, este deverá ser um trabalho socialmente articulado, posto que a vida em
sociedade leva à complementaridade entre os atores sociais, portanto, o resultado do trabalho
de um sujeito atende às demandas de outro e vice-versa. Assim, o ser social emerge como
resultado da ação produtiva dos indivíduos. Ora, para os negros, na situação colonial, este
princípio ontológico enunciado por Marx, foi absolutamente distorcido, pois a principal
finalidade da presença deles aqui foi o trabalho, porém, um trabalho escravizado, portanto,
alienado ao extremo. Trabalhava-se para garantir a reprodução, enriquecimento e
transcendência do grupo dominante, enquanto para si, o negro tinha como garantias, o
trabalho inclemente, as torturas, o adoecimento e a morte...
Se a natureza do europeu colonizador era a do proprietário privado, ao negro
reservava-se a alienação absoluta, pois, privado da liberdade, não era dono sequer do próprio
corpo, nem da própria vontade. Portanto, o ser individual e social do negro é o nada, o
ninguém. Darcy Ribeiro falava em ninguendade, a faculdade de ser o ninguém. (Ribeiro,
1996). Esta foi a ontologia negativa do ser social do negro, elaborada durante o longo período
da escravidão criminosa no Brasil.
Quando a sociedade brasileira emergiu dos subterrâneos da dominação portuguesa e,
mais tarde, as oligarquias nacionais desfizeram-se da monarquia e instauraram o sistema
republicano, também a escravidão criminosa deixou de ser uma instituição vigente. No
entanto, restou a visão de mundo, o espírito do tempo, a nutrir as mentes e os corações, a
encharcar as instituições e a fazer parte dos sistemas superestruturais da república emergente.
A superestrutura daquele momento, alimentada pela cosmovisão, pelos discursos, paradigmas
e sistemas de pensamento, ou seja, a ontologia que cimentava a nova conjuntura trazia, no seu
interior, intocada, a imagem dos indivíduos negros como seres negativos. Lembrando o filme
Gataca, inválidos.
Em pleno século XXI, seria este o imaginário, a ontologia, que alimenta a produção
da publicidade imobiliária em Curitiba?
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OS TRAÇOS BRANCOS DA PUBLICIDADE BRASILEIRA Desde os seus primórdios a publicidade e a propaganda foram elitizadas, não
possuindo em seu cerne preocupações relevantes com questões sociais ou com a
representatividade popular. O que se intenta, na realidade tradicional da disciplina, é
orquestrar um discurso manipulador que faz uso de regularidades comportamentais para
induzir ao engajamento/conversão conforme o objetivo da ação publicitária. Nesse sentido,
para adaptar-se socialmente ao mundo contemporâneo é preciso consumir, e alguns
pensadores refletem sobre questão, como os americanos Michael Schudson6, Roland
Marchand7 e Stuart Ewen
8.
No Brasil, como expõe Oliveira (1997), o início da área se deu em 10 de setembro de
1808, com o lançamento do primeiro jornal do país: A Gazeta do Rio de Janeiro9. Suas pautas
editoriais giravam em torno de acontecimentos europeus e de notícias administrativas
relacionadas à gestão monárquica. A propaganda10
estava presente, mas com um viés
meramente informativo. A respeito desse tema, Marcondes (2001:2) relata que a propaganda,
então, “nasceu prestando serviços, na forma que poderíamos chamar de primórdios dos
classificados modernos”.
A [falsa] abolição da escravatura se deu em 188811
. O período onde as pessoas
negras mais estiveram presentes nos anúncios foi exatamente esse - do início do jornal ao fim
da escravidão. Schwarcz (2001) expõe em seu livro Retrato em branco e negro: jornais,
escravos e cidadania em São Paulo ao final do século XX que, em cada edição, um periódico
da época costumava apresentar cerca de 20 anúncios e, dentre eles, pelo menos 6 diziam
respeito à algum/a negro/a. As temáticas eram diversas, versando entre compras de escravos,
vendas, aluguéis, fugas e outras. Muitos desses relatos e propagandas veiculados nos jornais
não apresentavam nomes, somente ‘negro’. Este aspecto discursivo serviu para a construção
do imaginário negativo perante à negritude, e que era extremamente reforçado pela proteção
da mídia jornalística às elites brancas, senhores e senhoras de terras, sempre retratados como
6Livro: Advertising, the Uneasy Persuasion: Its Dubious Impact on American Society.
7Livro: Advertising the American Dream.
8Livro: Captains of Consciousness.
9A já aposentada professora de Teoria e Metodologia da História da USP, Maria Beatriz Marques Nizza da Silva,
publicou alguns livros envolvendo o tema Brasil Colônia e, entre eles, um específico sobre este jornal: A Gazeta
do Rio de Janeiro (1808-1922): cultura e sociedade. 10
Para melhor compreensão do emprego das terminologias ‘publicidade’ e ‘propaganda’, consulte a dissertação
de Diana dos Santos Ramos entitulada “Memória e publicidade no Brasil na década de 1930”. 11
Um livro que retrata muitos aspectos desse momento histórico é o Caminhos da Liberdade, organizado por
Martha Abreu e Matheus Serva Pereira.
8
vítimas, enquanto, na realidade, negros morriam ou lutando pela própria liberdade ou por
violências diversas praticadas pelos cidadãos de pele clara.
Sobre os anúncios de escravos, Schwarcz (2001) compartilha que: “(...) obedeciam,
com certa variação, a uma mesma ordem interna. O nome do anunciante aparecia no início, ou
destacado ao final do anúncio; depois vinham informações como o nome do cativo, as
circunstâncias de sua fuga e suas características “físicas e morais”. (SCHWARCZ, 2001:
146).
Observe como eram escritos:
Gratifica-se com a quantia acima a quem prender e entregar abaixo asignado, em
Campinas, os escravos seguintes. Ladisláu, 24 annos, preto, estatura regular, bons
dentes, prosa e muito risonho, apto para o serviço de roça e cosinha (...). João J. de
Araujo Vianna - Província de São Paulo, 22/05/1878. (in: MARTINS, 2009: 47)
Com os excertos fica evidente o cunho dos anúncios onde os negros eram representados. Para
Schwarcz (2001), tais textos tratam da “dimensão simbólica” do negro, um depósito de
“representações sociais”. Dimensão que ainda continua presente na criminalização da
juventude negra destacada nas mídias tradicionais contemporâneas.
É importante ressaltar que os anúncios destinados às negras eram diferenciados e em menor
escala. “As mulheres eram em geral descritas a partir de sua aparência e de seu caráter meigo
e serviçal, indicando por vezes uma relação mais íntima entre o senhor e sua cativa”
(MARTINS, 2009: 48). Elas valiam menos que os escravos de sexo masculino.
Em sua dissertação de mestrado, Carlos Augusto de Miranda e Martins (2009) analisa os
anúncios publicitários veiculados entre os anos de 1985 e 2005. Para um total de 1.158
anúncios analisados, apenas 86 possuíam alguma representatividade negra. Assim, na época
onde a escravidão era legalizada juridicamente o negro estava em 30% dos anúncios, nos
tempos modernos somente em 7% deles, segundo a amostra de Martins (2009).
Esse panorama torna-se incoerente quando olhamos pelo prisma demográfico. De acordo com
a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE em 2014, mais
de 53% da população não é branca. Ou seja, mais da metade dos brasileiros são negros ou
pardos. Então, como podemos viver em uma bolha midiática com representações quase
exclusivas de brancos? Uma das causas, consideramos, é reflexo do grupo dos 10% dos
brasileiros mais pobres do Brasil abarcar 76% de negros (IBGE, 2015).
O problema também está no mercado de trabalho, onde o PNAD de 2013 deixou descoberto o
fato de que apenas 8.75% da população negra está empregada formalmente. Nesse sentido, o/a
negro/a ainda ocupa cargos com renda salarial baixa, de maneira informal e, muitas vezes, que
envolve muito esforço físico, como em canteiro de obra e faxina. Nas agências de publicidade
a realidade também é branca. Em um levantamento feito por Danila Furtado, André Brazoli e
Teresa Rocha (2005), é compartilhado que os negros ocupam apenas 0,74% dos cargos de alta
direção nas agências brasileiras; já no que se refere às posições executivas, dos 404 cargos
somente 3 são exercidos por negros. No que diz respeito a todos os setores e funções, o
número chega a 35 negros a cada 1000 funcionários. Esse contexto torna não só a
representatividade final falha, mas o próprio início, ali na criação, no conteúdo, onde não há
voz das pessoas negras.
9
Assim sendo, com os aspectos expostos até aqui acerca da publicidade, fica incontestável que
seus traços históricos são hegemonicamente brancos. Mais do que isso, estes influenciam
drasticamente de forma negativa na dimensão axiológica da pessoa negra. Nas palavras de
Gaspar (2010:140), a forma que essa disciplina vem sendo apresentada para a sociedade
“provoca inúmeros prejuízos à população descendente de escravos africanos, que tem
consequência no mercado de trabalho, na ausência de sua autoestima e principalmente na
desconstrução de seu capital político-financeiro”.
No próximo tópico a discussão será direcionada para o racismo presente na publicidade
imobiliária, mais especificamente dos anúncios presentes em dois jornais de grande circulação
na capital do estado do Paraná: Curitiba.
NEGAÇÃO DA PESSOA NEGRA NO MERCADO IMOBILIÁRIO Na hora de escolher algum imóvel, seja para compra ou aluguel, um dos fatores mais
relevantes que indica o valor daquele empreendimento é a localização12
. Será que isso pode
estar relacionado ao apagamento do homem e da mulher negra nas campanhas do ramo?
A ocupação de espaços urbanos, desde a falsa abolição da escravatura, é muito bem
segmentada. Os centros urbanos, onde a estrutura já é mais desenvolvida, com transportes
coletivos de fácil acesso, espaços culturais em grande quantidade etc., fica disponível e, mais
do que isso, acessível, em maioria, para as famílias brancas de classe média. As zonas
periféricas são reservadas às pessoas de baixa renda, que muitas vezes não têm condições de
pagar por um imóvel, então constroem o seu próprio, de maneira criativa, e ocupam lugares
com terrenos irregulares e perigosos, como é o caso das favelas. É perfeitamente uma gestão
racista do espaço urbano, uma vez que, de acordo com uma pesquisa coordenada pelos autores
do livro Um País Chamado Favela: a maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira,
Renato Meirelles e Celso Athayde (2014), 72% dos moradores de favelas são negros.
O fato de não encontrarmos representatividade negra nas campanhas publicitárias do setor
imobiliário tem origem nesse panorama de exclusão da população negra dos espaços urbanos.
Trata-se de um fato que se coaduna perfeitamente com a noção de ontologia negativa do ser
social do negro. A indústria da construção civil brasileira é um dos setores que mais emprega
gente negra. Porém, as obras comercializadas em áreas privilegiadas, são ocupadas
majoritariamente por gente branca, conforme se nota nas peças publicitárias. Ao analisar
entrevistas com diversos publicitários brasileiros renomados, Martins (2015:15) descobriu que
“os entrevistados estabeleciam uma associação direta entre negritude e pobreza, e, com isso,
fundamentavam a ideia de que o negro estaria fora do mercado consumidor (e dos anúncios)
por ser pobre”.
Para observar o apagamento da pessoa negra, especificamente nos anúncios imobiliários de
Curitiba, analisamos as peças publicitárias presentes nos cadernos de imóveis, que possui
tiragem aos domingos, dos jornais Gazeta do Povo e Tribuna do Paraná, devido à sua grande
circulação. O recorte estabelecido para este estudo compreende o período entre 20 de março e
22 de maio de 2016.
Dentre o levantamento foram encontradas 12 propagandas com imagens contendo pessoas. 8
delas são famílias brancas, com núcleos familiares diferentes. Ao todo, são: 4 estão
representando uma família branca com pai, mãe e filhos, 1 apresenta um pai e um filho, 1
apresenta uma mãe e um filho, 1 apresenta um pai e uma filha, 1 representa um casal
12
Alguns trabalhos chegaram a essa conclusão, como os realizados por Leitão (1998) em Porto Alegre, Lima,
Souza e Silveira (2008) em Maceió e Silva, Silva e Araújo (2013) no Rio de Janeiro.
10
heterossexual, 2 contém uma mão branca com uma casa na sua palma, 1 são duas mãos
brancas representando a compra e venda do imóvel e 1 tem um negro e uma negra, que não
são um casal. Assim sendo, temos os seguintes números:
Quadro 1: Porcentagem Racial dos Anúncios Imobiliários Analisados
Elementos Porcentagem
Família Branca (independente do núcleo) 66,6%
Família Negra (independente do núcleo) 0%
Pessoas Brancas (ou parte delas - como as mãos) 91,7%*
Pessoas Negras (ou parte delas - como as mãos) 8,3%
Fonte: Elaborado pelos autores com base em dados da pesquisa. (2016)
Ter somente 1 anúncio contendo pessoas negras poderia ser considerado uma vitória das
reivindicações dos movimentos sociais que desejam a inserção da negritude nos espaços,
mesmo que ainda em escassa escala, o objetivo é aumentar esse número com o tempo.
Entretanto, temos que atentar para a representação desses negros. A peça em questão é esta:
Figura 1: Anúncio Imobiliário com Pessoas Negras
Fonte: Caderno enckontra.com imóveis, Gazeta do Povo, 21 e 22 de maio de 2016.
Diferentemente da maioria das propagandas que tratam de compra e venda, esta diz respeito à
locação de imóveis. Além disso, os dois estão separados, situação a qual exerce a evidenciação
de que o homem e a mulher não são um casal, uma vez que todas as demais formações
contendo pessoas brancas posicionam os sujeitos próximos, felizes, geralmente abraçados.
Isso produz a ideia de que o anúncio elenca essas pessoas como trabalhadores e não
proprietários. Não são pessoas que vivenciam a bonança, o tempo. Todavia, o fator mais
11
crítico da arte do anúncio é o embranquecimento dos personagens. A luz aplicada foi tamanha
que diminui a melanina dos sujeitos, deixando-os mais para ‘mestiços’. No caso, mais
aceitáveis para os leitores.
Podemos concluir, a partir desta breve análise, que o processo de construção e reprodução da
ontologia negativa do ser social do negro parece ter continuidade no âmbito publicitário,
colaborando para induzir as pessoas negras ao sentimento de que é ruim ser negro no Brasil e,
para os segmentos sociais ontologicamente “válidos”, de que é ruim ter negros morando perto
das belas casas e suntuosos prédios onde residem...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Disponível
em: http://tv.up.pt/uploads/attachment/file/318/foucault-michel-as-palavras-e-as-coisas-
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HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento: fragmentos
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2014. p. 5. Disponível em:
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