Racionalização e Liberdade em Weber

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ENFOQUES revista eletrnica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ

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Enfoques Revista Eletrnica dos alunos e do Programa de Ps- Graduao Antropologia em Sociologia

PPGSA/IFCS/UFRJ

ENFOQUES revista eletrnica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro Reitor: Alosio Teixeira Vice-Reitora: Sylvia da Silveira Mello Vargas CFCH/IFCS Diretor: Jessie Jane Vieira de Sousa Vice-Diretor: Glaucia Kruse Villas Bas PPGSA Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia Coordenadora: Emerson Giumbelli Vice-Coordenador: Elsje Maria Lagrou

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ENFOQUES ONLINE Editores: Ana Paula da Silva Andra Lcia da Silva de Paiva Renata de S Gonalves Rodrigo Rosistolato Ronald Clay dos Santos Ericeira

ENFOQUES revista eletrnica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Conselho Editorial Prof. Dr. Amir Geiger (UERJ) Prof. Dr. Andr Botelho (UFRJ) Prof Dr. Bila Sorj (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. Carlos Antonio da Costa Ribeito (UERJ) Prof Dr. Elisa Pereira Reis (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. Fernando Ponte de Sousa (UFSC) Prof. Dr. Frederico Guilherme Neiburg (Museu Nacional/UFRJ) Prof Dr. Giralda Seyferth (Museu Nacional/UFRJ) Prof Dr. Glucia Villas Boas (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. Jos Maurcio Domingues (IUPERJ/UCAM) Prof. Dr. Jos Reginaldo Gonalves (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. Jos Ricardo Pereira Ramalho (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof Dr. Laura Moutinho (PUC-RIO) Prof Dr. Laura Segatto (ICS/DAN/UNB) Prof. Dr. Leopoldo Waizbort (USP) Prof. Dr. Luiz Antonio Machado da Silva (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof Dr. Lygia Sigaud (Museu Nacional) Prof. Dr. Marclio Dias dos Santos (CFH/GCSO/UFSC) Prof. Dr. Marco Aurlio Santana (UNI-RIO) Prof.Dr. Maria Lgia de Oliveira Barbosa (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. Michel Misse (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof Dr. Mirian Goldenberg (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof Dr. Patrcia Birman (UERJ) Prof. Dr. Paulo Tumolo (UFSC) Prof Dr. Patrcia de Farias (Universidade Cndido Mendes) Prof. Dr. Paulo Henrique Freire Vieira (CFH/PPGSP/UFSC) Prof. Dr. Peter Fry (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. Renan Springer de Freitas (UFMG) Prof. Dr. Roque de Barros Laraia (ICS/DAN/UNB) Prof. Dr. Ruben George Oliven (UFRGS) Prof Dr. Vera Teles (USP)

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Comisso de Publicao Andr Filipe dos Santos Denise Pereira Eliska Altmann Fernando Antonio da Costa Vieira Gabriela Honorato Maria Izabel dos Santos Garcia Mariane C. Koslinski Natalia Gaspar Roberta Guimares

Enfoques On-Line revista Eletrnica dos alunos do Programa de Ps-Graduao da Universidade Federal do Rio de Janeiro uma publicao coordenada e editada pelos alunos do Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

ENFOQUES revista eletrnica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Organizao: Ana Paula da Silva Andra Lcia da Silva de Paiva Renata de S Gonalves Rodrigo Rosistolato Ronald Clay dos Santos Ericeira Reviso de textos: Malu Resende

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(Catalogao na fonte pela Biblioteca do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro) ____________________ ENFOQUES on-line: Revista Eletrnica dos alunos do Programa de Ps-Graduao em Sociologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia. - V.6, n.1 (maio, 2007). - Rio de Janeiro: PPGSA, 2007. Irregular. ISSN 1678-1813 1. Sociologia. 2. Antropologia. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Filosofia e Cincias Sociais. Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia.

Endereo para correspondncia e assinatura: Mailling address subscriptions

Revista dos alunos do PPGSA Comisso Editorial Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia Largo de So Francisco, n 1, sala 420. Centro Rio de Janeiro RJ 20051-070 e-mail: [email protected]

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SUMRIO

APRESENTAO A MODERNIDADE EM MARX E WEBER RACIONALIZAO E LIBERDADE NA PERSPECTIVA DE MAX WEBER DOMINAO, RESISTNCIA E RECIPROCIDADE NO MUNDO DO TRABALHO UM ESTUDO DE CASO SOBRE FORMAS DE ORGANIZAO DO TRABALHO NUM ASSENTAMENTO RURAL DESENVOLVIMENTO LOCAL E OS SEUS DESAFIOS NO INTERIOR DO SISTEMA DO CAPITAL

06 08 28 49 63 88

PEL: ANLISE DA TRAJETRIA DO ATLETA DO SCULO NA 99 PROPAGANDA/MARKETING

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APRESENTAO

Esta edio da Revista Enfoques on line apresenta seis artigos inseridos nos debates contemporneos sobre teoria sociolgica clssica, trabalho, reforma agrria, desenvolvimento sustentvel e futebol. A pluralidade de temas tem sido uma das principais caractersticas desta publicao. Com exceo do nmero anterior, dedicado exclusivamente s relaes de trabalho, todas as demais publicaram um mosaico de artigos associados a temas clssicos e contemporneos nas cincias sociais brasileiras, e para alm dela. Neste sexto nmero, Demian Gonalves compara as concepes tericas de Max Weber e Karl Marx a respeito da modernidade no mundo ocidental. Expe pontos de convergncia e divergncia presentes na teoria dos autores e apresenta os desdobramentos de seus modelos de anlise. Indica a atualidade do pensamento de Weber e classifica o pluralismo causal, o politesmo dos valores e a noo de autonomia das esferas sociais como elementos indispensveis s anlises sociolgicas contemporneas. Edilene Carvalho analisa os conceitos de racionalizao e liberdade na obra de Max Weber. Tambm salienta a atualidade do pensamento de autor e faz uma exegese das certezas e controvrsias presentes entre seus intrpretes. Seu artigo apresenta uma contribuio original leitura da teoria weberiana porque indica pontos pouco explorados sobre o significado de sua obra para as cincias sociais. Paulo Keller operacionaliza o conceito de dominao em Weber. Discute as

mltiplas resistncias criadas pelos dominados e os processos de reciprocidade existentes em relaes de dominao. Com o objetivo de analisar a construo da legitimidade do sistema de dominao nas fbricas com vila operria, o autor reflete sobre a religio no espao fabril e discute a intrincada rede de relaes de cooperao e conflito travadas entre patro e operrio. Diego Soares elege a poltica de reforma agrria implementada no sul do Brasil como objeto de anlise antropolgica. O autor compara as representaes sobre a viabilidade econmica dos assentamentos rurais com a noo de trabalho familiar, entendida como ncleo organizador da cooperativa estudada. Seu argumento sustenta o rendimento analtico do enfoque simblico e da complexidade

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hermenutica no estudo de um assentamento rural para refletir sobre modelos de cooperativismo. Gerusa de Ftima Tom discute as dinmicas entre desenvolvimento humanosocial e desenvolvimento econmico. Aponta que os empreendimentos solidrios ou autogestionrios tm sido apresentados como soluo econmica para a misria de comunidades inteiras e at mesmo como alternativa ao modelo capitalista. Discute o seu carter ideolgico e contesta a viabilidade prtica desses empreendimentos. Ana Paula da Silva, a partir da anlise de propagandas que veiculam a imagem de Pel, analisa o carter de exceo desta imagem quando comparada presena de outros negros em comerciais. A autora analisa o carter simblico da construo do rei Pel e prope uma analogia com o imaginrio brasileiro relacionado negritude, masculinidade e virilidade. Embora diversos, todos os trabalhos procuram desenvolver aspectos pouco explorados pelo debate terico nas cincias sociais. Os dois ensaios de abertura apontam a atualidade renovada do pensamento dos clssicos da sociologia. Os trabalhos empricos ampliam a discusso de temas contemporneos a partir de novos dados, enfatizam a necessidade constante de comparao e reviso terica durante o desenvolvimento da pesquisa e apresentam contribuies originais s linhas de pesquisa em que esto inseridos. Boa Leitura!

ENFOQUES revista eletrnica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ A MODERNIDADE EM MARX E WEBER Demian Gonalves Silva1

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RESUMO Este trabalho trata das concepes tericas de Max Weber e Karl Marx a respeito da modernidade ocidental, investigando os seus pontos de convergncia e divergncia. Analisa os conceitos de racionalizao e capitalismo que os autores, respectivamente, aplicam como chaves interpretativas da modernidade, e busca identificar os seus desdobramentos em prognsticos e juzos de valor especficos. Comparando esses diversos elementos nas obras dos dois autores, esboa por fim uma tomada de posio quanto relevncia terica de cada qual para a compreenso do assunto. Palavras-chave: Marx, Weber, modernidade, racionalizao, capitalismo.

ABSTRACT This essay deals with Marx's and Weber's theoretical concepts regarding Ocidental modernity, investigating its points of convergence and divergenge. It analyses the concepts of rationalization and of capitalism, which the authors, respectively, apply as interpretative keys of modernity, and seeks to identify its developments in specific prognoses and value-judgements. By comparing these diverse elements in the works of both authors, it drafts, lastly, an evaluation of the theoretical relevance of each of them to the comprehension of the subject at hand. Key words: Marx, Weber, modernity, rationalization, capitalism

Formado em cincias sociais e mestrando em sociologia na Universidade Federal de Gois, FCHF, Programa de Ps-graduao em Sociologia.

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ENFOQUES revista eletrnica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ INTRODUO

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Marx e Weber dedicaram parte considervel de sua produo terica ao empenho de obter uma viso abrangente da modernidade ocidental, nesta divisando, cada qual sua maneira, uma fisionomia e uma tendncia de desenvolvimento. Suas abordagens tornaram-se referncias centrais nas discusses sobre o tema, seja como perspectivas antagnicas apontando em direes opostas e inconciliveis, seja como apreenses parciais a se complementarem na caracterizao do seu objeto. Se deixarmos as nuances de lado no confronto entre os dois autores, podemos recorrer percepo j consagrada que contrape um Marx otimista e prometico a um Weber pessimista e trgico. De um lado, a crena na emancipao humana pela revoluo comunista, com a libertao do proletariado culminando na ruptura com o reino da necessidade e na instaurao do reino da liberdade; de outro, o vaticnio de um futuro de impessoalidade mecnica e impotncia criadora, em que a liberdade individual definha na "jaula de ferro" da burocracia. claro que esta contraposio simplifica as diferenas entre ambos at o nvel da caricatura, mas oferece uma pista inicial para a investigao das suas divergncias e convergncias efetivas. Este identificam trabalho na pretende esboar os uma anlise que comparativa atribuem a das ela duas e os abordagens tericas. A proposta discutir os traos decisivos que os autores modernidade, prognsticos posicionamentos pessoais e polticos que assumem; e enfim sugerir, ainda que de modo inacabado e idiossincrtico, os seus respectivos mritos tericos.

ENFOQUES revista eletrnica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ CAPITALISMO E RACIONALIZAO

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O capitalismo tem presena marcante nas obras dos dois autores e, ao menos quanto descrio factual do fenmeno, h neste ponto uma reconhecida convergncia entre ambos. Tanto Marx como Weber afirmam a absoluta singularidade histrica do capitalismo, e apontam a racionalidade econmica e a separao entre os produtores e os meios de produo como elementos de definio do sistema. Apesar de Weber tratar do capitalismo em um enfoque mais amplo, que no raro se estende alm dos limites histricos e geogrficos do fenmeno, vislumbrando antecipaes suas no mundo antigo e no Oriente, mesmo nisto ele guarda alguma semelhana com Marx. Tambm este assinala, por exemplo, o surgimento de um capitalismo incipiente em Roma, e atribui o seu fracasso em se desenvolver plenamente s presses ideolgicas do ambiente, tendentes a inibir a acumulao pessoal de riqueza (Giddens, 1998:89) - o que mostra que, no obstante a nfase econmica do materialismo histrico, Marx no deixou de reconhecer a influncia de fatores no-econmicos na histria. Outro ponto de convergncia entre os autores est na sua insistncia em frisar o aspecto antitradicionalista do capitalismo, o qual substitui padres de comportamento imutveis, voltados para a realizao de objetivos tradicionais fixos, pela ao pautada no clculo racional de custos e benefcios para a obteno de fins livremente escolhidos (Birnbaum, 1997). na ruptura com o tradicionalismo, com a consolidao de uma tica mundana propiciatria do esprito do capitalismo, que consiste o impacto do calvinismo sobre o mundo moderno; ruptura esta que distancia o calvinismo tanto do catolicismo quanto do luteranismo (Weber, 2001). Sem as conexes religiosas estabelecidas por Weber, Marx descreve de forma contundente esse carter antitradicionalista em certas passagens: A Burguesia (...) ps termo a todas as relaes feudais, patriarcais e idlicas. Desapiedadamente, rompeu os laos feudais heterogneos que ligavam o homem aos seus "superiores naturais" e no deixou restar vnculo algum entre um homem e outro alm do interesse pessoal estril, alm do "pagamento em dinheiro" desprovido de qualquer sentimento. Afogou os xtases mais celestiais do fervor religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo filisteu, nas guas geladas do calculismo egosta. (..). Em uma palavra, substituiu a explorao velada por iluses religiosas e polticas, pela explorao aberta, impudente, direta e brutal (Marx, 2000:13). Na verdade, mais do que apenas o antitradicionalismo, a passagem acima descreve um conjunto inteiro de processos histricos que o capitalismo ao mesmo tempo reflete e produz. O que em Weber est analiticamente decomposto aparece aqui num bloco sinttico: antitradicionalismo (destruio das relaes feudais),

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racionalizao (despersonalizao das relaes humanas, predomnio do "calculismo egosta"), desencantamento do mundo (desvanecimento das iluses religiosas e polticas). E neste ponto que se explicitam as diferenas entre os autores. Weber aborda esses fenmenos como processos distintos que se entroncam no mundo moderno e dos quais o capitalismo apenas um fenmeno subsidirio. Em Marx, ao contrrio, o capitalismo o eixo central em torno do qual todo o resto se articula e define. Em Weber, o antitradicionalismo capitalista advm de uma matriz religiosa calvinista, a qual por sua vez a culminao de um processo milenar de racionalizao e desencantamento do mundo, processo este que potencializado e levado s suas ltimas conseqncias, na esfera econmica, pelo capitalismo. Marx delineia o capitalismo em um contexto j secularizado, e define os fatos correlacionados (racionalismo, antitradicionalismo etc.) como redutveis, em ltima instncia, s relaes de produo capitalistas. A destruio das relaes feudais e patriarcais, a despersonalizao dos vnculos sociais, a substituio do fervor religioso pelo clculo egosta, tudo isto, tanto em Marx como em Weber, caracteriza a ascenso do capitalismo. Mas em Marx essas manifestaes decorrem, em ltima instncia, de mudanas na estrutura econmica, enquanto em Weber elas interagem de forma mais complexa com o capitalismo e se, por um lado, so por ele consolidadas e exacerbadas, por outro, repercutem processos sociais mais longos, dos quais ambos so subprocessos particulares. Portanto, Marx e Weber convergem na caracterizao do capitalismo, mas aplicam-lhe pressupostos distintos, dando-lhe diferentes enquadramentos tericos e assumindo posies pessoais divergentes. Em termos simplificados, pode-se dizer que Marx generaliza a partir do econmico, e Weber a partir do poltico (Giddens, 1998). Para o primeiro autor, o capitalismo a chave interpretativa da modernidade, e os outros elementos nela envolvidos - industrialismo, democracia, racionalizao etc. - so decorrncias superestruturais da sua infraestrutura econmica; j o segundo autor v a racionalizao como o elemento central da modernidade, sendo o capitalismo apenas uma de suas manifestaes, e chega mesmo a apontar a existncia do Estado racional-legal como pr-condio para o surgimento deste ltimo (Birnbaum, 1997). Em Weber, a separao entre o produtor e os meios de produo uma aplicao especfica, na esfera econmica, de um princpio posto em prtica em todas as esferas sociais, especialmente na poltica, nas quais a diviso de tarefas, com a separao entre os meios de administrao e o quadro administrativo, tem se desenvolvido desde pelo menos o final da Idade Mdia (Weber, 1982b). As esferas sociais so autnomas; cada qual regida por uma lgica prpria. Weber

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nega que uma esfera possa determinar todas as demais, ou mesmo que possa haver uma implicao causal direta entre duas esferas. A influncia que possa haver de uma sobre outra indireta e d-se por intermdio da ao individual, a exemplo da "tica protestante", que produz certos padres de comportamento que, na esfera econmica, originam uma disposio de acmulo e reinvestimento de capital que aos poucos se desgarra da sua matriz religiosa original. Portanto, para Weber no importa rastrear causalidades que reduzam a diversidade social a uma esfera determinante; independentemente de onde se originam, os fenmenos adquirem potencialidades prprias em cada uma das esferas. A modernidade, dessa perspectiva, define-se por uma racionalizao que permeia todas as esferas, com efeitos distintos em cada uma delas, e que encontra a sua consumao na esfera poltica, na forma de dominao burocrtica. nela que Weber identifica o desenvolvimento mais acabado, e de conseqncias globais mais decisivas, do racionalismo ocidental. Essas diferenas de percepo entre os dois autores decorrem de outras mais fundamentais, de princpios, e desdobram-se em prognsticos distintos sobre o desenvolvimento da modernidade. Marx, partindo de uma concepo de leis histricas objetivas expressa no materialismo histrico, cr que o capitalismo est destinado ao agravamento progressivo das suas contradies internas at o seu colapso final, etapa na qual a ditadura do proletariado romperia com a ordem social existente e abriria caminho para a construo de uma sociedade sem classes. A histria desenvolve-se atravs de crises sucessivas, deflagradas pela contradio entre as foras produtivas e as relaes de produo, contradio esta que atinge em certas pocas um ponto crtico, quando ento as relaes de produo devem ser radicalmente transformadas para que as foras produtivas possam continuar a se desenvolver. Essa contradio, no capitalismo, expressa-se de forma mais visvel no crescimento vertiginoso da riqueza concomitante pauperizao da maioria, e atinge o seu paroxismo nas crises de superproduo, momento em que se expe toda a irracionalidade do sistema (Aron, 1999; Marx, 2000). Weber, por sua vez, rejeita decididamente a possibilidade de discernir um sentido objetivo na histria. A realidade em geral e a histria em particular oferecem um conjunto catico de dados empricos e relaes causais que s podem ser apreendidos atravs de recortes parciais, nunca em sua plena totalidade. Por outro lado, embora no negligencie a forte influncia exercida pelos fatores materiais sobre o comportamento individual, Weber os coloca em interao contnua com fatores ideais, numa relao que nunca se define de modo unilateral. No h, pois, maneira de atribuir prioridade causal a uma ordem qualquer de fenmenos. Nas brechas desse esquema terico j por si flexvel, insinua-se ainda,

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atravs da noo de "carisma", um elemento de volio que falta por completo em Marx, configurando aquilo que alguns consideram o "nietzscheanismo" de Weber (Fukuyama, 2005; Mommsen, 1997). Weber nega, assim, qualquer validade ontolgica ao materialismo histrico, atribuindo-lhe apenas valor heurstico. O seu papel deve restringir-se ao de um instrumento til para a formulao e o teste de hipteses; e os diferentes modos de produo, concebidos por Marx, a se sucederem na histria, no passam, desse ponto de vista, de tipos-ideais com alguma fertilidade metodolgica (Giddens, 1998; Mommsen, 1997). Rejeitando qualquer teleologia histrica, Weber apresenta os seus prognsticos como meras tendncias de desenvolvimento, e tambm aqui se afasta consideravelmente da perspectiva marxiana. Para Weber, a luta de classes tem um papel bem mais modesto na histria - e no mundo moderno - do que supunha Marx, e as contradies internas do capitalismo so a longo prazo secundrias. Para Marx, as contradies internas do capitalismo, enraizadas em relaes de produo assimtricas, evoluem irremediavelmente no sentido da pauperizao do proletariado e da queda das taxas de lucro dos empresrios, inviabilizando em algum momento a continuidade do sistema. Tudo se origina e se resolve no plano econmico, no importando quantas sejam as instncias intermedirias em que os conflitos repercutem desde a sua gnese at o seu desfecho. O antagonismo entre proletrios e burgueses, determinado pela existncia da propriedade privada, reverbera em outras esferas da vida social, nelas encontrando incitaes ou paliativos, mas mantm-se estruturalmente intacto, e s se resolve em definitivo pela supresso daquela forma de propriedade. Em Weber, merc da sua concepo de esferas diversificadas e autnomas, a luta de classes, no sentido marxiano, uma dentre muitas formas de conflito que grassam na sociedade. Da que a esfera poltica tenha aqui uma influncia independente, podendo apresentar-se como locus de negociao e resoluo de conflitos. Dessa perspectiva, a insero poltica das classes trabalhadoras, a concesso de direitos polticos e sociais a elas tenderiam, a longo prazo, a mitigar as formas mais cruas de conflito e a propiciar melhoras substantivas nas condies de vida da populao. E nesse sentido que se define o posicionamento poltico de Weber na Alemanha de seu tempo, onde ele propugnou pela assimilao definitiva do Partido Social-Democrata ordem poltica burguesa (Giddens, 1998; Mommsen, 1997). Alm disso, Weber ampliou consideravelmente os critrios de definio das classes sociais, acrescentando aos fatores exclusivamente econmicos a noo de status, e privilegiando, em vez da mera posse formal dos meios de produo, a

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capacidade de mobilizar recursos em proveito prprio na esfera econmica (Mommsen, 1997). Esta contribuio terica indispensvel para a compreenso do capitalismo contemporneo, no qual, revelia do que Marx previu, houve uma ampla diversificao social, com a multiplicao das classes intermedirias e a crescente dissociao entre a posse dos meios de produo e o efetivo poder econmico (e, em certa medida, com alguma dissociao entre o poder econmico e o poder poltico). Nessas circunstncias, as clivagens rgidas e os conflitos inexorveis conducentes a um desfecho fatal, ao menos na forma como apresentados por Marx, esfarelam-se cada vez mais numa poeira de falsas expectativas.

ENFOQUES revista eletrnica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ ALIENAO E BUROCRACIA

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No plano dos valores e das aspiraes, h alguma proximidade entre Marx e Weber no que respeita ao interesse de ambos pela condio dos indivduos na sociedade industrial. No primeiro autor, esse interesse motiva uma crtica incisiva alienao produzida pela diviso do trabalho capitalista, e desdobra-se numa crtica aos reflexos dessa alienao na poltica e na ideologia, culminando num ataque frontal democracia burguesa e religio. No segundo autor, tal interesse dirigido sobretudo aos efeitos da burocratizao sobre a liberdade e a capacidade de deciso dos indivduos, dando origem a uma busca incessante por pequenas frestas de liberdade e autonomia na "jaula de ferro" da modernidade. O conceito de alienao, oriundo da filosofia hegeliana, designa o estranhamento entre o sujeito e as suas realizaes. Inicialmente ele aparece em Marx com uma conotao predominantemente poltica, exprimindo a separao entre a sociedade civil e o Estado. Este se constitui por obra daquela, mas aos poucos dela se desgarra, hipostasiando-se e assumindo preeminncia sobre ela. As posies so ento invertidas: o que era o "todo" (o povo) passa a ser a "parte", e o que era a "parte" (o Estado) passa a ser o "todo"; o povo deixa de se reconhecer na prpria obra. Marx, invertendo a perspectiva hegeliana, nega a legitimidade do Estado como instncia de superao dessa dicotomia, identificando na sociedade civil as bases reais da sociedade poltica. Somente pela subsuno do Estado na sociedade civil, de modo que aquele se limite a expressar a autodeterminao desta ltima, que se pode obter uma superao efetiva da contradio entre ambos. Marx ope-se assim monarquia constitucional alem, defendida por Hegel, e faz a apologia da democracia (Marx, 2005). A alienao poltica, no entanto, apenas o reflexo de uma alienao mais elementar, gestada nas relaes de produo. Marx torna mais explcita essa percepo em A Ideologia Alem (Marx, 2001), na qual identifica a diviso do trabalho capitalista, que expropria o trabalhador dos meios de produo e o impede de se reconhecer no produto do prprio trabalho, como a matriz de toda alienao. A emancipao humana, o fim da alienao em todos os nveis, s pode ser levada a cabo pela supresso das relaes capitalistas de produo, com o cessar da diviso do trabalho delas decorrente e a concretizao do "homem total" (Aron, 1999), que pode "hoje fazer uma coisa, amanh outra, caar de manh, pescar na parte da tarde, cuidar do gado ao anoitecer, fazer crtica aps as refeies" (Marx, 2001), e tambm capaz, no plano poltico, de realizar-se plenamente, no estando mais limitado pelas divises tradicionais entre sociedade civil e Estado, esfera privada e esfera pblica vivendo, enfim, em uma democracia substancial,

ENFOQUES revista eletrnica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ superada a democracia formal burguesa.

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Weber, por sua vez, enfoca a alienao no contexto mais amplo da burocratizao. A separao entre o trabalhador e os meios de produo no se origina apenas da existncia da propriedade privada; ela antes a manifestao particular de uma separao efetuada em todas as esferas da vida social moderna. No na economia especificamente, mas nas estruturas burocrticas em geral, que se desenvolvem com especial vigor na sociedade capitalista, reside a origem da alienao. Por outro lado, aquela separao, bem como a especializao de funes dela decorrente constituem requisitos indispensveis para o atendimento das necessidades tcnicas e administrativas do mundo contemporneo (Mommsen, 1997). A durabilidade da burocracia assume em Weber dimenses de tragdia. A capacidade de fornecer respostas rpidas e precisas a todas as situaes da vida social contempornea faz do aparato burocrtico um paradigma absoluto de eficincia, ao qual no se pode renunciar seno custa de toda a bagagem civilizacional existente. Por outro lado, dada a sua natureza impessoal, consubstanciada em marcos regulatrios racionais, esse aparato extremamente acessvel a quem quer que dele se apodere (Weber, 1982c). Da a implausibilidade de uma erradicao da dominao burocrtica e de seus efeitos alienantes. Cada detalhe administrativo de uma sociedade moderna, por mnimo que seja, uma pequena pea de uma engrenagem burocrtica, e qualquer modificao em seu funcionamento acarreta desarranjos na mquina inteira. A substituio desta ltima requereria um esforo sobre-humano de reestruturao global cujo sucesso inverossmil. Uma outra hiptese seria a de destruio integral da mquina, o que significaria, no entanto, pura e simplesmente uma barbarizao voluntria qual poucos estariam dispostos. Por isso, a hiptese provvel, em qualquer evento revolucionrio, a da acomodao dos novos operadores ao funcionamento regular da mquina, hiptese reforada pelos benefcios materiais e polticos que essa acomodao traz em seu bojo: a expectativa de contar com operadores inteiramente fiis sua misso de reengenharia, a ponto de serem totalmente refratrios ao apelo desses benefcios, pressupe a crena na absoluta plasticidade psicolgica dos indivduos, crena presente em Marx, mas no em Weber (Birnbaum, 1997). O fim da propriedade privada, nessas condies, significaria apenas um deslocamento do problema. A socializao dos meios de produo na esfera econmica no implica a socializao dos meios de coero na esfera poltica; a distncia entre os dominadores e os dominados permanece e at se acentua. Mesmo na esfera econmica, a socializao dos meios de produo constituiria

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menos uma realidade efetiva do que um formalismo ilusrio: os meios de produo seriam arrebatados das mos dos proprietrios privados apenas para carem sob o controle dos dirigentes e dos burocratas; estariam, pois, to distantes como antes das mos dos trabalhadores, no importando o estatuto legal que tenham ento adquirido (Mommsen, 1997). A separao efetiva entre os trabalhadores e os meios de produo continuaria e seria agravada, pois agora a propriedade dos meios de produo, antes mais ou menos difusa, seria monopolizada por uma cpula dirigente detentora tambm dos meios de coero. O poder poltico e o poder econmico seriam ento sobrepostos, inviabilizando as zonas de sombra que o capitalismo permite. A necessidade de planejamento central de toda a atividade econmica, por outro lado, aceleraria exponencialmente a burocratizao, fechando em definitivo a "jaula de ferro". Para Weber, portanto, o socialismo representa um aumento da burocratizao e de seus efeitos alienantes; um agravamento dos males da modernidade, no uma terapia. As nicas possibilidades de refrear a marcha triunfal da burocratizao encontram-se na prpria democracia liberal. Democracia e burocracia so fenmenos correlacionados e ao mesmo tempo antagnicos: a democratizao acarreta a burocratizao, e a burocratizao tende, a longo prazo, a debilitar a democracia. em vista desse paradoxo, e partindo da reflexo sobre a poltica de seu tempo, especialmente a alem, que Weber busca identificar as sadas oferecidas pela situao. A burocratizao, com a substituio dos "polticos de vocao" pelos funcionrios, ameaa engessar as naes ocidentais, privando-as de escolhas polticas autnticas. Em tais circunstncias, Weber insiste na necessidade de se promoverem verdadeiras lideranas carismticas, e v o fortalecimento do parlamento como um meio de facilitar isso. A proposta poltica de Weber pode assim ser resumida, em termos simplificados, em um modelo de democracia parlamentar em que as foras burocrticas do gabinete e do funcionalismo pblico so contrabalanadas pelas influncias carismticas advindas do parlamento, locus onde as massas encontram alguma expresso atravs de lderes capacitados. Em outros momentos, a posio weberiana aproxima-se tambm de um modelo de democracia plebiscitria, com o dirigente executivo sobrepondo-se ao parlamento como lder das massas (Giddens, 1998; Mommsen, 1997; Weber, 1982b). Em contraste acentuado com Marx, Weber oferece perspectivas restritas de participao poltica para as massas. Em Marx, o recrudescimento dos conflitos no sistema capitalista galvanizaria estas ltimas at conduzi-las, por meio da ao do proletariado, tomada do poder poltico; ento, aps a fase de ditadura do proletariado, na qual se configuraria uma democracia direta exercida atravs de conselhos populares, nos moldes talvez da Comuna de Paris, ocorreria enfim a

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consolidao do comunismo, com a abolio da sociedade de classes e a extino da prpria poltica: a ausncia de classes sociais pe termo a todas as outras clivagens e assimetrias, instaurando o consenso social definitivo (Held, 1993). Trata-se de uma perspectiva de participao poltica intensa das massas, a vigorar at que estas e a prpria poltica deixem de existir. J em Weber, expectativas como esta so completamente afastadas. A democracia direta s foi possvel em pequenas comunidades do passado; seria invivel nas complexas sociedades contemporneas. O seu estabelecimento exigiria a aniquilao da mquina burocrtica e o sacrifcio civilizacional antes mencionados. A dominao burocrtica pode apenas ser atenuada atravs da formao de lideranas carismticas, e o horizonte poltico das massas consiste na possibilidade de escolher entre essas lideranas e nelas encontrar alguma vazo aos seus anseios, abrindo pequenas brechas de liberdade no sistema (Kramer, 2000). Assim, Weber deposita todas as suas esperanas polticas na formao de lderes dotados de carisma e das qualidades morais requeridas, expressas na "tica da responsabilidade" (Weber, 1982b).

ENFOQUES revista eletrnica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ SECULARIZAO

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Um ltimo ponto de comparao entre os autores, com especial interesse para o entendimento das diferenas entre ambos, diz respeito religio e ao seu papel no mundo moderno. Aqui se divisam com bastante clareza os diferentes pontos de partida de Marx e Weber, evidenciando-se o entendimento distinto que tinham das questes ticas e valorativas. Em Marx a religio significa, basicamente, a alienao humana no nvel superestrutural. O autor apropria-se da concepo de Feuerbach, na qual as divindades religiosas consistem dos atributos humanos magnificados num patamar inacessvel ao homem, de modo que este expressa as suas potencialidades atravs de smbolos, ao mesmo tempo em que interdita a si prprio o acesso a uma humanizao plena. Os smbolos religiosos desgarram-se de seus criadores, tornando-se potncias autnomas que os subjugam. Este insight permanece essencialmente o mesmo em Marx, que apenas o recontextualiza, rejeitando a idia feuerbachiana de uma humanidade abstrata e identificando nas relaes de produo, historicamente variveis, a fonte ltima da alienao religiosa. Da que o ataque religio seja apenas uma tarefa parcial e insuficiente, exigindo a contrapartida de uma investida mais ampla s origens mesmas da alienao religiosa, situadas nas bases materiais da sociedade (Marx, 2001). Marx enfatiza a importncia da religio como instrumento de dominao ideolgica. No h propriamente, na perspectiva marxiana, um predomnio dos motivos econmicos na determinao do comportamento individual. A influncia econmica d-se por intermdio das posies de classes, e estas atuam no apenas de maneira direta, mas tambm e sobretudo por vias indiretas, atravs da ideologia, que uma racionalizao dos interesses classistas (Birnbaum, 1997). A religio, nesse sentido, uma racionalizao dos interesses dominantes, oferecendo um consolo ilusrio aos dominados e solidificando a posio da classe dominante. Ela torna vivel, enfim, uma base de consenso social, sendo definida por Marx como "o pio do povo" (Marx, 2005). Portanto, em vista do prognstico de superao das relaes de produo capitalistas e de completa erradicao da alienao, Marx parece apontar para um futuro de secularizao plena - ou, talvez fosse mais correto dizer, de total aniquilao da religio, pois trata-se de um processo que abrange, mais do que apenas a esfera jurdico-poltica, todos os nveis da existncia humana. Weber, por outro lado, embora tambm aborde o fenmeno religioso em conexo com as posies de classe, e reconhea o condicionamento que as ltimas impem ao primeiro, incorpora a esse contexto um elemento distinto, que so as

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funes psicolgicas desempenhadas pelos sistemas ideolgicos. Em suma, para Weber os fatos religiosos e ideolgicos so at certo ponto moldados pelas relaes econmicas, mas respondem, alm disso, a necessidades humanas inatas, o que leva o autor a postular a existncia de necessidades metafsicas inerentes ao esprito humano (Birnbaum, 1997). A plasticidade psicolgica dos indivduos apresenta aqui certos limites, ao contrrio do que se d em Marx, como j foi mencionado antes. Nessas circunstncias, no se entrev na perspectiva weberiana uma eliminao completa da religio, mas apenas um processo de secularizao em que as vrias esferas sociais gradualmente se desprendem da esfera religiosa - o que se traduz, em termos polticos, na separao entre Igreja e Estado experimentada pelo Ocidente no decorrer dos ltimos sculos. A religio pouco a pouco afastada da vida pblica, confinando-se s esferas mais ntimas da experincia. Mantm-se, contudo, a possibilidade permanente de refgio nessas esferas mais ntimas, e a religio, como fonte de valores, no pode ser deslegitimada. A diferena decisiva entre Marx e Weber reside, em ltima instncia, na questo dos valores, e manifesta-se como antagonismo entre uma viso de mundo monista e outra pluralista - no sentido da distino feita por Isaiah Berlin entre monismo e pluralismo ticos (cf. Berlin, 2002, 2005). Marx, arraigado ao paradigma historicista mais do que Weber (Birnbaum, 1997), v os valores como instncias objetivas subordinadas s etapas sucessivas do desenvolvimento histrico, o que leva o autor a esperar, com o fim da sociedade de classes, a erradicao de todos os conflitos e a instaurao de uma conscincia - e de uma moral correspondente - definitiva, da qual a religiosidade, ao que tudo indica, estaria suprimida. Weber, ao contrrio, parte de um irracionalismo tico para o qual os valores so instncias independentes e diversas que exigem uma escolha subjetiva - e a ela a cincia nada tem a oferecer. A necessidade de escolha exacerba-se nas circunstncias da modernidade, em que o esprito religioso, que em poca passadas penetrava todas as esferas da vida, dando a tudo um sentido bem determinado, se retrai numa rea de influncia cada vez mais limitada, abrindo espao para a proliferao de sistemas ticos concorrentes: a modernidade assinala, enfim, o "politesmo dos valores" (Schluchter, 2000; Weber, 1982a). Nesse sentido, a aspirao fundamental de Weber preservar a possibilidade das escolhas morais, e impedir que o recuo religioso acarrete a extino dos valores na vida social.

ENFOQUES revista eletrnica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ CONSIDERAES FINAIS

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As abordagens tericas de Marx e Weber oferecem, ambas, elementos relevantes para a compreenso da modernidade, e grande parte dos fenmenos que descrevem subsiste na atualidade. No obstante, no possvel ignorar os pressupostos radicalmente antagnicas distintos a que que as orientam, conduzem. nem as concluses exige, essencialmente elas Compar-las

necessariamente, posicionar-se ante os seus pressupostos e avaliar a veracidade das suas concluses. Portanto, o que segue, guisa de consideraes finais, reflete um posicionamento pessoal que, por mais inacabado intelectualmente, no pode ser evitado. uma opinio quase consensual a de que Weber o mais atual dos dois autores. A histria, ao que parece, deu-lhe uma confirmao que Marx no teve. A percepo da racionalizao e de seus desdobramentos burocrticos como eixo central da modernidade mostrou-se particularmente condizente com os dilemas enfrentados pelas sociedades contemporneas, nas quais o cenrio descrito por Weber e as questes polticas nele implicados mantiveram-se de p, no havendo, ainda hoje, sinais de que desapaream num futuro prximo. Por outro lado, a burocratizao est longe de esgotar a realidade do mundo contemporneo. Certos fatos traumticos irrompidos aps a morte de Weber, como a ascenso do nazifascismo na Europa ou, mais recentemente, o advento do fundamentalismo religioso e do terrorismo islmico, levaram certos crticos a acusar o autor de equvoco, ou mesmo, em casos extremos, a vincular a sua figura aos fatos mencionados, vendo em sua noo de carisma uma influncia propiciatria do nazismo, por exemplo. Em um sentido semelhante, Fukuyama questiona, ante o crescimento do fundamentalismo religioso e do terrorismo islmico, se o elemento carismtico mesmo algo digno de ser perseguido, e no uma fonte muito provvel de malefcios, e "se viver na jaula de ferro (...) uma coisa to terrvel, afinal de contas" (Fukuyama, 2005). um questionamento procedente, mas a meu ver excessivamente generalizante; ele estabelece uma escolha exclusiva entre dois extremos, a burocracia e o carisma, quando em Weber o que se almeja apenas uma atenuao da dominao burocrtica. Weber , a despeito de suas ambigidades, fiel aos princpios liberais, e circunscreve o elemento carismtico aos limites do Estado de direito. Em vista disto, no mnimo problemtico estabelecer uma relao direta entre o carisma propugnado pelo autor e certas manifestaes patolgicas do fenmeno. O revigoramento das religies nas ltimas dcadas, de que o

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fundamentalismo acima mencionado um caso particular, tem motivado outra espcie de crtica a Weber: a noo de secularizao estaria ultrapassada; estaramos testemunhando uma ressecularizao. Todavia, tal crtica se embrenha numa srie de ambigidades tericas e terminolgicas que restringem consideravelmente o seu alcance. Antnio Flvio Pierucci evidencia isto ao distinguir "secularizao" de "racionalizao" e "desencantamento do mundo", lembrando que o conceito de secularizao aparece em Weber quase sempre para designar um fenmeno poltico-jurdico de separao de esferas cujo maior exemplo a separao entre Estado e Igreja. Nesse sentido, a secularizao weberiana nem sequer seria um prognstico, mas a mera descrio de um fato consumado (Pierucci, 2000). Um ponto particularmente favorvel a Weber a sua anteviso da experincia socialista, inteiramente confirmada pela histria. Weber previu que o socialismo levaria a um fortalecimento da dominao burocrtica, com a concentrao do poder econmico e poltico nas mos de uma elite ainda mais exclusivista que as anteriores. Abordou inclusive problemas especficos de uma eventual economia socialista, como a considervel reduo da calculabilidade formal do sistema, que adviria quando se acabasse com a determinao de preos pelo mercado (Mommsen, 1997) - Weber antecipa aqui uma crtica desenvolvida mais tarde pelos economistas da Escola Austraca, particularmente por Ludwig von Mises. A circunstncia de o socialismo ter ocorrido na Rssia, e no em um pas industrializado, em nada diminui o alcance da previso weberiana, nem amortece o impacto da realidade sobre as previses marxianas. Onde quer que ocorresse, o socialismo-comunismo teria de se deparar com certos obstculos concretos recrudescimento da burocracia, surgimento de novas elites, impossibilidade de substituir o sistema de preos capitalista por outro mais racional etc. Esses obstculos esto contemplados em Weber, com certo nvel de complexidade e detalhes; em Marx nem sequer se insinuam, negligenciados por uma narrativa que mergulha todos os fatos operantes e tangveis nas brumas das generalizaes escatolgicas. Desde que rejeitemos os pressupostos de Marx - a prioridade causal dos fatores econmicos, o determinismo histrico, o papel da luta de classes como motor da histria - e admitamos o desmentido cabal das suas previses a respeito do capitalismo, especialmente no que se refere queda das taxas de lucro e ao acirramento dos conflitos de classe, somos obrigados a submeter as suas contribuies a uma redefinio terica, desvinculando-as da sua base filosfica originria. No plano metodolgico, por exemplo, no despropositado supor que a

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aplicao dos conceitos de infra-estrutura e superestrutura, cerne do materialismo histrico, oferea um caminho proveitoso para a criao de hipteses e a busca de correlaes na anlise sociolgica; mas, ausente a premissa da determinao do conjunto da sociedade pela infra-estrutura, essa aplicao no est comprometida com uma filosofia da histria e, por conseguinte, afasta-se do seu propsito original (Aron, 1999:161-162). Quaisquer que sejam os benefcios da advindos, o materialismo histrico fica assim reduzido a um mero roteiro de pesquisa, desprovido dos poderes explicativos que Marx lhe atribui. No plano mais propriamente sociolgico, Marx identifica fenmenos significativos da modernidade, dos quais a alienao talvez o exemplo mais marcante. De fato, o conceito de alienao captura aspectos decisivos da experincia moderna, exprimindo o sentimento de estranhamento e impotncia do indivduo perante as grandes estruturas annimas, e evidenciando, no seu sentido mais elementar, as perdas existenciais acarretadas pela diviso do trabalho. Contudo, apartado do enquadramento terico que Marx lhe d, o conceito fica exposto a relaes causais e a implicaes prticas totalmente distintas. Como j vimos antes, se nos afastarmos do materialismo histrico, e desvincularmos a alienao da determinao econmica, teremos de admitir, como o faz Weber, que o fenmeno se manifesta independentemente em diversas esferas, se associa a diferentes contextos e conduz a resultados variados, no podendo ser erradicado pelo fim da propriedade privada. Se levarmos mais longe a concordncia com os diagnsticos de Weber, teremos ainda de concluir que a alienao to inevitvel quanto a dominao burocrtica, podendo quando muito ser atenuada. H todavia uma questo ainda mais grave implicada no conceito de alienao, e sugerida pelo seu prprio nome. Tal como aparece em Marx, esse conceito supe e refora o monismo tico que, conforme j foi dito, contrasta a posio do autor com a de Weber. De acordo com Jos Guilherme Merquior (Merquior, 1990): A doutrina marxista da alienao repousa numa verso peculiar do monismo, ou platonismo, tico. No conceito de alienao, a idia de um alterar-se, de um virar outro, pressupe a possibilidade de um retorno a um mesmo. Regresso a uma identidade essencialista do homem consigo mesmo, portanto; mas identidade genrica e no especfica, herdeira do uomo universale da Renascena. Entre as alternativas clssicas: vida contemplativa ou homo faber, bios theoretiks ou nimo prometico, homo religiosus ou ethos cvico, etc. Marx se recusa a optar. Em seu lugar pe a quimera da superao da diviso do trabalho: seu homem universal ser caador durante o dia, crtico literrio noite - escolha (Merquior, 1990:157). O historicismo de Marx tem como contrapartida a crena num fim humano universal, a ser atingido ao trmino do processo histrico com a abolio do reino

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da necessidade e a instaurao do reino da liberdade. Como assinalado na passagem supracitada, Marx recusa-se a reconhecer a pluralidade de fins e a escolher entre eles; a prpria diversidade de valores uma contingncia determinada pela alienao e pela luta de classes e deve ser superada com o advento do comunismo e do homem total, quando todas as metas sero compatibilizadas e realizadas conjuntamente. O contraste com o politesmo dos valores de Weber no poderia ser mais evidente. O uso do conceito de alienao necessariamente afetado pela posio que assumimos ante esse dilema tico. Se concebermos, como Marx, um fim universal ao qual a humanidade deve visar, o conceito de alienao nos servir de indcio dos obstculos histricos impostos consecuo desse fim, estando sempre contraposto a uma idia de no-alienao, de mesmo, a um summum bonum, enfim, a ser obtido com a superao da diviso do trabalho capitalista. Mas se postularmos o politesmo dos valores de que fala Weber, e considerarmos que as finalidades humanas so muitas, nem sempre conciliveis e jamais compatveis com um critrio nico de escolha imputvel totalidade dos indivduos, ento no poderemos empregar o conceito de alienao seno aps destitu-lo de sua literalidade e reduzi-lo s dimenses de uma constatao psicossociolgica sem implicaes teleolgicas. Na verdade, a alternativa entre monismo e pluralismo ticos vai muito alm dos problemas envolvidos na aplicao do conceito de alienao. Num certo sentido, trata-se de afirmar ou negar a legitimidade mesma da modernidade. Esta se caracteriza, como exposto na obra de Weber, pela desintegrao dos grandes sistemas ticos que outrora regeram a vida social; pela separao das esferas sociais, com o recuo dos valores para as esferas mais ntimas da experincia; pela substituio, enfim, de uma moral substantiva por uma moral processual na esfera pblica, trao distintivo das sociedades liberais. Estas so as caractersticas tradicionalmente atribudas modernidade, e j delineadas na obra de Weber. Marx, vivendo em poca anterior, e comprometido com uma abordagem economicista da sociedade, no vislumbra esse quadro em sua totalidade, e particularmente negligente quanto separao das esferas sociais, redutveis, na sua viso, esfera econmica. O que interessa salientar, porm, que o monismo tico de Marx essencialmente incompatvel com a admisso desse quadro. O monismo s admite a existncia de morais substantivas; a rigor, s reconhece uma moral legtima, aquela portadora dos valores e dos fins supremos, que segundo a escatologia marxista ser entronizada pela classe proletria e anunciar o fim da histria. Uma moral processual pblica, a regular a convivncia entre morais substantivas privadas, algo inconcebvel. Marx a

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consideraria mera camuflagem de uma moral substantiva privada (os interesses burgueses apresentados como interesses gerais), e veria na diversidade de morais o resultado de uma situao passageira de coexistncia de interesses classistas divergentes, cada um dos quais se impe sucessivamente esfera pblica, at o triunfo final da conscincia proletria. A impossibilidade de desligar os valores dos interesses de classe; a vinculao objetiva, instrumental mesmo, dos cdigos morais dominantes aos requisitos materiais da evoluo histrica; a crena na dissoluo de todos os conflitos, tanto os de natureza tica quanto os de natureza econmica, num futuro reino da liberdade moralmente homogneo: estas so as concepes que levam Marx a apresentar a modernidade como uma etapa provisria em direo a uma meta prfixada, e a ver nos seus traos caractersticos nada mais que as manifestaes epidrmicas do motor milenar da luta de classes. Por tudo o que foi dito at aqui, fica clara a minha opinio de que, para a compreenso da modernidade nos seus aspectos mais relevantes, e sobretudo para a afirmao da sua originalidade sociolgica e o reconhecimento das suas contribuies no plano da convivncia humana, Weber quem oferece os elementos tericos indispensveis, a saber, o pluralismo causal, o politesmo dos valores e a noo de autonomia das esferas sociais.

ENFOQUES revista eletrnica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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ENFOQUES revista eletrnica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ RACIONALIZAO E LIBERDADE NA PERSPECTIVA DE MAX WEBER Edilene M. de Carvalho Leal2 RESUMO

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Max Weber analisa o processo de racionalizao do mundo a partir de um duplo e contraditrio aspecto: como constituinte da liberdade e da no-liberdade de ao dos indivduos modernos. Para tanto, recupera os fundamentos ticos da ao calvinista, pois na medida em que esta conjuga a racionalidade valorativa, a escolha de um fim salvacionista, a racionalidade instrumental, a escolha do trabalho como meio, colabora indiretamente para a emergncia do capitalismo. Todavia, com o avanar dos tempos, a ao instrumental-capitalista sobrepe-se ao valorativa, reduzindo as possibilidades de escolhas de sentidos. Atualmente, os indivduos vivem sob a gide das conseqncias seno previstas, de todo modo reais da ao racional calvinista. Mas esta uma situao de dominao racional-instrumental, e no uma estrutura inexorvel como supem alguns intrpretes de Weber. PALAVRAS-CHAVE: Racionalizao; liberdade; priso de ferro; neutralidade axiolgica; tipo ideal. ABSTRACT Max Weber analises the process of racionalization of the world starting from a double and contradictory aspect: as constituent of freedom and not-freedom of action of modern individuals. In order to do this, he recovers the etical fundaments of calvinistic action, wich conjugates valorative racionality, choice of a salvacionistic end, instrumental racionality, the choice of work as a medium; wich helps, indirectly, to capitalism emergency. However, with the advance of times, the instrumental-capitalistic action is superimposed to valorative action, and this reduces the possibilities of choose meanings. Nowadays, according to Weber, individuals live according to the consequences of calvinistic actions. But this is a situation of racional-instrumental domination, not a unavoidable structure, as some comentators suppose. KEY-WORDS: Racionalization; disenchantmant of the world; situation; freedom; irons prision; axiological neutrality; ideal tipe.

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Mestre em sociologia; prof do departamento de cincias sociais da universidade federal de sergipe; membro do grupo de pesquisa laburc (laboratrio de estudos urbanos e culturais).

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A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo ocupa uma posio estratgica no somente no contexto da obra de Max Weber, mas principalmente na sua leitura do processo de racionalizao ocidental. neste ensaio que Weber discute sistematicamente, de um lado, o carter particular da conduta racional e autnoma dos puritanos calvinistas como a mola mestra da emergncia da sociedade moderna e, de outro, a constituio de uma conduta heternoma e incapaz de lidar com as conseqncias socioculturais engendradas por seus antecessores puritanos. Nos dois casos, ainda que com acentos distintos e aparentemente contraditrios, subjaz a idia segundo a qual o fio que alinhava as diversas configuraes da racionalidade moderna encontra-se na esfera de atuao individual, que de um modo ou de outro o espao de vigncia da ao social. Com isso, s agravamos os desencontros conceituais, pois como falar de conduta racional dos puritanos, que para Weber pressupunha o conhecimento dos meios e dos fins, concomitante ao fato de que essa mesma conduta produziu resultados sociais imprevistos e indesejveis? Antes do mais, ressaltamos que, nem como conceitos tpicos e ainda menos como eventos histricos, racionalidade, ao racional e paradoxos das conseqncias se confundem na teoria sociolgica de Max Weber, embora mantenham uma relao interna e externa de mtua interpenetrao por fazerem parte de uma mesma inflexo histrica. Afinal, o que vm a ser conceitos tpicos e no que se distinguem de eventos histricos? Sem a pretenso de nos estendermos nesse tema, partimos da premissa - ao que parece, cara a Max Weber de que uma coisa o tipo, e outra totalmente diferente a realidade social, isto , o seu processo gentico de construo pressupe que o pesquisador, de posse de um conhecimento prvio e de suas referncias subjetivas a valores, selecione partes do real que lhe sejam significativas, acentue unilateralmente um ou mais pontos de vista e rena esses dados em um todo unvoco que possa servir como hiptese causal-explicativa de eventos histricos. Nos termos de Weber:Obtm-se um tipo ideal mediante a acentuao unilateral de um ou vrios pontos de vista e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenmenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor nmero ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogneo de pensamento. impossvel encontrar empiricamente na realidade este quadro, na sua pureza conceitual, pois se trata de uma utopia (Weber, 1999:137-8).

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Dessa definio, desejamos enfatizar o recurso acentuao de pontos de vista, porque isso nos possibilita entender o quantum de subjetividade est implcito no conceito de tipo e o quantum de responsabilidade histrica demanda do pesquisador, alm de nos fazer lembrar que elementos diversos, e por isso dspares, so combinados num quadro homogneo. A ttulo de exemplo, poderamos citar o tipo ideal de ao racional desenvolvido pelo puritano calvinista, no qual Weber rene o conceito de ao livre e conseqente, de um lado, e o conceito de priso de ferro, de outro. Este tambm o caso do conceito de racionalizao, pois o processo de racionalizao, em Weber, o fio condutor de suas inmeras temticas, principalmente porque a racionalidade est presente em todos os mbitos de existncia dos indivduos modernos, permitindo apreender tempos e espaos em sua dimenso universal. Ora, a racionalidade tem em Weber, em nosso entender, um aspecto quase transcendental, na medida em que oferece as condies para que a ao social se desenvolva. Todavia, como todo o seu esquema analtico, essas condies tm l o prprio contexto histrico, que traduz de fato o momento de construo processual da ao racional, a saber, a passagem da ao orientada pela homogeneidade das imagens mgicas de mundo para a ao orientada pela diferenciao das imagens modernas de mundo. Isto que dizer que, no mundo encantado da magia, os indivduos orientavam suas condutas por valores e saberes indistintos, uma vez que magia, cincia, economia, poltica e arte formavam uma unidade indissocivel da qual no era possvel escapar. Todos agiam seguindo essa unidade objetiva, de modo que a possibilidade de escolhas diversas dos meios e dos fins para a efetivao da ao no tinha lugar no mundo encantado. No entanto, o desencantamento iniciado pelo judasmo antigo e consumado pela cincia moderna diluiu completamente essa homogeneidade de sentidos, na medida em que diferenciou as formas de encadeamentos de significados das aes. Assim, cada esfera de conhecimento e de valor fornece uma linha especfica de ao, cabendo ao agente escolher se sua ao assumir Nesse predominantemente os um sentido de artstico, cientfico, poltico, pelo econmico ou religioso. sentido, novssimos modos existncia, colocados acontecimento histrico da racionalidade, so remetidos questo que nos parece central em Weber: a da liberdade do agir o que configura a possibilidade de ao racional o fato de ser o agente quem escolhe os meios, os fins e os valores que daro sentido sua ao, bem como dele a possibilidade de prever as conseqncias de sua ao no mundo. Assim, caracteriza-se exclusivamente o tipo de ao racional-teleolgica. Ela conjuga todos os elementos da ao; o tipo ideal

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de ao racional-valorativa desconsidera as conseqncias; a ao afetiva incorpora apenas os meios e os fins, e a ao tradicional atravessa, por assim dizer, os limites da racionalidade na medida em que supe somente fins que no so diretamente seus, mas esto arraigados na sociedade. Temos de nos lembrar, todavia, que o processo de desencantamento passou por inmeros eventos e no significou uma passagem direta entre a ao mgica para a ao racional moderna com seus sentidos a escolher. O monotesmo cristo colaborou enormemente no processo de desmagificao das imagens e das prticas mgicas do mundo, mas ao suprimir a magia, no suprimiu a noo de unidade de linhas de sentidos; esta apenas alou vo em direo transcendncia, ou seja, em direo metafsica. Com o cristianismo, os indivduos agem dispondo de uma unidade externa e interna de referncia de sentido extramundana e alheia s circunstncias intramundanas. Contudo, a teodicia peculiar dos puritanos calvinistas que orientava suas condutas, era substancialmente distinta da teodicia das religies de redeno, j que negava qualquer carter universalista salvao como sentido do mundo: o caminho que leva salvao particular, escolhido individualmente e somente possvel mediante a ao intramundana de domnio do mundo. Pode parecer antinmico pensar uma teodicia que se desfaz da universalidade, mas devemos nos remeter, sempre que necessrio, ao fato de que o esquema analtico de Weber opera com conceitos tpicos ideais que, enquanto tais, so forjados a partir da acentuao unilateral de uma ou mais caractersticas. Neste caso, os protestantes calvinistas no excluram, de acordo com Weber, o sentido tico-valorativo de sua ao; ao contrrio, permaneceram fiis a um fim teocntrico e salvacionista, uma vez que, em sendo uma religio, algum trao doutrinrio deveria fundament-la. Mas o que particulariza a ao puritana em face das outras aes religiosas? O fato de caracterizar uma ao de domnio racional e intramundano do mundo, isto , os puritanos buscam meios prticos, a dedicao ao trabalho, para o vislumbre do sinal de salvao. Com isso, ao invs de tenso com as ordens modernas, o capitalismo, a burocracia e a cincia, os puritanos adequaram-se confortavelmente a elas e ainda contriburam substancialmente, acrescenta Weber, para o seu desenvolvimento. A ao de domnio do mundo dos puritanos, portanto, desempenhou um papel fundamental no primeiro momento do processo de desencantamento e de racionalizao do mundo ocidental. Ora, se existiu um primeiro momento, logicamente que ao menos um segundo lhe foi subseqente; ento, qual teria sido ou mesmo qual este, j que o momento pode ter sua vigncia intocada ou transfigurada nos dias atuais? Podemos dizer, seguindo Weber, que o momento

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histrico em que a cincia moderna conseguiu dar cabo de qualquer resqucio da unidade de sentido supostamente presente nas imagens de mundo tico-religiosas foi o responsvel pelo desencantamento completo e irrestrito do Ocidente; marcou tambm a vitria da cincia na luta com as esferas essencialmente com a esfera religiosa e tica que reclamam para si a supremacia nas orientaes das condutas dos indivduos. A tentativa de recortar esse desencantamento cientfico como evento temporalmente posterior ao desencantamento tico-puritano implica dificuldades tericas e histricas em nada desprezveis. Como desconsiderar a relevncia das descobertas cientficas do Renascimento, as revolues no campo da matemtica e da fsica com Galileu e Descartes, enfim, a guerra empreendida pela cincia contra a religio e as tradies e o acento cada vez mais ntido e eficaz na autonomia da razo? Estes eventos foram, em sua maioria, anteriores ao pice do desencantamento religioso. nesse sentido que concordamos, em princpio, com a crtica de Habermas teoria da racionalizao de Weber, no que diz respeito especificamente ao privilgio dado por Weber ao desencantamento religioso. Segundo Habermas, Weber limitouse a considerar a importncia do desencantamento das imagens religiosas do mundo a partir do prisma da tica protestante, passando por cima da significao cultural de outros elementos plsticos da cultura moderna, a saber, do humanismo renascentista, do empirismo filosfico e cientfico, enfim, do desencantamento operado pelas esferas da cincia e da filosofia. Em seus termos:

Weber percebe com muita acuidade a estreiteza da doutrina calvinista da graa e os traos repressivos das formas de vida assim cunhadas; mas Weber se recusa a compreender a tica protestante como explorao unilateral de um potencial elaborado na tica universalista da fraternidade. De fato na tica protestante se espelha o modelo seletivo da racionalizao capitalista como um todo (...). Creio que a tese de Weber precisa ser revista e ampliada tendo em vista outros portadores sociais do capitalismo nascente (Habermas, 1987:88).

A ressalva de Weber, amplamente discutida em A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo, segundo a qual a tica profissional dos calvinistas constituiu-se apenas em uma das causas da emergncia do capitalismo, no convence Habermas, portanto. De fato, se o prprio Weber que defende a necessidade de se compreenderem os fenmenos sociolgicos a partir de conexes significativas de causas, por que ento conceber a tica protestante, no campo

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das causas internas, como a portadora por excelncia da emergncia da sociedade moderna? A bem da verdade, esta questo assim formulada passa por cima de uma especificidade da ao protestante, isto , a de ser uma ao apreendida e executada do ponto de vista da racionalidade prtica. Mas o que exatamente isto significa? Ora, o homem de cincia que vai nos dizer que no dado ao cientista social, ou a qualquer outro, a possibilidade de conhecer toda a realidade, mas apenas partes nfimas dela. Por isso, metodologicamente necessrio recortar aspectos e tentar explic-los. E o seu recorte para compreender o fenmeno da racionalidade moderna foi o de investig-la a partir das mudanas significativas operadas nas condutas dos indivduos ao longo dos tempos; em outros termos, seu enfoque terico a racionalidade prtica. Sendo assim, j no seguimos Habermas na sua crtica, visto que a preeminncia da tica puritana metodolgica e historicamente justificada. Alm do que, se por um lado Weber no escolheu a racionalidade teortica como tema central de sua anlise do processo de racionalizao e, por conseguinte, da apario da sociedade moderna, por outro, como fenmeno fundamental que a cincia comparece nas suas investigaes sobre o pice do desenvolvimento da racionalidade ocidental. Isto porque Weber privilegia, atravs do desencantamento cientfico, o momento em que a cincia no mais compatvel com as outras esferas de valor (tica, religio e arte) e assume-se como fora preponderante, totalmente impessoal e responsvel pelo ltimo golpe no processo de deseticizao do mundo (Habermas, 1987), assim como pela conseqente derrocada das imagens metafsico-religiosas enquanto estruturas fornecedoras de sentido desse mesmo mundo. Em outros termos, a cincia contempornea de Weber e a nossa mais do que qualquer outra levou ao paroxismo a racionalidade formal e transformou-se em um mecanismo instrumental que detm um poder ilimitado de conhecimento, realizando o que Bacon tanto almejou na sua poca para o saber cientfico: destruiu os mistrios, quebrou os dolos e tudo submeteu aos seus critrios de objetividade. Todo o resto, isto , as questes mais ntimas e profundas dos homens, que do sentido s suas vidas, quais sejam, o que a morte, quem Deus etc., no encontram adequao ao seu mecanismo causal, portanto, so relegadas ao reino do irracional. Weber, no entanto, no viu esse desencantamento com otimismo racionalista, nem concluiu que tenha melhorado a existncia entre os homens, ou tampouco que estes passaram a conhecer mais sobre as coisas que dizem respeito s suas vidas. O homem de hoje no conhece mais do que o homem encantado sobre o mecanismo da vida, pois o processo de racionalizao, na verdade, deu ao mundo

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contemporneo uma dimenso meramente prtica, o essencial das coisas foi deixado para trs, a vida ntima do indivduo perdeu-se em meio mecanizao das relaes sociais. Em nosso entender, o diagnstico weberiano do desencantamento cientfico intensifica-se e ganha contornos ainda mais crticos quando ele afirma que a cincia, medida que se assume enquanto saber emprico com capacidade de fazer prognsticos e de tudo submeter ao seu conhecimento objetivo, acaba sendo usada no desenvolvimento das foras produtivas e no aperfeioamento da explorao nas relaes de trabalho. Escreve em A Cincia como Vocao: A cincia contribui para a tecnologia do controle da vida calculando os objetos externos bem como as atividades do homem (Weber, 1982:178). Nessa perspectiva, Weber concebe o conhecimento cientfico com um pessimismo que no existe em Marx. Ao contrrio, este ltimo acreditava que o desenvolvimento tecnolgico seria um importante colaborador na organizao da fora de emancipao do proletariado. Por essa razo, Adorno e Horkheimer, na tentativa de se apropriarem dialeticamente desses dois pensadores, concentram-se na crtica weberiana ao processo de intelectualizao como instrumentalizao de todos os mbitos de atuao do homem contemporneo, isto , do conhecimento, das relaes interpessoais, das instituies sociais etc. Mas o fazem com uma significativa diferena, esta podendo ser explicada pelo tempo que os separa. Weber acreditava que as esferas artstica e sexual mantiveram-se refratrias dominao das ordens e dos mecanismos racionais. De forma contrria, Adorno e Horkheimer tornaram-se clebres justamente por terem concebido o conceito de Indstria Cultural que, em linhas excessivamente gerais, significa o processo de mercadizao da cultura, inclusive e principalmente da arte. Este elemento diferenciador, todavia, no pode simplesmente apagar a leitura clssica dos filsofos da Dialtica do Esclarecimento no que concerne concepo de desencantamento cientfico de Max Weber. Este conceito, j to carregado de tons pessimistas na escrita e na fala do pensador de Cincia como Vocao, adquire contornos ainda mais pungentes de melancolia nos fragmentos de Adorno e Horkheimer pois, para estes ltimos, a luta empreendida pela racionalidade (ou pelo esclarecimento) ocidental contra o mito resume-se na tentativa de esconder o mito que a fundamenta, que a carrega num movimento dialtico que no encontra sntese possvel. Neste projeto civilizatrio reside, portanto, de acordo com os autores, um aspecto regressivo, posto que o homem aprendeu progressivamente a controlar a natureza em seu prprio benefcio, mas acabou por reverter esse movimento ao seu contrrio, isto , barbrie, em virtude da unilateralidade com que foi conduzido desde os primrdios at os dias

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atuais. A unilateralidade de que falam os pensadores , em nosso entender, a primazia da racionalidade instrumental e do conhecimento objetivo a expensas de outros aspectos constitutivos do homem, a exemplo, de seus afetos, de suas emoes, de sua busca do sentido da vida (Adorno & Horkheimer, 1985:43). Na escritura weberiana, contudo, no encontramos a presena, acentuadamente negativa, da concepo de racionalidade que estes pensadores herdaram de Marx. Se da leitura da teoria de Weber, Adorno e Horkheimer priorizam e exageram no sentido especfico da caracterizao do tipo ideal a unilateralidade da razo instrumental, da leitura da teoria marxiana enfatizam a compreenso de racionalidade como um processo histrico e gentico de alienao dos indivduos. Na verdade, eles nos fazem lembrar o abismo que separa a concepo de racionalidade de Weber daquela de Marx, uma vez que para o primeiro a racionalidade e foi condio de liberdade de ao dos sujeitos, ainda que sua histria seja marcada, tambm, por paradoxos inexplicveis, dentre os quais, a priso de ferro. Podemos entender a emergncia desse paradoxo a partir de dois eventos intimamente imbricados. O primeiro, em ordem cronolgica e metodolgica, o momento em que a ao dos empreendedores puritanos engendra conseqncias sociais no-intencionais; o segundo caracteriza-se pelos feitos do desencantamento cientfico, quais sejam, a supresso da preeminncia das estruturas de sentido tico-metafsicas, o conseqente pluralismo de valor e a hegemonia, no mundo contemporneo, do saber instrumental, que no pode e nem deve constituir-se em esfera doadora de sentido do mundo. dessa forma que Weber defende o carter peculiar e ideal-tpico da tica calvinista, pois somente ela foi a responsvel pela concepo de uma conduta de vida racional e metdica que configurou por excelncia o elemento intermediador entre os dois principais eventos histricos, a saber, a racionalizao das imagens do mundo e a racionalizao social. Mas como se relacionam, na compreenso weberiana, esses elementos? A institucionalizao do capitalismo e a do Estado moderno, expresses mximas da racionalizao social, somente se tornaram possveis a partir do momento em que o contedo cultural foi absorvido pelas modernas condutas de vida, com seu carter racional, metdico e secularizado. Essas estruturas diferenciadas de racionalizao foram incorporadas a um determinado tipo de ao social, que conjugou, de um lado, a ao racional orientada por valores e, de outro, a ao racional orientada por fins; a essa forma tpico-ideal de ao Weber chama de racionalidade prtica. Sabemos que Weber destaca o carter multifacetado, polissmico e perspectivista da racionalizao, isto : uma ao vista a partir de um determinado

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ngulo pode ser racional, e vista por outro pode no s-lo. Exemplo disto a ao econmica a partir da perspectiva de um capitalista e esta mesma pela tica de um operrio. Portanto, a racionalidade formal jamais consoante com a racionalidade substantiva ou material (Weber, 2002:64). Este um paradoxo visceral, no qual os indivduos da alta modernidade (Giddens, 1991) se deixaram enredar. O que precisamente essa afirmao significa? Significa, por um lado, que a racionalidade carrega no prprio processo de desenvolvimento o seu elemento incompatvel, a sua carga de irracionalidade constitutiva (Lwith, 1999:21-2); por outro, significa tambm que nem a racionalidade, nem a irracionalidade caracterizam-se, na tica weberiana, como entidades objetivas que determinam de fora o sujeito. Paradoxalmente, Weber explica a emergncia, no contexto moderno, do fenmeno social da irracionalidade ou se se quiser, da ausncia de autonomia mediante a predominncia da racionalidade formal a expensas da racionalidade material, isto , apenas quando os meios sobrepem-se aos fins nas aes, a racionalidade perde terreno para a irracionalidade. Para ilustrar essa discusso reportamo-nos a uma passagem especfica da controvrsia de Weber com Knies:Quanto mais "livre", isto , quanto mais a "deciso" do agente for tomada com base apenas em "ponderaes" prprias, no pressionadas por "coao externa", nem por "paixes" irresistveis, tanto mais a motivao se adapta, ceteris paribus, s categorias "fim" e "meios"; tanto mais sua anlise racional e, eventualmente, a sua insero num esquema de ao racional tornam-se possveis; porm, igualmente grande, em conseqncia disso, o papel desempenhado pelo conhecimento nomolgico, tanto para o agente quanto para o pesquisador, sobretudo no caso em que o agente condicionado pelos meios (Weber, 1999:97; grifo nosso).

Pela tica weberiana subsiste, portanto, uma incompatibilidade lgica e histrica entre a racionalidade formal e a material, no apenas porque a racionalidade se divide em modos diversos de atuao, mas principalmente porque a racionalidade formal engendra regras gerais de funcionamento para a esfera econmica. Estas se traduzem em meios adequados s suas aes, das quais no possvel escapar se o agente quiser obter xito e sucesso econmico. Tais leis, evidentemente, no contemplam as particularidades da racionalidade material, seus valores ltimos e seus significados da vida, da no se encontrarem harmonicamente na vigncia das aes. E Weber acrescenta que a condio para uma ao livre no plano econmico a obedincia s leis da economia (Weber, 1999:97). Se acaso no tivermos presente toda a demanda conceitual que as noes weberianas carregam, poderamos facilmente aludir existncia de imprecises e

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ambigidades tericas em diversos momentos de sua escritura. Como dizer, pois, que a ao livre aquela que se despoja completamente de quaisquer interferncias externas e motivaes irracionais internas, ao mesmo tempo em que se afirma que a ao econmica somente livre e racional se seguir as regras auto-impostas pela economia? Existe de fato a a liberdade de deciso? Por definio, a obedincia a leis no seria a negao da liberdade? Essa dificuldade resolvida se considerarmos o conceito weberiano de liberdade que, grosso modo, no se distingue, por exemplo, do conceito de Kant, uma vez que nele predomina a idia a idia de que o agente toma suas decises com base apenas em ponderaes prprias, ainda que essas ponderaes sejam resultantes de construtos gerais, como as leis internas da esfera econmica. Ora, reclamar para a liberdade a insubordinao a quaisquer formas de determinao , no limite, pens-la em termos no-humanos ou no-racionais, visto que alguma considerao com o espao de atuao do outro deve existir, seno o retorno seria imediato ao estado de natureza hobbesiano. Para Weber, especialmente, o tema da liberdade vem necessariamente acompanhado do tema da responsabilidade tica, isto , a partir de meios dados, o agente calcula as oportunidades e as conseqncias da efetivao dos fins de sua ao. Sendo assim, a tica da responsabilidade coloca-se como uma antpoda da tica irracional da convico, que despreza as conseqncias das aes e se liga ao racional-final. Em vista dessa evidente interpenetrao da ao racional-final e da tica da responsabilidade, torna-se fcil perceber que, para Weber, a racionalidade - mesmo ou essencialmente a que caracteriza a alta modernidade no se define por ser uma entidade histrica aqum e alm dos embates ticos do indivduo, ao contrrio, est entranhada neles (Lwith, 1999:21). Por essa razo, a noo de paradoxo visceral e inescapvel nos causa certo mal-estar pensador como Weber. E o que dizer ento de metforas freqentes na escrita weberiana, como destino, ou menos freqentes, como priso de ferro? Em Weber, a metfora priso de ferro encontra-se resumida nos ltimos pargrafos de tica Protestante e no ensaio Parlamento e Governo. E o conceito de pluralismo de valores, ao qual se liga tambm a noo de destino, espalha-se em diversos textos de Weber, especialmente no ensaio Cincia como Vocao e no ensaio sobre O Sentido da Neutralidade Axiolgica nas Cincias Econmicas e Sociais. Mas ambos, de alguma forma, metfora e conceito, configuram o diagnstico da modernidade e encontram a sua unidade de sentido na noo controversa de destino termo to presente e to pojado de contradies. Como conceber a idia de uma trama prescrita e inexorvel ao tempo em que sua nfase metodolgica e existencial nas aes sociais com sentido subjetivamente intentado? Como

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conciliar destino e ao? O que queria Weber nos dizer com formulaes semnticas to fechadas e incompatveis com seus pressupostos tericometodolgicos e que assim dificultam a compreenso do seu esquema? Antes do mais, devemos sublinhar a tarefa rdua com a qual nos defrontamos - a compreenso weberiana de destino dado o fato, principalmente, de Max Weber no ter explicitado o que para ele era destino. Ao menos at onde sabemos, existe um silncio acerca dessa temtica que lhe era cara, salvo uma bela passagem do ensaio sobre A Objetividade nas Cincias Sociais, segundo a qual o destino do homem moderno escolher o seu prprio destino. O trocadilho proposital pretende acentuar o duplo sentido de destino para Weber, respectivamente, enquanto destino cultural e enquanto existencial ou prprio a cada indivduo. Todavia, permanece em ambos a compreenso de destino como a possibilidade inescapvel, se se quiser conduzir conscientemente sua vida e escolher dentre os diversos valores contraditrios e irreconciliveis aqueles que orientam suas aes no mundo. E, finalmente, a passagem do Ensaio:O fruto da rvore do conhecimento, inevitvel, mesmo que seja incmodo para a comodidade humana, no consiste em outra coisa que no o fato de ter de saber da existncia daquelas oposies e, portanto, de ter que ver que toda ao singular importante e, muito mais que isso, que a vida como um todo, se no quer transcorrer como um fenmeno puramente natural, mas pretende ser conduzido conscientemente, significa uma cadeia de decises ltimas em virtude das quais a alma, assim como em Plato, escolhe o seu prprio destino isto , o sentido do seu fazer e do seu ser (Weber, 2001:374).

Segundo nos parece, a comparao com Plato inslita, j que o destino, como concebido por Weber, no mais o destino ou Anank, em terminologia dos gregos antigos preocupados com uma trama prescrita e inexorvel das tragdias, ou com estruturas ideais ou empricas a partir das quais o indivduo escolhe o caminho da althea, o mundo das idias, ou o caminho da doxa, o mundo da aparncia, de acordo com Plato (Schluchter, 2000). Em tempos modernos, conforme Weber, outras circunstncias se colocam: ao invs de uma unidade de sentido que est a, orientando os indivduos para o que eles devem fazer e como faz-lo na sua existncia diria distinguindo o tico do no-tico, o belo do nobelo e, por fim, fornecendo a unidade explicativa e justificativa do mundo e das aes no mundo (Weber, 1982:74) temos as circunstncias trgicas de um homem sozinho diante da difcil tarefa de construir no somente o sentido de sua prpria existncia, mas tambm o do mundo no qual existe. E este o seu destino. Desta arte, as noes weberianas de destino e de ao no se excluem, mas se completam, j que agir racionalmente no mundo desencantado escolher seu prprio destino, isto , a direo que se deseja dar vida. Essa relao nos remete,

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inevitavelmente, a uma passagem do texto A Psicologia das Religies Mundiais, no qual Weber discute se so os interesses ou as idias que orientam o curso da histria. E ele conclui, contra qualquer imputao materialista ou idealista, que depende da fora que uns e outras possam assumir em determinado momento do trem da vida. Mas tambm nos remete a uma idia central no seu esquema analtico, segundo a qual as escolhas de um ou mais agentes podem impor-se a uma coletividade, tornando-se referncias significativas uniformes. Este o drama e a trama da modernidade desencantada sobre a qual nos escreve Weber. Disso queremos apreender a idia de que em Weber nada ocorre como uma trama prescrita e determinada objetivamente como parece sugerir uma primeira leitura do seu esquema terico, pois a metfora destino j est bastante carregada histrica e filologicamente de uma definio daquela prescrita e determinada natureza. Weber foi um pensador inscrito em um tempo filosfico preocupado com os sentidos petrificados dos termos; porm, diferente de pensadores como Nietzsche e Heidegger, que constroem neologismos para fugir das armadilhas das palavras, ele no somente permanece com o vocabulrio corrente, como nem sempre julga necessrio esclarec-lo rigorosamente, como seria o seu feitio de cientista rigoroso. Da o natural atordoamento que nos acomete quando estudamos os textos weberianos. Contudo, no menos atordoados ficamos quando nos debruamos sobre a verdadeira poitica de conceitos que caracteriza a obra de Heidegger e de Nietzsche, exigindo, principalmente o primeiro, a incurso num mundo secreto da linguagem restrito a poucos afortunados. Weber, em nosso entender, no exige de seus leitores uma incurso a um mundo estranho quele que se apresenta em seu dia-a-dia ordinrio, marcado pelo empobrecimento e pela instrumentalizao da linguagem; pelo contrrio, sugere para o indivduo que deseja conduzir racionalmente sua ao que encare esse mundo de frente, e tente, dentro das condies reais do momento, recuperar o controle dos cordes de sua prpria vida. Por isso, qualquer tentativa de nos valermos desses recursos explicativos para minimizar a carga estrutural da metfora priso de ferro -nos invlida e, tanto pior, incorreremos em desonestidade intelectual. No apenas porque Weber define priso de ferro tal como veremos a seguir, como limites liberdade dos indivduos da alta modernidade mas principalmente, enquanto conceito tpico, ele no se presta a confuses com o uso ordinrio da linguagem e muito menos com a realidade ordinria. Ora, no escrevemos h pouco que priso de ferro uma metfora? Por que ento a definimos aqui como conceito tpico? possvel ser ao mesmo tempo metfora e conceito tpico-ideal?

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Sem a inteno de nos alongarmos no assunto, acreditamos que o carter construtivo do conceito de tipo ideal, a partir da comparao entre fenmenos ou mesmo realidades distintas, permite-nos supor que Weber no se mantm atrelado a um objetivismo prprio tradio positivista de sua poca segundo o qual as cincias, independente de serem histricas ou naturais, devem dizer a realidade tal qual ela se apresenta, em forma de leis gerais do acontecer social ou fsico, de modo objetivo e literal, isto , sem a mediao de sentidos imprecisos e deslocados de um outro registro, subjetivo e valorativo. Na tica weberiana, contudo, a realidade emprica eminentemente catica, singular e irracional, posto que imersa em valores culturais contraditrios entre si. O cientista, por isso mesmo, deve fazer um esforo racional de afastamento da realidade histrica para que possa elaborar conceitos tpicos os mais precisos e inequvocos possveis, pois quanto menos invadido por contedos valorativos, mais exato o conceito. Entretanto, essa preciso conceitual guarda a peculiaridade de ser o resultado ou o ponto de partida da comparao entre fenmenos histricos irredutveis. Por exemplo, da comparao entre as formas de racionalizao das culturas ocidentais e orientais, Weber construiu o tipo puro da racionalidade ocidental, sem a pretenso, ressaltamos, de subsuno de uma cultura por outra, ao contrrio, resguardando suas peculiaridades especficas. Dados esses critrios bsicos e necessrios para a correta formulao dos conceitos, como ento alcanar unidades conceituais, isto , tipos abstratos vlidos universalmente? Comparar fenmenos significa, de um lado, investigar o que existe de semelhante entre um e outro, e, por outro, significa tambm apanhar sua singularidade a partir de suas diferenas. Porm, em ambos os casos, a comparao (o tipo, portanto) supe a transposio de sentidos diversos para registros igualmente diversos, se considerarmos a definio de metfora enquanto (...) substituio de um termo por outro. O termo novo, metafrico, reflete a semelhana entre os dois, com base na diferena que d suporte substituio. De alguma forma, tal substituio produz significao (Bal, 2003:26). A distncia entre conceito e metfora na escritura weberiana perde, em larga medida, seu sentido, pois a distino basilar entre o conceito tpico burocracia e a metfora priso de ferro, em nosso entender, encontra-se na acentuao inequvoca de um dos elementos presentes na metfora: a perda de liberdade. Tal elemento tambm faz parte da burocracia, mas ao lado de outros, como do aspecto positivo da racionalizao burocrtica. Parece-nos que Weber pensou o termo priso de ferro com o objetivo explcito de traduzir um aspecto importante da situao do homem da alta modernidade.

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Perguntamos ento: que relaes se estabelecem entre destino e a metfora priso de ferro no esquema de Max Weber? Em nosso entender, enquanto priso de ferro, a metfora destino comparece como uma das conseqncias imprevistas das aes investidas de sentidos dos empreendedores calvinistas. Para Weber o indivduo o nico portador de sentido, ou seja, apenas o indivduo pode escolher o fim que deseja dar sua ao; e ao fazer isso, ele o responsvel pela orientao de sua conduta no mundo. Contudo, esse mesmo indivduo pode e precisamente esta a chave central para entender os limites histricos autonomia dos sujeitos agir reflexivamente, seguindo linhas de aes que j se tornaram referncias e que se sobrepuseram a outras igualmente possveis. Disso resulta no somente o objeto da sociologia para Max Weber, qual seja, as regularidades sociais, como tambm as amarras sociais que prenderam o homem contemporneo no destino da priso de ferro criado por ele mesmo. Esta mesma questo posta nos termos histricos da tica leva-nos ao homem puritano da Reforma e ao homem empreendedor do incio do capitalismo, que escolheram especializar-se numa vocao. O primeiro porque pretendia aumentar a glria de Deus no mundo terreno a fim de alcanar seu objetivo ltimo, qual seja, a salvao; por conseguinte, agia racionalmente, porque sua ao era livre e responsvel. Esse meio, o trabalho vocacionado, era o mais adequado aos calvinistas naquele momento, pois o que de fato se fazia fundamental era a sua salvao. Para o empreendedor, sob a influncia do puritano, sua vocao obedecia a um fim quase transcendental