Radames Gnnatali Suite Retratos

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FACULDADE SANTA MARCELINA Projeto de Pesquisa em Iniciação Científica PIBIC Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica A apropriação como homenagem na Suíte Retratos de Radamés Gnattali A citação no processo composicional Aluno: Lucas Zangirolami Bonetti Orientador: Prof. Dr. Maurício Oliveira Santos

Transcript of Radames Gnnatali Suite Retratos

  • FACULDADE SANTA MARCELINA

    Projeto de Pesquisa em Iniciao Cientfica

    PIBIC Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica

    A apropriao como homenagem na

    Sute Retratos de Radams Gnattali

    A citao no processo composicional

    Aluno: Lucas Zangirolami Bonetti

    Orientador: Prof. Dr. Maurcio Oliveira Santos

  • 2

    RESUMO

    O cerne deste estudo foi abordar a citao, com todo seu potencial criativo,

    como procedimento composicional utilizado na obra Sute Retratos de Radams

    Gnattali. Essa pesquisa tambm teve o intuito de compreender a sntese que

    Radams realiza com a escolha de quatro figuras fundamentais na histria do

    choro: Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha

    Gonzaga. Por meio da anlise composicional, procurou-se esclarecer de que

    modo e em que momentos Radams os cita e transforma o seu material

    musical.

    Palavras-chave: Radams Gnattali, Sute Retratos, choro, citao, processos

    composicionais

    ABSTRACT

    The core of this study is to approach the citation, with all its creative potential, as

    a compositional procedure used in the work Sute Retratos by Radams Gnattali.

    This research has also the aim of understanding the synthesis that Radams

    accomplishes with the choice of four essential characters in the history of the

    choro: Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha

    Gonzaga. Through compositional analysis, it is clarified how and where

    Radams cites them and transform their musical material.

    Key-words: Radams Gnattali, Sute Retratos, choro, citation, compositional

    process

  • 3

    SUMRIO

    Pgina

    Lista de Figuras 5

    Introduo 8

    CAPTULO 1 Contextualizao scio-histrica do choro 15

    1.1 A sedimentao do gnero

    1.2 Os primeiros msicos e seus instrumentos

    1.3 Chiquinha Gonzaga

    1.4 Ernesto Nazareth

    1.5 Anacleto de Medeiros

    1.6 Origem do termo choro

    1.7 Pixinguinha

    1.8 Forma e harmonia

    CAPTULO 2 A apropriao musical como homenagem 35

    CAPTULO 3 Sute Retratos 47

    3.1 Introduo s anlises

    Desenvolvimento histrico da sute como forma musical

    Contexto histrico da Sute Retratos

    Pressupostos sobre as anlises

  • 4

    3.2 Anlises

    I Pixinguinha

    II Ernesto Nazareth

    III Anacleto de Medeiros

    IV Chiquinha Gonzaga

    3.3 Observaes Gerais

    Consideraes Finais 81

    Referncias Bibliogrficas 83

    Anexos 88

  • 5

    Lista de Figuras

    Pgina

    FIG. 1 Claves rtmicas de acompanhamento da polca europeia

    e da polca abrasileirada. 20

    FIG. 2 Comparao entre a melodia extrada do Choros n. 10 de

    Villa-Lobos e a melodia original do tema Yara de Anacleto de

    Medeiros (SALLES, 2009, p. 241). 40

    FIG. 3 Trecho da Sinfonia, de Luciano Berio. Primeira

    pgina do terceiro movimento (In Ruhig Fliessender Bewegung). 42

    FIG. 4 Comparao da melodia e da letra das canes:

    Ronda, de Paulo Vanzolini e Sampa de Caetano Veloso. 43

    FIG. 5 Comparao meldico-harmnica entre Insensatez,

    de Tom Jobim e o Preldio n 4, de Frdric Chopin. 44

    FIG. 6 Comparao meldica dos trechos iniciais

    (seo A) do primeiro movimento da Sute Retratos,

    de Radams Gnattali, e de Carinhoso, de Pixinguinha. 56

  • 6

    FIG. 7 Comparao harmnica de trechos do primeiro movimento

    da Sute Retratos (compassos 1416), de Radams Gnattali, e de

    Carinhoso (compassos 14), de Pixinguinha. 58

    FIG. 8 Comparao meldica dos trechos iniciais do primeiro

    movimento da Sute Retratos (seo B), de Radams Gnattali, e de

    Ingnuo (seo B), de Pixinguinha. 59

    FIG. 9 Comparao meldico-harmnica dos trechos iniciais do

    segundo movimento da Sute Retratos (seo A), de Radams Gnattali,

    e de Expansiva (Seo A), de Ernesto Nazareth. 62

    FIG. 10 Comparao meldica dos trechos iniciais (seo B) do

    segundo movimento da Sute Retratos, de Radams Gnattali, e de

    Expansiva, de Ernesto Nazareth. 63

    FIG. 11 Comparao meldica de trechos (seo B) do segundo

    movimento da Sute Retratos (compassos 11 e 12), de Radams

    Gnattali, e de Expansiva (compassos 7 e 8), de Ernesto Nazareth. 64

    FIG. 12 Comparao meldica dos trechos iniciais (seo C)

    do segundo movimento da Sute Retratos, de Radams Gnattali, e de

    Expansiva, de Ernesto Nazareth. 65

  • 7

    FIG. 13 Comparao meldica dos trechos iniciais (seo A)

    do terceiro movimento da Sute Retratos, de Radams Gnattali, e de

    Trs Estrelinhas, de Anacleto de Medeiros. 68

    FIG. 14 Comparao harmnica e rtmica dos ostinatos de

    acompanhamento do quarto movimento da Sute Retratos, de

    Radams Gnattali, e de Corta-Jaca, de Chiquinha Gonzaga. 72

    FIG. 15 Comparao meldica dos trechos iniciais (seo A)

    do quarto movimento da Sute Retratos, de Radams Gnattali e

    de Corta-Jaca, de Chiquinha Gonzaga. 73

    FIG. 16 Comparao meldica dos trechos iniciais (sees

    B e A, respectivamente) do quarto movimento da Sute Retratos,

    de Radams Gnattali, e de Corta-Jaca, de Chiquinha Gonzaga. 75

    FIG. 17 Comparao meldica dos trechos iniciais (sees

    C e B, respectivamente) do quarto movimento da Sute Retratos,

    de Radams Gnattali, e de Corta-Jaca, de Chiquinha Gonzaga. 75

    FIG. 18 Comparao meldica de trechos do quarto movimento

    da Sute Retratos (compassos 148151), de Radams Gnattali, e de

    Corta-Jaca (compassos 2932), de Chiquinha Gonzaga. 77

  • 8

    Introduo

    Este trabalho pretende investigar alguns procedimentos composicionais

    empregados por Radams Gnattali em sua Sute Retratos, principalmente a

    apropriao e transformao de material temtico e harmnico extrado das

    obras e outros compositores. Neste caso, esse material compreende elementos

    de linguagem musical encontrados nas obras dos quatro msicos

    homenageados pela obra em estudo. So eles, em ordem cronolgica,

    Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Pixinguinha. Os

    trs primeiros msicos tiveram um papel central na formao da msica popular

    brasileira, na passagem do sculo XIX para o XX. J Pixinguinha, que surge em

    um momento posterior, participou do incio das gravaes e do rdio no Brasil e

    viria a se tornar a figura mais imediatamente associada ao choro, por muitas

    geraes que se seguiram, at os tempos atuais. J o autor das homenagens,

    Radams, uma espcie de coringa na histria da msica brasileira. Como o

    seu mais prolfico arranjador, participou dos mais variados contextos musicais,

    em todos os gneros instrumentais e de cano, e em sua obra composicional

    procurou amalgamar elementos provenientes das mais diversas fontes,

    proporcionando-lhes uma nova unidade. Na Sute Retratos, mais uma vez, ele

    exerce este papel.

  • 9

    Ao longo dos anos, a Sute Retratos tem sido executada em diversos

    arranjos para formaes bastante diferentes, e muito foi comentado sobre sua

    importncia para o repertrio brasileiro. Contudo, pouco ou nenhum material

    analtico-musical foi editado e publicado at hoje. Portanto, essa pesquisa vem

    com o intuito de preencher parte dessa lacuna na histria da anlise de msica

    brasileira. apropriado dizer tambm que este trabalho est longe de esgotar

    todas as possibilidades analticas dessa obra especfica; entretanto, esperamos

    que ele venha a incentivar outros pesquisadores a dialogar com o tema. Para

    contextualizar o trabalho, ser importante descrever brevemente a vida e a obra

    de Radams, que auxiliar no entendimento geral do que se prope a seguir.

    Radams Gnattali nasceu no dia 27 de janeiro de 1906, na Rua

    Fernandes Vieira em Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul. Foi o

    primognito de cinco irmos. Seu pai, Alessandro Gnattali, veio da Europa em

    1896 e exercia a profisso de marceneiro, apesar de ter estudado piano,

    contrabaixo e fagote, com especial afeio pelo ltimo instrumento, com o qual

    chegou a tocar em orquestras e dar aulas, alm de reger pequenos grupos. J

    sua me, Adlia Fossati Gnattali, era dona de casa e musicista amadora.

    Radams comeou a aprender piano em casa com sua me aos quatro

    anos de idade. Mais tarde, aos catorze, foi admitido no Conservatrio de Msica

    de Porto Alegre, onde se formou com o professor Guilherme Fontainha. Apesar

    de seu instrumento principal ser o piano, Radams tambm teve contato com

    instrumentos de sopro e corda como a flauta, o clarinete, o pistom, o saxofone, o

    violo, o cavaquinho, o violino e a viola (com a qual chegou a tocar em quartetos

  • 10

    de corda e orquestras).

    Acreditando no talento de Radams, Guilherme Fontainha (tambm

    diretor do Conservatrio em que estudava) o levou ao Rio de Janeiro, onde, em

    1924, quando cursava o ltimo ano de piano, realizou seu primeiro concerto, na

    Escola Nacional de Msica. Radams executou Franz Liszt e Wilhelm

    Friedemann Bach para um grande pblico. Entre os presentes estavam

    renomados crticos musicais da poca, que teceram-lhe muitos elogios em

    resenhas no Jornal do Comrcio, Jornal do Brasil, Gazeta de Notcias, Correio

    da Manh e O Jornal.

    Assumidamente, Radams pretendia se tornar um grande concertista de

    piano. No entanto, no contexto em que vivia, no encontrou condies para

    seguir nesta carreira. Radams comeou, ento, a tocar tambm msica

    popular, primeiramente em cinemas mudos e depois nas rdios. Em depoimento

    registrado no site dedicado a sua vida e obra1, Radams afirma: Nunca me

    frustrei em fazer msica popular, fao isso com todo o prazer e gosto muito. S

    de conviver com Pixinguinha [Alfredo da Rocha Viana Filho], um sujeito

    fabuloso, com Garoto [Anbal Augusto Sardinha], Dino [Dino 7 cordas

    Horondino Silva], Joo [Joo da Baiana], Jacob [Jacob do Bandolim], excelentes

    msicos. Se eu tivesse ido Europa, poderia ter sido um grande pianista, mas

    nunca seria um compositor brasileiro.

    Nos anos 30, Radams foi incentivado por seu ex-professor, Guilherme

    Fontainha, a mudar-se para o Rio de Janeiro. O principal objetivo era o de

    1 Ver www.radamesgnattali.com.br.

  • 11

    preparar-se para um concurso vaga de professor catedrtico do Instituto

    Nacional de Msica. Ele se mudou, contudo, no realizou seu intento, pois o

    concurso foi cancelado por Getlio Vargas, presidente do Brasil na poca.

    J no Rio de Janeiro, Radams tocava piano em diversas orquestras de

    rdio, bailes de carnaval, operetas e ainda acompanhava praticamente todos os

    cantores. Alm disso, tambm escrevia excertos que eram tocados nos buracos

    de programao das rdios. Em suas primeiras composies populares,

    Radams assinava com o pseudnimo Vero (masculino de Vera, sua primeira

    mulher), pois naquele tempo no ficava bem um msico erudito fazer msica

    popular (BARBOSA, 1984, p. 33).

    O nicho musical em que Radams mais trabalhou ao longo de sua vida foi

    o de arranjador e compositor de msica popular. Foi contratado por diversas

    rdios como a Rdio Clube, Nacional, Tupi, Mayrink Veiga, Victor etc., e mais

    tarde at mesmo por corporaes televisivas como a Rede Globo. Nessas

    empresas, Radams gravou e escreveu para as mais diversas situaes, desde

    formaes pequenas como trio de clarinete, piano e bateria at enormes

    orquestras que acompanhavam cantores da poca urea da Radio Nacional, por

    volta dos anos 40 e 50, como Orlando Silva, Francisco Alves e Slvio Caldas.

    Radams tambm obteve grande xito em seus arranjos e orquestraes de

    msica brasileira. Sendo que um dos maiores diferenciais em seus arranjos foi a

    incluso de ritmos mais marcados nos naipes de sopro e corda, j que antes

    esses ritmos eram escritos apenas para os percussionistas.

  • 12

    Ao longo de sua vida, Radams conheceu e conviveu com msicos de

    rara sensibilidade e de extrema importncia: Garoto, Pixinguinha, Ernesto

    Nazareth, Jacob do Bandolim, Raphael Rabello, Turbio Santos, Tom Jobim,

    Luciano Perrone e Jos Meneses so alguns. Para a maioria deles Radams

    escreveu e dedicou diversas obras.

    A quantidade de gravaes feitas por Radams, de arranjos gravados por

    outros msicos e de arranjos inditos muito extensa2, e inclui tanto obras

    populares quanto eruditas. Podemos encontrar desde peas para cinema, bal e

    teatro; msica popular como choros, sambas, valsas e gneros nordestinos at

    grandiosas composies sinfnicas e de msica de cmara.

    Em 1943, Radams estreou um novo programa na Rdio Nacional, Um

    milho de melodias, que perduraria por treze anos. Paulo Tapajs e Haroldo

    Barbosa, discotecrios da rdio, selecionavam nove msicas por semana para

    serem arranjadas e tocadas por uma orquestra que mesclava instrumentos

    tpicos brasileiros com alguns advindos do jazz norte-americano. Com esse

    programa, sua produo aumentou muito, pois semanalmente precisava

    escrever os nove arranjos e ensai-los com a orquestra. Seus arranjos eram to

    inovadores que mobilizaram o cenrio musical da poca, pois as rdios

    concorrentes precisavam se atualizar para no perder audincia.

    Dos anos 60 at o fim de sua vida, em 1988, diversas composies de

    Radams foram gravadas e executadas publicamente pelos mais distintos

    msicos, orquestras, grupos de cmara, e conjuntos populares, inclusive seus

    2 Ver BARBOSA, Valdinha. Radams Gnattali: O eterno experimentador. Rio de

    Janeiro: Funarte, 1984.

  • 13

    prprios grupos, como seu sexteto que chegou a excursionar pela Europa e

    lanar alguns LPs.

    Em 1986, prestes a completar 80 anos, Radams sofreu um grave

    acidente vascular cerebral e passou longos meses buscando sua reabilitao

    com sesses de terapia. Lentamente, recuperou parte dos movimentos, a fala e

    a escrita, e logo voltou a estudar piano. Por seu progresso, os integrantes do

    Sexteto Radams comearam a preparar um concerto de retorno, entretanto, no

    final do mesmo ano, foi surpreendido por outro acidente vascular cerebral e as

    esperanas de voltar a tocar diminuram drasticamente. Radams passou dois

    difceis anos sem grandes melhoras, at morrer no dia 3 de fevereiro de 1988.

    Aps sua morte diversas homenagens foram realizadas, como o concerto

    Obrigado Radams Tributo a Radams Gnattali, ocorrido no Teatro Joo

    Caetano, Rio de Janeiro, organizado por Hermnio Bello de Carvalho; o Festival

    Villa-Lobos, que em 1988 foi dedicado memria de Radams Gnattali; e o

    concerto Para Sempre Radams, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que

    arrecadou fundos para a criao da Associao Radams Gnattali.

    Interessa para este trabalho ressaltar o fato de que Radams foi, na

    histria da msica brasileira, um dos msicos que mais trabalhou em seus

    arranjos e composies com materiais provenientes das mais diferentes

    vertentes estticas. Pela prpria natureza de seu trabalho, ele constantemente

    se via em situao de tomar nas mos msicas de outras pessoas para adequ-

    las ao contexto em que seriam executadas e no raro transformava-as

    completamente.

  • 14

    Estando no centro da produo musical no Brasil durante vrias dcadas,

    pode-se dizer que Radams tinha o repertrio da msica brasileira na mo, ou

    seja, lidava com um vasto material dos mais diferentes compositores,

    provenientes de todas as partes do pas. No surpreende, portanto, que no

    momento em que realiza uma composio-homenagem dedicada a importantes

    figuras da histria do choro, decida apropriar-se do material composicional

    desses msicos, para criar uma obra nova, que de algum modo sintetiza sua

    trajetria musical.

  • 15

    CAPTULO 1

    Contextualizao scio-histrica do choro

    1.1 - A sedimentao do gnero

    Existem controvrsias quando se tenta definir, com exatido, como se deu

    a formao do gnero choro. Em geral, acredita-se ser uma fuso de vrios

    gneros, em particular de ritmos africanos bastante percussivos com as

    principais danas europeias em voga no fim do sculo XIX.

    Desses ritmos africanos que influenciaram mais diretamente o choro,

    pode-se citar o lundu como o principal. Porm, a palavra lundu pode conter

    significados divergentes, pois tal gnero passou por processos de grande

    transformao no decorrer de sua histria. Segundo Carlos Sandroni (1958-),

    em seu livro Feitio Decente (2001, p. 39), a palavra lundu foi primeiramente a

    designao de uma dana popular, depois, de um gnero de cano de salo e,

    finalmente, de um tipo de cano folclrica.

    O lundu-dana, de acordo com Mario de Andrade (1893-1945), uma

    dana de origem afro-negra trazida pelos escravos bantos da regio da Angola

    e do Congo (ANDRADE, 1989, p. 434). Jos Ramos Tinhoro (1928-) cita a

    influncia negra do lundu no Brasil e como foi cultivado, tanto por negros

    escravos no terreiro, quanto por brancos e mestios nas salas de suas casas:

  • 16

    O grande sucesso do lundu baseava-se em que, aps quase duzentos anos de

    aculturao negra do Brasil, ele aparecia como a primeira forma de batuque

    africano estruturado em moldes de coreografia e de ritmo possveis de serem

    imitados no apenas pelos mestios, mas tambm pelos brancos colonizadores e

    seus descendentes nacionais (TINHORO, 1972, p.129).

    Em relao ao lundu-cano, Tinhoro diz que:

    () graas ao exotismo da sua origem popular, passou a interessar de um lado aos

    compositores cultos () e do outro aos msicos de teatro, que viam no casamento

    de um texto engraado com a malcia da dana uma boa atrao para o pblico de

    brancos amantes de emoes erticas (TINHORO, 1972, p.139).

    Tinhoro tambm prope uma ligao entre esse gnero de cano com

    o entremez de teatro (molde portugus de intercalar entre as representaes

    teatrais pequenos quadros com msica e dana): a nova variante da

    aculturao branco-negra no campo das batucadas se torna popular com o

    nome de lundu, os autores de entremezes no perdem tempo em levar a

    novidade para o palco (TINHORO, 1972, p. 139-40). Os lundus-cano eram

    usualmente nomeados por ttulos cmicos e tinham letras que expressavam um

    tipo de humor mais vulgar, o que se explica principalmente pelo seu uso teatral.

  • 17

    Alm da influncia direta do gnero lundu, a dana europeia mais

    intrinsecamente ligada ao universo do choro, pelo carter de sua forma e

    melodia, sem dvida a polca. Entretanto o choro, como gnero musical,

    advindo da maneira como os msicos interpretavam a polca e outras danas,

    incorporando toda a bagagem rtmica dos negros escravos vindos da frica. O

    choro, como gnero, nasceu da necessidade inconsciente de nacionalizar a

    msica estrangeira (WILLOUGHBY, 1998, p. 5).

    A polca chegou ao Brasil em 1845, acompanhando as significativas

    mudanas de costumes e hbitos pelas quais a sociedade passava desde a

    chegada da famlia real portuguesa, no incio do sculo XIX. A chegada da corte,

    mais precisamente em 1808, transformou a histria do Brasil, principalmente da

    cidade do Rio de Janeiro, que se tornou sede de uma monarquia europeia e

    capital de um imprio colonial. Por conta disso, diversas obras pblicas foram

    realizadas para adaptar a cidade, como a reforma e a construo de teatros, a

    fundao da Academia de Belas Artes e diversas prestaes de servios

    pblicos at ento inexistentes.

    Na poca que a polca despontou no Brasil, nos sales de dana, ocorreu

    uma grande liberao no comportamento da populao. Com isso, passou a ser

    comum uma interao mais prxima entre os pares de dana. Pode-se dizer que

    os pares ficaram um tanto mais permissivos, comparado com os padres da

    poca. Conforme cita Henrique Cazes (1998, p. 19-20), o soneto Uma

    Observao de Arthur Azevedo (1855-1908), publicado em 1904, um perfeito

    retrato da mudana de hbitos que se operava nos sales:

  • 18

    A moa est sentada. O moo amado

    Pra uma contradana vai tir-la

    Dai-me a honra? Pois no! E pela sala

    Ei-los a passear de brao dado.

    De amor quanto protesto alambicado

    Daqueles meigos coraes se exala

    T que as palmas batendo o mestre-sala

    Toma lugar o par apaixonado.

    Comea a dana. A mo do moo esperta,

    Bole, mexe, comprime, apalpa, aperta

    Durante uns turbulentos balancs:

    E uma senhora que no criana

    Sentada a um canto observa que na dana

    Hoje trabalham mais as mos que os ps.

    Por ser um gnero alegre e tocado rapidamente em compasso binrio

    (mtrica que evoca uma dana mais ritmada), a polca foi assimilada

    rapidamente pela populao. Essa modalidade musical, escrita em compasso

    binrio, foi muito danada na Polnia e aceita com entusiasmo por toda a

    Europa (). Foi recebida agradavelmente pelos brasileiros (LIRA, s.d., p. 232).

  • 19

    A polca tambm se caracterizava como uma semente de modernidade

    vinda da Europa, como diz Jos Miguel Wisnik (2002, p. 42):

    Um fenmeno musical popular e urbano que ganha espao real e tambm

    simblico: a polca um ndice de modos de modernizao brasileira, decantando

    uma certa malcia inocente, galhofeira e s vezes pomposa, no limite de uma

    gratuidade aliciante e de um pouco-se-me-d para a inteligibilidade estreita, que

    combina com a nova realidade do mercado em que tudo se mistura como notcia,

    publicidade e produto, num alegreto vivaz que afronta a seriedade das formas cultas

    e clssicas.

    Do ponto de vista musical, a polca europeia recebia o acompanhamento

    de colcheia mais duas semicolcheias no primeiro tempo e duas colcheias no

    segundo, enquanto que a polca abrasileirada pelos msicos que hoje

    chamamos de chores acompanhada pela sincopa no primeiro tempo e duas

    colcheias no segundo.

  • 20

    FIG. 1 Claves rtmicas de acompanhamento da polca europeia e da polca abrasileirada.

    (SANDRONI, 2001, p. 71)

    Essa modificao no acompanhamento rtmico denota uma sensvel

    amolecida no ritmo-motor dessas polcas. De acordo com Sandroni (2001,

    p. 188), diferenas so encontradas tambm no contexto verbal, principalmente

    pelos ttulos humorsticos que remetem ao universo afro-brasileiro, como,

    Sossega, Nhonh, A Baiana, etc.

    1.2 - Os primeiros msicos e seus instrumentos

    Segundo Henrique Cazes (1959-) e Jos Ramos Tinhoro, no ano de

    1850 a abolio do trfico de escravos tambm transformou a sociedade em

    geral, possibilitando aps essa data que uma classe mdia afro-descendente

    entrasse em ascenso. Essa classe, formada em sua maioria por funcionrios

  • 21

    pblicos (principalmente dos Correios e Telgrafos), alm de comerciantes de

    pequeno porte com uma situao razoavelmente estvel, agrupariam os

    principais ativistas e consumidores musicais da poca. Visto que a camada mais

    pobre no tinha condies sequer de possuir um instrumento musical ou de

    frequentar tais divertimentos musicais, pois em geral seus ofcios braais

    (carregadores, cavoqueiros, etc.) exigiam muito de seu fsico e tornava

    impossvel levar um ritmo de vida to bomio.

    Como no podia deixar de ser, essa multiplicao de obras e negcios (favorecidos

    estes, alis, pela liberao de capitais com a extino do trfico em 1850), ao

    implicar na diviso do trabalho, iria alterar a simplicidade do quadro social herdado

    da colnia e do primeiro reinado. Isso se traduziria no aparecimento, ao lado da

    moderna figura do operrio industrial (), das camadas algo difusas dos pequenos

    funcionrios dos servios pblicos () e das empresas particulares (...)

    (TINHORO, 1998, p.194).

    Os eventos em que aconteciam os encontros musicais dessa classe de

    funcionrios pblicos e afins eram as festas nas casas de alguns deles, o que

    tambm nos remete s suas condies socioeconmicas. Ora, quem dava

    festas em casa naquele tempo (), os que moravam em casas, isto , os que

    no eram to pobres a ponto de precisar viver nos barracos do Morro de Santo

    Antnio ou em quartos abafados de cortios (TINHORO, 1998, p. 200).

    Os primeiros chores maneira como so chamados at hoje os

    intrpretes do choro ou os que do interpretaes choradas, ou seja, com

  • 22

    linguagem de choro, aos seus trabalhos apareceram por volta de 1860,

    juntamente com os primeiros grupos instrumentais que tocavam o que hoje

    chamamos de choro e que eram formados principalmente por flauta, cavaquinho

    e violo. Henrique Cazes especula que isso se deva colonizao portuguesa,

    pois outros pases colonizados por Portugal tambm tiveram formaes

    instrumentais semelhantes como base de sua msica popular, como Cabo

    Verde, Jacarta, Goa e outros. Um dos primeiros grupos com essa

    instrumentao foi o grupo de Joaquim Antnio da Silva Callado (1848-1880),

    em que apenas o solista lia a msica e os outros faziam os acompanhamentos e

    condues de improviso. Acredita-se tambm que a primeira meno palavra

    choro se deu no grupo de Callado, pois o conjunto se chamava Choro Carioca3.

    Nas primeiras dcadas do sculo XX, foram incorporados novos

    instrumentos ao chamado trio de pau e corda (flauta, cavaquinho e violo), que

    foram: o oficleide4, o bandolim, o clarinete, o saxofone, o trompete, o trombone,

    e, por volta dos anos 30, a percusso, principalmente o pandeiro. A partir dos

    anos 40 alguns compositores e intrpretes como Radams Gnattali chegaram a

    tocar e escrever choro para grupos com piano, baixo, bateria, guitarra, acordeom

    e outros instrumentos menos comuns ao gnero.

    Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e Anacleto de Medeiros trs dos

    homenageados por Radams Gnattali na Sute Retratos so contemporneos

    de uma poca que teve importncia capital para a sedimentao do gnero

    3 Tambm conhecido como Choro de Callado. (Ver http://www.choromusic.com.br/o-que-e-o-choro.htm)

    4 Instrumento cnico feito de metal acionado por chaves e com um bocal similar ao do trombone, que logo cairia em desuso.

  • 23

    choro. Podendo ser citados como representantes dos primeiros msicos

    brasileiros a se dedicarem composio, interpretao e difuso do choro. Por

    isso, faz-se necessria uma breve meno a suas vidas e produes musicais.

    1.3 - Chiquinha Gonzaga

    Nascida em 17 de outubro de 1847 no Rio de Janeiro, Francisca Edwiges

    Neves Gonzaga (mais conhecida como Chiquinha Gonzaga) teve uma educao

    muito slida, que incluiu os estudos musicais, principalmente o piano,

    instrumento pelo qual teve mais afinidade e estudou exausto desde muito

    jovem.

    Aos onze anos, Chiquinha comps sua primeira melodia, intitulada

    Cano dos Pastores. Apesar de sua notria facilidade e talento para a

    msica, no foi fcil superar todos os preconceitos que a mulher sofria em seu

    tempo. Estes preconceitos ela enfrentou com coragem, tocando seu piano em

    teatros e casas de espetculo, alm de engajar-se em corajosas posies

    polticas e atuar em muitos outros afrontamentos duramente condenados e

    criticados pela sociedade.

    Forada por seu pai, casou-se aos dezesseis anos, mas sua

    personalidade transgressora no permitiu que seu casamento durasse muito

    tempo. Seu marido, Jacinto Ribeiro do Amaral, era um militar descendente de

    uma abastada e tradicional famlia carioca e toda essa tradio a ele transmitida

    fazia com que no reconhecesse a imensa devoo de Chiquinha pela msica.

  • 24

    O casamento acabou, e com esse fim veio tona um preconceito ainda maior da

    sociedade, que era contra uma mulher sem marido e com filhos para cuidar.

    Aps tais acontecimentos Chiquinha passou a dar aulas de piano, tocar

    em festas e vender partituras de suas composies para sobreviver. Por essa

    poca, tambm entrou no crculo musical dos chores. Conheceu Joaquim

    Antonio da Silva Callado, flautista e compositor de quem ficaria muito amiga,

    chegando inclusive a tocar em seu grupo, o famoso Choro Carioca.

    Aos poucos Chiquinha foi tomando seu lugar no cenrio musical carioca,

    principalmente como maestrina e compositora dos teatros de revista, que era

    uma grande inovao francesa trazida ao Brasil em 1859 e que unia msica

    popular e bom humor, crtica de costumes e stira a acontecimentos recentes

    da o nome revue (revista) (MUGNANINI JR., 2005, p. 69).

    A primeira marcha carnavalesca foi de sua autoria. Em homenagem ao

    cordo do Rosa de Ouro, que ensaiava em seu bairro, comps uma de suas

    msicas mais famosas, a marcha-rancho Abre Alas.

    Chiquinha Gonzaga passou por situaes difceis em sua vida, mas

    mesmo assim conseguiu ser reconhecida pela sua msica e por seus ideais,

    principalmente como ativista do movimento abolicionista. Faleceu em 28 de

    fevereiro de 1935, tornando-se posteriormente um grande cone da cultura

    brasileira.

  • 25

    1.4 - Ernesto Nazareth

    Nascido em 1863 no Rio de Janeiro, Ernesto Jlio de Nazareth foi

    introduzido ao piano desde cedo por sua me, Dona Carolina, e logo mostrou

    talento e interesse pela arte musical.

    Com catorze anos j havia composto e publicado sua primeira

    composio, a polca Voc Bem Sabe. interessante notar que ao longo de

    sua vida Nazareth comps em todos os gneros musicais com os quais se

    deparou, dentre os quais podemos citar: polca, valsa, schottish, mazurca,

    quadrilha e muitos outros. Porm, o gnero do qual ficou conhecido como sendo

    o fixador foi o incerto tango brasileiro, que aparentemente foi um gnero

    muito parecido com outros dois, o choro e o maxixe. Especula-se que os tangos

    brasileiros fossem na verdade choros ou maxixes, mas que devido ao

    preconceito existente na poca as peas eram renomeadas nas edies de suas

    partituras. Isso se deve ao fato de a comercializao de partituras ser um slido

    empreendimento no incio do sculo XX, pois, como ainda no havia rdio,

    praticamente todas as casas de classe mdia tinham um piano, que na poca

    era o principal meio de se fazer e ouvir msica em casa.

    Entre 1920 e 1924, Nazareth obteve grande sucesso tocando na sala de

    espera do Cine Odeon, no Rio de Janeiro, e muitos espectadores compravam o

    ingresso somente para v-lo tocar. Por essa poca, Nazareth tambm dava

    aulas particulares de piano, compunha e atuava como concertista, inclusive em

    turns por outros estados, como So Paulo e Rio Grande do Sul.

  • 26

    Um dos maiores tormentos da vida de Nazareth teve incio ainda em sua

    juventude, como consequncia de uma queda que atingiu seu ouvido direito e

    fez que perdesse gradativamente a audio, at 1932, quando foi considerado

    totalmente surdo.

    Depois disso, por conta de problemas mentais, foi internado no Instituto

    Neuropsiquitrico da Praia Vermelha e logo em seguida transferido para a

    Colnia Juliano Moreira em Jacarepagu, de onde fugiu e permaneceu

    desaparecido por trs dias at ser encontrado morto, afogado nas guas de um

    rio, no dia 4 de fevereiro de 1934.

    1.5 - Anacleto de Medeiros

    Anacleto Augusto de Medeiros nasceu na ilha de Paquet, Rio de Janeiro,

    em 13 de julho de 1866 e , ainda hoje, considerado o maior mestre de bandas

    de seu tempo. Como afirma Henrique Cazes, em geral os mestres de banda

    eram chores e, como eles eram responsveis pela educao musical dos

    msicos da banda, naturalmente surgiam mais e mais msicos que dominavam

    a linguagem (CAZES, 1998, p. 31).

    Seu primeiro contato com o estudo musical foi na Escola de Menores do

    Arsenal da Guerra, onde tomou gosto pela banda que ali existia e comeou a se

    interessar pela maneira chorada que os msicos imprimiam nas msicas que

    executavam. Naquele tempo, Anacleto tinha aulas com o msico Santos Bocot,

  • 27

    que fazia parte do cenrio chorstico do Rio de Janeiro como intrprete e

    compositor, e que o introduziu ao meio musical.

    Assim como alguns dos mais renomados msicos do fim do sculo XIX e

    incio do sculo XX como Joaquim Antonio Callado, Patpio Silva (1880-1907),

    Henrique Alves de Mesquita (1830-1906), Carlos Gomes (1836-1896), Alberto

    Nepomucemo (1864-1920) entre outros, Anacleto ingressou no Conservatrio de

    Msica, considerado a mais importante instituio de ensino musical do Brasil

    naquela poca. Nesse ambiente, Anacleto se tornou grande amigo do maestro

    Henrique Alves de Mesquita, que o indicou para seus primeiros trabalhos

    profissionais, levando-o inclusive para substitu-lo como maestro e regente em

    algumas ocasies.

    Anacleto ficou famoso por comandar a Banda do Corpo de Bombeiros,

    vista como a melhor de seu tempo, principalmente pela leveza, afinao e

    escolha de repertrio. interessante notar que possivelmente os primeiros

    empregos musicais dos chores foram as bandas de msica, e muitos deles

    seguiram carreira nesse meio. A reputao da Banda do Corpo de Bombeiros

    possibilitou vrios convites para realizar diversas gravaes, como, por exemplo,

    na Casa Edison, uma das primeiras grandes gravadoras, gerenciada por Fred

    Figner, ainda na fase mecnica.5 Alm da Banda dos Bombeiros, Anacleto

    tambm organizava e regia a Banda da Fbrica Bangu, a Banda da Fbrica

    Confiana e muitas outras.

    5 Os aparelhos reprodutores de sons da fase mecnica eram compostos por: um suporte giratrio (impulsionado por motor ou manualmente), uma agulha leitora, um diafragma e uma corneta.

  • 28

    Como boa parte dos compositores contemporneos a Anacleto, ele

    comps em praticamente todos os gneros musicais que havia (polcas,

    schottishes, dobrados, quadrilhas, valsas, choros, marchas, etc.). Dentre

    algumas de suas composies mais famosas podemos encontrar Jubileu,

    Cabea de Porco, Os Bomios, Yara, Trs Estrelinhas e outras. Grande

    parte de suas melodias recebeu letra do poeta Catulo da Paixo Cearense

    (1863-1946), e algumas passaram a ter dois nomes aps a letra, pois Catulo no

    se prendia ao contexto sugerido pelo nome original para elaborar suas poesias.

    Alguns cantores como Vicente Celestino (1894-1968) e Mrio Pinheiro (1880-

    1923) chegaram a gravar msicas de Anacleto com letra de Catulo.

    O multi-instrumentista Anacleto Augusto de Medeiros faleceu em 14 de

    agosto de 1907, com apenas 41 anos de idade, mas marcou poca. Muitas de

    suas melodias passaram a integrar o repertrio das rodas de choro e diversas

    bandas de msica ainda hoje tm Anacleto como principal referncia. Mesmo

    assim, seu nome, lamentavelmente, no muito lembrado fora do meio musical.

    1.6 - Origem do termo choro

    A origem da palavra choro uma das partes mais imprecisas da histria

    do gnero. Neste quesito, diversas opinies de historiadores renomados, como

    Jos Ramos Tinhoro, Ary Vasconcelos (1926-2003), Henrique Cazes, Andr

    Diniz (1969-), Lcio Rangel (1914-1979) e outros entram em conflito.

  • 29

    O termo pode ter derivado de uma espcie de festa chamada xolo que

    reunia os escravos das fazendas, tendo gradativamente mudado para xoro e

    posteriormente para choro, de acordo com a maneira de cada um pronunciar e

    grafar essa palavra.

    Tinhoro defende que o nome do gnero tenha vindo da sonoridade

    melanclica das baixarias ou linhas graves feitas pelo violo, no entanto essa

    afirmao entra em conflito com a opinio de Henrique Cazes, cujo argumento

    sustenta que o violo, a princpio, no tinha o papel de fazer esses contracantos

    graves.

    Quanto melancolia das baixarias do violo, pelo que pude observar nas primeiras

    gravaes de grupos de choro, realizadas por volta de 1907, quando o estilo j

    beirava quarenta anos de existncia, o violo ainda no era usado com a

    exuberncia com que hoje estamos habituados (CAZES, 1998, p.19).

    Outra hiptese cogitada a maneira melanclica ou chorada como eram

    interpretadas as melodias.

    Mais longinquamente, Ary Vasconcelos cita a origem do gnero nos

    charameleiros, instrumentistas que tocavam a charamela (antigo instrumento de

    sopro de palheta dupla), e se apresentavam em diversas cerimnias religiosas e

    festas particulares, assim como muitos dos msicos de choro.

    Contudo, somente com Pixinguinha que se pode considerar o choro

    como um gnero j sedimentado e estruturado dentro da msica popular

  • 30

    brasileira. A seguir, ser contextualizada brevemente a sua vida e obra, para

    que possamos compreender melhor como Pixinguinha se tornou um msico to

    referencial para a msica popular.

    1.7 - Pixinguinha

    Se voc tem 15 volumes para falar de toda msica popular brasileira,

    fique certo de que pouco. Mas se dispe apenas do espao de uma palavra,

    nem tudo est perdido; escreva depressa: Pixinguinha (VASCONCELOS, s.d.,

    p. 84). dessa maneira que Ary Vasconcelos comea sua dissertao sobre

    Pixinguinha, e no h maneira melhor de faz-lo.

    Em abril de 1898 nascia Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha,

    msico que figura nitidamente entre os maiores nomes da msica popular de

    nosso pas. Alm de exmio flautista e saxofonista, tambm foi um dos principais

    compositores de choro, visto que alguns dos temas mais populares no gnero

    so de sua autoria, como: Um a Zero, Naquele Tempo, Vou Vivendo,

    Carinhoso, Ingnuo, Lamento, Urubu Malandro e muitos outros. Alm

    disso, foi um dos pioneiros na arte de orquestrar e reger msica brasileira.

    Muitos choros famosos, como os de Pixinguinha, receberam letras dos mais

    diversos poetas brasileiros como, Catulo da Paixo Cearense, Vincius de

    Moraes (1913-1980), Nelson Angelo (1949-), Braguinha (1907-2006), Paulo

    Csar Pinheiro (1949-), Hermnio Bello de Carvalho (1935-), Pedro Caetano

  • 31

    (1911-1992), Aldir Blanc (1946-) e outros. Porm, mesmo com tantos nomes de

    peso, o choro sempre foi, e ainda , predominantemente instrumental.6

    Pixinguinha comeou na msica por causa de seu pai, Alfredo da Rocha

    Viana, flautista por paixo, guardio de um grande acervo musical7 e tambm

    administrador de uma penso na qual circulavam alguns dos melhores msicos

    do incio do sculo XX, como Quincas Laranjeira (1873-1935) e Sinh (1888-

    1930). Outro frequentador da penso dos Viana era o oficleidista Irineu de

    Almeida (1873-1916), que se tornaria o primeiro professor e mestre de

    Pixinguinha. Irineu de Almeida nasceu no Rio de Janeiro e era tambm

    conhecido como Irineu Batina, pela longa sobrecasaca que costumava usar.

    Alm de oficleide, tambm tocava bombardino e trombone. Irineu fez parte da

    Banda do Corpo de Bombeiros de Anacleto de Medeiros.

    Em 1911, Pixinguinha comps seu primeiro choro, intitulado Lata de

    Leite. Por volta dessa data, iniciou seu caminho profissional tocando em

    diversos eventos, como: bailes, quermesses, choperias e algumas orquestras

    dos teatros de revista. Depois dessas primeiras experincias, Pixinguinha no

    parou mais, tocou em praticamente todos os teatros, cinemas e gravaes que

    aconteceram no Rio de Janeiro desse momento em diante.

    6 Praticamente todas as letras de choro foram includas aps a melodia ter sido composta, e muitas vezes depois do compositor j ter falecido. Fato que gera polmica, pois o compositor da melodia em alguns casos no chegava a aprovar a letra includa em sua composio. Tambm bem comum encontrarmos mudanas radicais nos nomes das msicas aps a incluso da letra, pois diversos letristas no costumavam seguir o clima sugerido pela melodia e as usavam em versos j prontos, causando muitas vezes erros elementares de prosdia. Porm, encontramos casos exemplares em que o poeta mergulha na melodia e a representa de maneira espetacular, como nas letras de "Um a Zero", "Carinhoso" e outras.

    7 Alfredo da Rocha Viana, pai de Pixinguinha, foi guardio de um grande acervo de composies (partituras) da virada do sculo XX. (Ver http://www.musicosdobrasil.com.br/pixinguinha)

  • 32

    Em 1922, Pixinguinha foi encarregado de formar uma orquestra para tocar

    na sala de espera do Cine Palais, na avenida Rio Branco, na regio central do

    Rio de Janeiro. Sem titubear, ele recrutou os msicos que formaram um dos

    mais badalados grupos de sua poca, os Oito Batutas, grupo que chegou a

    excursionar pela Frana e Argentina.

    Durante sua vida fez parte de um sem-nmero de orquestras e grupos,

    como: Orquestra do Teatro Rialto, Orquestra Tpica Pixinguinha-Donga, Grupo

    do Caxang, Orquestra de J. Thoms, Orquestra Diabos do Cu, Orquestra

    Victor Brasileira, Grupo da Guarda-Velha, Os Cinco Companheiros e muitos

    outros. Como se no bastasse, tambm atuou na maior parte das emissoras

    radiofnicas cariocas, dentre elas esto as rdios Sociedade, Clube do Brasil,

    Philips, Transmissora, Cruzeiro do Sul, Mayrink Veiga, Nacional e Tupi.

    Nos anos 40, Pixinguinha enfrentou algumas dificuldades financeiras e

    esse, entre outros motivos, o levou a aceitar uma proposta feita por Benedito

    Lacerda (1903-1958), que conseguiria gravaes e edies para suas msicas

    na condio de aparecer como coautor das obras criadas por Pixinguinha a

    partir dessa data e tambm de algumas obras anteriores a este acordo. Esses

    acontecimentos fizeram com que Pixinguinha abandonasse definitivamente a

    flauta, dedicando-se apenas ao saxofone, pois Benedito, que era flautista,

    quem deveria aparecer como o lder do regional. Apesar disso, Pixinguinha se

    saiu muitssimo bem, mostrando tudo o que aprendera com o oficleidista Irineu

    de Almeida em seus memorveis contracantos de sax tenor e depois com as

  • 33

    gravaes de diversos discos de sucesso com esse famoso duo Benedito-

    Pixinguinha.

    Desse momento em diante, a vida de Pixinguinha ficou mais conturbada,

    devido a alguns problemas de sade que comearam a afetar sua vida

    profissional. Em 1964, por exemplo, ficou internado cerca de 50 dias por causa

    de um edema pulmonar. Por essas e outras razes, sua atividade profissional foi

    diminuindo com o passar dos anos, restando-lhe apenas algumas homenagens,

    entrevistas e poucas apresentaes.

    No ano de 1973 Pixinguinha faleceu durante um batizado, dentro da Igreja

    Nossa Senhora da Paz (RJ).

    Muitos pesquisadores e msicos partilham da idia que em relao a

    estrutura e estilo o choro como gnero s conheceu seu apogeu formal no incio

    do sculo XX, e seu maior mentor foi, sem dvida, Pixinguinha.

    () somente na dcada de 10, pelas mos geniais de Pixinguinha, o

    choro passou a ser um gnero musical de forma definida (CAZES, 1998, p.19).

    1.8 - Forma e harmonia

    A estrutura formal do choro similar forma da polca e outras danas, ou

    seja, composta usualmente na forma rond (AABACA), onde a parte A sempre

    repetida aps as outras sees serem tocadas. A tonalidade de cada seo

    segue padres pressupostos, se A est em tonalidade maior, B poder estar na

  • 34

    dominante ou na relativa menor e C na subdominante ou dominante. Se A

    estiver em tonalidade menor, B estar na relativa maior e a parte C poder estar

    na tonalidade homnima maior ou no VI grau.

    Ritmicamente suas melodias so tocadas em compasso binrio (2/4) e

    so desenvolvidas em sequncias de semicolcheias, colcheias e sncopas,

    formadas pelas escalas e arpejos dos acordes da harmonia, podendo comear

    em anacruse ou no.

    Tanto a forma quanto a harmonia (inicialmente tridica) foram levadas a

    seus limites por compositores como Radams Gnattali, Villa-Lobos (1887-1959)

    e outros que modificaram a padronizao formal e incorporaram polirritmias e

    harmonias cromticas advindas de outros gneros e manifestaes musicais.

  • 35

    Captulo 2

    A apropriao musical como homenagem

    O ttulo da Sute Retratos evoca questes de especial interesse para este

    trabalho. De incio, preciso questionar como uma obra musical pode ser

    caracterizada na forma de uma srie de retratos, ou seja, de representaes

    figurativas de pessoas. Afinal, o que significa retrato no contexto de uma obra

    musical como esta? Para responder a esta pergunta ser necessrio recuperar o

    significado de retrato no universo pictrico de onde ele se origina.

    A palavra retratar pode conter uma infinidade de significados, dentre

    eles temos: apresentar tal qual, espelhar, fotografar, descrever

    minuciosamente e outros. O retrato uma das prticas mais recorrentes nas

    artes visuais, como a pintura e a fotografia. Na pintura, a arte de retratar

    bastante antiga, sendo praticada desde as pinturas rupestres, que se

    desenhavam com paus ou pedras, at a pintura moderna, que se utiliza das

    formas mais abstratas de figurativizao. J na fotografia, pode-se dizer que

    desde seus primrdios, em 1888, quando George Eastman (1854-1932) criou

    sua primeira cmera caixote, a fotografia tornou-se uma das mais incrveis e

    revolucionrias invenes e se tornaria, mais tarde, uma das mais populares

    formas de arte, onde o retrato mais perfeito est a um click de distncia.

    O retrato como uma forma de homenagem se confirma com a incluso do

    nome do retratado no ttulo da obra. Porm, isso nem sempre acontece, h

    casos em que o homenageado retratado sem que seu nome seja explicitado.

  • 36

    Entre os muitos exemplos possveis, pode-se citar dois casos bastante

    conhecidos na arte brasileira: primeiramente, as esculturas dos doze Profetas

    (1795-1805) de Aleijadinho (1730-1814), localizadas no adro da igreja de Bom

    Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo (MG), cujos rostos teriam sido

    inspirados nas figuras dos lderes da Inconfidncia Mineira; o segundo caso a

    pintura Operrios (1933), de Tarsila do Amaral (1886-1973), que ao representar

    rostos de operrios da indstria paulista na dcada de 1930 incluiu os rostos de

    artistas como Mrio de Andrade, Anita Malfatti (1889-1964), Plnio Salgado

    (1895-1975), Oswald de Andrade (1890-1954) e outros. O fato de Tarsila usar

    rostos conhecidos foi, provavelmente, a forma encontrada para dar mais

    veracidade obra e mostrar que todos so operrios dentro de uma causa,

    inclusive os artistas e intelectuais.

    Voltando ao contexto da Sute Retratos, torna-se claro ento que

    Radams Gnattali emprega o nome dos quatro msicos que deseja retratar

    como ttulo de cada um dos movimentos, conseguindo assim, homenage-los

    explicitamente. Estes retratos, como veremos em detalhe no captulo seguinte,

    so feitos a partir de citaes de trechos de obras e/ou elementos estilsticos

    dos msicos que homenageia. Em outras palavras, o significado musical para o

    retrato, pelo menos nesta obra de Radams, parece ser o da apropriao de

    elementos tpicos dos homenageados, que so retrabalhados

    composicionalmente pelo homenageador por meio de transformaes meldicas

    e harmnicas. Esta seria a forma musical de se representar figurativamente um

    compositor.

  • 37

    Um breve levantamento de alguns exemplos extrados de diferentes

    contextos musicais mostra que a apropriao como homenagem um

    procedimento muito mais comum em msica do que poderia parecer primeira

    vista. Assim como Radams, muitos outros compositores, populares e eruditos,

    utilizaram-se em grande escala desse tipo de apropriao para estruturar suas

    composies.

    Para comear pode-se citar o caso de muitos compositores, de iderio

    nacionalista, que tm na apropriao de elementos provenientes de culturas

    tradicionais e/ou caractersticas de seus pases um importante fundamento na

    prtica da composio. O mais comum o uso de melodias tradicionais, mas,

    como se percebe nesta citao de Jlio Medaglia (1938-) em seu livro Msica

    Impopular (1988, p. 164), tambm podem ser outros elementos culturais, como

    lendas utilizadas como inspirao para a composio:

    Sabe-se que inmeros autores, no s brasileiros, apoiaram-se insistentemente

    numa esttica nacionalista, () as principais obras de Stravinsky esto repletas de

    folclorismos, foram baseadas em lendas populares antigas de sua terra ()

    Dentre alguns dos principais compositores do sculo XX que utilizaram

    melodias tradicionais em suas obras temos o hngaro Bla Bartk (1881-1945) e

    Heitor Villa-Lobos. Ao mesmo tempo que realizaram pesquisas sobre a msica

    folclrica e regional de suas respectivas terras, incorporando delas diversos

    elementos, ambos tambm pesquisaram e experimentaram um leque amplo de

  • 38

    sonoridades, muitas delas inovadoras em suas pocas. A maneira como cada

    um utilizou, em sua prpria msica, todos esses parmetros foi diferente, mas a

    ideologia nacionalista est presente em suas obras de maneira similar.

    Dentre outras coisas, Bla Bartk se interessou por canes populares,

    dedicando-se a elas durante muito tempo e em parceria com o compositor

    hngaro Zoltn Kodly (1882-1967), fez estudos cientficos sobre canes

    folclricas. A catalogao dessas canes se deu por suas numerosas viagens

    pelo interior, munido de aparelhos registradores, cilindros e grande quantidade

    de papel pautado. Editou e publicou com Kodly uma coletnea de cantos

    populares hngaros, por eles harmonizados. Tambm desenvolveu pesquisas

    sobre praticamente toda a msica tradicional europeia e at norte-africana.

    Sobre Villa-Lobos podemos dizer que seu projeto musical foi nascendo,

    na prtica, a partir do contato e manuseio com a realidade de seu tempo, seja

    com as coisas brasileiras, ou com as informaes que mal ou bem aqui

    chegavam do Velho Continente (MEDAGLIA, 1988, p. 165). Villa-Lobos tinha

    averso total aos exotismos e folclorismos8. Ele conseguia, como poucos,

    guardar o devido distanciamento da matria-prima compilada, assim como do

    sofisticado know-how composicional europeu, travando a ambos uma inusitada e

    bem-humorada viso crtica (MEDAGLIA, 1988, p. 167).

    8 Que [os msicos venezuelanos] se empanturrem com sua msica popular... mas no para fazer folclore. No! (...) O que devem fazer deixar a sua prpria personalidade falar atravs de suas msicas nacionais... deixar sua personalidade falar... (...) Que no tratem de ser modernos, novos ou originais... (...) e, sobretudo, que se lembrem sempre de sua obrigao de NO SEREM EXTICOS. Nunca exticos (VILLA-LOBOS apud CARPENTIER, 2000, p.17-18).

  • 39

    Vejamos um exemplo de apropriao musical de Villa-Lobos, selecionado

    por Paulo de Tarso Salles (1966-). Em seu Choros n 10, Villa-Lobos utilizou

    como tema a cano Yara, de Anacleto de Medeiros, que seria reintitulada

    Rasga o Corao aps receber a letra de Catulo da Paixo Cearense. Como

    vemos abaixo, o ritmo foi essencialmente aumentado, tornando mais aparente a

    estrutura dos tetracordes que Villa-Lobos gostava de manipular, aproximando-se

    do perfil que vinha sendo apresentado no Choros n 10 () (SALLES, 2009,

    p. 241). Em relao ao perfil meldico, Villa-Lobos basicamente mantm a

    estrutura intervalar proposta por Anacleto, introduzindo apenas sutis

    modificaes em alguns motivos.

    FIG. 2 Comparao entre a melodia extrada do Choros n. 10 de Villa-Lobos e a melodia

    original do tema Yara de Anacleto de Medeiros (SALLES, 2009, p. 241).

  • 40

    Outro exemplo de apropriao musical na obra de Villa-Lobos so as

    Bachianas Brasileiras. Nelas confluem duas vertentes: a msica de Johann-

    Sebastian Bach (1685-1750) e a msica brasileira, principalmente a popular

    urbana e a indgena. Segue abaixo um fragmento escrito pelo prprio autor

    dando-nos um panorama de como estruturou o terceiro movimento (Fuga) das

    Bachianas Brasileiras n 1:

    III FUGA (Conversa)

    A cabea do tema inicial se caracteriza numa espcie de transfigurao de certas

    clulas meldicas, tpicas e populares dos antigos seresteiros da Capital Federal,

    maneira de Stiro Bilhar. Bilhar (1861-1929) foi um velho e incorrigvel choro

    bomio, cantador e tocador de violo que acumulava as funes de funcionrio

    pblico com a de seresteiro habitual.

    A forma e o estilo da fuga representam, primeiro, a espiritualizao da maneira de

    Bach, e depois uma idia musical da conversao entre quatro chores, cujos

    instrumentos se disputam a primazia temtica, em perguntas (sujeito) e respostas

    sucessivas, num crescendo dinmico, mas sempre conservando a mesma cadncia

    rtmica (VILLA-LOBOS apud NBREGA, 1971, p.33).

    Seria possvel citar milhares de outros exemplos, contando-se entre eles:

    a Hommage a Haydn de Debussy (1862-1918), a Le Tombeau de Couperin de

    Ravel (1875-1937), a Scarlattiana de Casella (NBREGA, 1971, p.11), a Quinta

    Sinfonia de Mahler (1860-1911), que homenageia a Quinta de Beethoven e

    todas as variaes sobre um tema existentes desde os primrdios da escrita

    musical.

  • 41

    Na msica contempornea, alm dos j citados Bartk e Villa-Lobos, mas

    agora considerando um universo no necessariamente permeado pela ideologia

    nacionalista, tambm h diversos exemplos de apropriaes. Nesse aspecto, um

    dos compositores que mais ousou foi Luciano Berio (1925-2003), principalmente

    no terceiro movimento de sua Sinfonia. Nesse movimento, Berio sobrepe

    citaes de obras das mais diversas vertentes estticas e pocas, fazendo um

    verdadeiro panorama histrico-musical, tendo como fio condutor (citado quase

    que integralmente) o terceiro movimento da Segunda Sinfonia de Mahler. Para

    citar cada um de seus homenageados, Berio utiliza fragmentos das obras de

    referncia e as desenvolve. Como uma pea para orquestra e oito cantores

    (dois baixos, dois tenores, dois contraltos e dois sopranos), a letra tambm d

    pistas de quais citaes musicais foram utilizadas.

    O exemplo abaixo, que mostra a primeira pgina do terceiro movimento

    da Sinfonia9, logo no primeiro compasso encontramos Peripetie, a quarta das

    Cinco Peas para Orquestra op. 16 de Arnold Schoenberg (1874-1951). Ainda

    no segundo compasso, so iniciados trechos da Quarta Sinfonia de Mahler e

    trechos dos Jeux de Vagues de La Mer de Debussy. A partir do compasso 6,

    algumas vozes executam um trecho com a tcnica de canto falado

    Sprechgesang10, diretamente associada a Schoenberg.

    9 A pgina da partitura reproduzida neste trabalho contm diversas anotaes manuscritas por Maurcio Ayer (segundo o qual, grande parte delas foi transcrita dos manuscritos de Flo Menezes) que assinalam, entre outros aspectos, as citaes e seus autores.

    10 O Sprechgesang foi elevado a paradigma da escritura vocal no clebre Pierrot Lunaire de 1912 (), o canto-falado efetuava, assim, curiosamente, uma sntese histrica entre o atonalismo emergente e o canto dos cabars vienenses () (Prefcio de Flo Menezes em SHOENBERG, 2001, p.13).

  • 42

    FIG. 3 Trecho da Sinfonia, de Luciano Berio. Primeira pgina do terceiro movimento (In Ruhig

    Fliessender Bewegung).

  • 43

    Na vertente da msica popular brasileira tambm encontramos esse tipo

    de procedimento. Um caso emblemtico o da citao literal que Caetano

    Veloso (1942-) faz, em Sampa, de um trecho da melodia de Ronda, de Paulo

    Vanzolini (1924-). Para evidenciar a citao, Caetano utiliza as mesmas palavras

    do verso de Vanzolini no final do ltimo verso: na avenida So Joo. curioso

    notar, nesse caso especfico, que Paulo Vanzolini no aprovou a citao,

    considerando-a como plgio e recorrendo at mesmo a aes judiciais.

    FIG. 4 Comparao da melodia e da letra das canes: Ronda, de Paulo Vanzolini e Sampa

    de Caetano Veloso.

    Esse procedimento tambm foi amplamente utilizado na bossa nova, e o

    principal compositor a realizar tais apropriaes foi Antnio Carlos Jobim (1927-

    1994). Uma de suas citaes mais conhecidas o incio de Insensatez, que

    remete nitidamente ao Preldio n 4 de Frdric Chopin (1810-1849) tanto no

    acompanhamento harmnico quanto no desenvolvimento meldico.

  • 44

    FIG. 5 Comparao meldico-harmnica entre Insensatez, de Tom Jobim, e o Preldio n 4,

    de Frdric Chopin.

    Nota-se, no exemplo acima, que Tom Jobim utilizou o motivo de Chopin e

    o desenvolveu das seguintes maneiras:

    - No incio do Preldio n 4 h dois motivos meldicos na forma de

    sequncia (primeiro motivo: compassos 1 a 5, segundo motivo:

    compassos 6 a 8), Tom Jobim utiliza tambm os dois motivos

    sequenciais (primeiro motivo: compassos 1 a 8, segundo motivo:

  • 45

    compassos 9 a 16), contudo, expande-os criando uma finalizao mais

    longa e complexa.

    - O ritmo da melodia alterado, de forma a caracterizar o ritmo

    sincopado prprio da msica brasileira.

    - A linha do baixo, que caminha descendentemente pelos graus

    cromticos, mantida.

    Para finalizar este captulo, interessante mencionar brevemente as

    homenagens feitas por Tom Jobim a Radams Gnattali, autor aqui estudado.

    Tom foi amigo pessoal de Radams e chegou a homenage-lo com dois choros

    em seu ltimo disco (Antonio Brasileiro): Radams y Pel e Meu amigo

    Radams. A msica Radams y Pel homenageia dois importantes cones

    para Jobim, o maestro da msica e o maestro da bola. Depois de ouvir o choro

    "Meu amigo Radams", o maestro gacho comps Meu amigo Tom Jobim

    como retribuio.

    Na ltima entrevista de sua vida, Tom Jobim falou brevemente ao reprter

    Walter de Silva da revista Qualis sobre sua relao com Radams:

    Tom () O "Meu amigo Radams" todo instrumental. O "Radams Y Pel" so

    duas homenagens que eu fao ao maestro Radams e ao nosso incrvel Pel.

    Qualis Como que surgiu a ideia de fazer essas instrumentais em homenagem

    ao Radams Gnattali?

  • 46

    Tom O Radams uma coisa formidvel, a generosidade... O Radams

    orquestrou a msica brasileira toda. Fez muita msica erudita muito boa.11

    Existe tambm um poema que Tom Jobim dedicou a Radams:

    Radar gua alta.

    fonte que nunca seca.

    cachoeira de amor.

    choro rei de peteca.

    O Radar concertista, compositor, pianista, orquestrador, maestro.

    E, mais que tudo, amigo,

    Navega junto contigo,

    conta de doao.

    Ajuda a todo mundo

    E mais ajudou a mim.

    Al, Radar, eu te ligo

    Vamos tomar um chopinho

    Aqui fala o Tom Jobim.

    Assim como Tom Jobim, Paulinho da Viola (1942-) e Capiba (1904-1997)

    tambm homenagearam Radams com composies intituladas,

    respectivamente, Sarau para Radams e Um choro para Radams. E como

    no poderia deixar de ser, Radams retrucou com Obrigado, Paulinho e

    Capibaribe.

    11

    Ver http://www2.uol.com.br/tomjobim/textos_entrevistas_6.htm

  • 47

    CAPTULO 3

    Sute Retratos

    3.1 - Introduo s anlises

    Desenvolvimento histrico da sute como forma musical

    Quando os compositores comearam (...) a escrever msica instrumental,

    defrontaram-se com um problema: que espcie de msica escrever? Em termos

    gerais isso foi resolvido em trs direes, (a) danas, (b) adaptaes do estilo

    polifnico vocal vigente e (c) variaes sobre um tema (LOVELOCK, 1899, p. 97).

    A citao de Lovelock acima permite notar como foi, portanto, uma opo

    muito comum a de escrever danas instrumentais. Desde os primrdios desse

    tipo de composio era usual o emparelhamento de pares de danas

    contrastantes entre si, em que a segunda poderia ser uma variao sobre a

    primeira. A pavana e a galharda foram as primeiras danas popularmente

    agrupadas dessa maneira. A partir desse momento a forma binria foi adotada

    por praticamente todos os compositores que se aventuraram na escrita de

    danas de sute. J no incio do sculo XVII, a pavana e a galharda se tornaram

    obsoletas, para substitu-las foi criado um novo par de danas lenta-rpida, a

    alemanda e a corrente, que foram talvez as mais exploradas desde ento.

    A forma da sute nunca seguiu padres muito rgidos. Alm da alemanda

    e da corrente, com o tempo foram acrescentadas diversas outras danas (a

  • 48

    critrio do compositor) entre as duas fixas. Dentre elas podemos citar: a

    sarabanda, a gavota, o minueto, o bourre, a giga e muitas outras.

    Contudo, os compositores ingleses, franceses e italianos tratavam a

    sute simplesmente como uma srie de movimentos contrastantes, baseados

    (...) em danas e ligados, sobretudo, pela unidade de tonalidade (LOVELOCK,

    1899, p. 138). Apesar disso, em cada pas encontramos abordagens distintas

    nos processos composicionais.

    - Frana: as sutes francesas tendiam a ser muito extensas, mesclando

    danas e peas programticas muitas vezes com ttulos fantasiosos.

    - Inglaterra: as sutes inglesas eram comumente precedidas de um

    preldio, e apesar de possuir a alemanda e a corrente, outras peas podiam

    aparecer livremente em sua forma.

    - Alemanha: as sutes alems podem ser encaradas como as mais

    tradicionais, pois nelas era empregado o esquema padro de emparelhamento

    de danas (alemanda, corrente, sarabanda e giga).

    - Itlia: as sutes italianas receberam o nome de sonata de cmara e

    inicialmente no eram compostas apenas de danas, porm, com o passar dos

    anos, as danas prevaleceram e a forma mais popular continha a alemanda e a

    corrente, introduzidas por um preldio e seguidas de uma ou mais danas. As

    sonatas de cmara eram usualmente escritas para dois violinos, viola da gamba

    (ou violoncelo) e cravo.

    Com o passar dos sculos, a sute deixou de ter uma forma previamente

    estabelecida e passou apenas a designar partes musicais correlacionadas. Isso

  • 49

    no aconteceu apenas com a sute, mas com diversas outras formas musicais,

    principalmente durante e aps o Romantismo. Nessa poca os compositores

    utilizavam os nomes de formas consagradas (como sutes, preldios, sonatas e

    outras) como forma de resgate cultural, entretanto compunham livremente suas

    obras, sem amarras tradicionais.

    Roy Bennett cita como caracterstica estilstica do Romantismo a maior

    liberdade de forma e concepo; plano emocional expresso com maior

    intensidade e de forma mais personalista, na qual a fantasia, a imaginao ()

    desempenham importante papel (BENNETT, 1986, p.66).

    Contexto histrico da Sute Retratos

    A ponte que o maestro Radams Gnattali fez entre a msica de concerto

    e a msica popular materializou-se principalmente quando escreveu concertos

    para solistas populares (Cazes, 1998, p.123).

    Radams costumava compor muito para seus amigos, msicos que

    admirava, como Edu da Gaita (1916-1982), Chiquinho do Acordeom (1928-

    1993), Paulo Moura (1933-), Garoto (1915-1975), Jacob do Bandolim (1918-

    1969) a quem Radams dedicou a sua Sute Retratos, lanada no ano de

    1964 e muitos outros.

    A Sute Retratos comeou a ser arquitetada por volta de 1956 e foi

    originalmente composta para orquestra de cordas, conjunto regional e bandolim

  • 50

    solista. A sute formada por quatro movimentos, cada um trazendo no ttulo um

    nome representativo para a histria do choro, so eles: Pixinguinha, Ernesto

    Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga. Para fundamentar a

    homenagem, Radams partiu de msicas concebidas por cada um dos quatro

    homenageados. No movimento de Pixinguinha Radams escolheu o choro

    Carinhoso para a parte A e Ingnuo para a parte B; no de Ernesto Nazareth a

    valsa Expansiva; no de Anacleto o tema do choro Trs Estrelinhas; e no de

    Chiquinha o maxixe Corta-Jaca ou Gacho.

    Para ajudar Jacob a ler e tocar a partitura da Sute, Radams pediu que

    Chiquinho do Acordeom gravasse um prottipo, visto que Chiquinho tinha uma

    leitura muito boa e conhecia bem o estilo de Radams. Entre a primeira

    gravao de Chiquinho e a gravao oficial com Jacob, em 1964, se passaram

    sete anos. Como forma de agradecimento, Jacob do Bandolim escreveu esta

    carta a Radams Gnattali:

    Meu caro Radams,

    Antes de Retratos, eu vivia reclamando: " preciso ensaiar...". E a coisa ficava por

    a, ensaios e mais ensaios.

    Hoje minha cantilena outra: "Mais do que ensaiar, necessrio estudar". E estou

    estudando. Meus rapazes tambm (o pandeirista j no fala mais em paradas).

    "Seu Jacob, o senhor a quer uma fermata? Avise-me, tambm, se quer adgio,

    moderato ou vivace...". Veja, Radams, o que voc me arrumou. o fim do mundo.

    Retratos: valeu estudar e ficar todo fechado dentro de casa durante todo o Carnaval

  • 51

    de 1964, devorando e autopsiando os mnimos detalhes da obra, procurando

    descobrir a inspirao do autor no emaranhado de notas, linhas e espaos e, assim,

    no desmerecer a confiana que em mim depositou, em honraria prdiga demais

    para um tocador de chorinhos.

    Mas o prmio de todo esse esforo foi maior do que todos os aplausos recebidos

    em trinta anos: foi o seu sorriso de satisfao. Este que eu queria, que me faltava

    e que, secretamente, eu ambicionava h muitos anos. No depois de um chorinho

    qualquer, mas sim em funo de algo mais srio. Um sorriso bem demorado, em

    silncio, olhos brilhando, tudo significando aprovao e sensao de desafogo por

    no haver se enganado. Valeu! Ora, se valeu!

    E se hoje existia um Jacob feito exclusivamente custa de seu prprio esforo, de

    agora em diante h outro, feito por voc, pelo seu estmulo, pela sua confiana e

    pelo talento que voc nos oferece e que poucos aproveitam.

    Meu bom Radams: sinto-me com quinze anos de idade, comprando um bandolim

    de cuia e um mtodo simplrio na loja do Marani & Lo Turco, l no Maranguape.

    Vou estudar bandolim.

    Que Deus, no futuro, me proteja e Radams no me desampare.

    Obrigado, mestre.

    NB - Perdoe. Sei que voc fica inibido com elogios de corpo presente. Da esta

    carta. Sua modstia julgar que absurda, sem motivo e, at mesmo, ridcula. Mas

    eu tinha que escrev-la agora, para no estalar de um enfarte, t? (A. PAZ, 1997,

    p. 188).

  • 52

    Quando se lanava um LP de solistas famosos (como Jacob do Bandolim)

    todos corriam para aprender as novas msicas e tocar nas rodas de choro.

    Contudo, muitos chores no notaram a importncia da Sute Retratos logo de

    incio, isso se deve principalmente porque era diferente, seu arranjo era mais

    complexo do que se encontrava usualmente nas gravaes de choro. E assim a

    Sute Retratos ficou esquecida por um tempo. Porm, aps alguns anos, o

    bandolinista Joel Nascimento (1937-) ouviu a gravao de Jacob e ficou

    encantado.

    Joel passou anos tirando de ouvido partes da sute e sonhando toc-la

    inteira. Depois de cerca de dez anos, Joel conseguiu o telefone de Radams,

    criou coragem e ligou para pedir a partitura (CAZES, 1998, p.126).

    Por volta de 1978 Joel Nascimento pediu a Radams para que

    escrevesse uma verso da Sute Retratos para um conjunto regional de choro

    tradicional (bandolim, cavaquinho, violo, violo sete cordas e pandeiro). Mesmo

    a contragosto, Radams escreveu o arranjo, e depois de pronto, Joel organizou

    um grupo que viria a ser um dos mais respeitados de sua poca, a Camerata

    Carioca.

    Em maio de 1980, quando a Camerata Carioca e Radams Gnattali se

    apresentaram no IBAM, Srgio e Odair Assad () assistiram ao concerto e foram

    vtimas do encanto da sute. Pediram, ento, a Radams um arranjo para dois

    violes (CAZES, 1998, p.127).

  • 53

    Esse arranjo para dois violes ficou muito famoso na mo dos irmos

    Assad, pois os dois obtiveram grande sucesso em sua carreira internacional,

    influenciando assim muitos duos de violo pelo mundo afora a tocar, gravar e

    difundir esse arranjo.

    Raphael Rabello (1962-1995) e Chiquinho do Acordeom tambm

    gravaram sua prpria verso da sute. Em 1988 os dois se juntaram para uma

    gravao memorvel onde deram suas prprias interpretaes obra. O CD que

    saiu pela Kuarup recebeu em 1991 o prmio Sharp de melhor disco

    instrumental.

    Pressupostos sobre as anlises

    Para as anlises a seguir, ser utilizado uma transcrio da verso

    original para bandolim solista, conjunto regional (cavaquinho, violo e

    percusso) e orquestra de cordas (violinos I, violinos II, violas, violoncelos e

    contrabaixos) feita e editada por Edson Lopes. Este arranjo foi o primeiro

    concebido por Radams Gnattali e, portanto, o ponto de partida ideal para

    anlise dessa obra. Contudo, tambm ser citado, eventualmente, o arranjo para

    dois violes feito a pedido do Duo Assad. Este verso representa mais do que

    uma reduo, tambm uma transformao da parte orquestral da Sute

    Retratos e possibilita uma visualizao distinta do contexto da obra.

  • 54

    As diferenas entre os dois arranjos podem ser encaradas a partir do

    contexto histrico em que cada um foi concebido, pois o arranjo orquestral

    comeou a ser arquitetado em 1956 e o arranjo para violes foi encomendado

    pelo Duo Assad no ano de 1980. Sendo assim, Radams inseriu uma harmonia

    consideravelmente mais complexa e densa, carregada de tenses e com

    intrincadas polirritmias (principalmente no primeiro movimento) para os dois

    violonistas, levando em considerao toda a transformao do cenrio musical

    ocorrida nesses anos.

    Estas anlises pretendem ampliar a compreenso sobre o processo de

    composio dos movimentos, descrevendo, com exemplos musicais, onde e

    como ele cita musicalmente seus quatro homenageados, alm de esclarecer

    alguns dos procedimentos empregados na transformao deste material musical

    e sua reformulao para o novo contexto em que so inseridos.

    3.2 - Anlises

    I Pixinguinha

    No primeiro movimento da Sute Retratos Radams toma como material

    fundamentador de sua composio duas conhecidas msicas de Pixinguinha:

    Carinhoso e Ingnuo. Esse movimento apresenta uma forma pouco comum

  • 55

    nas composies de choro que, assim como em Carinhoso, foi composto em

    duas sees (A e B) precedidos por uma introduo12.

    O nmero de compassos de cada parte estrutural de sua forma tambm

    foi concebido de maneira pouco comum (como podemos ver no quadro formal

    abaixo).

    ----------------------------------------------

    Intro -11 compassos

    A - 48 compassos

    B - 32 compassos

    A - 31 compassos

    Coda - 5 compassos

    ----------------------------------------------

    Nota-se na gravao (ver CD anexo) uma presente atuao da percusso

    nesse primeiro movimento, em especial do pandeiro. Contudo, a grade

    orquestral que temos em mos no apresenta a linha de percusso escrita,

    evidenciando uma falha do copista.

    Primeiramente, esse movimento apresenta uma introduo de carter

    orquestral, realizado pelo naipe de cordas, priorizando uma coesa conduo das

    vozes em bloco. Para concluir a introduo e iniciar a seo A, o bandolim

    polariza cromaticamente algumas das principais notas de um arpejo G7(13) em

    andamento livre (ad libitum) criando uma suspenso inicial que prepara o incio

    12

    Uma curiosidade o fato de a introduo conhecida de Carinhoso somente ter sido includa e incorporada em sua forma a partir de 1937, na gravao de Orlando Silva.

  • 56

    do tema, essa suspenso tambm provocada pelo fato do acorde G7(13) ter

    funo dominante da tonalidade que inicia a seo A (D Maior).

    O tema da parte A evoca a melodia tambm da seo A de Carinhoso,

    no entanto, notas e ritmos so alterados e notas so acrescentadas, causando

    no ouvinte apenas uma sensao longnqua de ouvir a melodia de Pixinguinha.

    Isso se deve maneira como a estrutura da melodia de Pixinguinha trabalhada

    e transformada.

    FIG. 6 Comparao meldica dos trechos iniciais (das sees A) do primeiro movimento da

    Sute Retratos, de Radams Gnattali, e de Carinhoso, de Pixinguinha.

    Em relao rtmica, podemos citar:

    - O anacruse de trs notas, como podemos ver acima, caracterstico

    em ambas as melodias na forma de sncopa.

    - A estrutura rtmica da frase de Carinhoso bastante simples, se

    repetindo a cada dois compassos, e a frase de Radams detm essa

    mesma estrutura rtmica, porm alargada para quatro compassos.

  • 57

    J em relao ao desenvolvimento meldico:

    - Em Carinhoso percebe-se grande polarizao nas notas l e mi, j

    que elas so notas longas estruturais e o anacruse as sobressalta; na

    transformao de Radams as notas enfatizadas so as notas sol e

    mi. Essa mudana da primeira nota (de l para sol) a nica

    modificao feita por Radams a esse motivo.

    - As demais notas que permeiam o motivo extrado de Carinhoso

    podem ser consideradas notas de embelezamento, utilizadas para

    desenvolver e ligar os motivos.

    Podemos encarar a melodia de Radams como uma espcie de variao

    por desenvolvimento, visto que o motivo aparece transformado, carregado de

    mais informao musical do que sua matriz.

    Harmonicamente, tambm existem algumas citaes nitidamente literais,

    como nos compassos 14-16, em que Radams utiliza-se de um clich

    harmnico que comea pelo acorde de tnica [C], sobe meio-tom a sua quinta

    [C(#5)], mais meio-tom para a sua sexta [C6] e novamente sobe meio-tom para

    sua stima menor [C7], acorde dominante que prepara o quarto grau, de

    maneira semelhante ao movimento harmnico que ocorre nos compassos

    iniciais do tema de Pixinguinha. No caso de Radams esse clich executado

    pelo cavaquinho e complementado por todo o naipe de cordas.

  • 58

    FIG. 7 Comparao harmnica de trechos do primeiro movimento da Sute Retratos

    (compassos 14-16), de Radams Gnattali, e de Carinhoso (compassos 1-4), de Pixinguinha.

    O tema principal da seo B chama ateno por delinear a melodia de

    Ingnuo, como podemos observar a seguir:

  • 59

    FIG. 8 Comparao meldica dos trechos iniciais do primeiro movimento da Sute Retratos

    (seo B), de Radams Gnattali, e de Ingnuo (seo B), de Pixinguinha.

    O movimento rtmico de ambas muito similar, a nica exceo a

    antecipao da ltima semicolcheia do segundo para o terceiro compasso

    (dcima nota). Contudo, foram consideravelmente alteradas as relaes

    intervalares e as direes de alguns saltos.

    - O primeiro intervalo (r-mi#) pode ser considerado uma segunda

    (aumentada), se pensarmos na nota r como uma oitavao, assim

    como no primeiro intervalo (d-r) de Pixinguinha.

    - Os saltos da terceira para a quarta nota (f#-si), da quinta para a sexta

    (l-f#) e da sexta para a stima (f#-r) so maiores do que os graus

    conjuntos da melodia de Pixinguinha, contudo, o perfil meldico

    mantido, visto que os saltos so realizados na mesma direo que os

    respectivos substitudos.

  • 60

    - Fora o primeiro intervalo, as nicas notas que saltam na direo

    oposta s notas equivalentes so a nona e dcima (respectivamente,

    r e f).

    - O ltimo salto de ambas as melodias no idntico (salto de quinta e

    tera, respectivamente), porm, o fato de os dois serem descendentes

    d uma sensao semelhantemente resolutiva melodia.

    Por esses motivos pode-se concluir que Radams transformou a melodia

    utilizando trs processos composicionais: a manuteno rtmica, a manuteno

    do perfil meldico e a expanso meldica realizada atravs do alargamento de

    alguns intervalos.

    Em alguns momentos, como nos compassos 23 e 55, por exemplo, o

    naipe de cordas executa, em pizzicato, contornos diatnicos em teras. Essa

    movimentao escalar pode ser encarada como uma transfigurao

    camerstica das baixarias convencionadas e realizadas pelos violes de seis e

    sete cordas. Em um grupo regional de choro bastante usual os dois violes

    movimentarem os baixos em tera. Por isso, fica claro o uso dessa linguagem de

    choro adaptado ao naipe de cordas.

    Tanto na parte harmnica quanto na parte rtmica, esse movimento

    bastante denso. Observa-se o emprego de uma harmonia mais cromtica do

    que o usual e podemos encontrar constantemente o emprego de texturas

    polirrtmicas entre as vozes, principalmente quilteras e sncopas sobrepostas.

  • 61

    II Ernesto Nazareth

    Nesse segundo movimento da Sute Retratos a msica base que

    fundamenta o processo composicional de Radams a valsa Expansiva de

    Ernesto Nazareth. Ambas so formadas por trs partes estruturais (A, B e C),

    porm, em seu movimento, so includas sees de passagem, como

    introdues, interldios e codas. Cada parte estrutural da valsa de Nazareth e do

    movimento de Radams possui o mesmo nmero de compassos (32),

    mostrando que, em relao estrutura formal, Radams comps como

    Nazareth, uma valsa com um nmero tradicional de compassos.

    ----------------------------------------------

    Intro 16 compassos

    A 32 compassos

    B 32x2 = 64 compassos

    Interldio (tema de A) 16 compassos

    C 32x2 = 64 compassos

    A + coda 27+5 = 32 compassos

    ----------------------------------------------

    Nos primeiros compassos desse movimento, o bandolim apresenta um

    motivo ascendente que caracteriza uma valsa e repetido trs vezes. Essa

    melodia acompanhada apenas pelo naipe de cordas que basicamente define a

    harmonia e a apoia ritmicamente. A segunda e ltima seo dessa introduo

  • 62

    gera contraste sobre a primeira, pois a melodia tocada pelo bandolim sem

    acompanhamento algum e em andamento livre (ad libitum).

    Nas partes A, B e C, desse movimento, pode-se perceber que Radams

    enfatiza todos os contornos rtmico-meldicos feitos originalmente por Nazareth

    em sua valsa, como:

    - A movimentao meldica que inicia a parte A idntica de Nazareth,

    possuindo apenas uma anacruse. O caminho harmnico tambm

    bastante similar, apenas com algumas peculiaridades e substituies

    realizadas para gerar novas sonoridades. interessante notar que a

    melodia de Nazareth se inicia com uma nota longa e a de Radams no,

    contudo, na transcrio do arranjo que temos em mos sugerido ao

    bandolinista que execute um trmulo. O trmulo largamente explorado

    na tcnica de bandolim como recurso para imitar o que seria uma nota

    longa.

    FIG. 9 Comparao meldico-harmnica dos trechos iniciais do segundo movimento da Sute

    Retratos (seo A), de Radams Gnattali, e de Expansiva (seo A), de Ernesto Nazareth.

  • 63

    - J na seo B, a principal conveno rtmica (que aparece logo no

    primeiro compasso) utilizada de maneira similar utilizada por

    Nazareth, contudo, essa conveno utilizada em menor escala apenas

    para caracterizar a citao. A construo da linha meldica do segundo

    ao quarto compasso de Radams muito interessante, visto que

    podemos encar-la como uma juno e desenvolvimento dos compassos

    dois e quatro de Nazareth. As primeiras nove notas so idnticas (r-mi-

    f#-sol-l-si), as notas dez e onze (f#-sol) e treze e catorze (sol-mi)

    esto presentes no quarto compasso de Nazareth, porm, em posies

    mtricas distintas (notas quatorze, quinze e dezesseis), no caso das

    notas sol e mi o intervalo tambm se apresenta invertido.

    FIG. 10 Comparao meldica dos trechos iniciais (seo B) do segundo movimento da Sute

    Retratos, de Radams Gnattali, e de Expansiva, de Ernesto Nazareth.

    - Nos compassos 11 e 12 de B, Radams escreve a mesma polarizao

    meldica que Nazareth prope nos compassos 7 e 8 da parte B de

    Expansiva. Essa polarizao meldica apresentada em ambos como

  • 64

    uma trade maior (d maior no caso de Radams e sol maior no de

    Nazareth), onde cada nota estrutural atingida por um grau conjunto

    cromtico inferior.

    FIG. 11 Comparao meldica de trechos (seo B) do segundo movimento da Sute Retratos

    (compassos 11 e 12), de Radams Gnattali, e de Expansiva (compassos 7 e 8), de Ernesto

    Nazareth.

    - No incio de sua seo C, Radams:

    Compe com o mesmo ritmo-motor e desenho meldico da parte C

    de Nazareth, ou seja, a melodia se desenvolve com muitas colcheias

    sucessivas, sendo que algumas delas podem ser notas pedal.

    Especialmente nessa seo, Radams simplifica o material que

    tem em mos, visto que a melodia composta por Nazareth apresenta

    uma maior complexidade em seu perfil, principalmente representada

    por grandes saltos intervalares.

  • 65

    Outro importante aspecto representado por Radams o fato de o

    perfil meldico ter sido mantido quase em sua totalidade. As direes

    de todos os saltos so idnticas13 s da parte C de Nazareth.

    Um fragmento da escala diatnica ascendente acrescentada na

    forma de anacruse.

    FIG. 12 Comparao meldica dos trechos iniciais (seo C) do segundo movimento da Sute

    Retratos, de Radams Gnattali, e de Expansiva, de Ernesto Nazareth.

    Nesse segundo movimento, o naipe de cordas atua principalmente como

    acompanhamento, delineando a harmonia atravs de encadeamentos de

    acordes espalhados pelas cinco vozes (violinos I, violinos II, violas, violoncelos e

    contrabaixos), tanto na forma de cama harmnica quanto na forma de ataques

    rtmicos.

    13

    A nica exceo se encontra no primeiro tempo do quarto compasso, onde encontramos uma

    tera maior ascendente (notas d-mi) no lugar da segunda maior descendente (notas l-sol).

  • 66

    Podemos observar no arranjo para dois violes uma anlise harmnica

    consideravelmente mais densa do que sua matriz. Radams adiciona diversas

    tenses harmnicas no encontradas normalmente na escrita de valsas-choro e

    realiza alguns saltos e cadncias harmnicas nitidamente pessoais14. Contudo,

    na verso em questo (bandolim solista, conjunto regional e orquestra de

    cordas) a harmonia se mantm basicamente tridica e so encontrados poucos

    momentos em que as modulaes apresentam um carter mais moderno.

    III Anacleto de Medeiros

    O terceiro movimento da Sute Retratos presta homenagem a Anacleto de

    Medeiros. Dos diversos gneros que Anacleto comps, o mais significativo foi o

    schottisch. Por isso, Radams utilizou ideias musicais do choro Trs

    Estrelinhas e adaptou s caractersticas estilsticas do schottisch, que

    composto em compasso quaternrio e formado estruturalmente por semnimas e

    colcheias.

    Do ponto de vista formal o movimento de Radams tem a mesma

    quantidade de partes estruturais do choro de Anacleto (trs), entretanto, so

    acrescentadas pequenas sees transitrias como introduo, interldio e coda.

    14

    Pode-se considerar como nitidamente pessoais alguns caminhos modulatrios largamente encontrados na composio dos quatro movimentos da Sute Retratos.

  • 67

    ----------------------------------------------

    Intro 4 compassos

    A 16x2 = 32 compassos

    B 16 compassos

    A 16 compassos

    Interldio (Cadenza) 1 compasso

    C 8+10 = 18 compassos

    Intro 4 compassos

    A 15 compassos

    Coda 4 compassos

    ----------------------------------------------

    A introduo desse movimento, executada pelo naipe de cordas,

    apresenta um motivo musical de quatro colcheias em forma de sequncia, ou

    seja, a ideia musical repetida em alturas diferentes e por diferentes

    instrumentos. As vozes so conduzidas de maneira polifnica e a tonalidade (L

    menor) enfatizada por meio de uma cadncia autntica (V-I).

    Durante toda a extenso das trs partes do choro Trs Estrelinhas

    Anacleto utilizou um marcante motivo meldico que caracteriza a obra, este

    motivo consiste na repetio imediata de notas estruturais da melodia. Como

    no poderia deixar de ser, Radams comps seu movimento com diversas

    tcnicas no encontradas em Anacleto, contudo, o motivo meldico principal de

    Trs Estrelinhas largamente utilizado e transformado, caracterizando a

    citao.

    Analisando de uma maneira macro, a seo A de Radams composta

    por duas sentenas de oito compassos: X X Y / X X Y. J a seo A do choro

  • 68

    de Anacleto formada por uma sentena e um perodo, ambos de oito

    compassos cada: X X Y / A B A C.

    A parte A apresentada de maneira homofnica, como melodia

    acompanhada, no entanto, o acompanhamento est espalhado pelas vozes do

    naipe de cordas. Para gerar contraste, a melodia transita entre as vozes e os

    registros, passando do bandolim para os violinos I. Essa melodia foi concebida

    com muitos ornamentos, principalmente apojaturas descendentes, e possui um

    grande nmero de aproximaes cromticas. Como podemos ver abaixo, os

    motivos de Radams e Anacleto tm bastante em comum:

    FIG. 13 Comparao meldica dos trechos iniciais (seo A) do terceiro movimento da Sute

    Retratos, de Radams Gnattali, e de Trs Estrelinhas, de Anacleto de Medeiros.

    Ambos apresentam os contornos meldicos semelhantes, como por

    exemplo:

    - O ritmo dos trs primeiros compassos idntico, porm desdobrado.

  • 69

    - As quatro primeiras notas seguem o mesmo padro, segunda menor da

    anacruse para o primeiro tempo, volta uma segunda menor e sobe uma

    tera maior.

    - O desenho meldico do primeiro compasso segue a mesma linearidade

    ascendente, mas em vez de subir em teras Radams sobe uma tera e

    quatro graus cromticos.

    - O desenho meldico do segundo compasso segue a mesma l