radições e inovações nas artes da cena

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M T radições e inovações nas artes da cena radições e inovações nas artes da cena radições e inovações nas artes da cena radições e inovações nas artes da cena radições e inovações nas artes da cena B éatrice Picon-Vallin ais do que nunca, em período de muta- ção e não apenas de crise que é o nosso, a história das artes do espetáculo é capital para o artista de teatro. De modo mais amplo, o estudo da história é capital para todos, pois “os países sem lenda estão conde- nados a morrer de frio”, como dizia o poeta francês Saint Pol Roux; Gabriel Garcia Marques insiste, por sua vez, na necessidade de um co- nhecimento aprofundado da história, tão com- plexa e tão trágica de um país como a Colôm- bia, e mesmo da América do Sul. Não podemos saber para onde vamos – nem ter uma leve idéia, nem estabelecer objetivos – se não sabemos de onde viemos. Nessa perspectiva, fazer história do teatro não é fazer um trabalho reacionário – cultivar a nostalgia de uma hipotética Idade de Ouro – mas tentar voltar os passos sobre os passos da- queles que nos precederam, seja para buscar a ruptura com pleno conhecimento de causa e com toda consciência, seja para continuar de outra forma, seja para ir a outro lugar. Não retornar a, mas partir novamente de, em um movimento ao mesmo tempo heurístico e dinâmico. Nenhu- ma vanguarda ignorava a natureza do que des- truía. Trata-se portanto, aqui, de falar da impor- 319 Béatrice Picon-Vallin é diretora de pesquisas do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França e professora da Universidade de Paris III. Tradução de Maria Lúcia de Souza Barros Pupo. tância da história, do estudo das tradições e da inovação no interior dessas tradições e de anali- sar em seguida os novos caminhos que se abri- ram ontem e que se oferecem atualmente às ar- tes da cena, graças às invenções técnicas e àquilo de hoje se chama de NTIC (novas tecnologias da informação e da comunicação). A situação do teatr A situação do teatr A situação do teatr A situação do teatr A situação do teatro Gostaria de constatar no entanto, antes de tudo, que a arte, hoje tão ameaçada por políticas pú- blicas que dela se desinteressam (na França, na Europa e em outros continentes), talvez ocupe um lugar novo em nosso mundo. Desde 1996, por ocasião de um congresso em Lisboa, o en- cenador americano Peter Sellars afirmava: “Es- tou feliz de viver numa época em que, quase pela primeira vez no Ocidente, a arte é verda- deiramente necessária. Assiste-se a uma tal der- rocada da sociedade, a uma tal crise política, que as pessoas têm uma verdadeira necessidade de comunicação (...) Graças às artes, pode-se ofe- recer à sociedade aquilo que ela necessita e não pode mais encontrar pelo viés da política ou pela via econômica”. R6-A1-BeatricePiconValin.PMD 13/05/2010, 16:05 319

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TTTTT rad i çõe s e i novaçõe s na s a r t e s da cenarad i çõe s e i novaçõe s na s a r t e s da cenarad i çõe s e i novaçõe s na s a r t e s da cenarad i çõe s e i novaçõe s na s a r t e s da cenarad i çõe s e i novaçõe s na s a r t e s da cena

BBBBB éatrice Picon-Val l in

ais do que nunca, em período de muta-ção e não apenas de crise que é o nosso, ahistória das artes do espetáculo é capitalpara o artista de teatro. De modo maisamplo, o estudo da história é capital para

todos, pois “os países sem lenda estão conde-nados a morrer de frio”, como dizia o poetafrancês Saint Pol Roux; Gabriel Garcia Marquesinsiste, por sua vez, na necessidade de um co-nhecimento aprofundado da história, tão com-plexa e tão trágica de um país como a Colôm-bia, e mesmo da América do Sul. Não podemossaber para onde vamos – nem ter uma leve idéia,nem estabelecer objetivos – se não sabemos deonde viemos.

Nessa perspectiva, fazer história do teatronão é fazer um trabalho reacionário – cultivar anostalgia de uma hipotética Idade de Ouro –mas tentar voltar os passos sobre os passos da-queles que nos precederam, seja para buscar aruptura com pleno conhecimento de causa e comtoda consciência, seja para continuar de outraforma, seja para ir a outro lugar. Não retornar a,mas partir novamente de, em um movimento aomesmo tempo heurístico e dinâmico. Nenhu-ma vanguarda ignorava a natureza do que des-truía. Trata-se portanto, aqui, de falar da impor-

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Béatrice Picon-Vallin é diretora de pesquisas do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França eprofessora da Universidade de Paris III. Tradução de Maria Lúcia de Souza Barros Pupo.

tância da história, do estudo das tradições e dainovação no interior dessas tradições e de anali-sar em seguida os novos caminhos que se abri-ram ontem e que se oferecem atualmente às ar-tes da cena, graças às invenções técnicas e àquilode hoje se chama de NTIC (novas tecnologiasda informação e da comunicação).

A situação do teatrA situação do teatrA situação do teatrA situação do teatrA situação do teatrooooo

Gostaria de constatar no entanto, antes de tudo,que a arte, hoje tão ameaçada por políticas pú-blicas que dela se desinteressam (na França, naEuropa e em outros continentes), talvez ocupeum lugar novo em nosso mundo. Desde 1996,por ocasião de um congresso em Lisboa, o en-cenador americano Peter Sellars afirmava: “Es-tou feliz de viver numa época em que, quasepela primeira vez no Ocidente, a arte é verda-deiramente necessária. Assiste-se a uma tal der-rocada da sociedade, a uma tal crise política, queas pessoas têm uma verdadeira necessidade decomunicação (...) Graças às artes, pode-se ofe-recer à sociedade aquilo que ela necessita e nãopode mais encontrar pelo viés da política oupela via econômica”.

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Semelhante situação de necessidade daarte teatral existiu sob diversos regimes totalitá-rios, quando a censura, na URSS dos anos 60-70 ou na Argentina, fazia com que o teatro fos-se, dizia-se, “tão necessário quanto o pão”. Em2008, o contexto não é mais o mesmo. Comefeito, trata-se menos de censura do que de rup-tura de civilização, em que os partidos políticosperdem importância, em que o desemprego au-menta (o economista Jeremy Rifkin evocou atémesmo o desaparecimento do trabalho), em queo fosso entre ricos e pobres não cessa de seaprofundar. E em que se assiste, com o desen-volvimento das indústrias da comunicação, àabsorção progressiva e cada vez mais voraz dacultura e da arte pelo entretenimento, o cultodas “emoções”, e a imediatez, a eficácia do ins-tantâneo. A mundialização, a globalização dasindústrias culturais opõem-se à especificidadedos fenômenos essenciais que caracterizamnossa época: a interculturalidade e a interdisci-plinaridade nas quais as artes e as culturas seinterrogam, se completam, se enriquecem, seinterpenetram sem se formatar mutuamente1.

Por outro lado, observa-se que na gera-ção jovem, fazer teatro não acompanha mais,como em 1968, o engajamento político, a mili-tância no seio de um partido, mas os substitui;fazer teatro com exigências artísticas e sociaistornou-se um meio de colocar em prática umapolítica concreta, real, bem diferente da políti-ca tagarela e separada da realidade concreta queos políticos praticam. Basta ver os grupos de te-atro que trabalham em bairros desfavorecidos,como é o caso do Nós do Morro na favela doRio, dirigido por Guti Fraga. Minoritário e frá-gil diante dos gigantes da indústria do entrete-nimento e das TVs Globo do mundo, o teatroaparece como o último espaço público de encon-

tro, seja o teatro de rua, o teatro das salas deespetáculo, o teatro proveniente de projetosinterculturais, a ópera, as novas formas de tea-tro nômade, aquelas provenientes da interdisci-plinaridade – teatro-dança, teatro-circo, teatroque usa telas que parecem ameaçá-lo tanto etc.Para alguns, o teatro tornou-se, face às mídiasmentirosas, vazias e super-abundantes, um meiode informação alternativo. Assim acontece comSellars que, com Les Enfants d’Héraklès[Os filhosde Hércules], apresentado em Paris em 2002 eem diversas cidades da Europa, mostra, pormeio da tragédia grega, a situação dos exilados,dos imigrantes ilegais na Europa, fazendo comque cada apresentação seja precedida de umadiscussão entre o público, testemunhas e espe-cialistas, e encerrada com projeções de filmes.

A encenação pode ser definida como aorganização de um tipo de endereçamento aopúblico a quem se escolhe dirigir-se. Daí a im-portância da questão do público. A história nosmostra que o teatro muda, evolui, transforma-se quando o público muda. O teatro revolucio-nário russo foi um grande teatro porque haviaum grande público, novo, enorme, curioso ereceptivo. Na América Latina, o público poten-cial é imenso, como puderam perceber os atoresde teatro de rua europeus que foram ao Festivalde Teatro de Bogotá em 2008, entusiasmadoscom o número impressionante de espectadoresque acompanhavam suas apresentações, inabi-tual para eles...

Fazer a história do e dos teatrFazer a história do e dos teatrFazer a história do e dos teatrFazer a história do e dos teatrFazer a história do e dos teatro(s)o(s)o(s)o(s)o(s)

Diante desses elementos, a transmissão da his-tória e das experiências do passado permaneceessencial. O saber sobre a história do teatro é

1 Prefiro esse termo a “multiculturalidade”, que evoca uma espécie de pulverização, enquanto ainterculturalidade implica uma troca, o desenvolvimento de relações recíprocas. Je préfère ce terme àcelui de “multiculturalité”, qui évoque une sorte d’éclatement, alors que l’interculturalité implique un échange,le développement de relations réciproques.

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apropriação de uma herança comum, e todoengajamento no presente implica paralelamen-te um diálogo com o passado e um olhar para ofuturo, pois o contemporâneo não é, em nenhumcaso, um puro presente. A história do teatro étransmitida de diversas maneiras e a transmisãooral é, sem dúvida, a mais importante para ométier. Ela está fixada na escrita – arquivos tex-tuais, livros, memórias, obras de encenadores,pesquisadores, notas, artigos etc. A elas se acres-centam as fontes iconográficas, depois audiovi-suais, imagens desenhadas, pintadas, gravadas,fotografias, filmes, videos, DVD... É sintomá-tico ver que uma companhia como o Théâtredu Soleil, que se interessou, em seu processo detrabalho, pela história do teatro, faça questãohoje de preservar elementos de sua própria his-tória, organizando arquivos, filmando os espe-táculos, digitalizando documentos. O mesmointeresse é encontrado no grupo Galpão emBelo Horizonte.

Mas, por um lado, a história do teatroestá longe de ser completa. Ela tem buracos, la-cunas, devidas ao desinteresse e aos desapareci-mentos, como o de Meyerhold, fuzilado, depoisapagado durante vinte anos de toda a históriaoficial e que ainda não retomou, de fato, seulugar na memória coletiva do teatro russo, eu-ropeu e mundial, com suas pesquisas e suasquestões radicais. Uma história global da ence-nação na Europa está por ser feita; a de um ar-tista como Seki Sano, japonês que passou peloslaboratórios de Meyerhold em Moscou, em se-guida teve que se exilar no México e de lá via-jou pela América Latina, ainda está longe de serelucidada; e a história do teatro de certos paísescomo a Colômbia, ainda que extremamenterica, também não foi realizada. No tocante aessas lacunas, cabe à pesquisa reunir os univer-sitários e os praticantes do teatro, testemunhasou atuantes.

Por outro lado, há uma questão curiosa-mente candente no período atual. Um certonúmero de países, na Europa e no mundo, fun-daram museus do teatro – mas não a França,por exemplo. Por que as pessoas de teatro não

têm acesso direto à sua arte, e à sua história, aocontrário dos pintores, músicos ou escultores,que têm seus museus? Porque é uma arte emdois tempos que implica a conservação de mui-tos objetos diferentes e procedimentos de expo-sição mais complexos, sem que a obra em simesma esteja presente? O museu é uma insti-tuição necessária ao desenvolvimento do teatro.Apesar de o teatro ser efêmero por definição,não é por isso que deixa de dispor de uma me-mória: o espetáculo desaparece, mas deixa tra-ços tangíveis e mnésicos. A tarefa de hoje, nesseperíodo de mutação, é de assumir o estudo dopassado – afinar o conhecido e se interessar pelodesconhecido – que pode ajudar a inventar ofuturo do teatro.

Porque a história do teatro é um baú detesouros. Quando S. Eisenstein salvou do de-saparecimento os arquivos de Meyerhold fu-zilado como “inimigo do povo”, escreveu umpoema sobre esses arquivos intitulado “O te-souro”. Graças à sua coragem, hoje é possívelestudar e analisar esse teatro essencial, que trazconsigo em germe todo o teatro do século XX.Caso contrário, teria havido uma perda irrepa-rável. Com certeza, o teatro está sempre nohoje, no presente. Mas cada espetáculo, cada atoteatral se situa no cruzamento das três dimen-sões da temporalidade ( passado, presente, fu-turo), ou seja, o tempo da herança, o do vividoe o da transmissão. Ele vive da tensão entre es-ses três tempos. Citemos Eugenio Barba quegosta de dizer que “a história não é apenas o re-servatório do antigo, ela é também o reservató-rio do novo”...

Todos os grandes reformadores da cenado século XX, Appia, Craig, Fuchs, Meyerhold,Brecht, Kantor, mas também Mnouchkine eBarba procuraram as leis do teatro, as do espaçoe do movimento no estudo das grandes formasdo passado teatral, do autêntico “teatro teatral”:commedia dell’arte, teatros asiáticos, balagan outeatro de feira, formas do teatro popular refugia-das no circo. Mais próximo de nós, G. Strehlerdesde 1947 estuda a commedia dell’arte e faz re-nascer em Arlequim servidor de dois amos a más-

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cara do Arlequim. Marcello Moretti e FerucioSoleri, os dois Arlequins de Strehler se apresen-taram sucessivamente nessa obra que teve atédez versões diferentes e é apresentada aindahoje. Mathias Langhoff, ao montar em 1976 Laforêt [A Floresta] de Ostrovski na Alemanha, dis-põe apenas de algumas fotos desse grande espe-táculo de Meyerhold, para tentar, através daconstrução de seu próprio espetáculo, remon-tar até ele, conhecê-lo através da experiênciaprática, sendo que poucos materiais estavamacessíveis ao domínio público naquele momen-to. Muito mais tarde, para Le revizor [O Inspe-tor Geral] de Gogol, ele estuda os vários mate-riais então existentes sobre o espetáculo deMeyerhold de 1926, e propõe uma magistral“variação” dele. Quanto às pesquisas de E. G.Craig, elas anunciam o tempo dos “escritores depalco”, como são designados hoje, encenado-res tais como Lepage e Mnouchkine, que escre-vem diretamente na área cênica com palavras,movimentos, cores, linhas, ritmo, jogo dos ato-res, objetos etc. Filiações diretas ou indiretas te-cem estreitas relações entre criadores de diferen-tes épocas.

O patrimônio folclórico, que guarda umateatralidade viva, deve ser estudado em todos oslugares em que pode ser encontrado, sobretudoquando se acha em vias de desaparição; nuncaserá demais salientar o quanto a vinda nos anos1950 e 1960 na França, ao Teatro das Nações –grande festival dos teatros do mundo – de for-mas de teatralidade ritualizada, africanas, asiáti-cas, pôde transformar o olhar dos artistas de te-atro e do público. Não haveria aí uma tarefa aser partilhada entre antropólogos, sociólogos eteatrólogos constituídos em equipes nas quaiscolaborariam pesquisadores e praticantes?

Estudar a história significa então ao mes-mo tempo se apropriar do saber existente e darcontinuidade à pesquisa. A relação com a histó-ria é, além disso, complicada pela intercultu-ralidade que sempre caracterizou o teatro: as-sim a viagem dos atores é crucial para os gruposde commedia dell’arte no século XVIII na Eu-ropa. No entanto, durante todo o século XX a

interculturalidade se acelerou e intensificoucom o desenvolvimento das trocas, das infor-mações e das reproduções. Esse diálogo de cul-turas obriga a uma relação dupla ou tripla coma história. A referência aqui são os antigos paí-ses colonizados na cultura teatral dos quais co-existem tradições mais ou menos censuradas ousobreviventes, um reflexo embaçado, defor-mado ou sublimado da cultura dos antigos paí-ses colonizadores, dos modelos europeus maiscontemporâneos revisitados (influência de B.Brecht na América Latina, por exemplo). Mas“tudo o que acontece na vida acontece pelodiálogo, não pelo monólogo”, como afirmaP. Sellars. E a interculturalidade define “a essên-cia do ser humano e a significação da sua sobre-vivência na terra”, continua ele. Ela obriga as-sim a colocar de maneira ainda mais urgente oproblema da relação entre tradições e inovações,entre historicidade e contemporaneidade.

Util ização da tradiçãoUti l ização da tradiçãoUti l ização da tradiçãoUti l ização da tradiçãoUti l ização da tradiçãoe inovação na tradiçãoe inovação na tradiçãoe inovação na tradiçãoe inovação na tradiçãoe inovação na tradição

O recurso à tradição e à história é portanto nãoapenas possível, mas freqüentemente necessáriopara o desenvolvimento da arte. Na história doteatro italiano e das novas tecnologias, a óticapós-moderna da recusa da tradição conduziu aum impasse e a uma transformação do teatroque se funde nas “multimidia” enquanto que,mais tarde, com o enfraquecimento da exacer-bação do pós-moderno, Giacommo Verde porexemplo consegue criar um gênero novo ao seinteressar pelas tradições dos contadores italia-nos ambulantes que ele transpõe com a ajudade novos instrumentos digitais.

Dois casos de transferências interculturaisexemplares entre Oriente e Ocidente, entre Ásiae Europa podem dar uma idéia da importânciae da originalidade do fenômeno. Tambours surla digue [Tambores sobre o dique] primeiro. OThéâtre du Soleil durante o processo de criaçãodo espetáculo estuda as tradições do Bunrakujaponês. Não se trata de copiar nem de citar,

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mas de se reapropriar dele, integrando técnicasemprestadas de outras tradições como as doballet clássico com suas portés,2 por exemplo.Durante a turnê do espetáculo em Tóquio em2001, os mestres de Bunraku assistem à re-presentação, e em cartas enviadas ao Soleil afir-mam ter aprendido mais com o Théâtre duSoleil sobre sua própria técnica, suas expressõescorporais e sobre essa forma dramática antiga,do que ao estudar sua tradição pura. Assim, apósum longo e doloroso trabalho de nove mesessem concessões, o Soleil, grupo ocidental quereúne atores de várias nacionalidades, é capazde injetar novamente em artistas japoneses de-sejo e esperança em relação às suas formas asmais patrimoniais3.

A experiência de Seki Sano, jovem dire-tor japonês no Toranku gekijô, grupo militan-te, que deixou seu país para estudar em Mos-cou o novo teatro proletário é interessante. Elepassa a ser assistant-laborantin4 no GOSTIM, oteatro de Meyerhold e observa como o encena-dor russo se apóia nos princípios do Kabukipara construir um teatro russo político e con-temporâneo. O grupo de kabuki d’IchikawaSandanyi II, em turnê em Moscou em 1928,aliás, reconhecerá publicamente a proximidadeentre o teatro meyerholdiano e o seu, sem quetenha havido nenhuma cópia formal. E SekiSano poderá escrever, anos depois da tragédiade 1939-1940 – a execução de Meyerhold, suaprópria fuga da URSS, a recusa do Japão emacolhê-lo e sua instalação no México, de ondeele vai viajar por toda a América Latina e parti-cularmente na Colômbia – que, graças a Meyer-

hold, ele pôde se dar conta de que possuía umtesouro, sua tradição, e que havia encontradono GOSTIM, longe de seu arquipélago, os se-gredos do teatro kabuki5.

A inovação tecnológicaA inovação tecnológicaA inovação tecnológicaA inovação tecnológicaA inovação tecnológicanas artes da cenanas artes da cenanas artes da cenanas artes da cenanas artes da cena

“Em arte não há técnicas pr“Em arte não há técnicas pr“Em arte não há técnicas pr“Em arte não há técnicas pr“Em arte não há técnicas proibidas,oibidas,oibidas,oibidas,oibidas,há somente técnicas mal uti l izadas”há somente técnicas mal uti l izadas”há somente técnicas mal uti l izadas”há somente técnicas mal uti l izadas”há somente técnicas mal uti l izadas”,,,,,

VVVVV. Meyerhold. Meyerhold. Meyerhold. Meyerhold. Meyerhold

A inovação artística depende da personalidadedo artista, do contexto político, social e pessoalno qual ele vive e do contexto técnico, das in-venções tecnológicas que modificam o ambienteda vida e da criação artística. Sabe-se bem como,por exemplo, a utilização da eletricidade a partirde 1880 transformou em profundidade as con-dições de criação cênica e as condições da visãodo espectador. O cinema e as projeções na cenapermitirão igualmente aos espectadores ver deoutro modo, com pontos de vista diferentes.

Inovação e históriaInovação e históriaInovação e históriaInovação e históriaInovação e história

Acredita-se freqüentemente que a aparição dastelas em cena data de hoje, ou pelo menos dosanos 1980. Ora, ela data na realidade do nasci-mento do cinema6. A. Appia muito cedo ima-gina o papel desempenhado por projeções quetornarão a luz realmente ativa, e A. Artaud su-gere empregos muito precisos de projeções emsua correspondência com encenadores, assim

2 Portés são as figuras nas quais o dançarino ergue no ar a dançarina. (N da T.)3 Arquivos do Théâtre du Soleil (cartas de espectadores), Cartoucherie de Vincennes.4 As denominações laborantin e assistant-laborantin dizem respeito a pessoas que atuam no laboratório

do Teatro de Meyerhold. (N. da T.)5 Moscou, Arquivos RGALI, carta de Seki Sano à L. Vendrovskaïa, 7 de julho de 1960.6 Cf. B. Picon-Vallin (org.) “Hybridation spatiale, registres de présence”, in Les Ecrans sur la scène,

Lausanne, L’Age d’Homme, 1998.

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como imagina espécies de ambientes imersivosnos quais o espectador seria mergulhado em umbanho de imagens e sons em movimentos. EMeyerhold, Piscator e muitos outros diretoresde teatro na Alemanha e na Russia, que o estu-do da história do teatro deve fazer ressurgir –particularmente os do período do “realismo má-gico” germânico (anos 20 e 30) – tomam possedas imagens projetadas e do filme para atingirdiferentes objetivos, que vão desde o teatrodocumentário até os efeitos poéticos. Mais ain-da, a rivalidade/cumplicidade do teatro de van-guarda com o cinema que então se desenvolvefoi um possante motor de criatividade. Toman-do como referência apenas o close cinematográ-fico e os equivalentes procurados pela cena, sepoderia escrever um longo capítulo da históriado teatro. E. Piscator se surpreeende com o fatode que no fim dos anos 50 e apesar de todas asexperiências históricas, ainda se possa desconhe-cer o papel da técnica no teatro. “Fico satisfeitode poder enfatizar publicamente (...) a necessi-dade estética da técnica no teatro: não somenteda técnica tal qual ela é, mas também da técni-ca tal qual ela poderia, tal qual ela deveria ser.Esta declaração pública é necessária porque detodos os lados, em particular nas hostes daque-les que amam pontificar em matéria de arte, atécnica de teatro tem reputação de ser um mal ne-cessário, que mais entrava do que favorece o exer-cício da arte. Compreendam-me bem. Todas asnoites a cortina se levanta, o eletricista na cabi-ne manobra a iluminação quando soa o sinal; odiretor técnico estabeleceu os planos e instalouos cenários, o chefe maquinista dirige as mu-danças de cenário: evidentemente, é preciso quetudo funcione de modo impecável. Quando issoacontece, não se presta atenção na técnica. E,no limite, isso é bom”7. Mal vistas e criticadasno teatro, as técnicas contemporâneas de fato

ajudaram os primeiros diretores a se afirmar e aalargar o campo do teatro. O diálogo do teatrocom as tecnologias contemporâneas conta comtrês etapas principais: anos vinte, anos sessentae anos oitenta, a partir dos quais ele não cessoude se intensificar.

URSS, 1923: o cinema é introduzido nacena em Le Sage [O sábio], remontagem do tex-to do clássico Alexandre Ostrovski por SergüeiEisenstein. Não é a primeira vez que um filmeé convocado em cena, mas aqui trata-se de umfilme especialmente rodado para o espetáculo:um dos personagens “sai” da tela para irromperna sala brandindo uma bobina de filme, justa-mente aquela que acaba de ser projetada e que,na tela, relata de modo excentrico o diário rou-bado de um dos heróis da fábula ostrovskiana.O diário virou bobina de filme. Confusão lúdi-ca dos espaços, “atrações”, desaparecimentos,aparições, transformações, metamorfoses: essefilme, o primeiro de Eisenstein, perturba o tem-po e o espaço do teatro.

1923, ainda, La terre cabrée [A terra emcólera] de M. Martinet: sobre o palco do Teatrode Meyerhold, do qual Eisenstein é então o la-borantin, três telas projetam todo um materialdocumentário de textos e imagens fixas. VarvaraStepanova, a cenógrafa, tinha intenção de pro-jetar filmes, o que não pôde fazer por razões decusto. Uma tela grande com 33 cartelas de ci-nema mudo é encontrada em La forêt [A flores-ta] de Ostrovski, em 1924. E em 1927, em Unefênetre à la campagne [Uma janela no campo]Tsetnerovitch, o assistente de Meyerhold, autordo “dispositivo cinematográfico” (é a expressãorussa utilizada), escolheu para cada uma das par-tes desse espetáculo de agitação, quadros tira-dos de filmes documentários que são colocadosno meio, no início ou no final das seqüênciasteatrais, acompanhados de intertítulos e de de-

7 Erwin Piscator , “La technique, nécessité artistique du théâtre moderne”, in Le Lieu théâtral dans lasociété moderne, études réunies et présentées par D. Bablet et J. Jacquot, Paris, Editions du CNRS,1969, p. 179.

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senhos projetados. Em relação à La lutte finale[A luta final] em 1931, são cineastas que dessavez se encarregam de compor o acompanha-mento visual. O primeiro, Ledachev, é um assis-tente de Poudovkine; o segundo, Nemoliaev, deBarnet8. O espetáculo é desse modo compostopor textos, banda sonora extremamente com-plexa compreendendo fuzilamentos, gritos, co-municados radiofônicos, uma sinfonia de Scria-bine, uma canção de Maurice Chevalier e frag-mentos de cinema extraídos de documentáriosou de filmes (Arsenal de Poudovkine, Chaplin)9.

Em La reconstruction du théâtre [A recons-trução do teatro] (1929-1930), Meyerhold afir-ma: “Nós, que construímos o teatro que deveconcorrer com o cinema, dizemos: deixem-nosrealizar até o fim nossa tarefa de cineficação doteatro, deixem-nos realizar em cena as técnicasda tela (não apenas no sentido em que suspen-deríamos simplesmente uma tela em cena),dêem-nos a possibilidade de investir uma cenaequipada de novas tecnologias segundo as exi-gências que impomos aos espetáculos de teatrode hoje, e criaremos espetáculos que atrairãotantos espectadores quanto o cinema”10.

Na Alemanha, Erwin Piscator, apelidado“o engenheiro teatral” leva essa empreitada mui-to mais longe ainda... Em Drapeaux [Bandei-ras]de Alfred Paquet em 1924, o ambiente daação é dado por um filme projetado no fundodo palco. Em Hop là, nous vivons! [Oba, estamosvivos!] d’E. Toller, em 1927, à projeção de umplano geral dos prédios de uma prisão sucedeum “zoom cênico” sobre uma cela na qual sepassa a ação teatral. Piscator sincroniza, aliás,

nesse espetáculo, a imagem radiográfica de umcoração batendo, um anúncio feito por um alto-falante e um texto dito por um ator. Em Ras-putin em 1928, ele multiplica as superfícies deprojeção – semi-esfera, tule, telas – e suas fun-ções, projetando, graças a elas, o drama no fu-turo. É preciso reler O teatro político de Piscator,mas também compreender que ele não é o úni-co nesse campo e que outros artistas (WilhelmReinking, Nina Tokumbet, etc.) devem ser ci-tados e estudados.

Piscator destaca em texto já citado que “atécnica é uma necessidade artística do teatromoderno” que faz explodir a antiga forma dacaixa ótica para “alçar a cena ao plano da histó-ria”11. Ela permite também ao teatro desenvol-ver novos conteúdos, fazer entrar no palco osconflitos contemporâneos12 e responder às mo-dificações dos ritmos perceptivos do público, deseus hábitos temporais e espaciais. Uma novadramaturgia deveria resultar desses dispositivostecnológicos possíveis. Meyerhold, no entanto,emite uma reserva de peso acerca do desinteres-se de Piscator por uma interpretação teatral ade-quada a essas técnicas: “O problema que se co-loca ao encenador é que é preciso proporcionara esse ambiente (técnico) os gestos, a voz doator. É o que Piscator não procurou. Ele cons-truiu uma nova sala de espetáculos, mas faz ve-lhos atores interpretarem”13. É para esse novoator que, por sua vez, ele tenta formar, queMeyerhold conceberá os planos de um novo te-atro, nunca terminado por razões políticas eque, em projeto desde o fim dos anos 20, pre-via áreas de jogo transformáveis e múltiplas su-

8 São dois cineastas muito célebres na época.9 B. Picon-Vallin, “Le cinéma rival, partenaire ou instrument du théâtre meyerholdien”, in Théâtre et

cinéma années vingt, vol. 1, Lausanne, L’Age d’Homme, 1990, p. 229-62.10 V. Meyerhold, Ecrits sur le théâtre, vol. 3, Lausanne, L’Age d’Homme, 1980, p. 49.11 Erwin Piscator, “La technique, nécessité artistique du théâtre moderne”, op.cit., p.183.12 Cf. E. Piscator, Le Théâtre politique, tradução de A. Adamov, Paris, L’Arche, 1962, p. 138.13 V. Meyerhold citado por S. Priaciel, “Meyerhold à Paris”, in Le Monde, 7 juillet 1928.

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perfícies de projeção, nas paredes e no teto, evo-cando, ao mesmo tempo, os planos do “TeatroTotal” de W. Gropius e E. Piscator, tambémnunca realizado, assim como determinados dis-positivos futuros de Jacques Polieri.

Nos anos 60 a vanguarda americana pro-põe instalações, performances “intermidia” nasquais o ator e o dançarino desafiam a imagem;isso assume diversas formas: projeções em umgrande balão sonda, nas costas dos atores, expe-riências de “cinema expandido”, depois de “tea-tro expandido”, happenings filmicos. Em 1967o cineasta Jonas Mekas escreve em uma revistade dança: “A dança, a música, a poesia, o teatro,a escultura, a arquitetura, o canto, o cinema es-tão em um período de transição; interferem detal modo que eles redescobrem de maneira novasua verdadeira e própria identidade; todas as ar-tes tornaram-se multimidia. Falamos de cine-ma expandido (expanded cinéma), de esculturacinética, de pintura tridimensional. O cinematem tudo a fazer com a dança. A dança tem tudoa fazer com o cinema”.

Svoboda e PolieriSvoboda e PolieriSvoboda e PolieriSvoboda e PolieriSvoboda e Polieri

É em Praga em 1958 que Josef Svoboda inven-ta as técnicas da Laterna Magika apresentadana exposição de Bruxelas e mais tarde as dopolyécran14. Ele as aplicará ao teatro. A LaternaMagika combina numa composição sincrônica,plástica e sonora, a interpretação do ator oudançarino, a cena cinética (esteiras rolantes, tor-nos), som estereofônico, telas móveis e o cine-

ma, com suas possibilidades de montagem etrucagem. Na Laterna Magika, cena mutimidiavinculada ao Teatro Nacional de Praga antes dese tornar autônoma, Le cirque enchanteur [O cir-co encantado] (1977) foi representado mais de2500 vezes e ainda está em cartaz. Quanto aopolyécran, é “um continuador audacioso” deNapoleão, tríptico de 1925 de Abel Gance, se-gundo as próprias palavras do realizador, queconfessa nunca ter ousado sonhar com uma talposteridade. Nele as imagens são mais numero-sas e as superfícies de projeção separadas, crian-do arquiteturas modificáveis. Tanto a LaternaMagika quanto o polyécran visavam a espetácu-los de entretenimento para um público amplo.Mas em 1965, integrando em Intolleranza [In-tolerância] (ópera atonal de Luigi Nono apre-sentada no Group Opéra em Boston) paredesde luz, projeções múltiplas e uma projeçãotelevisual em circuito fechado15, Svoboda efeti-va um teatro político.

É perturbador constatar que há poucasreferências na França à obra de dois grandes pre-cursores-visionários: o tcheco Josef Svoboda e ofrancês Jacques Polieri. A partir de seu mundofechado pertencente ao bloco soviético, Svobo-da acabará sendo internacionalmente reconhe-cido, mas a França o acolherá muito pouco.Polieri, por sua vez, será mais requisitado no es-trangeiro do que em seu próprio país.

Se um, autor de cerca de 700 cenografiase inventor de procedimentos técnicos como ofamoso projetor “svoboda”16 e a Laterna Magi-ka, permanece essencialmente como um arte-são do teatro, trabalhando junto aos maiores

14 Uma tradução possível seria multitelas. Trata-se de dispositivo para representação de imagens formadopor uma série de telas constituídas por cubos que se inclinam e cujas faces se deslocam ligeiramenteumas em relação às outras, gerando imagens em constante movimento. Cf. <www.medienkunstnetz.de/works/polyecran>. Disponível em 27/11/09 (N. da T.)

15 Em relação a esse assunto, cf. Denis Bablet, Josef Svoboda, Lausanne, L’Age d’Homme, nouvelle édition,2004.

16 Cortina de luz constituída por uma série de lâmpadas de baixa tensão com feixes cerrados.

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encenadores de seu tempo, o outro, ao mesmotempo cenógrafo e diretor, torna-se rapidamen-te arquiteto de salas de espetáculo, criador deacontecimentos interativos, voltando-se para aconcepção de lugares, visando ao que ele cha-ma desde 1957, um “teatro do movimento to-tal”, que ele nomeará depois, projetando suacriatividade em direção a uma cena planetária,“ciberteatro” ou “cibercinema”.

Ambos se nutrem das vanguardas que osprecederam: eles têm memória. Assim, em 1958Polieri publica um número especial da revistade arte Aujourd’hui, na qual ele difunde infor-mações importantes sobre as vanguardas russase alemãs, esquecidas ou muito pouco conheci-das então. Ele se interessa por Vladimir Khleb-nikov, o príncipe dos poetas futuristas que eleé, na época, um dos únicos a citar, e trabalhacom o pintor Iouri Annenkov, emigrado russoinstalado em Paris, que foi um dos praticantes-teóricos, no início dos anos 20, da “cirquização”do teatro na URSS. Quanto a Svoboda, é noseu próprio passado tcheco, na vanguarda doperíodo entre-guerras que ele encontra suas fon-tes que ele estende ao constrututivismo russo ea Meyerhold, Taïrov, Vakhtangov, Okhlopkov:suas ligações com os grandes nomes das revolu-ções cênicas do início do século XX se enraí-zam na herança do “teatro da luz” tcheco, o tea-tro de Honzl, Burian e Frejka, que ele conheceatravés de seu professor, o cenógrafo FrantisekTröster, que utilizou de modo muito inovadoras projeções no palco nos anos 1930. Já que oterreno está aqui bem preparado pelo passadobrilhante e inventivo da cenografia dos paísesdo leste nos anos 1920 e 1930, Svoboda podeencontrar em 1957 uma escuta favorável a seudesejo de iniciar pesquisas sobre as tecnologiasno Teatro Nacional de Praga. Ele proclama:“Os maiores sucessos serão obtidos quando meuprojeto tiver sido realizado: contratar especia-listas da mais alta qualificação técnica em todasas áreas do teatro: técnica tradicional, superfí-cies refletoras, superfícies absorventes, quími-cos, engenheiros óticos, projecionistas, técnicosde eletro-acústica”.

Tendo ingressado em 1946 no TeatroNacional de Praga, Svoboda então diretor téc-nico, ganha a oportunidade, dez anos mais tar-de, de transformar o ateliê de cenários em umverdadeiro laboratório de pesquisa. Ele não dei-xará de considerar o próprio teatro como umateliê, do mesmo modo que Meyerhold que,assim que os cães de guarda stalinistas lhe obri-garam a fazer sua auto-crítica, não podia deixarde se definir como um “inventor”...

Ávidos de tecnologias, Svoboda e Polieriexploram cada um ao seu modo os caminhosdo teatro do Século XXI, mas tomam duas viasopostas, determinadas por personalidades e con-textos sócio-políticos e culturais diferentes – viacentrífuga daquele que permanece voltado paraos segredos do espaço teatral, pretende desper-tar a tradição e expor de outra maneira seusenigmas; via centrípeda daquele que de imedia-to é mais atraído pela abstração, pelo não figu-rativo e quer fazer sair o teatro do teatro. Ex-plorador dos poderes da luz, adepto de umacena cinética na qual o ator polivalente conser-va todo o seu lugar no interior de uma cenogra-fia complexa, Svoboda cria um teatro total emultimidia que conserva a magia do vazio mis-terioso que a cena italiana lhe evoca, cena essaque ele continua a apreciar. Ele utiliza a foto-grafia projetada e o vídeo, o filme, toma possedo laser em 1970 e das tecnologias digitais em1999. Ele faz variar ao infinito as telas (planas,esféricas, inclinadas, opacas, transparentes, mó-veis), as texturas, projetando as imagens sobreobjetos, tecidos, cortinas de corda ou de tulemetálico, fabricando ele mesmo seus dispositi-vos coloridos, superpondo-os.

Explorador de novos espaços-tempos hí-bridos, Polieri utiliza o digital desde o início dosanos 80 e imaginará para o espetáculo novosmodos grandiosos de realização, através do sa-télite, do estabelecimento de redes, internet. Elecoloca em movimento o espaço do espetáculo,a área de jogo, através de projeções fixas oumóveis. As projeções, o cinema, a imagem a360º abrem o caminho para uma nova estéticada variabilidade e da complexidade, que destrói

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a frontalidade da cena, faz explodir seu carátercompacto, a faz sair de sua caixa e a multiplicana platéia. Mais ainda, Polieri abala o espaçoteatral todo, de modo concreto e não metafó-rico. O palco e a platéia se tornarão móveis.Ele coloca em movimento as diversas facetas dopróprio prédio, em múltiplas proposições e re-alizações: “palco anular” dando a volta nos es-pectadores a 360º, “platéia giroscópica”, “palcotriplo”, “platéia automática móvel”, “palco eplatéia teleguiados, rotativos e modificáveis”,palco eletronico cujas superfícies são ao mesmotempo telas e superfícies neutras, permitindotanto a projeção de imagens quanto tomadasem estúdio.

Em um manifesto de 1955, Polieri “pre-dizia” o que acontece hoje quando os atores,equipados com captores sensoriais, começam aser capazes de engendrar sua própria direção lu-minosa ou musical, e ele anunciava que “tudo(era) possível”17. Assim sendo, parece se imporaos artistas-inventores, aos engenheiros-artistasde hoje, um mergulho nas águas profundas eainda pouco estudadas da história do século XX.

Papel da imagem em vídeoPapel da imagem em vídeoPapel da imagem em vídeoPapel da imagem em vídeoPapel da imagem em vídeonas cenas do fim do século XXnas cenas do fim do século XXnas cenas do fim do século XXnas cenas do fim do século XXnas cenas do fim do século XX

Se, nos anos vinte, as imagens fixas ou filmadaseram muitas vezes documentárias e introduzi-am em cena o mundo exterior, os vídeos dasduas últimas décadas do século, quando não ser-

vem simplesmente de didascálias, papel básicoilustrativo, nos fazem também penetrar em ummundo mais íntimo, o mundo interior dos per-sonagens. Ou elas nos fazem ver acontecimentosou circustâncias impossíveis de serem mostra-das em cena (pornografia, operação cirúrgica),ou utilizam imagens de atores captadas direta-mente, como já faziam em 1969 muitas ence-nações na Europa da grande peça de teatrodocumentário sobre o processo de Nurembergde Peter Weiss, L’instruction [O Interrogatório].

Nesse lugar de aparição ao qual o palcode teatro pode ser assimilado, os atores sãocomo “espectros semelhantes a corpos anima-dos”, “espectros falantes” e “fantasmas vãos”,que a arte de Alcandre faz surgir em L’illusioncomique [A ilusão cômica] de Corneille. Meyer-hold chama o ator de “sobrevivente do país dasmaravilhas”, “aquele que parece ressuscitar den-tre os mortos”. Artaud faz dele um “mediadorentre os planos de realidade”, colocando-o “nocruzamento entre o ser vivo e o fantasma”. Kan-tor considera que há nele “qualquer coisa doDibbuck, como se um fantasma tivesse se apro-priado dele”18. Para encerrar esse resumo, cite-mos Lepage e seu projeto de iniciar seu últimoespetáculo, Elsinor, com um negro deixando oespectador adivinhar “a presença do ator comoa de um espectro, graças à câmera infra-ver-melha que permite atravessar a escuridão”19.Quando não constituem uma simples conces-são feita à moda, as imagens-artefatos que inva-dem o palco – lugar de aparição, como define

17 Jacques Polieri, “Le théâtre kaléidoscopique ” in Art et architecture, Aujourd’hui N°17, mai 1958,p. 61. Cf. também B. Picon-Vallin, “J. Polieri dans l’histoire des arts du spectacle” in Autour de J.Polieri, scénographie et technologie, BNF, colloque, 2004, p. 33-42 (edição francesa e edição inglesa),traduzido em português em A cena em ensaios, São Paulo, Perspectiva, 2008.

18 Cf. sucessivamente: V. Meyerhold, Ecrits sur le théâtre, Tome I, pp. 246-247 ; M. Borie, Antonin Artaudet le retour aux sources, Paris, NRF, 1989, pp. 309-310 ; T. Kantor, in Théâtre/Public, 1991, n. 97,p. 68. O dibbuck na cultura judaica é um morto que investe o corpo de um vivo.

19 Cf.” Robert Lepage et Elseneur”, entretien avec I. Brochard, in Nov’art, n° 20, juin-septembre 1996, p.38. Cf.” Robert Lepage et Elseneur”, entretien avec I. Brochard, in Nov’art, n° 20, juin-septembre1996, p. 38.

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A. Mnouchkine – podem ser consideradas nes-sa perspectiva. A multiplicação do ator graças àtecnologia torna reais as metáforas utilizadas porartistas como Meyerhold ou Kantor.

No espetáculo-monólogo de Guy Cassiers,Rouge décanté 20 [Vermelho decantado], o rosto doator filmado diretamente e projetado em close emdiversos tipos de suporte (matérias, cores), per-mite penetrar na paisagem interior devastada dopersonagem. Cenas interpretadas de costas sãoprojetadas em uma imensa tela que torna cáusti-ca uma cena de sedução (Kroum de HanochLevin, por Warlikowski). No fundo do palco,uma seqüência íntima é tomada pela câmera eprojetada em monitores distribuídos no palco ena platéia do Mercador de Veneza21 por P. Sellars.M. Langhoff, na Dança da Morte de Ibsen fazaparecer, em uma grande tela – que faz a funçãode “teatro dentro do teatro”, com seu próprio pal-co e suas cortinas – as fantasias do Capitão e desua mulher: atrizes hollyoodianas no caso damulher que gostaria de ser atriz de teatro, cenade afogamento de um cão em um mar gelado nocaso do homem que tentou afogá-la22.

Intimidade secreta ou mesmo ubiqüida-de... O vídeo pode até ressuscitar atores desapa-recidos, integrando sua imagem filmada emuma representação (reprise de S/N pelo grupojaponês Dumb Type depois da morte do dire-tor da trupe, que atuava no espetáculo). Enfim,em certos casos-limite, como a adaptação doMaître et Margueritte de M. Boulgakov, monta-do pelo alemão F. Castorf, os atores atuam àsvezes atrás do dispositivo e são vistos apenas natela acima dele...

A cena digitalA cena digitalA cena digitalA cena digitalA cena digital

Saint Pol Roux anunciava desde o fim dos anosvinte: “Vamos nos delegar.../Vamos viver o Ar-tifício,/ Vamos nos exteriorizar, aparecer pelaforça de uma magia científica que virá”. E opoeta visionário já falava até de um “cinemavivo” sem tela23.

O espetáculo, hoje, utiliza todo tipo deimagens – fixas, animadas, sujas, HD, preto ebranco, coloridas, analógicas, digitais, diretas,pré-gravadas, retrabalhadas – nos colocando àsvezes diante do conjunto dos diferentes “esta-dos” históricos do nosso olhar. A ampliação denossa experiência, graças às tecnologias digitais,implica a existência de uma nova condição sen-sorial, independente de qualquer simbolizaçãoe de qualquer elaboração imaginária. A realida-de de hoje é ao mesmo tempo vivida e visual,decididamente híbrida. Telepresença, vida arti-ficial, robôs cada vez mais próximos do huma-no são novas facetas da existência que o teatropode e deve sem dúvida levar em consideração.A tensão entre nossa realidade biológica e nossarealidade tecnológica obriga a repensar a per-cepção, a visão que se tem do ser humano e osproblemas colocados por essa mutação podemser analisados de modo lúcido e crítico em cena,lugar político para colocar o ator e o espectadorvivos diante de seus duplos digitais (vídeos,clones, marionetes eletrônicos, hologramas, ro-bôs) – e lugar experimental e lúdico ao mesmotempo, para pensar a técnica em mutação e aevolução dos modos de estar no mundo.

20 Adaptação do romance do holandês Jeroen Brouwers.21 O título exato era O mercador de Venice , já que a ação era transportada para a cidade americana de

Venice.22 Ver B. Picon-Vallin, “Hybridation spatiale, registres de présence”, in Les Ecrans sur la scène, op.cit.,e “La

scène, l’acteur et ses doubles projetés”, in Puck, ”, numéro spécial sur “Les images virtuelles”, Institutinternational de la marionnette, Charleville-Mezières, 1996, n° 9.

23 Cinéma vivant, Limoges, Rougerie, 1972, p. 71.

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Seria pena relegar apenas ao entreteni-mento (parques de atração, filmes em 3D, Se-cond Life pela internet) esses novos instrumen-tos. Os canadenses avançam rapidamente nessecampo. É o caso de Robert Lepage que inter-preta sozinho Hamlet, conduzindo um duelocom seu duplo filmado com câmera infra-ver-melha. É o caso do grupo 4D Art que, em Ani-ma, faz atuar um ator munido de captores dis-simulados sob um amplo casaco, que pilotatecnicamente vinte figurantes virtuais que apa-recem graças à interação entre o ator-técnico eo técnico em vídeo. Figuras nebulosas, fantas-máticas são projetadas em paredes de vidro,ectoplasmas que permetem a irrupção do invi-sível em cena, ou fazem perceber uma possívelco-existência de dois mundos. Em Les Aveugles[Os Cegos] de Maeterlinck, cujo subtítulo é“fantasmagoria tecnológica”, os doze persona-gens da peça foram ensaiados por dois atores,um homem e uma mulher. Eles foram filmadosenquanto interpretavam o texto; depois, umamáscara branca de seus rostos foi fabricada,moldada sobre eles. As imagens em vídeo fo-ram em seguida adaptadas ao volume dessasmáscaras, tecnicamente reajustadas sobre elescomo uma segunda pele. A representação con-siste em uma projeção das imagens filmadas so-bre as máscaras brancas na escuridão, sendo quecada máscara se faz presente em cinco exempla-res para atingir o número previsto por Maeter-linck. A peça de Maeterlinck é assim interpre-tada a partir do princípio da presença-ausência,momento fascinante: não há mais atores, massim imagens “vivas” na escuridão de uma salana qual estão reunidos em torno de cinqüentaespectadores. Nos dois casos descritos, o supor-te de projeção é ou um rosto humano, ou umaparede transparente. A técnica de projeção épré-gravada ou executada ao vivo, e nos doisexemplos ela é indetectável. Trata-se de confun-dir, preocupar, desestabilizar o espectador, reto-

mando o papel antigo do teatro que é o de pro-por enigmas, fornecer a energia para afrontá-los,e de acionar a dupla animado/inanimado – emação há muito tempo no funcionamento dadupla homem/marionete, boneca, fantoche(vide os espetáculos de marionetes com seus ma-nipuladores, O inspetor geral de V. Meyerhold,ou os espetáculos de T. Kantor).

A questão que, a partir de agora pareceessencial para todos aqueles que tratam da pro-jeção de imagens digitalizadas em cena, é for-mulada por Fabio M. Iaquone, videasta e cola-borador de encenadores como G.B. Corsetti, R.Wilson. Bastante preocupado com a qualidadeda imagem vídeo em cena, ele mesmo altera osparâmetros de sua câmera para otimizá-la, estu-dando a técnica a partir do seu interior, parapoder melhor utilizá-la artisticamente: cada se-gundo de imagem vídeo no teatro é um traba-lho de uma precisão exigente e de muito fôle-go. A utilização de imagens em cena faz surgir aquestão dos artistas-engenheiros e na Itália Fa-bio Iaquone trabalha em vários laboratórios,entre os quais o Laboratorio di Compositione,Musica e Spettacolo24. Hoje diretor teatral, eleequaciona muito claramente a questão do su-porte; se Iaquone quer e pode utilizar em suasprojeções a tela, o fundo de cena, o palco, asparedes da cena, as da platéia, o tecido, diversosmateriais, ele considera essa experiência comolimitada. Todas essas possibilidades de hoje nãosão nada, segundo ele, comparadas ao que vaiacontecer quando se puder, não somente comoagora, dispensar a tela, mas não mais utilizarnenhum suporte sólido. A técnica de imagens semsuporte está quase pronta (Digital VersatileTheatre) – utilizando o héliodisplay que possi-bilita uma projeção no ar modificado por umfluxo de hélio. Não se trata de hologramas, ape-sar de se ter a impressão que as imagens flutu-am no espaço. Vamos cair numa era de duplos,aquela que Paul Valéry descreve em “A conquis-

24 Ou o Iaquone Attilii Studio.

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ta da ubiqüidade”25. E se poderá fazer aparecerimagens e clones em qualquer lugar em cena ena platéia. Mesmo que isso não aconteça ama-nhã, ocorrerá muito rapidamente, apesar de quealguns estejam longe de partilhar o entusiasmodos poetas ou a impaciência de F. Iaquone.

TTTTTecnologias de ponta e inovações nasecnologias de ponta e inovações nasecnologias de ponta e inovações nasecnologias de ponta e inovações nasecnologias de ponta e inovações nasartes da cenaartes da cenaartes da cenaartes da cenaartes da cena

Existem hoje muitos programas de tratamentoda imagem e do som que possibilitam desen-volver práticas inventivas de incrustação, apa-rição e desaparição (ver o espetáculo de H.Goebels, Eraridjari-djaka), que visam a umembaralhamento de nossa percepção, a umadesestabilização de nossa maneira de sentir oespaço e o tempo teatrais. Transgressão dos li-mites do íntimo, imagens enganosas, lentidões,acelerações, transformações criadas pela proje-ção de rostos filmados sobre máscaras, quadrosou fotos, invenção de novas criaturas que nãopertencem nem ao teatro, nem ao vídeo, nemao cinema, mas são criadas graças a “processosde migração das práticas artísticas” – as modali-dades de utilização são infinitas. Mediante umasingular reviravolta, a imagem, que, segundoBenjamin em A obra de arte na época de suareprodutibilidade técnica (1939), devia destruira aura da obra de arte, talvez tenha se tornado oúltimo refúgio dessa aura. A reprodutibilidadetécnica não desmerece a aura da obra, que, aocontrário, ela contribui para reforçar.

Assim, os personagens dos Cegos deMaeterlinck, encenado por D. Marleau, fantas-mas, autômatos ou mortos vivos têm uma es-tranha presença que contribui para reforçar aradical ausência real dos atores e o mal estar sen-

tido pelos espectadores, que têm dúvidas, agra-vadas pelo fato de que o dispositivo é dissimu-lado. Como escrevia o cineasta Abel Gance em1962: “A junção da imagem e da realidade con-fere à imagem e à realidade uma dimensão nova,uma espécie de quarta dimensão que enriqueceincontestavelmente um espetáculo. Na minhaopinião, as artes visam apenas a isso. Trata-se decriar uma dimensão nova no espírito dos espec-tadores26. Sem dúvida, é preciso também lem-brar da afirmação de Maeterlinck (cujas peçasse têm tanto prazer em montar atualmente):“Todo ser que tem a aparência da vida sem tervida remete a poderes extraordinários”.

É o poder de sugestão e do potencial ar-tístico dessas imagens tecnológicas que deve serexaminado. Ora, estamos ainda no estágio dasexperimentações, das aproximações, dos fracas-sos ou das realizações incompletas. É o queocorre com espetáculos que, mediante múltiplasconexões, acontecem ao mesmo tempo em vá-rios lugares diferentes e distantes, repercutindosimultaneamente uns sobre os outros (Kilda,Théâtre Le Phénix, Valenciennes, 2005).

Pode ser surpreendente o fato de que,contrariamente ao que anunciava Piscator emmeados do último século, a escritura dramáticatenha sido até aqui pouco influenciada pela pre-sença das novas tecnologias e que caiba aosencenadores optar pela sua utilização no palco.Em contrapartida, as tecnologias digitais trans-formam os processos de criação. Assim, a cria-ção coletiva através da improvisação é profun-damente modificada pela possibilidade degravar o trabalho dos atores, classificar as toma-das para ter acesso a elas facilmente em umcomputador e poder visualizá-las rapidamente.No lugar do gravador dos anos 60 que só levava

25 Paul Valéry, “La conquête de l’ubiquité” (1929), in Pièces sur l’art, Gallimard, 1962. Cf. também nú-mero especial de Puck sobre “Les images virtuelles”, op. cit.

26 Les Lettres françaises, n° 914, 12 février 1962.

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RESUMO: A autora enfatiza a importância da perspectiva histórica no que tange à análise daschamadas novas tecnologias dentro da cena hoje, salientando o quanto o engajamento no presentee o olhar para o futuro implicam paralelamente um diálogo com o passado. Para tanto, examina apostura de uma série de artistas que, ao longo do século XX, lançaram mão de filmes e imagensprojetadas em suas criações. Entre outros, são destacados Eisenstein, Meyerhold, Piscator, Svoboda,Polieri, Langhoff, Warlikowski, Marleau, Sellars e Lepage, artistas que, mediante essas inserções,propuseram uma reflexão sobre os próprios processos de percepção.PALAVRAS-CHAVE: novas tecnologias – interdisciplinaridade – história do teatro – intercultura-lidade – tecnologias digitais.

em consideração as palavras, a câmera digitaloferece o “texto” inteiro da improvisação (pala-vras, participação gestual, relação com os par-ceiros, com os objetos) e permite transformaras condições da sua reprodução (caso da criaçãode Éphémères no Théâtre du Soleil).

É quando tradição e inovação se encon-tram em cena que os efeitos são mais podero-sos. Assim, na encenação do Mercador de Venezade P. Sellars, os empregados de preto, munidosde uma câmera, filmam os atores: como oskoken do teatro kabuki, também de preto, elesos ajudam em sua interpretação, trazendo aopúblico os closes de seus rostos retransmitidosnos monitores. Assim acontece quando anima-do e inanimado, vida e morte, que constituem

o enigma fundamental que toda arte – e antesde tudo o teatro, porque hoje ele ao mesmotempo representa e apresenta a vida – deve darconta, estão no coração do espetáculo, à manei-ra de A classe morta de Kantor, mas com meiosdiferentes dos bonecos imóveis presos no pes-coço dos velhos que giram numa roda sem fim.Como já nos detivemos no caso dos Cegos deDenis Marleau, falemos ainda dos Sete afluentesdo Rio Ota, espetáculo de Robert Lepage e daseqüência na qual uma avó, emocionada diantede um desfile de fotos de família (da qual todosos membros desapareceram), projetado em umaparede, tenta desesperadamente mas em vão,reter a última foto, que, de modo progressivo,diminui e se apaga impiedosamente...

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