O Rdio como o meio de divulgao do Movimento Hip Hop

Mariana Machado Bonora1 Pedro Leonardo Alonso Buriti2 Juliano Maurcio de Carvalho3

Resumo Este artigo tem como objetivo apresentar as caractersticas e condies que levaram o Hip Hop a estabelecer o rdio como seu principal veculo de divulgao. Pretende-se discutir a sua insero inicial nas rdios livres e comunitrias, bem como a descrio destes formatos de emissoras, e abordar o espao conquistado pelo movimento por meio do seu estilo musical o rap nas rdios comerciais. Alm disso, so levantadas as preferncias musicais das emissoras de rdio comerciais, verificada a insero do Hip Hop, nacional e internacional, na televiso, e, ainda, observado como o estilo surge como temtica na grade de programao das rdios universitrias. Palavras-chaves: Movimento Hip Hop. Rap. Rdios comunitrias. Rdios comerciais. Rdios cultural-educativas. Folkcomunicao.

Abstract The present article sights to present the characteristics and conditions which have lead Hip Hop to establish radio as its main spreading media. We intend to discuss its first insertion through free and community radios, as well as describe these categories of broadcasters, and the space conquered but this movement throug its musical genre rap on commercial broadcasting. Besides, it presents the musical preferences of commercial broadcasters and verifies the insertion of national and international Hip Hop on television. Finally, it also discuss how the movement has been brought up as a main theme for university radio broadcasters schedules. Keywords: Hip Hop movement. Rap. Community radio broadcasting. Commercial radio broadcasting. Educational-cultural radio broadcasting. Folkcommunication.

Introduo

O Hip Hop surgiu como um movimento artstico em meados da dcada de 1970 por

meio das festas (block parties) realizadas no bairro South Bronx, em Nova Iorque (EUA), e

idealizadas por Afrika Bambaataa e pelo DJ Kool Herc. Foi Bambaataa quem reuniu e

nomeou de Hip Hop as quatro manifestaes artsticas que o compem: break, graffiti, DJ e

1 Jornalista, graduada na Unesp. Email: marianabonora@yahoo.com.br 2 Jornalista, graduado na Unesp. Email: pedroatibaia@yahoo.com.br 3 Jornalista, mestre em Cincia Poltica e doutor em Comunicao Social. Professor do Departamento de Comunicao Social da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (Unesp). Email: juliano@faac.unesp.br

MC. O objetivo das festas era substituir o conflito e as brigas entre gangues por disputas

artsticas com os jovens do local, criando assim uma nova manifestao cultural integradora.

No presente artigo, buscamos averiguar como que se estabeleceu a ligao entre a

msica criada dentro do movimento Hip Hop e o meio radiofnico, desde as caractersticas

anlogas presentes nas canes e rdios comunitrias at a conquista de maiores espaos em

rdios comerciais, nas quais enfrenta grande concorrncia do Hip Hop internacional.

Na pesquisa sobre a relao rdio e Hip Hop, nos concentramos no Estado de So

Paulo no que diz respeito ao levantamento de programas nos dois tipos de emissoras,

comunitrias e comerciais. Esse enfoque se deve ao maior espao conquistado, especialmente

nas rdios da capital paulista, pela msica rap. Tambm foi ali, no contexto de vida de uma

parcela de jovens paulistanos maioria de negros e moradores da periferia , que o

movimento surgiu e se expandiu para as periferias de todo o pas.

O movimento Hip Hop no Brasil

O Hip Hop chegou ao Brasil no comeo da dcada de 1980 com a dana, o break,

levada dos sales de bailes black para as ruas do centro da cidade de So Paulo por jovens da

periferia, entre eles os principais disseminadores destes passos robticos, King Nino Brown

e Nelson Triunfo. De acordo com o prprio Nino Browni, quando ele (Hip Hop) chega aqui

no Brasil, ele chega com a dana, s que no era Hip Hop ainda em 1984. Era aquela coisa,

era o break.

Os primeiros b-boys, denominao dos artistas da dana break, s ficam cientes de

que fazem parte de um movimento maior, que rene tambm os elementos artsticos graffiti,

DJ e MC, com a chegada de vdeos sobre o movimento Hip Hop nos Estados Unidos e,

tambm, dos discos dos principais artistas de rap norte-americanos. Segundo o rapper

Thade4, uma das msicas desse perodo a chamar mais sua ateno foi The Message, de

Grand Master Flash and The Furious Five. A msica trazia uma letra politizada, caracterstica

que o rap nacional, posteriormente, incorporou.

Quando Grand Master Flash apareceu com The Message, que eu acredito que seja o primeiro rap propriamente dito atacando o sistema, falando sobre os problemas dos negros e todo o tipo de preconceito e ignorncia, ns comeamos a perceber que tudo podia ser bem maior do que a gente

4 Thade uma das principais personalidades do Hip Hop nacional. At 2001, era parceiro de DJ. Hum,com quem aparece em uma das primeiras coletneas do estilo Hip Hop Cultura de Rua lanada em 1988.

pensava [...] Alguma coisa estava sendo passada atravs da letra da msica. Foi assim que eu comecei a enxergar a msica como veculo. Eles queriam passar uma mensagem e ns tnhamos que compreend-la de alguma forma. (ALVES, 2004, p.37)

Comeam, ento, a surgir os primeiros MCs em So Paulo, sendo que alguns deles

fizeram seu primeiro contato com o Hip Hop por meio da dana e depois passaram a cantar,

caso do prprio Thade.

Os adeptos do rap sentiram a necessidade de conquistar seu prprio espao para

produo das letras e bases sonoras. O local escolhido foi a estao de metr So Bento e,

posteriormente, a Praa Roosevelt, ambas no centro de So Paulo. Ali se formou uma

primeira gerao de rappers, os chamados batedores de lata. O relato de Thade explica a

origem do termo e o comeo na So Bento:

A gente tinha uns problemas para usar a energia eltrica l (da Estao So Bento) [...] ento, a gente comeou a fazer um som na lata pra substituir justamente o som eletrnico, j que a gente no podia usar a eletricidade, mas precisvamos de um som, a eu comecei a fazer um som nas latas de lixo e deu muito certo. [...] A gente era um monte de adolescente se encontrando para se divertir, a gente no tinha idia do que est acontecendo hoje. A gente ia com seriedade apesar da diverso, ento, a gente comeou a se preocupar com o que estava fazendo, com as letras, comeamos a nos aprimorar, os DJs tambm. [...] O Hip Hop foi tomando conta do pas inteiro. (2005)ii

As primeiras letras de rap que surgiram na So Bento eram ainda ingnuas perto do

potencial que, posteriormente, o rap nacional desenvolveria. Pimenteliii descreve os versos da

poca:

[...] como lembra KL Jay, essa letra de Mano Brown, na poca em que ele, junto com Ice Blue, formava a dupla BB Boys e o sucesso dos Racionais ainda era um futuro longnquo: BB Boys o nosso nome / BB Boys somos ns / Periferia o nosso exemplo / E o rap a nossa voz [...]. (1997)

Porm, com a chegada de mais informaes acerca do movimento Hip Hop nos

Estados Unidos, os grupos de rap adquirirem maior conhecimento e conscientizao poltica

e, em conseqncia, surge uma maior preocupao com questes sociais. No final da dcada

de 1980 surgem as primeiras organizaes e posses5. O Hip Hop se desenvolve como um

5 De acordo com Silva, As posses constituram-se como espao prprio pelo qual os jovens passaram no apenas a produzir a arte, mas apoiar-se mutuamente. [...] as posses consolidaram-se no contexto do movimento Hip Hop como uma espcie de famlia forjada pela qual os jovens passaram a discutir seus prprios problemas e a promover alternativas no plano da arte (1999, p.27).

movimento composto no apenas por artes musicais, visuais e da dana, adquirindo tambm

contornos sociais, principalmente em decorrncia de sua identificao com o ambiente

perifrico. Em seu estudo sobre a msica rap, Dayrell aborda a importncia do carter social

desse estilo para os jovens moradores das periferias:

Os jovens reinterpretam, localmente, os cones globalizados do rap a partir de experincias e representaes, fruto do meio social, da cultura em que se socializaram e tambm da idade. A trajetria dos grupos mostra a que a vivncia do estilo uma expresso de uma cultura juvenil urbana que lhes fornece elementos simblicos para elaborarem uma identidade como jovens e como pobres. (2005, p.94)

Por ser um estilo desenvolvido nas comunidades perifricas e pelos seus jovens

moradores, o rap absorveu a linguagem do seu prprio ambiente. Por conta da politizao dos

primeiros rappers, surgiu uma gerao que comearia a levar suas experincias de vida na

periferia para as letras de msica. Munidos de maior conscincia crtica em relao aos

problemas de suas comunidades e, assim, explorando questes sociais em suas letras, os

rappers tornavam-se porta-vozes da populao da periferia.

O rap e as rdios comunitrias

Paralelamente ao maior engajamento social do Hip Hop brasileiro, na dcada de 1980

ganha fora o movimento de rdios livres, emissoras de baixa potncia na luta em busca de

uma liberdade de expresso, somada ao desejo de realizar novas formas de comunicao

social, na tentativa de produzir maior democratizao da comunicao social (MORETTI

JNIOR, 2003, p.65-66)

Por conta da demora no andamento dos processos de concesso para rdios

comunitrias, que podem tramitar durante anos espera de aval do Ministrio das

Comunicaes, muitas emissoras optam por emitir seu sinal sem estarem regulamentadas,

estando sujeitas a penalizaes como a apreenso dos equipamentos e o fechamento da rdio6.

Mesmo diante dessas imobilizaes que burocratizam seu funcionamento, as rdios

comunitrias destacam-se em relao ao apelo que possuem junto comunidade, como afirma

Moretti Jnior:

6 De acordo com o Ministrio das Comunicaes, a instalao e funcionamento de estao de rdio, sem a devida autorizao, crime Federal, punido com a priso dos responsveis e a apreenso dos equipamentos. Disponvel em: .

[...] as Rdios Comunitrias possuem um potencial para conquistar a adeso social, contando com o apoio da populao em geral. Um benefcio importante para a ampliao e proliferao destas emissoras foi as inovaes tecnolgicas, facilitando o acesso da populao radiodifuso. [...] As Rdios Comunitrias respeitam um pblico com diversidade em termos sociais, polticos e culturais, alm de entender o ouvinte como um elemento importante que age e interage com a mensagem e com amplas possibilidades de transformar e melhorar seu meio. (2003, p.81)

Por conta do uso de diferentes denominaes para as estaes de rdio de pequena

potncia, qualificadas pelas emissoras comerciais com o termo pejorativo pirata7, devemos

esclarecer que o conceito de rdio livre se diferencia de rdio comunitria. Conforme

Moretti Jnior (2003) as rdios livres so anteriores s comunitrias e amparam-se nos

direitos individuais de posse, cujo conflito est relacionado luta contra o monoplio das

grandes redes.

J a radiodifuso comunitria estabelecida por lei federal (n 9.612, de 19 de

fevereiro de 1998), que situa sua freqncia em FM e sua operao em baixa potncia (25

watts), com cobertura restrita num raio igual ou inferior a mil metros, e cuja outorga

atribuda a fundaes e associaes comunitrias sem fins lucrativos. A legislao tambm

determina que sua programao deve ser pluralista, sem qualquer espcie de censura ou

proselitismo, e atender a toda a populao da regio em que est instalada8.

Aps verificarmos as especificaes das rdios livres e comunitrias, que ainda

esbarram em determinaes tcnicas da lei, podemos estabelecer uma relao entre o rap e as

emissoras comunitrias. Ao ter o direito de se expressar com o auxlio da radiodifuso, a

comunidade pode falar por si mesma e para ela mesma. Ambos, msica e rdio, possuem

em comum sua disseminao inicial pela populao pobre e um pblico que, em sua maioria,

vive em comunidades carentes, com poucas perspectivas, desprovido de acesso aos direitos e

servios bsicos, alm de conviver num contexto marcado pela criminalidade. Com o advento

das rdios comunitrias, surge a possibilidade de incorporar a fala da periferia, funcionar

como uma verdadeira ouvidoria e questionar o poder pblico, alm de fazer trabalhar a

integrao com a comunidade.

J o discurso da msica rap notadamente marcado pela exemplificao da realidade

da periferia, numa transposio do cotidiano dos fatos para as letras na forma de relato. A

diferena social expe, por sua vez, um distanciamento que se encarrega da formao de uma

7 Termo que surgiu na Inglaterra, na dcada de 1960, para qualificar uma estao de rdio que transmitia seu sinal de um navio e era contra o monoplio das emissoras locais. 8 As informaes sobre como se candidatar a uma autorizao de rdio comunitria e as especificaes para seu correto funcionamento tambm esto disponveis no endereo .

linguagem especfica. So crnicas extensas em que se repetem a vida, as experincias, os

valores e perspectivas, ou a falta destas. De acordo com Dayrell:

Muitos criticam o rap pelo fato de a temtica se repetir. Se isso acontece, porm, porque a vida se repete: a violncia, as drogas, o crime, a falta de perspectivas [...] Mas cantam tambm a amizade, o espao onde moram, o desejo de um mundo perfeito, a paz. O discurso potico busca a dimenso subjetiva a partir da experincia comum vivida na periferia. E abordando temas que evidenciam o carter conflitivo da condio humana, tais como a vida e a morte, as escolhas, o sistema de condutas, valores como amizade e honra, reintroduzem a dimenso humana presente entre os pobres da periferia, que, no discurso dominante, aparece como desumanizado. (2005, p.105)

A expresso de sentimentos e valores da vida na periferia feita por msicas marcadas

pela oralidade e por grias9 comuns ao seu ambiente. Para cada grupo de pessoas, o seu falar

especfico assume a funo de marcar a identidade. Da identificao das pessoas com o lugar

onde vivem, surge uma linguagem utilizada para defender e afirmar o prprio grupo. Segundo

Digenes:

As grias utilizadas [...] so ncleos de resistncia, significam a legitimao no apenas de uma forma outra de linguagem, ou de modo cifrado de entendimento, mas a demarcao, no campo da semntica, de um modo diverso de viver, de situar-se na cidade. (1998, p.217)

Para disseminar os valores culturais do Hip Hop na periferia, os rappers encontraram

como aliadas as rdios comunitrias. Alm de difundir a mensagem do rap, tais veculos so

importantes na divulgao de uma programao musical de apelo popular na periferia. Na

locuo dos programas ou informes esto locutores locais e, conseqentemente, a linguagem

empregada pelas rdios cria um vnculo com o ouvinte ao incorporar os elementos da

oralidade comuns ao local, como as prprias grias.

9 As letras de rap expressam o falar cotidiano da periferia por meio de termos e expresses de uso restrito local, de difcil entendimento para outros grupos no habituados a esta linguagem. Os significados das grias no podem ser identificados somente em sua expresso literal, pois agregam um significado prprio, determinado culturalmente pelo grupo. A prpria gria tem sua origem relacionada ao dialeto criado pelos escravos, utilizado enquanto traavam seus planos de fuga para no serem compreendidos pelos senhores. Desse modo, funcionam como cdigos que s permitem sua identificao pelo grupo. uma das formas encontradas pelos compositores das letras de rap de preservar a cultura e linguagem local. Por exemplo, a msica Eu sou 157, dos Racionais MCs, apresenta uma letra representativa e de compreenso para os moradores da periferia, como neste excerto: [...] quem tem M pra vender, quero um quilo, um quilo de qu, Jo? [...] quando ele falou um quilo, o deixo, o milho, a micha caiu.

Com a pouca disponibilidade de programas de rap nas rdios comerciais, as estaes

comunitrias tornaram-se as principais divulgadoras desse gnero no comeo da dcada de

1990, perodo em que aumentou significativamente a produo de discos dos grupos

nacionais. Os programas especializados em rap dentro da prpria comunidade contriburam

para que os receptores ou ouvintes pertencentes s camadas mais pobres se transformassem

nos prprios locutores, e tambm divulgadores dos novos grupos de rap que surgiam na

periferia. Manzano discorre sobre os aspectos de uma rdio comunitria:

Uma emissora comunitria tem como caracterstica principal o fato de operar em via de duas mos: ela no apenas fala como ouve, principalmente, assegurando, assim, comunidade o direito de se fazer ouvir, seus reclamos e em suas manifestaes culturais e artsticas de natureza local. (apud FERRARETTO, 2001, p. 187)

Vrios artistas do Hip Hop nacional ganharam experincia e destaque local ao

comandar programas musicais de rap em pequenas emissoras, casos da rapper carioca Nega

Gizza, na rdio Novo Horizonte na capital fluminense, do DJ Cia, ex-RZO, na extinta Rdio

Meridional, na cidade de So Paulo, e do MC Rappin Hood, que durante vrios anos foi

locutor na Rdio Helipolis, tambm situada na capital paulista.

Um dos exemplos mais bem sucedidos em uma emissora comunitria o programa

Uai Rap Soul da Rdio Favela FM10, de Belo Horizonte, no ar desde os primeiros anos da

chegada do Hip Hop no Brasil, na dcada de 1980. Segundo Casseano, Domenich e Rocha:

A histria da Rdio Favela FM confunde-se com a da divulgao do hip hop pelo pas. Por muitos anos desprezado pelos meios comerciais de comunicao, o hip hop encontrou nas rdios comunitrias um microfone aberto. Devido importncia dessas rdios, a Favela FM [...] at citada em uma das letras dos Racionais MCs. (2001, p.88)

Mas, se por um lado o perfil dessas emissoras estabelece uma relao mais prxima

com a comunidade, seja pelo fator simblico de ser a voz da comunidade, seja pelo papel

relevante na divulgao dos talentos locais, ou ainda pela promoo de cidadania por meio de

atividades comunitrias, a manuteno de uma rdio carece de recursos para custear os

equipamentos e tambm a prpria programao. A opo encontrada por algumas emissoras

10 A Rdio Favela foi uma das rdios de maior destaque no processo de legalizao das rdios comunitria. Funcionou por 20 anos na ilegalidade at ser reconhecida como rdio educativa em 1999, depois de ganhar dois prmios da ONU pela conscientizao que proporcionou por meio de dois programas sobre drogas (1997 e 1998). Mais detalhes sobre a histria da Favela FM podem ser encontrados no site www.radiofavelafm.com.br ou, tambm, no filme Uma onda no Ar (2002) de Helvcio Ratton, baseado na trajetria da emissora.

comunitrias no-regulamentadas a de assumir um perfil mais comercial, vendendo cotas

de anncios para os pequenos comerciantes locais e cobrando taxas dos artistas para tocarem

suas msicas, porm com valores inferiores aos das grandes emissoras comerciais.

O sucesso do rap na periferia de So Paulo com o tempo despertou a ateno dos

empresrios da comunicao. As emissoras comerciais da cidade de So Paulo avistaram no

rap uma forma de atrair um segmento que rendia grande audincia para as rdios

comunitrias e, ento, criaram seus prprios programas voltados a esse estilo musical.

O rap chega mdia

Se por um lado o rap encontrou nas rdios comunitrias um espao propcio para sua

divulgao, o primeiro programa radiofnico especializado na cultura Hip Hop foi o Rap

Brasil, ainda nos primeiros anos do movimento no pas na dcada de 1980. Comandado por

Dr. Rap, o Rap Brasil ia ao ar pela Metropolitana FM (98,5 MHz), emissora de segmento

comercial na cidade de So Paulo.

Porm, o exemplo desse programa foi uma exceo. As principais estaes comerciais

s vo se direcionar para o rap por conta, principalmente, do trabalho dos Racionais MCs11.

Com o lbum Sobrevivendo no Inferno, de 1997, o grupo no s conseguiu ultrapassar a

resistncia dessas emissoras em relao ao estilo musical como ainda teve o mrito de

emplacar canes que chegam a ter oito minutos ou mais, durao considerada longa para o

rdio.

Com a abertura do mercado fonogrfico para o rap nacional e a j citada expanso do

estilo nas rdios comunitrias, as emissoras comerciais encontraram nos programas de Hip

Hop uma forma de aumentar o seu pblico ouvinte e, assim como as comunitrias, fizeram

uso de protagonistas do movimento como locutores. Alm disso, avistaram no rap uma forma 11 O grupo Racionais MCs formado por Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e o DJ KL Jay. Todos os integrantes participaram das primeiras manifestaes do Hip Hop na Estao So Bento. Os Racionais lanaram seu primeiro disco, Holocausto Urbano, em 1990. O trabalho se destacou pelas letras polmicas, que retratavam o cotidiano da periferia paulistana. No ano seguinte, lanaram o single Escolha seu Caminho. Voltado a questes tnicas, esse single foi responsvel pela popularizao do grupo entre os jovens da periferia. Em 1993, veio a pblico o terceiro trabalho do grupo, Raio-X Brasil. O destaque foi a msica Homem na Estrada cuja letra foi recitada pelo Senador Eduardo Suplicy na poca da absolvio dos jovens que assassinaram o ndio Galdino, da tribo Patax. Contudo, a repercusso nacional aconteceu com o lanamento de Sobrevivendo no Inferno, em 1997, trabalho que popularizou o rap em todo o pas, abriu espao nas rdios comerciais e gravadoras para os artistas do estilo pela sua grande repercusso e rendeu ao grupo o prmio de Melhor Videoclipe no Vdeo Music Brasil (VMB) da MTV, por Dirio de um Detento. O lbum mais recente do grupo, Nada como um dia aps o outro dia, foi lanado em 2002 e trouxe msicas que refletiam a nova situao do grupo. A repercusso do Racionais MCS no Brasil criou um embate constante na postura do grupo, entre a procura dos integrantes em manter a posio de representantes da periferia (manos) e a estabilidade financeira e o estrelato que alcanaram.

de atrair um segmento que rendia grande audincia para as rdios comunitrias e criaram

programas exclusivamente voltados a esse estilo musical.

Nesse contexto, o exemplo mais significativo foi o programa Espao Rap, da Rdio

105 FM (105,1 MHz) de So Paulo. Foi um dos primeiros espaos que o rap nacional obteve

em uma emissora comercial, j na dcada de 1990, na esteira do sucesso dos Racionais

MCs. O programa, que inicialmente tinha meia hora de durao diria, atualmente tem duas

edies de segunda a sexta, somando seis horas de rap nacional e internacional, das 17 s 19

horas e das 20 s 24 horas. A emissora tambm apresenta outros programas voltados ao rap,

alm das edies especiais de final de semana do Espao Rap.

No entanto, antes do surgimento desses programas, algumas msicas e grupos

alcanaram reconhecimento nacional e tiveram suas msicas tocadas em rdios comerciais.

o caso da dupla Thade e DJ Hum e a sua msica Corpo Fechado, lanada em 1988, um dos

primeiros sucessos do rap brasileiro. O prprio Thade fala sobre a repercusso da msica nas

rdios paulistanas em sua autobiografia: 'Corpo Fechado' acabou virando at gincana de

escola. A msica tocou em AM, FM e ficou em primeiro lugar na Rdio Bandeirantes que, na

poca, era lder de audincia em So Paulo (ALVES, 2004, p.57). Devemos mencionar

tambm as msicas do Racionais MCs anteriores ao lbum Sobrevivendo no Inferno, casos

de Homem na Estrada e Fim de Semana no Parque, que se tornaram motivos de pedidos

em rdios comerciais voltadas majoritariamente ao estilo pop12, como as emissoras Jovem

Pan FM (100,9 MHz) e a Transamrica FM (100,1 MHz), e colaboraram para a popularizao

do rap em So Paulo.

Atualmente, algumas emissoras comerciais da capital paulista e de outros grandes

centros nacionais apresentam programas voltados cultura Hip Hop. A Rdio

Transcontinental FM (104,7 MHz), de So Paulo abre espao para a divulgao do Hip Hop

nos finais de semana. Aos sbados, das 18 s 21 horas, vai ao ar The Best of Black, com um

repertrio de rap nacional, black music e samba rock. Mas o principal programa do gnero na

emissora Black Songs, transmitido todos os domingos, das 20 s 24 horas, com apresentao

da locutora Patrcia Liberato. O programa, que durante um ano e meio, teve a participao do

DJ Lal Moreira na mesa de som, existe desde fevereiro de 2005 e procura aliar o

entretenimento a informaes importantes sobre o universo do Hip Hop, fazendo uma seleo

criteriosa das msicas nacionais que vo ao ar. 12 Pop uma abreviao do ingls popular. Segundo esse conceito, a msica pop o principal estilo musical que passa pelas rdios e televises e com maior aceitao por parte do pblico, j que se caracteriza por um abrangente conjunto de gneros, com destino a todas as pessoas, de todas as idades e, muitas vezes, com intuito principalmente comercial.

A rdio Mix FM (106,3 MHz) possui dois programas voltados ao gnero: Hip Hop

Mix, que tem uma hora de durao e transmitido aos sbados, s 22 horas, e Multimix Hip

Hop, que vai ao ar diariamente em dois horrios (17h45 e 01h40), transmitido em rede

nacional para todas as afiliadas. O programa est no ar desde 2005 e a apresentao de

Marcelo Santos, mais conhecido como rapper Xis.

O Full Thortlle da 89 FM (89,1 MHz) tem duas edies principais no sbado e no

domingo, s 23 horas, e quatro edies dirias de meia hora de durao: 11h30, 14h30, 17h30

e 23h30. apresentado pelo produtor norte-americano Fat Man Scoop.

No Rio de Janeiro, a Rdio FM O Dia (100, 5 MHz) leva ao ar todos os domingos, das

18 s 19 horas, o Conexo Hip Hop, voltado ao Hip Hop internacional. A atrao est na

programao da rdio desde 2003 e apresentada pelo DJ MP4. J The Vibe, da Rdio

Transamrica FM (101, 3 MHz), exibe um repertrio de black music, rhythm & blues, soul e

acid jazz13, alm de contar histrias e novidades sobre artistas e msicas. O programa

transmitido aos domingos, das 22 s 24 horas, e a apresentao do locutor Ruy Balla.

Em Porto Alegre, a Rdio Ipanema FM (94,9 MHz) transmite todos os sbados, das 21

s 23 horas, o Projeto Rap Porto Alegre. Apresentado pelo locutor Pi, o programa toca os

grandes sucessos do Hip Hop internacional, alm de divulgar o trabalho de artistas do Rio

Grande do Sul.

Essas rdios de segmento comercial, em sua maioria, so caracterizadas por uma

programao musical pop, voltada principalmente ao pblico jovem, na qual o Hip Hop

nacional no obtm tanto destaque. Em geral, os programas voltados ao gnero tm menor

durao, disputam entre si a mesma faixa de audincia e so transmitidos em dias especficos

da semana, normalmente aos sbados e domingos, com uma seleo musical que varia entre a

black music e o rhythm & blues internacional, de ampla divulgao mundial.

A maior repercusso do Hip Hop internacional nas emissoras comerciais,

especialmente os contedos produzidos nos Estados Unidos, se deve s caractersticas que o

movimento e, conseqentemente, a sua msica o rap assimilaram quando inseridas nos

meios de comunicao e na indstria cultural.

O hip hop uma cultura massificada nos Estados Unidos, onde esse estilo de vida tornou-se um dos grandes files do consumo juvenil. A chegada nos meios de comunicao norte-americanos comeou em 1988, quando a MTV abriu suas portas para o rap e passou a difundir o modo de vida, discursos e formas de vestir das comunidades negras para um pblico preferencialmente

13 Acid jazz estilo que mistura as batidas do Hip Hop com o jazz.

branco. Na principal premiao da MTV, em 2003, o VMA (Video Music Awards), a trilha sonora vencedora foi o rap. (GUMES, 2004, p.13)

Nesse contexto, o Hip Hop internacional se torna um produto mais interessante para as

rdios comerciais, j que estas operam, comumente, em busca de uma ampla audincia e

gerao de lucros. Esse fato se reflete em outros meios, como a televiso, na qual o Hip Hop

gringo ganha espao e adeptos por meio da chamada black music em programas da MTV

brasileira e, tambm, em outras atraes que transmitem clipes, a exemplo da TVZ do canal

pago Multishow. J os artistas nacionais contam com aparies espordicas, como a recente

presena do rapper MV Bill em alguns programas da Rede Globo e o debate entre vrias

figuras do Hip Hop nacional levado ao ar no programa Superpop, da apresentadora Luciana

Gimenez, na Rede TV.

No Brasil, a TV foi o ltimo meio de comunicao a se render ao fenmeno rap. A TV Gazeta, de So Paulo, com o programa Clipper, um dos poucos canais de televiso que abrem espao para os manos. Alguns rappers tambm tm feito aparies-relmpago em programas de maior audincia [...] A MTV, que tem a programao transmitida por antena UHF, produz o Yo!, apresentado por Thade. (CASSEANO, DOMENICH, ROCHA, 2001, p.93)

Nesse trecho do livro Hip Hop a periferia grita, as autoras apresentam os primeiros

programas que concederam espao aos grupos do rap nacional. O Clipper uma atrao j

extinta da TV Gazeta e o programa Yo!, j no apresentado por Thade e passa em um

horrio de pouca audincia (aos sbados, das 2 s 4 horas da manh).

A televiso aparece, ento, como um meio pouco explorado pelo Hip Hop nacional, ao

mesmo tempo em que concede pouco espao ao movimento. Poucos artistas e ativistas vem

a televiso como uma alternativa de divulgao dos ideais do Hip Hop, bem como, de suas

produes artsticas. Os integrantes do Racionais MCs inclusive se recusam a aparecer em

qualquer programao do meio, especialmente nas grandes emissoras como Globo e SBT.

Milton Salles, um dos produtores de destaque do rap nacional, explica o porqu do

posicionamento desses rappers em relao s grandes emissoras:

O problema, mais do que como a mdia vai tratar o rap, voc ser instrumento de manipulao, massa de manobra. voc estar dando subsdio que vende produto, de repente voc estar dentro do Fausto, dentro da Rede Globo, e com isso voc manter o Ibope do drago. (SALLLES apud VIANA, 2005, p.07)

Rdios culturais-educativas: um novo espao para o Hip Hop

Por um outro lado, o rap tem ganhado espao, tambm, em emissoras universitrias.

Nessas rdios, de carter cultural-educativo, os programas tm uma abordagem diferencial do

movimento Hip Hop, apresentando uma contextualizao de temas e das msicas tocadas,

aliando msica informao.

Em Fortaleza, a Rdio Universitria FM (107,9 MHz), da Universidade Federal do

Cear, tem como poltica difundir gneros que no encontram espao nas emissoras

comerciais. O Se liga: O Som do Hip Hop, apresentado pelo rapper Preto Zez, existe desde

1999 e vai ao ar todos os domingos a partir das 10 horas.

A Rdio Universitria FM UNITAU (107,7 MHz), da Universidade de Taubat, inclui

na sua programao cultural e informativa o programa Poesia Ritmada, apresentado por

Ralph Leite Jnior, conhecido como MC Ralph. O programa transmitido todas as teras-

feiras, das 17h s 18 horas, e est no ar pela rdio FM UNITAU h trs anos. Antes do espao

dado pela rdio universitria, o programa era transmitido pela rdio comunitria Liberdade

com o nome de Conexo Hip Hop.

Formado em jornalismo pela mesma universidade, MC Ralph desenvolveu como

projeto de concluso de curso um rdio-documentrio sobre a histria do Hip Hop14 e o

veiculou no Poesia Ritmada. Alm de obter um espao dentro da emissora universitria,

Ralph contribuiu na criao de uma forma diferente de adaptar a informao ao

entretenimento musical em um programa de rdio.

Consideraes Finais

A proposta de pesquisar a relao do rdio com o movimento Hip Hop, mais

precisamente a msica rap, surgiu ao longo do desenvolvimento de nosso trabalho de

concluso de cursoiv cuja proposta era a criao de um programa especializado na cultura Hip

Hop para a Rdio Unesp FM de Bauru.

14 LEITE JNIOR, Ralph Nunes Ferreira. A informao na msica rap. 2005. 73p. Trabalho de Concluso de Curso Departamento de Comunicao Social, Universidade de Taubat (UNITAU), Taubat, 2005. Disponvel em: . Acesso em 2 set. 2006.

A partir dos estudos realizados, verificamos que o rdio o veculo de comunicao

no qual o Hip Hop obteve, e at hoje obtm, maior espao de divulgao. Foi por meio das

ondas eletromagnticas que o rap se transformou numa referncia musical entre os jovens

pobres, ultrapassou as barreiras da periferia para ser apreciado por diferentes segmentos da

populao e, ainda, adquiriu lugar reservado na programao de diversas emissoras

comerciais, onde, porm, se d maior destaque a artistas internacionais.

A presena de artistas do movimento como locutores ou participantes da programao

voltada ao Hip Hop importante, uma vez que a msica apenas uma das formas dessa

manifestao cultural. Se o Hip Hop criou uma linguagem prpria para retratar e discutir a

vida de um segmento social marginalizado, sua produo musical no deve ser repoduzida de

forma descontextualizada, sob a pena de se tornar mais um produto cultural consumvel.

Diante disso, o rap nacional encontra ainda como melhor alternativa de divulgao as

rdios comunitrias e, em menor escala, determinadas emissoras cultural-educativas, fora os

programas em rdios comerciais, que so exceo nesse perfil, como o Espao Rap e os

demais programas do gnero apresentados na Rdio 105 FM. O rdio se apresenta, assim,

como o meio em que a msica do Hip Hop conquista mais espao e repercusso.

Notas

i BONORA, Mariana Machado; BURITI, Pedro Leonardo Alonso. Hip Hop no Ar. Proposta de programa de rdio especializado na cultura Hip Hop. 2006. Trabalho de Concluso de Curso (Graduao em Jornalismo) Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicao, Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, Bauru, 2006. ii Entrevista realizada na Casa do Hip Hop, em Diadema, no dia 30 de setembro de 2006. King Nino Brown um dos pioneiros do Hip Hop no Brasil e, assim como Nelson Triunfo, participou das primeiras rodas de break que aconteciam na rua 24 de Maio. Hoje, membro da Zulu Nation Brasil, organizao que trabalha com as manifestaes do Hip Hop, e responsvel pela Casa do Hip Hop (Diadema). iii Entrevista realizada no lanamento do livro autobiogrfico Pergunte a quem conhece, no SESC Bauru, dia 17 de fevereiro de 2005. iv Documento em meio eletrnico. Disponvel em: . v Entrevista concedida dia 02 de setembro de 2006.

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