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RAFAEL SANTOS DE BARROS

PALHAÇO – JOGADOR DO RISO

Londrina

2011

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RAFAEL SANTOS DE BARROS

PALHAÇO – JOGADOR DO RISO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Música e Teatro da Universidade Estadual de Londrina. Orientadora: Profª. Mª Adriane Gomes

Londrina 2011

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DEDICATÓRIA Dedico aos meus pais, minha base,

meus amores e apoiadores

incondicionais desse sonho. A Carolina,

irmã e incentivadora. E a todos que

acreditam no poder revolucionário do

sorriso.

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AGRADECIMENTOS

Esse é um momento delicado, daqueles depois do espetáculo que muitas

vezes pode ser incomodo para o público. Por isso , os agradecimentos vem

antes, nas primeiras páginas do trabalho:

Agradeço aos meus pais, pelo amor e por acreditarem comigo.

A minha irmã, incentivadora e fotógrafa desse trabalho.

A toda minha família. Aos meus avós: Sebastião, que me batizou, antes

mesmo de eu saber que seria palhaço um dia, de Zé Froxinho. A dona

Esmeralda, pelas lindas histórias, por me dar de presente a primeira frase

desse trabalho e também essa: “Se você quer saber, palhaço é um trabalho

fino.” A vó Nona (in memorian) por me ensinar tanto sobre a vida, tomara que

ela esteja sorrindo de onde estiver.

A família de Angelis por sempre receber com entusiasmo as minhas novidades,

especialmente ao Pedro, amigo de casa e de bar.

A professora Adriane Gomes, pela disponibilidade, paciência, dedicação e por

orientar caminhos que fizeram desse trabalho mais do que um trabalho de

conclusão de curso.

Ao Camilo Scandolara, por olhares e abertura de novas possibilidades.

A Heloisa Bauab, pela orientação valiosa e o amor compartilhado pela arte

Ao Aguinaldo de Souza, por mostrar tantos motivos valiosos dessa arte e assim

buscar a utópica mudança através do teatro

A Thais, pela experiência inquietante e apoio nas novas tentativas

Ao Quaresma, pelo saudosismo teatral que o acompanha

Aos grandes amigos e companheiros de sala. Aos que seguiram novos

caminhos e principalmente aos Guerreiros vencedores dessa jornada.

Fábio Pimenta, pelo companheirismo e inúmeras reflexões sobre a arte do

palhaço e da necessidade da arte nas nossas vidas.

Nathalia Oncken, por dividir, com amor, os momentos bons e ruins dessa

caminhada. Também pelos desenhos dos figurinos e da cortina.

Meire Valin, pelos encontros, olhar atento, conversas e conselhos que se

explicam além das palavras

Miguel Matoso, por aprendermos e ensinarmos tanto um ao outro.

Jéssica Rezende, pelos sambas e aprendizados.

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Ao grupo Às de Paus, antigo grupo de estudos de perna-de-pau, especialmente

ao Rogério Costa, grande amigo e primeira pessoa a me dar as coordenadas

dentro dessa nova cidade.

Ao CLAC, em especial ao Luís Bocão, que apostou na minha primeira

empreitada na terra vermelha

A todos do grupo Teatro de Garagem, aos atuantes e todos que participaram

do processo do Bendita Geni, experiência essencial e grupo que guardo com

grande carinho e admiração.

Ao Imago, Teatro de Animação, por toda a experiência vivida durante a

temporada e pelo enorme prazer de me apresentar para grande parte da minha

família.

Ofertar enormes agradecimentos e sorrisos para o Plantão Sorriso. Guardo

com muito carinho essa fase do meu trabalho e da minha vida. A toda a equipe

de funcionários dos hospitais, os pacientes, os acompanhantes e todas as

pessoas envolvidas de alguma forma nesse trabalho.

A Camila Emilio, por nos encontrarmos em terras mineiras.

Aos amigos que ficaram em outras terras, em especial ao: Fábio, Fernando,

Natália, Renata,

Aos palhaços dessa cidade: Lambreta Marcha Lenta, Mereceu, Ritalino,

Vladmir Cigano, Pepito, Xupetin, Arnica, Geléia, Diego Zadra, Poca Sombra,

Malagueta, Coisa Fina, Tulipa San, Frida, Sabugo e todos os outros que fazem

com que essa arte continue seu caminho.

A todos os palhaços que influenciaram direta e indiretamente esse trabalho, em

especial: Ale Roit, Ricardo Pucetti, Andrea Macera, Alberto Gaus, Chacovachi,

Loco Brusca, Tomate, Lili, Pepe Nuñes, Marcio Libar, Leo Bassi, Leandre

Ribera, Tortell Poltrona e todos os outros excelentes profissionais de sua arte.

A Troupe Tangará, grupo que atualmente compartilho os momentos de trabalho

A todas as pessoas que paravam para me ver na rua, ou continuavam seu

trajeto. Todas foram essenciais para a construção desse processo

Agradeço, de coração.

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RAFAEL SANTOS DE BARROS

PALHAÇO – JOGADOR DO RISO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Música e Teatro da Universidade Estadual de Londrina.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________

Profª. Mª Adriane Gomes Universidade Estadual de Londrina

____________________________________

Profª. Drª. Heloisa Bauab Universidade Estadual de Londrina

____________________________________

Profº. Ms. Camilo Scandolara Universidade Estadual de Londrina

Londrina, 18 de novembro de 2011

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BARROS, Rafael de. Palhaço – Jogador do Riso. Londrina, PR. Universidade

Estadual de Londrina, 2011

RESUMO

Nessa pesquisa você encontrará linhas que foram lapidadas diversas vezes

para que as definições de jogo teatral e improvisação deslizassem pelas

primeiras páginas. Desliza e segue em frente, onde o trabalho começou a

tomar mais liberdade, depois de alguns meses de escrita e leitura. É no

segundo capítulo que o palhaço se apresenta, de várias formas,

essencialmente, causador do riso. Como um espetáculo de palhaço busca a

proximidade com o público. Aqui quero falar de perto, com a quarta parede

atrás do último espectador. A estrada segue e apresenta o palhaço em

questão, o palhaço escritor. Os caminhos da pesquisa, os motivos pessoais e a

demonstração prática de toda essa teoria.

Palavras-chave: Palhaço, Teatro de Rua, Espaços Alternativos, Jogo teatral,

Improvisação.

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BARROS, Rafael de. Payaso – Jugador de La Risa. Londrina, PR.

Universidade Estadual de Londrina, 2011

RESUMEN

En esta investigación se encuentran líneas que por varias veces se cambió

buscando primorearlas para que las definiciones de juego teatral y

improvisación tuviesen presentes en todo trabajo. Más adelante, el trabajo

comenzó a tomar más libertad, es decir, después de unos meses de escritura y

lectura. En el segundo capítulo es que el payaso se presenta en varias formas,

esencialmente, causador de la risa. Como un espectáculo de payasos, la

escrita busca proximidad al público. Quiero estar cerca, con la cuarta pared

detrás del último espectador. El camino sigue y muestra el payaso en cuestión,

el escritor payaso. Los caminos de la investigación, razones personales y

demostración práctica de toda esta teoría.

Palabras clave: Payaso, Teatro de Calle, Espacios Alternativos, Juego teatral,

improvisación.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO..................................................................................07

1. JOGO E IMPROVISAÇÃO NO TRABALHO DO ATOR ......................09

2. O PALHAÇO .........................................................................................18

3. AS CAMINHADAS ATÉ “EL GENERAL” .................................................

3.1 O Primeiro Contato Com o Palhaço ...............................................36

3.2 Plantão Sorriso..................................................................................38

3.3 Solo e a Busca Por Outras Possibilidades......................................41

3.3 Saídas de Rua...................................................................................42

3.5 Espetáculo de Números – 1º Festival do Nariz Vermelho..............45

3.6 A cena, Alguns Números e as Experimentações na Rua...............47

3.7 El General – O Espetáculo Mais Incrível do Mundo......................53

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................56

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................59

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APRESENTAÇÃO

Minha querida avó Esmeralda, em uma das minhas últimas visitas

interrogou: “Ué, o Rafaiel tá fazendo faculdade pra ser palhaço? Desde quando

precisa de faculdade pra palhaço?” Eu ri na hora. Percebi que sua sabedoria

de vida tinha muita coisa para me ensinar. Ela estava certa. Realmente, a

existência do palhaço não depende da faculdade, vem de muito antes da

necessidade do homem de organizar e concentrar esses conhecimentos em

bibliotecas. O curioso é que a faculdade é quem precisou do palhaço; estudou

o palhaço de circo, de tribos, de teatro, de rua, da vida. Por conseqüência, tive

a oportunidade de estudar essa arte em uma instituição que agrupa e engloba

conhecimentos de muitos lugares e nações, o que trouxe grandes benefícios

para essa pesquisa.

É com respeito e admiração que tenho o enorme prazer de unir a

pesquisa da minha vida, com a minha vida na Universidade. Com o sorriso nos

olhos que procuraram tomar o cuidado para que cada página tivesse o

maturamento necessário. Deixei esse trabalho curtir, eu curtia junto. Diversão e

maturação.

O trabalho passeia leve pelos conceitos que, para mim, a principio, eram

conceitos de teatro, de palhaço, da comédia, do treinamento. Da leveza, para a

união. Quando deixei de querer separar, percebi que há mais pontos em

comum do meu primeiro olhar percebia. Um trabalho da vontade de fazer. Da

vontade de perder o medo de errar. A gente cai para levantar. Perde para

ganhar. Gritamos merda, para dar sorte!

Essa é uma pesquisa para a vida. Sem pretensões de colocar verdades

absolutas nem caminhos certos a seguir para se chegar a determinado lugar.

Mais do que isso, é um registro de uma caminhada pessoal. Com todos os

equívocos e precipitações possíveis. Com sorrisos no rosto e reflexões nas

ruas.

Aprendi pelo certo e pelo errado.

Segui pelos dois. Já não tinha mais

volta. Eles se encontravam. Assim eu me perdia, mais

Sorria.

Quando escurece é que via, vinha.

Das vezes que me senti completo. Das vezes que queria mais.

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Com a metáfora de uma noite em alguma casa de espetáculos, o

trabalho segue apresentando os componentes necessários para o trabalho do

palhaço. Mostra como são interligados. A apresentação do jogo teatral e da

improvisação, para que haja uma aproximação com esses termos que

permearão todo o trabalho. São termos que servem para qualquer trabalho

teatral, mas que aqui será puxado o foco para o trabalho do palhaço.

O foco no palhaço, é assim que segue esse trabalho. Apresento

trabalhos e pensamentos de palhaços que influenciaram a minha pesquisa e

caminhada pessoal. Sem desmerecer todos os outros profissionais dessa área.

Como o mais difícil é se livrar das coisas, esse é um trabalho sobre a

dificuldade. A dificuldade de selecionar, o que seria mais proveitoso dentro da

progressão do texto.

Um trabalho para deixar o trabalho leve. Com a busca de uma leitura

que seja mais uma forma de jogo. Aprender a seguir em frente, desapegado,

para assim ter espaço para colocar coisas novas. Com a teoria e a prática

caminhando juntas durante todo o ano. Talvez o relato comece desde a capa

deste trabalho. Já que uma alimentava a outra. Já que tudo aqui é pessoal

demais.

Apresento, com todo o prazer, o trabalho que nunca foi meu. A escrita

que foi feita por todas as pessoas que me influenciaram de alguma forma. Por

todos os estudiosos, escritores e palhaços que se dedicaram a propagar seus

conhecimentos. É assim que segue o trabalho, para quem quiser mais.

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O JOGO E A IMPROVISAÇÃO NO TRABALHO DO ATOR

Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.

Para mim poderoso é aquele que descobre

as insignificâncias (do mundo e as nossas).

Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.

Fiquei emocionado e chorei.

Sou fraco para elogios.

Manoel de Barros

Sejam bem-vindos. O show já vai começar. Estamos naquele momento

que antecede qualquer apresentação teatral, o instante antes do encontro. Os

segundos onde mora aquela expectativa para saber o que virá daqui pra frente.

Então, antes de entrarmos no foco dessa pesquisa gostaria de dar dois avisos

que são de extrema importância para o trabalho que será apresentado a seguir.

Peço atenção para as definições de jogo teatral e improvisação.

1.1 Jogo Teatral

A palavra jogo, segundo Patrice Pavis: “pode ser aplicada à arte do ator,

à própria atividade teatral, a certas práticas educacionais coletivas (jogo

dramático) e até mesmo como denominação de um tipo de peça medieval”

(1999, p.219). A ênfase acontecerá no jogo que se aplica na atividade teatral,

na arte do ator.

Existe a possibilidade de restringir seu significado ainda mais. Desse

modo Viola Spolin apresenta o jogo como uma “atividade limitada por regras e

acordo grupal; seguem par e passo com a experiência teatral; um conjunto de

regras que mantém os jogadores jogando.” ( 2000, p. 342)

Para compreender o jogo, podemos dicotomizá-lo, para assim

conhecermos quais são seus componentes. Para que o jogo aconteça, até

agora, necessitamos de jogadores dispostos a jogar e algumas regras que

delimitem esse jogo. Porém no caso do jogo teatral, necessitamos do público,

de alguém que veja, presencie esse jogo. O jogo teatral necessita de alguém

que o assista, já que de acordo com Grotowski “o teatro (...) só não pode existir

sem o relacionamento ator-espectador, de comunhão perceptiva, direta, viva.”

(1976, p.5).

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O jogo teatral poderá acontecer a partir de agora. Tem-se jogador, jogo

e público. Então, nesse momento, acontece o jogo teatral. Dentro dessa

possibilidade temos o jogo dramático. Com uma pequena diferenciação entre

essa ramificação do jogo teatral

Spolin sugere que o processo de atuação no teatro deve ser baseado na participação em jogos. Por meio do envolvimento criado pela relação de jogo, o participante desenvolve liberdade pessoal dentro do limite de regras estabelecidas e cria técnicas e habilidades pessoais necessárias para o jogo. À medida que interioriza essas habilidades e essa liberdade ou espontaneidade, ele se transforma em um jogador criativo. (KOUDELA, 1998, p. 43)

A partir dessa diferenciação entre jogo teatral e jogo dramático nota-se

que o jogo dramático está um pouco além do foco de pesquisa proposto. Para

que isso fique mais nítido, Spolin nos dá exemplos de como o jogo dramático

está inserido em nossas vidas, separando-o assim da realidade teatral.

Como o adulto, a criança gasta muitas horas do dia fazendo jogo dramático subjetivo. Ao passo que a versão adulta consiste usualmente em contar estórias, devaneios, tecer considerações, identificar-se com as personagens da TV etc..., a criança tem, além destes, o faz-de-conta onde dramatiza personagens e fatos de sua experiência, desde cowboys até pais e professores. Ao separar o jogo dramático da realidade teatral e, num segundo momento, fundindo o jogo com a realidade do teatro, o jovem ator aprende a diferença entre fingimento (ilusão) e realidade, no reino de seu próprio mundo. Contudo, essa separação não está implícita no jogo dramático. O jogo dramático e o mundo real freqüentemente são confusos para o jovem e – ai de nós – para muitos adultos também (SPOLIN, 2000, 253)

O jogo dramático, por outro lado, pode ser transformado em jogo teatral,

com trabalho e dedicação. “O processo de jogos teatrais visa efetivar a

passagem do jogo dramático para a realidade objetiva do palco. Este não

constitui uma extensão da vida, mas tem sua própria realidade.” (KOUDELA,

1998, p. 44).

O jogador fará suas ações em alguns limites e lógicas do jogo vigente.

Alguém se torna envolvido no jogo a partir do momento que está envolvido com

suas regras e dentro dele, por vezes somente ali, aquelas regras são válidas.

“O sistema de jogos teatrais se fundamenta no jogo regrado.”

(KOUDELA,1998,p. 48). Para que o jogo aconteça é necessário ter

conhecimento de suas regras e possibilidades. É praticamente impossível que

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consigamos jogar algum jogo sem que haja mínimas regras que limitem e

garantam sua evolução.

As regras são fundamentais para que o jogo aconteça. Dentro dessas

regras fica implícita a delimitação do local de jogo. No evento teatral, sabemos

que estamos assistindo a um jogo teatral e não a um jogo dramático, como foi

explicado anteriormente. Dessa forma, esse jogo só acontecerá dentro de

determinado evento teatral, deixando de ter compromisso com qualquer ligação

com a realidade fora dele. Nota-se então uma nova diferença desses dois

termos. (KOUDELA,1998,p. 44)

A partir do momento que o público comparece ao jogo passamos a ter

uma regra não declarada, mas totalmente consciente por parte do jogador e do

publico: sua participação no jogo. O público, a partir do momento que está

assistindo ao jogo, é um participante, um jogador. Mesmo quando se diz que o

público não participou, temos uma força de expressão equivocada, a única

forma de um público não participar é quando não está presente durante a

apresentação teatral. Nesse caso a expressão é usada para quando o público

esta apático, pouco ativo durante a apresentação.

Ele (público) não fica excluído do jogo. Pois, seja encaminhando-se para a cena ou recusando-se a participar desta, ele demonstra algum tipo de reação, que se torna objetiva e significativa, ao tomar uma ou outra posição. Os homens da cena moderna desejam que o espectador tome parte no ato teatral, como o conjunto do grupo nos primórdios da arte dramática tomava parte na cerimônia religiosa. (CHACRA, 1983, p. 92)

O encontro entre público e ator traz a efemeridade do teatro. Nunca

serão dois jogos iguais, mesmo que tivermos a mesma apresentação.

“Podemos então definir o teatro como `o que ocorre entre o espectador e o

ator”. Todas as outras coisas são suplementares – talvez necessárias, mas

ainda assim suplementares.” (GROTOWSKI, 1972, p. 18)

Somente nesse momento acontece o frescor de cada momento ser

único e vivido tanto pelos jogadores quanto pelo público. O contato entre dois

atores em cena, mesmo tendo as mesmas ações a serem realizadas, sempre

será diferente. Nunca haverá um contato igual entre os atores e dessa maneira

desencadeará um contato diferente com o público.

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A falta de saber por parte da platéia gera no ator um sangue novo, uma disposição, energia e presteza que emanam da simples presença do espectador. Embora preparados para jogarem, os artistas só saberão o resultado do jogo, jogando diante dos espectadores. (CHACRA, 1983, p. 18)

O ator é um jogador, afirma Viola Spolin. Tomo a liberdade de citar um

discurso de Jerzy Grotowski sobre a disponibilidade e a possibilidade do ator

manter vivo o jogo com seu parceiro de cena, com o público e assim ser um

jogador consciente de sua função no jogo.

[...] Dessa forma, durante a representação, quando a partitura –o texto e a ação são claramente definidos – já está fixada, deve-se sempre entrar em contato com os companheiros. O companheiro, se é um bom ator, sempre segue a mesma partitura de ações. Nada é deixado ao acaso, nenhum detalhe é modificado. Mas há mudanças de última hora deste jogo de partituras, toda vez que ele representa levemente diferente, e vocês devem observá-lo intimamente, ouvir e observá-lo intimamente respondendo as suas ações imediatas. Todo dia ele diz “bom dia”, com a mesma entoação, exatamente como seu vizinho diz sempre “bom dia” a vocês. Um dia, ele está de bom humor, outro cansado, outro com pressa. Sempre diz “bom dia”, mas com uma pequena diferença de cada vez. Tem-se de perceber isso, não com a mente, mas ver e ouvir. Na verdade, vocês sempre dão a mesma resposta: “bom dia”, mas se tiverem realmente ouvido, perceberão que será um pouco diferente cada dia. A ação e a entoação são as mesmas, mas o contato é tão rápido que é impossível analisá-lo racionalmente. Isto modifica todas as relações, e é também o segredo da harmonia entre os homens. Quando um homem diz bom dia, e outro responde, há automaticamente uma harmonia vocal entre os dois. No palco, muitas vezes detectamos uma desarmonia, porque os atores não escutam seus companheiros. O problema não é ouvir e perguntar, é o tipo de entonação, e sim apenas escutar e responder. (GROTOWSKI, 1972, p. 173)

Agradeço a atenção de todos. Este foi o jogo teatral. Espero que

tenhamos esclarecido suas possibilidades de realização e introduzido de forma

devida seus elementos básicos. O jogo estará conosco durante todo o trabalho.

Vamos em frente, jogando. Agora teremos o último aviso de extrema

importância para a realização do show. As definições de improvisação teatral.

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1.2 Improvisação

A improvisação na definição apresentada por Pavis é: “Técnica de ator

que interpreta algo imprevisto, não preparado antecipadamente e inventado no

calor da ação.” (PAVIS, 1999, p. 205) Aqui ressaltarei alguns pontos dessa

afirmação para evitar possíveis equívocos.

O ator, quando improvisa, está dentro de uma técnica que adquiriu

durante os ensaios, treinamentos e laboratórios. Logo se prepara para o

imprevisto. Aqui está um paradoxo. Como alguém é capaz de se preparar para

algo inesperado?

O caráter fundamental da improvisação é a espontaneidade, e esta é o alimento e a base da arte do ator: arte da flexibilidade, do imprevisto e das surpresas, mas também é a arte do controle e da adaptação. Ao mesmo tempo em que deve ser espontâneo, deve ser controlado. (CHACRA, 1983, p. 70)

Imprevistos que acontecem, e o trabalho do ator pode buscar uma

preparação para que quando algum acontecimento inesperado ocorrer seja

possível continuar com a apresentação. Então, o ator, respondendo ao

inesperado, irá improvisar a partir daquele acontecimento, dentro das regras e

possibilidades, que cercam seu jogo.

A tensão desempenha no jogo um papel fundamental. Ela significa incerteza, acaso. A solução do problema implica no esforço dos jogadores para chegar até o desenlace e a improvisação espontânea de ações, para vencer o imprevisto. Esta concentração de atenção gera energia e estabelece a relação direta com os acontecimentos e com o parceiro. (KOUDELA, 1998, p. 48)

A improvisação e o jogo são dois elementos que caminham juntos.

Dentro do jogo existe improvisação e dentro da improvisação existe o jogo.

Spolin define improvisação como: “Jogar um jogo; um momento nas vidas das

pessoas sem que seja necessário um enredo ou estória para a comunicação;

entrar no jogo traz para pessoas de qualquer tipo a oportunidade de aprender

teatro” (2000, p. 341) Quem veio primeiro é uma bela questão filosófica, prefiro

pensar que a resposta é que são elementos que só sobrevivem juntos.

O acontecimento extremo é quando o inesperado é tão explícito que fica

claro para o ator e também para o público que aquilo não estava programado.

Teatro é comunicação, e quando se comunica que aconteceu algo imprevisto,

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mesmo que não seja por meio da fala, o público perceberá. Nesse momento,

por vezes, ator e público se unem. Entram em uma batalha para além do

teatro, estão juntos para remontar a estrutura do jogo.

Se algum imprevisto acontece. Sendo o responsável direto pelo levantamento da obra teatral, o ator procura no próprio imprevisto surgido em cena, sugestões para buscar, agarrar, retomar a forma que se perde. O público, por sua vez, passa a colaborar na manutenção do imprevisto. Por alguns segundos a relação de cumplicidade torna-se tão estreita que aqueles que captam o ato teatral, quando notam o obstáculo cênico, normalmente são generosos para com os artistas. Às vezes ocorrem aplausos em cena aberta, quando a retomada da estrutura é feita pelos atores através do improviso. Esta manifestação do público é um indício de que a improvisação abre caminho para uma maior participação da platéia. (CHACRA, 1983, p. 21)

Aqui foi apresentada a improvisação em seu primeiro momento: quando

algum imprevisto acontece durante a encenação. No entanto, temos outros

caminhos para a utilização da improvisação. Quando existe a consciência que

haverá um momento que será improvisado. Primeiramente entraremos nesse

espaço para o improviso no laboratório de trabalho do ator, a pesquisa.

Quando é dado um determinado estímulo para o ator, e ele improvisa dentro

desse tema.

A esse processo podemos chamar de improvisação, como algo inesperado ou inacabado, que vai surgindo no decorrer da criação artística, aquilo que se manifesta durante os ensaios para se chegar à criação acabada. Quando deparamos com o resultado final, o processo não aparece e o improviso deixa então, aparentemente, de existir, pois ficou submerso. A forma artística é o controle consciente deste processo espontâneo. (CHACRA, 1983, p. 14)

Temos aqui uma proposta de criação através da improvisação. Que usa

a improvisação na construção de sua estrutura. Noto que mesmo quando a

improvisação não é declarada no trabalho do ator, ela existe. Mesmo que haja

tudo escrito em um texto dramático e que a montagem pretenda ser fiel ao

texto escrito, o ator irá improvisar a partir das informações que conseguiu

absorver desse texto, a partir da interação com outros atores e eventualmente

em interação com o diretor.

Os atores precisam aprender a fabricar o próprio teatro. De que serve o exercício da improvisação? Para tecer e impostar um texto com palavras, gestos e situações imediatas. Mas, principalmente, para retirar dos atores a falsa e perigosa idéia de que o teatro não é

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nada além do que literatura posta em cena, recitada, cenografada, em vez de simplesmente lida. (FO, 1999, p. 323)

Mesmo que pareça que suas marcações estão rigidamente limitadas o

ator é sempre um jogador-improvisador, que joga com os acontecimentos do

momento. “É do conhecimento de todos que o teatro nasce da improvisação,

do ponto de vista de qualquer termo teatral nela contido. Porém, não se separa

da improvisação.” (CHACRA, 1983, p.40) Improvisação e teatro são duas

palavras que caminham juntas, às vezes omitidas, mas sempre estiveram

interligadas e dependentes.

Passo para o terceiro momento. Quando, dentro da estrutura já fechada

de um espetáculo teatral, existem lacunas que deixam a possibilidade de uma

improvisação. Uma lacuna para o inesperado. “A improvisação de uma

situação no palco tem uma organização própria, como no jogo.” (KOUDELA,

1998, p. 44)

Cria-se espaço para que o inesperado aconteça. Para que a

apresentação seja única, como todo evento teatral. Aqui reside outro paradoxo.

Como podemos ter espetáculos que deixam lacunas propositais para

improvisar sendo que todo evento teatral tem embutido em si o caráter

improvisacional? Como já vimos, todo evento teatral tem espaço para a

improvisação. Os que têm esse elemento declarado trabalham abertos para

esses acontecimentos. Criam possibilidades para que essa improvisação seja

declaradamente aberta ao público.

A improvisação teatral é fundada na espontaneidade, como fenômeno psicológico e estético. É o fator que faz parecerem novos, frescos e flexíveis todos os fenômenos psíquicos e teatrais, dentro de um universo em que tem lugar a mudança e a novidade. É exatamente esse aspecto que confere à improvisação o seu caráter de momentaneidade – hic et nunc – no qual se assentará todo e qualquer ato teatral. (CHACRA, 1983, p. 45)

A base do teatro já é improvisada; o encontro. O encontro entre ator e

público é improvisado. O ator não sabe quem estará na platéia. Como foi o dia

de cada pessoa. Se elas estão totalmente dispostas a estarem ali. Se é a

melhor opção que fizeram para aquele momento de sua vida. Se foram até lá

obrigados. O momento do encontro. A troca de energias. O ator entra e se

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encontra com o público naquele momento. Será somente aquele momento.

Nunca o mesmo. Neste contexto de improviso, o ator tem seu espetáculo a

cumprir. Sua partitura corporal.

O ator, como o músico, necessita de uma partitura. A partitura do músico consiste em notas. O teatro é um encontro. “Dar e tomar”. Olhe para outras pessoas, confronte-as consigo, com as suas próprias experiências e pensamento, e forneça uma réplica. Nestes encontros humanos relativamente íntimos, há sempre este elemento de “dar e tomar”. O processo é repetido, mas sempre hic et nunc: o que quer dizer, nunca é bem o mesmo. (GROTOWSKI, 1976, p. 167)

Tivemos aqui a apresentação das possibilidades de improvisação dentro

dessa pesquisa. A improvisação acontecerá tanto nos processos de trabalho,

que seria o início do processo teatral, quanto durante a apresentação. No

momento da junção com o público. A improvisação estará durante todo o

processo teatral.

Podemos concluir que da junção da tríade básica (ator, texto e publico) surge a forma teatral. A tríade constitui também o fenômeno teatral, que traz como elemento fundamental a improvisação, responsável pela vitalidade da arte no palco. Provocando reações inesperadas e resultando num produto final imprevisto. (CHACRA, 1983, p. 20)

Quando Sandra Chacra se refere ao texto diz sobre tudo o que o ator

tem a cumprir dentro do espetáculo: como partitura corporal,o próprio texto,

ações. A improvisação dará mais força, dessa forma, para um dos maiores

triunfos do teatro: a arte do encontro, a efemeridade. Uma das maiores

diferenças do teatro para as outras artes representativas dá-se nesse encontro.

Onde somente ali e somente por aquelas pessoas é vivida tal experiência.

Não estamos interessados em nenhuma determinada platéia. O teatro deve reconhecer suas próprias limitações. Se não pode ser mais rico que o cinema, então assuma sua pobreza. Existe apenas um elemento que o cinema e a televisão não podem tirar do teatro: a proximidade do organismo vivo. (GROTOWSKI, 1976, p. 26-27)

Todo evento teatral está envolvido pela improvisação. A possibilidade de

seu uso consciente pode auxiliar no trabalho do ator. Assim, jogo e

improvisação estão ligados e são de extrema importância para que o teatro

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aconteça. Estes dois termos estarão entremeando todo o desenrolar deste

trabalho.

Têm-se ainda os espetáculos que incitarão a participação ativa do

público. Em espetáculos de palhaços é muito comum presenciar esse fato. O

palhaço joga com o público e muitas vezes vem a incitar determinadas ações

para que seja possível jogar o jogo proposto dentro do espetáculo. O palhaço,

na maioria das vezes, já conta com a participação do público. Improvisa dentro

dessa possibilidade. Jogando diretamente com as respostas do público. Dessa

forma, há mais uma possibilidade da improvisação teatral, em que seu sentido

é compreendido de dois modos: “o primeiro é através da improvisação artística,

cuja tarefa fica exclusivamente nas mãos dos atores; o segundo, é quando é

executada por não-artistas, como na improvisação coletiva, na qual o público

participa diretamente do espetáculo” (CHACRA, 1983, p. 96)

Esta foi a improvisação teatral. Com a adição do jogo e falando dos dois

juntos e propositadamente expostos começamos a ter mais proximidade com o

mundo da comicidade e já que o palhaço colocou a ponta do nariz para fora da

cortina vamos em frente para apresentar a estrela da noite. Todos de pé para

receber o Palhaço.

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O PALHAÇO

Tomem seus lugares. As luzes se acendem e entra o Mestre de Pista, o

Mestre de Cerimônias do circo; para apresentar o palhaço, que conhecemos

hoje.

Antes! Um esclarecimento sobre um questionamento que algumas

vezes aparece quando o assunto é o nariz vermelho: “É palhaço ou clown?”

(Mesmo que agora não seja à hora desse tipo de pergunta). Já ouvi as mais

diversas respostas, mas prefiro, antes de dar respostas, sugerir novas

possibilidades de perguntas e contradições, como é digno de um palhaço:

Os palhaços têm muitos nomes tanto como existem culturas: Arlequim, Augusto, Badin, Bobo, Bufão, Cabotin, Carabranca, Cascaduer, Charlie, Claune, Clown, Contra, Excêntrico, Fool Gleeman, Hano Hanswurst, Harlequin, Jack Pudding, Jester, Joey, Jongleur, Juglar, Kartala, Koyemsi, Merry Andrew, Narr, Newekwe, Nibhatkin, Pagliacci, Pantaleão, Pedrolino, Penasar, Pickle Herring, Pierrot, Rizhii, Semar, Skomorokhi, Tramp, Trickster, Troubadour, Vidusaka, Vita, Wayang Orang, Zany e provavelmente muitos outros. (ENRIQUEZ, 2002 ,p. 24) 1

Desse modo, toda vez que alguma dessas palavras surgirem em nosso

show, estará nos referindo ao palhaço, a essa figura cômica que tem como

premissa de sua existência; a diversão, o jogo, a brincadeira, antes de todas

essas denominações.

O palhaço, visto como alguém disposto a causar o riso, é um arquétipo2

existente em muitas culturas, há muito tempo3. A apresentação dessas

1 Los payasos tienen muchos nombres. Tantos como culturas existen: Arlequín, Auguste, Badin, Bobo,

Buffon, Cabotin, Carablanca, Cascaduer, Charlie, Claune, Clown, Contrary, Excentrique, Fool Gleeman,

Hano Hanswurst, Harlequin, Jack Pudding, Jester, Joey, Jongleur, Juglar, Kartala, Koyemsi, Merry

Andrew, Narr, Newekwe, Nibhatkin, Pagliacci, Pantaleone, Pedrolino, Penasar, Pickle Herring, Pierrot,

Rizhii, Semar, Skomorokhi, Tramp, Trickster, Troubadour, Vidusaka, Vita, Wayang Orang, Zany y

probablemente muchos otros más. 2 Em psicologia junguiana, o arquétipo é um conjunto de disposições adquiridas e universais do

imaginário humano. Os arquétipos estão contidos no inconsciente coletivo e se manifestam na

consciência dos indivíduos e dos povos por meios dos sonhos, da imaginação e dos símbolos. (PAVIS,

2007, p. 24) 3“Imagino que o primeiro palhaço surgiu numa noite qualquer em uma indefinida caverna enquanto

nossos antepassados terminavam um lauto banquete junto ao fogo. Em volta da fogueira, numa roda de

companheiros, jogavam conversa fora. Comentavam a caçada que agora era jantar e falavam das

artimanhas usadas, dos truques e da valentia de cada um . É quando um deles começa a imitar os amigos e

exagera na atitude do valentão que se faz grande, temerário e risível na sua ânsia de sobrepujar a todos. E

logo passa a representar as momices do covarde, seus cuidados para se esquivar do combate, sempre

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diferentes denominações traz a abrangência necessária para que haja uma

maior tranqüilidade quando nos depararmos com tantos termos distintos para

denominarem esse mesmo ser. Alguns autores usam clown, outros palhaço,

em outros casos as definições ficam por conta de quem fez a tradução da obra.

Portanto, ao invés da restrição, daremos a possibilidade de aberturas. Vale

notar que o palhaço caminha unido à história do teatro há bastante tempo.

Segundo Hugo Possolo, vem antes mesmo da Commedia dell´Arte, sua

formação é anterior e vem dos cantos Ditirâmbicos que originaram o Teatro

Grego. (2009, p. 147). Longe de querer fixar datas ou acontecimentos, só dar

uma noção da quantidade de aniversários que já fez esse arquétipo que

carrega consigo o símbolo da comicidade.

O clown vem de muito longe: eles já existiam antes do nascimento da Commedia dell´Arte . Podemos dizer que as máscaras italianas nasceram de um casamento obsceno entre jogralescas, fabuladores e clowns; e, posteriormente, depois de um incesto, a Commedia pariu dezenas de outros clowns. (FO, 1999, p. 305)

Com o passar das centenas e dos milhares de anos chegamos a figura

que conhecemos e reconhecemos atualmente como palhaço; aliado ao

nascimento do circo moderno.

Fundado por Philip Astley (1742 – 1814) no final do século XVIII, na

Inglaterra. No país já aconteciam espetáculos ao ar livre, o foco estava nas

proezas humanas executadas sobre o dorso de um ou mais cavalos. Astley

teve a idéia de transportar as exibições de habilidades na rua, para um local

fechado, o que possibilitou a cobrança de ingressos4. (BOLOGNESI, 2003, p.

24-31)

Ainda de acordo com Bolognesi, que apresenta mais detalhes sobre

essa fase dos espetáculos.

exagerando os gestos, abusando das caretas, apontando tão absurdamente as intenções por trás de cada

ação e o ridículo delas que o riso se instala naquela assembléia de trogloditas. E todos descobrem o prazer

de rir entre companheiros, de rir de si mesmo ao rir dos outros...” (CASTRO,2005 , p. 11) 4“Sempre houve ligação dos ciganos com o circo. No Brasil, no Setecentos, há registros de padres

reclamando dos ciganos, que usavam estruturas parecidas com as do circo de pau fincado. Eles vieram

para cá expulsos da Europa, e eram domadores, exímios cavaleiros, tinham cavalos, etc. Por isso, antes

mesmo de Philip Astley ter um circo, já havia arte circense no Brasil, obviamente não em um circo como

se conhece hoje. Os ciganos usavam tendas, que não sabemos exatamente como eram, mas existem essas

referências, normalmente negativas. Naquele tempo, nas festas sacras, havia bagunça, bebedeira e

exibições artísticas. Os padres escreviam relatos pondo a culpa nos ciganos e nos artistas. Bom, havia de

tudo, até teatro de bonecos. Eles viajavam de cidade em cidade e faziam o que fizesse mais sucesso

naquele lugar, em função do gosto da população local” (Torres, 1998, p. 19-20 apaud BOLOGNESI,

2003, p. 46)

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De início, o espetáculo concebido por Astley comportava apenas apresentações com cavalos [...] Diferentemente dos espetáculos das feiras ambulantes, os primeiros circos eram permanentes e se instalaram apenas nas grandes cidades. O espetáculo circense, em seus primórdios, não se destinava ao público das ruas e praças, freqüentador das feiras e apreciador da cultura popular. Dirigia-se aos aristocratas e à crescente burguesia. A apresentação eqüestre que deu origem ao circo que se conhece nada tinha de popular. A aristocracia encontrou, com o circo, um modo de tornar espetacular o seu mais caro símbolo social, o cavalo. (BOLOGNESI, 2003, p. 32)

“Na época de Astley, exímios cavaleiros realizavam o célebre número do

“recruta da cavalaria”, em que simulavam camponeses simplórios e astutos

que, com suas extravagâncias divertiam a platéia” (BURNIER, 2001, p. 208)

Inicia-se a possibilidade da busca pela comicidade por meio de sátiras

realizadas pelos próprios cavaleiros. Porém, não existia ainda uma posição

fixamente cômica no espetáculo. Mais algumas informações sobre esse

período são relevantes:

O circo concentrava os ideais de uma classe que estava prestes a perder seu lugar de dominação social. Urbano por excelência, em sua origem o circo veio a ser uma maneira de expandir o encanto pela equitação para o novo público burguês. (AUGUET apud BOLOGNESI, 2003, p.34 )

A aristocracia em declínio e a burguesia em ascensão passaram a

apreciar o circo. A distância do público popular perdura até o momento que

muitos soldados ficam desempregados após o final das guerras napoleônicas.

Muitos desses soldados unem-se as companhias de saltimbancos e usam suas

habilidades aprendidas no exército para integrarem a trupe. Ainda assim os

cavalos continuam com seu papel fundamental nos números, além de

auxiliarem na locomoção da companhia e do espetáculo. “A aproximação da

arte popular das feiras com a eqüestre militar possibilitou o surgimento do

espetáculo circense que vai se perpetuar até os dias atuais.” (BOLOGNESI,

2003, p. 36)

Com o passar do tempo as feiras perdem a importância que tinham. Os

trabalhadores ambulantes ficam desempregados. Os artistas que se

apresentavam nas feiras buscam adaptar-se ao novo momento e começam a

exercer manifestações que são, por excelência, comerciais. Dessa vez os

diretores de espetáculos circenses tinham a disposição para seus shows tanto

os militares que haviam unido-se as companhias ambulantes como os artistas

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que trabalhavam nas feiras e que agora sabiam da necessidade de trabalhar

dentro desses centros de diversão para conseguirem sobreviver com sua arte.

Os “diretores de espetáculo podiam contar com todos aqueles artistas

ambulantes, inclusive clowns, que se apresentavam em praças públicas”

(BOLOGNESI, 2003, p. 38)

O circo inicia sua existência com base no desafio dos limites (do corpo e

dos seres) humanos. O acrobata que desafia a gravidade, o atirador de facas

que desafia a morte, o domador que desafia animais mais fortes que si. No

circo os artistas vivem esse perigo diante dos olhos do público que acompanha

com temor e suspense. A possibilidade real de fracasso paira. Os palhaços

entram e tropeçam, para que o público experimente outras sensações. “Riso e

fracasso, descontração e a possibilidade de queda são os componentes

extremos que embasam o espetáculo do circo. [...] Em um pólo o corpo sublime

dos ginastas; no outro, o grotesco dos clowns”. (BOLOGNESI, 2003, p.45) O

palhaço faz paródia do próprio circo, com seu modo grotesco de existência,

satiriza os momentos sublimes das situações vividas anteriormente.

No imaginário, o desafio humano em superar a natureza é representado pelo circo. É o que faz o público prender a respiração e deixar a adrenalina correr. A arte circense expressa homens vencendo a lei da gravidade por meio de saltos, equilíbrios, vôos etc. Exceto pelo palhaço que, em contraponto, cai e tomba, revelando que é humano errar e ter medo, sonhar e não conseguir vencer os desafios. (POSSOLO, 2007, p. 62)

O público é lembrado pelo palhaço que o sublime pode ser

ridicularizado. O palhaço tem a função de executar sátiras das grandes

peripécias dos outros integrantes. Vem para mostrar que é possível rir de nós

mesmos. Mostrar que não estamos nesse mundo sozinhos. Inverte a lógica

quando se diverte com o fracasso e encontra nos problemas um motivo para

respirar. Ao enfrentar o problema, o palhaço “transcende seu caráter individual,

porque ele é cada um e todos nós ao mesmo tempo. Ele nos põe no mesmo

nível, acabando com as diferenças e desestruturando tudo o que é

excessivamente cristalizado.” (FERRACINI, 2006, p.144)

A situação que o palhaço vive em cena faz com que o público se

identifique e por vezes sinta-se motivado a jogar com ele. O palhaço entra em

cena e mostra para o público qual a sua lógica. É um modo de comunicação

que se estabelece rápido, quase que instintivamente. Depois que essa conexão

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é feita, o palhaço passa a apresentar sua lógica de vida, sua forma de lidar

com os problemas do mundo, com suas alegrias e frustrações. “A complexa

técnica da arte do clown é um instrumento pelo qual seu trabalho pode ser a

expressão de sua compreensão da vida, dos homens e de suas relações.”

(FERRACINI, 2006, p. 143)

O palhaço é um artista, que entra para fazer seu trabalho, não

para fazer graça. “Outra característica do clown é que ele nunca interpreta, ele

simplesmente é. Ele não é uma personagem, ele é o próprio ator expondo seu

ridículo, mostrando sua ingenuidade.” (FERRACINI, 2003, p. 218) Sua graça

vem através dessa sinceridade. Em que expondo seu ridículo mostra todas as

características que os seres humanos escondem para não serem risíveis

durante sua vida cotidiana. Assim o palhaço inverte a lógica cotidiana, para dar

novos ares para os acontecimentos.

Se você vai pular um muro ou montar um cavalo, deve fazer o público acreditar que é muito fácil. Mas se quiser pular sobre um chapéu, deve fazer o público acreditar que é muito difícil. A lógica é sempre ao contrário da vida, mas o público deve acreditar sempre que o problema é de verdade. (NANI COLOMBAIONI apud LIBAR, 2008, p. 135)

Ou seja, quando o público entra nesse jogo, como citado acima, dessa

inversão da lógica, o palhaço consegue fazer com que as pessoas entendam e

até entrem no problema com ele, acreditando, de fato, que sua missão de pular

um chapéu será de grande dificuldade. E de fato é! O palhaço exagera, certo?

Então exagerar a dificuldade de pular um chapéu, nesse caso é torná-lo grande

demais para conseguir pulá-lo. “A principal figura de linguagem utilizada em um

trabalho cômico é a hipérbole. Isto é, quando se muda a dimensão dos objetos,

pessoas ou idéias, temos a imensa possibilidade de fazer rir.” (POSSOLO,

2007, p.161)

O palhaço carrega consigo a tragédia do desajuste. A figura do ser

humano vencedor, que se supera, é contraposta com a do palhaço, o perdedor.

“Com freqüência, acontece do clown perdedor virar o jogo, pois salta-lhe a

mola do “agora chega”! Ou seja, perdido por perdido, resta-lhe uma chance de

acabar triunfando.” (FO, 1999, p. 309) O típico perdedor, como todos nós.

Desde muito cedo, a escola ensinou-me que todos temos que lutar para

sermos exímios vencedores, já o palhaço, entra para perder. Para os

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perdedores a vitória é mais que uma mera comemoração de uma conquista, é

uma revolução, a volta por cima. Os palhaços, quando ganham, triunfam. Sua

figura já mostra isso, o perdedor como condição humana, já que, no fim das

contas, a gente acaba perdendo. Aceitando essa condição, o palhaço escolhe

rir disso.

O palhaço é aquele que perdeu. Seu nariz é vermelho, porque com o tempo se embebedando de vinho nas ruas frias, o choro e as quedas, o nariz fica realmente vermelho. Suas roupas são desproporcionais e seus sapatos são grandes porque não lhe pertencem. O palhaço é aquele que perdeu a dignidade. Mas somente quem perde totalmente a dignidade pode atingir outra condição de dignidade, e isso acontece quando ele reconhece e aceita sua derrota, sem mágoas, sem culpar ninguém pelos seus fracassos, sem autopiedade. (LEO BASSI apud LIBAR, p. 174)

Assim, quando os palhaços apresentam-se em duplas, essa figura do

perdedor é exaltada, acontece aí um jogo entre os dois que é bastante

conhecido. Um sempre se contrapondo ao outro. É a base de praticamente

todas as relações humanas, quando temos um que manda e um que é

mandado. A representação desses dois palhaços que atuam em pólos

diferentes é uma das bases da comicidade. Um é sempre o mais sério e o

outro mais atrapalhado. Conhecidos como Branco e Augusto, a dupla faz uma

representação de repressor e reprimido, buscando exaltar essa dualidade no

jogo.

Os clowns, assim como os jograis e os cômicos dell´Arte , sempre tratam do mesmo problema, qual seja, da fome: a fome de comida, a fome de sexo, mas também fome de dignidade, de identidade, de poder. Realmente, a questão que abordam constantemente é de saber quem manda, quem grita. No mundo dos clowns só existem duas alternativas: ser dominado, resultando no eterno submisso, a vítima, como acontece na Commedia dell´Arte: ou dominar, assim surge a figura do patrão, o clown branco (o Louis). É ele que conduz o jogo, que dá as ordens, insulta, manda e desmanda. E os Toni, os Pagliacci, os Augustos lutam para sobreviver, rebelando-se algumas vezes...mas, normalmente, se viram. (FO, 1999, p. 305)

“O Branco é a encarnação do patrão, o intelectual, a pessoa cerebral.

[...] Está sempre pronto a ludibriar seu parceiro em cena”. (BURNIER, 2001, p.

206) O Branco repreende o parceiro, porém mantém a diplomacia com o

público. É como se não fosse possível perceber quando ele destrata o Augusto

na frente da platéia. Olha para o público como um patrão que adverte o

empregado na frente do cliente, mas mantém a postura do alto da sua

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elegância, como se ninguém pudesse ver suas grosserias. “O Clown Branco

tem como característica a boa educação, refletida na fineza dos gestos e a

elegância nos trajes e nos movimentos.” (BOLOGNESI, 2003, p. 72) O Branco

é mais sério em cena. Ele dá suporte para as trapalhadas do Augusto, como

uma base de comparação.

O Branco, sendo o repressor representado faz com que as trapalhadas

do Augusto tenham punição imediata. Assim o Branco passa a ser um grande

potencializador das ações feitas pelo Augusto, já que além de culpar o Augusto

por todos os erros que este comete, também o culpa por seus próprios erros,

afinal é um palhaço, que tem o erro como premissa da existência. “O Claum é

aquele que erra e não admite que erra e, em geral, põe a culpa de todos os

erros no Excêntrico.”5 (POSSOLO,2007, p.158)

Muitas vezes, pode parecer aos olhos do público, que o Branco não

exerce uma função de tamanha importância dentro da dupla, já que a maior

parte dos motivos de risos é causada pelo Augusto. Pode até ser despertada

certa antipatia pelo Branco e uma maior identificação com o Augusto, que por

sua vez é um oprimido excêntrico. Fora do centro “O Excêntrico vai fazendo o

que lhe é dado para fazer sem a menor obrigação de acertar e segue apenas

os seus instintos.” (POSSOLO, 2007, p. 158)

Para completar a dupla, temos o Augusto que “é o bobo, o eterno

perdedor, o ingênuo de boa-fé, o emocional. Ele está sempre sujeito ao

domínio do Branco, mas, geralmente, supera-o, fazendo triunfar a pureza sobre

a malícia.” (BURNIER, 2001, p. 206) Aqui temos o complemento da dupla

cômica. Os maus costumes do Augusto, expostos em cena, fazem com que

seja exaltada a seriedade do Branco e o Augusto acaba por ocupar o lugar da

escória da sociedade; o que não se enquadra nas regras impostas. Esforça-se

para se enquadrar, mas quanto mais se esforça, mais inadequado se mostra.

“O Augusto era um idiota, um inadequado, alguém que queria se vestir bem,

mas não sabia como. O chapéu coco era muito pequeno, o paletó sobrava nas

mangas, os sapatos eram mais largos” (CASTRO, 1997, p. 71).

5 Excêntrico, como o nome diz, é aquele que é fora de centro, deslocado de seu eixo, como um bêbado,

sempre tropeçando, falando asneiras e constantemente feliz. O nome Claum vem de clown, daí mais um

motivo para tomar cuidado com a falta de tradução e suas inconseqüentes confusões. Claum é também

chamado de Branco e Excêntrico pode também ser chamado de Augusto ou Toni. (POSSOLO,2007,

p.158)

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O Augusto é a explosão do riso. É quem inova para resolver os

problemas propostos pelo Branco ou iniciados por ele mesmo. É esforçado,

tenta fazer as coisas certas, mas sua incompatibilidade com esse mundo é

grande demais para ele conseguir se integrar aos padrões. O Augusto tem uma

relação de amor com o Branco, queria agradar, fazer tudo certo, mas esse

mundo é difícil demais para ele.

No Augusto, tudo é hipérbole. A roupa é larga, os calçados são imensos, a maquiagem é exagerada e enfatiza sobremaneira a boca, o nariz e os olhos. Essa figura, que está presente na atualidade do circo brasileiro, é fruto direto da sociedade industrial e de suas contradições. (BOLOGNESI, 2003, p.78)

A dupla Branco e Augusto têm grande funcionalidade. O Branco,

geralmente, apresenta o número, o espetáculo. Tem mais disponibilidade para

falar as coisas corretas para o público. Enquanto o Augusto, quando tenta, erra

e nos faz rir. Projeta em cena um reprimido e a sociedade, representada pelo

Branco, como repressora.

Um grande exemplo dessa dupla, no cinema, é o Gordo e o Magro. O

Gordo sempre representa a sociedade que reprime o Magro. É interessante

atentar durante os filmes que o Gordo, quando está somente com o Magro é

um repressor, sem erros. Por vezes, quando temos mais pessoas envolvidas

nas ações, também mostra que é atrapalhado perante a sociedade, já que

também é um palhaço, como o Magro. Porém nesse instante acontece mais

um grau de repressão. A sociedade reprime o Gordo. O Gordo e a sociedade

reprimem o Magro. Desse modo a dupla Branco e Augusto “veio a solidificar as

máscaras cômicas da sociedade de classes. O Branco seria a voz da ordem e

o Augusto, o marginal, aquele que não se encaixa no progresso, na máquina e

no macacão do operário industrial” (BOLOGNESI, 2003, p.78)

Nos espetáculos de clown existe sempre um clown de grande loquacidade, que investe como uma metralhadora de palavras contra o público e os outros clowns. Porém, há um outro, quase sempre mudo, que escuta, assente apenas, discorda com muito garbo, lança olhares perdidos, fica estupefato por quase qualquer coisa, até a mais banal. O primeiro é o speaker, o clown branco, o Louis; o segundo é o Auguste. (FO, 1999, p.208)

Quando falamos de duplas temos então a possibilidade de dualidade a

partir do jogo do Branco e do Augusto. Como seria então, já que é o foco dessa

pesquisa, o trabalho de um palhaço que se apresenta sozinho? Um espetáculo

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em que somente existe um palhaço que irá se colocar diante de uma platéia?

Percebo que nesses casos um único palhaço acaba fazendo as funções de

Branco e Augusto, com predomínios de um ou outro, de acordo com as

possibilidades que o palhaço encontra em cena e no jogo com o público.

Sobre essa possibilidade de transição dentro da lógica do palhaço solo,

Ricardo Pucetti6, nos contou em sua palestra7, que em seu espetáculo La

Scarpetta: “Existe um momento no espetáculo que é um trabalho próximo do

Bufão, quando peço para as pessoas quebrarem os pratos que dou para a

platéia.” É importante notar esse momento, já que a maior parte da lógica do

seu palhaço é na linha do Augusto.

A partir dessas possibilidades e das apresentações que via de palhaços

solo comecei a perceber a potência que essa transição também tem. Quando

existe essa transição é mais um motivo para causar surpresa no público, mais

uma forma de jogar com ele. Muitos dos palhaços que entram com uma lógica

mais para o Augusto, também transitam para o Bufão, e para o Branco. Claro

que existe uma linha mais fixa da linguagem, mas quando esse jogo é feito a

partir da lógica do palhaço, tem grande potência dentro do espetáculo.

Durante essa pesquisa transitei pelos mais diversos campos nas minhas

experimentações. De acordo com as referências de outros palhaços me

ambiento para saber qual a linha mais próxima que sigo. Ter essa possibilidade

de transição dos tipos é um excelente exercício para essa pesquisa já que não

tenho uma idéia de fixar essa característica do meu palhaço agora. Logo,

quando transito pelas possibilidades de jogo, posso testar quais os momentos

e tipos que funcionam mais com a minha lógica. Mesmo sabendo que não

tenho uma linha tão próxima do bufão, quando me apresento, saber suas

possibilidades abri ainda mais meu campo de atuação dentro da comicidade do

palhaço.

Um Augusto que se enfurece e torna-se o Branco de toda a situação, é

como aquela pessoa que jamais imaginaríamos que ficaria nervosa, tamanha é

sua calma para lidar com tudo, quando fica nervosa causa muita surpresa e por

vezes risos. Chegamos então no ponto que um palhaço pode trabalhar.

6 Palhaço, ator-pesquisador. Referência internacional na arte do palhaço, responde pela sistematização da

pesquisa do LUME na utilização cômica do corpo, desenvolvendo uma metodologia própria de trabalho. 7 Palestra gentilmente concedida após sua oficina “O sentido cômico do corpo”, em agosto de 2010, na

Divisão de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Londrina – Londrina PR

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Podemos abranger mais ainda a figura do palhaço, mostrando que não é

um tipo fixo, mas um ser que pode viver todas as sensações dos momentos

que presencia. Não é um ser louco que não sabe o que fazer, o palhaço tem

foco, tem sua lógica e deve saber muito bem qual é a sua função em cada

momento. De acordo com as circunstâncias de cada apresentação. Como

redescobrir do que você gosta de brincar.

“O LUME entende o trabalho do clown, assim como o do ator em geral,

como tendo dois componentes básicos: o estado e a técnica” (FERRACINI,

2006, p.138). Chegamos na possibilidade do trabalho do palhaço anterior a

construção da cena. Para que, a partir daí, possa se relacionar com o público.

O estado de prontidão, esse estado de abertura para o jogo, de fazer suas

obrigações com prazer, viver aquele momento intensamente.

O estado de clown seria o despir-se de seus próprios estereótipos na maneira como o ator age e reage às coisas que acontecem a ele, buscando uma vulnerabilidade que revela a pessoa do ator livre de suas armaduras. É a redescoberta do prazer de fazer as coisas, do prazer de brincar, do prazer de se permitir, do prazer de simplesmente ser. [...]O estado de clown é levar ao extremo a importância da relação, a relação consigo mesmo, o saber ouvir-se, e a relação com o fora, o elemento externo, o parceiro, os objetos de cena, as pessoas do público.(FERRACINI, 2006, p.138)

A partir do entendimento do estado, que geralmente é a primeira

característica trabalhada no palhaço, a técnica vem para potencializar a

característica cômica. O estado é algo que será constantemente trabalhado.

Não é algo que estará pronto depois de alguns exercícios ou alguns anos de

trabalho, e aí sim poderá se trabalhar a técnica. O estado é algo que irá

amadurecendo junto com a vida pessoal do palhaço, junto com suas

apresentações, com sua relação com o público, com o tempo que passa, com o

trabalho.

O estado é algo para sempre estar em manutenção, porém depois de

certo entendimento desse estado de brincadeira, de disponibilidade da qual

citei é possível trabalhar algumas partes e princípios das técnicas do palhaço.

O estado de brincadeira, é importante frisar, não é um estado de infantilização

pejorativa feita por um adulto. O palhaço não é uma criança, mas um adulto

que busca reencontrar a inocência do estado de brincadeira infantil, porém tem

consigo a experiência de uma vida adulta. Então é possível envolver uma

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técnica mais específica nessa brincadeira, para que a inocência seja

potencializada pela experiência. “A inocência sem experiência é uma coisa

boba e o clown não é uma criança, não apenas inocente. O clown tem a

vivência.” (FERRACINI, 2006, p.153)

Por sua vez, Burnier ressalta a técnica com o ato relacional presente no

palhaço. Acontece aqui, praticamente, uma separação didática, já que, quando

o palhaço está em ação, estado e técnica se entrelaçam para compor somente

um ser.

O clown se alimenta dos estímulos que vêm de seus espectadores, interagindo com eles, numa dinâmica de ação e reação. Essa interação com os espectadores e também com outros clowns significa uma possibilidade de alteração da sequência das ações do clown. Por isso falamos de improvisação codificada. A técnica de clown é específica, pois trabalha as mesmas coisas, mas de uma maneira muito particular e para um fim muito preciso. Encontrar e fixar as corporeidades e o modo de pensar do clown é importante, pois essa técnica é quase inteiramente relacional. O clown está constantemente se relacionando com algo (um objeto, o espaço, etc.) ou com alguém (seu parceiro, o público) (BURNIER, 2001, p. 219)

Tanto a técnica quanto o estado são elementos que tem a possibilidade

de um aperfeiçoamento constante. Um aprendizado para toda a vida. “É

preciso convencer-se de que alguém só se torna um clown em conseqüência

de um grande trabalho, constante, disciplinado e exaustivo, além da prática

alcançada somente depois de muitos anos. Um clown não se improvisa.” (FO,

1999, p. 304)

Descobrir essa lógica de ação e reação dentro do estado de brincadeira

é o jogo de cada palhaço, o que deixará um campo mais amplo para a

improvisação, que “vem quase como uma necessidade de se provar que é

possível, entre os interlocutores, que um surpreenda o outro.”

(POSSOLO,2007, p.114) É o que preencherá todo o decorrer da cena. A

lógica de cada palhaço será o fio condutor de todas as ações.

Além dessa lógica, existem as técnicas que auxiliam para que alguns

jogos sejam entendidos de uma forma mais clara e tornem a arte do palhaço

mais refinada. Alguns pontos são: “o exagero, arremate em terceira, repetição,

desvalorização, efeito surpresa, o grotesco, o absurdo”.8

8 O palhaço argentino Tomate, apresentou esses e vários outros pontos de técnicas para o riso em sua

oficina-palestra apresentada na 14ª Convenção Argentina de Circo, Palhaços e Espetáculos de Rua, em

novembro de 2010 em Buenos Aires.

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Nesse mesmo conceito entra a triangulação como uma das bases

técnicas9 para o palhaço, que acontece quando o palhaço olha para o público e

comunica o que está acontecendo em cena. A triangulação, assim como os

outros elementos apresentados são devidamente colocados em cena, nos

lugares mais apropriados, trarão um resultado melhor para a apresentação.

A comicidade, ao contrário do que parece à primeira vista, é uma lógica

exata, tem seu tempo, o tempo do riso, da resposta do público. Saber esse

tempo é ter os gatilhos que disparam as gargalhadas na platéia. Alguns

supostos imprevistos são milimetricamente calculados, para que sempre

pareça que estão acontecendo pela primeira vez, ali, diante daquelas pessoas.

“Toda vez que o clown vai fazer uma apresentação, um ensaio, sempre deve

imaginar que é sua primeira vez” (FERRACINI,2006, p.154) Assim o palhaço

viverá todos os momentos. Mesmo que esteja trabalhando com uma estrutura

fechada. Mesmo que ele saiba onde vai chegar, nunca sabe o que, de fato, irá

viver. “Isso dá a abertura para o clown experimentar detalhes novos, mesmo

que dentro da mesma estrutura, preenchendo de vida o espetáculo."

(FERRACINI,2006, p.154)

Assim, temos o exemplo claro, de quando o palhaço está preparado

para o imprevisto, já que joga com ele quase sempre. Esse entrelaçamento

entre acontecimentos que parecem ser imprevistos e acontecimentos que de

fato são, faz com que o espetáculo de palhaço seja sempre permeado pela

dúvida de que se aquilo foi feito pela primeira vez ou é uma estrutura pintada

de imprevisto.

Os improvisos são desenvolvidos, com técnica, em cima dos imprevistos, que nunca acontecem por acaso.[A autora, aqui, fala especificamente sobre a técnica de comédia trabalhada por Dario Fo, importante salientar que em outros trabalhos alguns imprevistos acontecem por acaso] Até para esses casos eles têm a fórmula. Franca costuma dizer que a comicidade é como uma lógica matemática. Mas, certamente, é necessária enorme bagagem para prever o momento no qual será possível provocar um determinado acidente em cena e, com ele, fazer uma improvisação que, depois de estudada, pode ser assumida ao texto, que, no caso, será adaptado (VENEZIANO, 2002, p.199)

9 Vale lembrar que não estou desprezando outras técnicas utilizadas durante o trabalho que antecede a

cena ou para a preparação do corpo do ator, mas sim enfatizando algumas das técnicas que tem em si a

potencialização de algumas características do jogo do palhaço.

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O palhaço é um motivador de imprevistos, um solucionador excêntrico

de problemas, um revelador em potencial da hipocrisia humana, assim faz com

que suas improvisações diante de um fato inesperado sejam compartilhadas

com o público como parte integrante do espetáculo, assumindo seus erros

diante de todos, dando vida ao espetáculo, vida no sentido de acontecer

somente ali, pela primeira e última vez, efêmero. De fato, sabemos que uma

determinada ação é mais risível quando temos a absoluta certeza de estarmos

presenciando aquele acontecimento forjado na nossa frente, desenvolvido pela

primeira vez. Problemas são naturais na sua vida. Ele acaba por viver um

problema naturalmente. Mesmo quando tem uma estrutura fechada, a abertura

para a improvisação e o jogo com o público é fundamental em seu trabalho. “A

interpretação do palhaço é dependente do público. A proximidade e a presença

evidente da platéia, que raramente está no escuro, permitem ao palhaço um

contato direto, com brincadeiras, correrias, escapadelas, etc.”

(BOLOGNESI,2003,p.173)

Outra característica do clown é que ele trabalha com um estado orgânico que o leva a agir com uma lógica própria, determinando, a partir desse estado, todas as suas ações físicas, que nascem a partir de sua relação com o espaço, com os objetos ao seu redor, com os outros clowns, com seu figurino e, principalmente, com o público. Dessa forma, encontramos outra palavra básica para definir o trabalho do clown: relação real, verdadeira e humana, com tudo que se encontra a sua volta, incluído aí o público. (FERRACINI,2003, p.218)

A construção dessa outra lógica de perguntas e respostas junto ao

público auxilia na construção do sentido de jogo, em que ambas as partes

podem se envolver. O palhaço entra e é como se fosse um jogador-motivador,

que irá propor sua lógica, seu jogo, até que o público entenda sua lógica e

sinta-se a vontade para jogar ou não com ele. Dessa forma o palhaço cria um

sentido, dentro da sua lógica de jogo, onde tem como objetivo jogar e envolver

o público nesse jogo. Como em qualquer jogo, como disse Chacovachi10: “o

palhaço joga com e contra o público”. Já que para termos um jogo

necessitamos de um adversário, porém estamos jogando contra ele.

No jogo do palhaço é possível que se una ao adversário e assim fazer

parte no mesmo time contra outro fator. Penso que assim se configura o com e

10

Durante sua oficina “Manual e Guia do Palhaço de Rua” que aconteceu no III Encontro de Palhaço de

Assis no mês de setembro de 2010

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contra, que se refere Chacovachi, e o público é extremamente necessário para

que o jogo aconteça. Senão é como jogar xadrez sozinho; até dá, mas não tem

ninguém para comemorar contigo. “Então, o público ri do clown e de si mesmo,

pois entrou nesse jogo. E também porque percebe que todas as ações vividas

pelo clown podem acontecer com qualquer um.” (FERRACINI, 2003, p. 224)

Qualquer início de jogo, que nasce dessa relação com a platéia,

proposto pelo palhaço, pode ser a base para que o espetáculo do palhaço

aconteça. “A aceitação e a crença no jogo estabelecido é como se ambos, ator

e público, cada um com seu remo, guiassem uma mesma canoa, interligados,

conduzindo a ação.” (FERRACINI, 2003, p. 228)Assim, quando o jogo fica

estabelecido, o público e o palhaço caminham juntos para que o jogo continue

em frente.

Dentro dessa possibilidade de jogo, então, o palhaço improvisará. A

lógica do palhaço dá base para a construção desse jogo e para o

desenvolvimento dessa improvisação. Com o jogo construído o palhaço terá

total liberdade para improvisar dentro das regras que ele mesmo construiu. Um

palhaço que trabalha com objetos, por exemplo, coloca uma regra de que ele é

capaz de resignificar os objetos. “A revelação do jogo é a matéria-prima do

improviso.” (VENEZIANO,2002, p. 200 )

A improvisação estará, inúmeras vezes, presente nos espetáculos. Essa

impressão trará vigor para a platéia e também para o palhaço que quando

entra em cena, nunca sabe o que pode acontecer. O palhaço tem a liberdade

de jogar com o que funcionar. Nunca ignora o que está acontecendo ao seu

redor. Tem total liberdade de sair do jogo e iniciar outro se assim achar

necessário.

A arte de viver o que está acontecendo naquele momento em cena é um

dos princípios básicos do palhaço. A pergunta dele e a resposta do público

fazem com que o espetáculo aconteça no momento desse encontro. “É aí que

o palhaço existe, no encontro, no meio do caminho, no encontro dos olhares” 11

Jogando com os estímulos internos (previstos na estrutura do espetáculo) e

externos (imprevistos na estrutura) é natural que cada público responda com

um tipo de jogo diferente e também que cada lugar de apresentação faça com

11

Ricardo Pucetti, durante a mesma palestra, nos fez uma pequena demonstração, que depois foi explicada com esse texto

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que esse jogo mude. Assim como o público é parte integrante do espetáculo e

pode alterar seu andamento, os lugares onde cada palhaço se apresenta

também são de total influência em seu espetáculo, de acordo com Pucetti:

“Gosto de ter essa possibilidade de fazer para vários espaços. [...] Basicamente

o meu trabalho é com palhaço. E palhaço tem que fazer circo, rua, teatro

grande, teatro pequeno, pra criança, e etc.” 12

A diversidade dos lugares auxilia no jogo de cintura com o público, com

um maior repertório adquirido pelo ator e assim uma maior liberdade para o

jogo teatral, já que a possibilidade de incorporar até os imprevistos no jogo faz

com que o espetáculo continue. Jogar com os lugares pode ser um ótimo

treinamento para o ator, “teatro faz-se nos mercados, nas feiras, nos paços,

nos espaços de congregação da comunidade; faz-se nas igrejas, nos lugares

de culto, nos adros das igrejas; nas praças, nas ruas, nos quintais, nos jardins

públicos, etc” (CRUCIANI & FABRIZIO, 1999, p. 19)

O palhaço tem a possibilidade de arriscar seu jogo em todos esses

lugares , sem medo de errar, ou superando esse medo. “E se não existisse o

erro, não existiria palhaços. Não teríamos do que rir.” (POSSOLO,2007, p.161)

Então o palhaço deve arriscar. Certo ou errado, conseguirá a

experiência do acontecido. Aliás, o que é certo e errado para um palhaço, já

que é um transgressor das regras?

O valor dos eventos reside muito mais nas razões que os provocaram e nas modalidades em que se deram do que em suas conseqüências conscientes ou em suas aparentes “superações”. Para conquistar este nosso passado como tradição, para que a memória seja elemento ativo em nossa cultura, talvez seja melhor retomar suas raízes: mesmo que limitadamente ao teatro de rua. (CRUCIANI & FABRIZIO, 1999, p. 116)

“Um palhaço que trabalha na rua, tem maior facilidade para trabalhar em

qualquer outro lugar” comentou Chacovachi 13. A rua carrega consigo a

responsabilidade de ser um local de desafios e imprevistos constantes para o

evento teatral. Dessa forma é complicado pensar em um espetáculo que tenha

sua estrutura fechada, que impossibilite mudanças durante sua apresentação.

Já que estamos diante de dois elementos, palhaço e teatro de rua, que primam

12

Entrevista de Ricardo Pucetti cedida ao site http://blog.teatrodope.com.br/2007/07/27/entrevista-com-ricardo-puccetti-lume-teatro/ - retirado em 28/06/2011 13

Durante sua oficina “Manual e Guia do Palhaço de Rua” que aconteceu no III Encontro de Palhaço de

Assis no mês de setembro de 2010

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pela comunicação com a cidade com o público que está assistindo ao

espetáculo naquele dia especificamente. Sobre essa possibilidade do palhaço

de rua ter a autonomia de mudar e adaptar seu espetáculo em diversos lugares

e de acordo com as respostas do público Chaco diz:

Eu acho que um palhaço de rua, sobretudo, não tem que ter todos os anos espetáculos novos. Ah, tenho um espetáculo novo, com nome novo, com uma história nova. Não. O que tem que mudar é suas rotinas, novos chistes peões, alimentar sua personalidade,e isso lhe acompanhar toda a vida. Eu particularmente tenho em minha mala 9 a 10 rotinas, em minha cabeça muitos peões, minha personalidade é a minha energia, a que tenho nesse dia, a dignidade chega comigo, quando eu for trabalhar eu decido o que vou fazer, e se trabalho para gente de periferia ou para menino, para gente não intelectual, faço rotinas que eles vão gostar. E se trabalho para intelectuais como à noite nos cabarés, para gente que vê arte, que viaja, que conhece, que pode jogar, faço outras rotinas, mais difíceis, faço outras rotinas. Só acho isso, sobretudo palhaço de rua. O palhaço de rua tem o mesmo nome sempre, tem a mesma vestimenta sempre, que pode variar um pouco, que é sua personalidade, e, sobretudo, vai somando rotinas em seu baú de palhaço, a rotina de hoje vou fazer toda a vida. (CHACOVACHI apaud REIS, 2010, p. 183)

Claro que esse é um ponto de vista, de um determinado artista que teve

sua trajetória por essa maneira de trabalho. Existem palhaços de rua que tem

em seu repertório diversos espetáculos 14. O que vale ressaltar é como a rua

pode estimular a autonomia durante o espetáculo. Como é possível a interação

com o público, onde o público não está no escuro, escondido, como no teatro

tradicional. “Essa interação possibilita ao ator estender a improvisação (ou não)

ou incluir trechos de outros enredos” (BOLOGNESI,2003,p.173).

O palhaço de rua, por vezes, vai jogar com esses estímulos, busca

estar atento a esses estímulos e filtrá-los. Percebendo quando um estímulo é

positivo para aquele momento do espetáculo ou quando pode ser descartado.

Notando também quando um estímulo é tão forte que tem que ser incluído no

espetáculo no momento que apareceu.

Era impressionante ver como ele (Chacovachi) reagia a cada acelerada de motocicleta na rua. A sirene de um carro de polícia tocou e ele se escondeu. Estava atento a tudo. Toda vez que passava um pombo por cima dele, ele se abaixava, e dizia: “Cuidado que caga.” Falava isso e sequer olhava diretamente para o pombo, apenas percebendo seu vulto. [...] Sempre que algum de nós comentava que tinha visto um artista de rua atuando, o outro perguntava: “Ele vê pombo?”, como uma forma de dizer que artista

14

Leandre Ribera, Nanny Cogorno só para citar palhaços de rua que tem diversos espetáculos em seu repertório.

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de rua bom é aquele que sente o pombo passando sobre sua cabeça. Um chiste é claro. (LIBAR, 2008, p.161-162)

O que me impressionou no trabalho de Chacovachi, quando tive

oportunidade de assisti-lo, foram justamente esses dois pontos: sua percepção

aberta para os acontecimentos externos e sua autonomia artística. A roda

como o espaço para a apresentação tende a expandir o olhar do ator que está

em seu centro, sua percepção acompanha os acontecimentos.

Autonomia, no sentido de poder desistir ou acrescentar determinada

cena de acordo com a resposta do público, não precisar se preocupar em

seguir determinado roteiro ou se o espetáculo tomará um rumo diferente dali

pra frente. Ser capaz de apresentar-se em diversos lugares, pouco cenário

para a facilitação no transporte.

Deixa de depender de mecanismos indiretos e intermediários para ter

acesso ao pagamento do público que assistiu a sua apresentação. Procura

evitar a dependência de formas de financiamento como: patrocínios, parcerias,

bilheteria, editais de fomento, entre outras formas. O artista de rua procura criar

um circuito econômico diretamente com o espectador no momento de sua

apresentação. O que conhecemos como a passada do chapéu, que existe

desde muito antes dessas outras formas de mecanismos indiretos de

viabilização que conhecemos hoje. (REIS, 2010, p. 178)

Compartilho do pensamento do Chacovachi sobre essa autonomia.

Chacovachi já recebeu vários convites para trabalhar na televisão, na

Argentina. Dizia que não via muito sentido, já que na rua, se ele fizer um show

para mil pessoas e todas pagarem ele receberá essa quantia, agora na

televisão ele faria para milhões de pessoas e não receberia por cada

espectador. “Não fico milionário, mas sou livre” (LIBAR, 2008, p. 165)

Apesar dessa marginalidade voluntária, não vejo a rua como um último

recurso, mas como o meio mais viável de apresentação. É inevitável dizer que

depois de apresentar na rua os lugares fechados ficam mais confortáveis, o

contrário já não é tão certo. Claro que a rua não garante qualidade. Porém a

possibilidade de fazer teatro a qualquer hora, na rua, sem aviso prévio me

cativava. “É necessária, para o teatro, uma política de risco. Não a necessidade

de receber teatro, mas a necessidade de fazer teatro, isto é, de se criar uma

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nova relação como ator e como espectador.” (CRUCIANI & FABRIZIO, 1999, p.

140)

Além disso, o trabalho que teria caso precisasse alugar um teatro, pagar

o técnico de luz, fazer a bilheteria, contratar os funcionários e conseguir arcar

com tudo isso a partir dos ingressos vendidos seria inviável para a minha atual

situação. Vi, na rua, a possibilidade de experimentação e apresentação.

O teatro de rua, no Brasil de hoje, é uma das manifestações mais vivas e significativas da arte cênica nacional. Até mesmo porque o trabalho de rua implica uma organização econômica mais fácil do que as realizações em salas. A rua tem sido a opção de muitos: diretores e atores que, por razões artísticas e /ou ideológicas, sentem a necessidade de um encontro efetivo com um público popular nas praças ou nas ruas por meio de espetáculos anunciados e com lugar programado, ou de espetáculos que surpreendem o espectador que simplesmente atravessava a praça ou a rua em passeio ou em trabalho. E que se defronta com o inesperado. O espaço cênico é uma das buscas mais inquietas do teatro contemporâneo. (CRUCIANI & FABRIZIO, 1999, p. 143-144)

Percebia que exposto na rua as situações de ensaio e apresentação se

entrelaçam, já não existe mais duas possibilidades, mas uma terceira que

permite testar coisas novas e também apresentar cenas ensaiadas. A rua

cobra, o público quer ver. A energia que é necessária ali faz com que o

aprendizado seja forjado na frente do público.

O Palhaço, com essa possibilidade de autonomia veio de encontro com

algumas paixões que já me habitavam. Percebi que ter a experiência de um

trabalho solo, baseado nesses mestres que foram citados, seria uma forma de

manter uma atividade artística que extrapolasse meus anos na Universidade.

Alguma coisa que Londrina me ajudou a cultivar e que eu pudesse levar

comigo, para continuar essa caminhada.

Essa arte me emociona. Fico impressionado, durante e depois das

apresentações, como um ser humano pode chegar naquele ponto. Expondo-se

para assim mostrar para quem assiste que somos humanos, exaltam a

humanidade dentro de uma sociedade que, por vezes, deixa de vive-la. Ter a

possibilidade de mostrar como a vida é desastrosa, mas já que escolhemos

continuar vivendo, vamos rir disso. Vamos caminhar nessa direção. E é assim

que continuamos, agora com os relatos da caminhada desses pés que me

acompanham.

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AS CAMINHADAS ATÉ “EL GENERAL”

3.1 O Primeiro contato com o palhaço

Senhoras e Senhores, é chegado o grande momento. A apresentação

da atração principal. Antes, no entanto, necessito contar-lhes a história de

como isso tudo começou para que possamos caminhar mais próximos durante

os momentos de show que seguirão.

Um menino de oito anos, em sua festa, vê duas figuras entrarem pela

única porta do salão. Era um palhaço, que mais tarde chamaria o seu

companheiro. Eram “Bagunça e Confusão”, uma dupla. Quem iria imaginar que

os dois teriam o poder de transformar aquela festa em um picadeiro de circo?

Quem iria imaginar que dezesseis anos depois o aniversariante escreveria um

trabalho de conclusão de curso na Universidade sobre buscar a visão da ponta

de um nariz vermelho?

Bagunça e Confusão, quem diria, mudaram o rumo das coisas. Percebi

que a festa tinha se transformado após a entrada daquelas figuras. Eram

profissionais e sabiam o que estavam fazendo por ali. Os palhaços pegavam

pesado para uma festa infantil, mas tinham classe para isso. Apelidavam as

pessoas, faziam gincanas e trapaceavam para que eu, o aniversariante,

ganhasse todas.

Anos se passaram e um interesse pelo malabarismo começava a

aparecer. Desafiar a gravidade enchia meus olhos. Depois de conseguir

algumas bolinhas feitas em casa, e um devil stick 15 meus olhos se

impressionaram ao ver o número de um homem, que eu já não sabia mais se

era malabarista, palhaço ou tudo junto16. Uma mistura de malabarismo com

comicidade que me impressionava. Achava aquilo genial, mas não conseguia

enquadrar em alguma categoria que eu conhecia. Seus números traziam

habilidades impressionantes, mas havia outra visão sobre o virtuosismo. Ele

15

Três bastões, um maior, central que é equilibrado pelos outros dois durante a execução dos

movimentos 16

Esse homem era John Gilkey que “iniciou sua carreira artística nos anos 80 como malabarista e

acrobata. Começou a se aprofundar no palhaço e foi ativo e relevante na cena artística dos EUA nos

últimos anos, sobretudo na costa oeste. Se apresentou na TV, participou de companhias teatrais, circos e

shows de variedade, mas é pelo seu trabalho no Cirque du Soleil que ficou mais conhecido.”

http://salivagasta.org/2011/01/27/entrevista-john-gilkey-palhaco-do-cirque-du-soleil/

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me confundiu e abriu meus horizontes sobre as possibilidades da arte dos

malabares.

Os anos passaram e a hora chegou. Encontrar um rumo na vida. Para

perder o rumo que tinha iniciado, comecei a freqüentar o Encontro de

Malabares de Santo André17. Passei a ter contado e muito respeito pelo

palhaço. Tanto que não me atrevia a dizer que era palhaço, mas podia ser

chamado de malabarista com tranqüilidade. Nesse momento tive contato

também com o documentário do Doutores da Alegria18, que me emocionou e

mostrou excelentes profissionais da arte da palhaçaria.

Encontro de Malabares de Santo André – novembro de 2006

O palhaço me cativava, e aos poucos, em São Bernardo, na Oficina de

Teatro III19 tive minha primeira experiência com o nariz vermelho, numa cena

que apresentamos para os colegas de curso. Aproveitei minha companheira de

cena, uma menina que estudava o palhaço em outros cursos para a minha

primeira tentativa.

Os malabares seguiram e tive a chance de fazer apresentações numa

escola da prefeitura, como um show de malabarismo. Depois das duas

apresentações as crianças me chamavam de palhaço. Gostava daquilo com

certo receio, mas gostava. Não entendia se eu era um palhaço muito bom para

ser malabarista ou um malabarista tão ruim que chegava a ser palhaço.

17

Encontro que acontecia semanalmente na cidade, inspirado em tantos outros que acontecem pelo país.

Com mais um amigo tivemos a iniciativa de marcar um dia e divulgá-lo na internet. Conseguimos assim

que artistas da região e até de outros países participassem desse intercâmbio informal de troca de

conhecimentos. 18

O documentário "Doutores da Alegria - o filme", com direção e roteiro de Mara Mourão, lançado em

setembro de 2005, desde então, ganhou prêmios notáveis . "Doutores da Alegria - o filme" esteve na lista

de filmes brasileiros candidatos a disputar a vaga da categoria Filme Estrangeiro ao Oscar 2007 – fonte:

www.doutoresdaalegria.org.br 19

Oficina oferecida pela Prefeitura de São Bernardo do Campo, ministrada de Profª Ms. Laura Loucce.

Nesse curso, com duração de um ano, tivemos as disciplinas de História do Teatro, Expressão Corporal e

Expressão Sonora.

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Meu interesse pela comicidade foi aumentando e, com isso, minha

busca por referências também. Com o passar do tempo pude assistir a outros

espetáculos e perceber que desde o John Gilkey, até muitas coisas que eu já

tinha feito, tinham algumas excelentes contribuições da arte da palhaçaria.

Mesmo que seus números apresentem uma habilidade, essa é sempre um

pouco distorcida. O virtuosismo de um malabarista é visto de outra forma por

um palhaço. Ali, começava a notar que causava o riso sem que houvesse a

intenção.

O malabarista e o palhaço começaram a se encontrar, até o dia que tive

a chance de fazer alguns números de malabares e algumas esquetes clássicas

de palhaço. Dessa vez tinha me encontrado. Estava à vontade e podia ir além

do virtuosismo do malabarismo. Podia interagir com as pessoas e receber a

resposta do público de braços abertos. Confesso que, do alto da minha

prepotência até pensei: "Agora ficou bacana, faço os números de palhaço,

porque se eu deixar as bolinhas de malabares caírem não tem problema." Ledo

engano, coitado. A vida ia me mostrar que não era simples assim.

3.2 Plantão Sorriso

Depois de mudar para Londrina com a idéia inicial de cursar Artes

Cênicas na UEL. No início do segundo ano da faculdade, continuando minha

pesquisa, tive o imenso prazer de ser convidado para trabalhar no Plantão

Sorriso20. Era uma oportunidade para desenvolver o palhaço ali, direto com o

público. O Plantão é um grupo que eu tinha visto antes mesmo de vir a

Londrina, pelo site, e pensei que um dia poderia trabalhar com eles. Surge

então a oportunidade de trabalhar nesse projeto que desenvolve um trabalho

similar ao que havia me emocionado há alguns anos atrás, quando tive o

primeiro contato com o documentário do Doutores da Alegria. O período que

20 O Plantão Sorriso é uma organização cultural formada por atores especializados na arte do palhaço e

treinados para atuar em hospitais. Todas as semanas, os atores do Plantão Sorriso visitam seis hospitais

em Londrina e um em Cambé, proporcionando momentos de descontração, risos e brincadeiras para as

crianças internadas, seus pais e toda equipe de saúde.

Experiências semelhantes realizadas nos Estados Unidos (Clown Care Unit), França (Le Rire Mèdicins),

Alemanha (Die Klown Doktoren) e São Paulo (Doutores da Alegria), comprovam que a parceria entre

arte e ciência é um remédio importante no tratamento da criança hospitalizada.

Criado em Londrina em 1996, numa iniciativa pioneira no sul do país, nosso trabalho já beneficiou mais

de 200 mil pessoas. Fonte: www.plantaosorriso.org.br

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passei no Plantão trouxe muito conhecimento, inúmeras experiências e

histórias para contar.

Todos os integrantes em evento especial para a semana da criança

Hospital Universitário – Outubro de 200921

No entanto, a qualidade do meu trabalho precisava ser aperfeiçada.

Precisava estudar, mas o tempo era pouco. Já estava no grupo, percebia que

era uma evolução necessária que precisava ser forjada. O palhaço estava a

prova todo o dia, dentro de um grupo profissional, numa situação hospitalar,

que é mais delicada que em uma apresentação comum. O caminho tinha que

ser conquistado com vontade. Provavelmente toda essa história seria contada

de outra forma se eu não tivesse trabalhado com esse grupo. A partir dali

começava a ter mais contato com pessoas que estudavam a arte do palhaço

em outros locais da cidade.

Em cada final de ano, para celebrar as atividades do ano que passou o

Plantão faz o show musical “Balanço, mas não cai”. O balanço, foi o momento

de perceber minha evolução nesse ano de pesquisa pessoal e procura por um

aperfeiçoamento no trabalho. Quando via o vídeo do primeiro show, em 2009,

percebia a tensão que carregava, e que contagiava o público. Uma tensão no

mal sentido. Como diria Avner 22: “A tensão é sua inimiga. Ela produz

dormência emocional, mental e física.”

21

É necessário citar todos os Doutores Palhaços que me acompanharam e tanto contribuíram para essa

caminhada: Dr. Malagueta (Andrea Pimenta) Dr. Pepito Forte e Bonito (Pedro Rodrigues) Dr. Lambreta

(Gerson Barnardes) Dr. Alpha (Simone Andrade) Dr. Jaquinha (Jaqueline Cavazzana) Dr. Tulipa San

(Emilia Miyazaki) Dr. Frida (Aneliza Paiva). 22

Avner Eisenberg é um palhaço norte-americano. Estudou com Jacques Lecoq e Carlo Mazzone.

Atualmente trabalha em um espetáculo solo chamado “Exceptions to Gravity” Para saber mais:

http://www.avnertheeccentric.com

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Em 2010 pude perceber que estava mais tranquilo. Conseguia brincar

com as possibilidades. Tinha mais coragem de ousar. Ali tinha descoberto que

o erro era um prato cheio para o meu trabalho. Logo, tudo era bom. É um olhar

de palhaço para a situação. Percebia o caminho que percorri durante aquele

ano. Notei que estava mais integro durante todo o show. O estado que me

acompanhava ajudava para que pudesse brincar com tudo o que acontecesse.

O hospital e minha pesquisa foram aumentando minha capacidade de

jogar com imprevistos e com estímulos do público. Curtia o momento no

sentido de vivê-lo e ter a capacidade de mudar seu rumo de acordo com os

acontecimentos. Mostra, nesse caso, que o jogo com o público acontece a

partir da prática. Era uma presença baseada em uma lógica de conversa, que

só acontece quando duas pessoas estão dispostas a falar e a ouvir. No caso,

aprendia a esperar a resposta para que eu continuasse a conversa. Esse

momento de suspensão quando nem o palhaço e nem o público sabem o que

vai acontecer mantém a tensão real, apenas por esse fato, antes de qualquer

coisa que ocorra em cena.

Dr . Pepito Forte e Bonito e Dr Zé Froxinho durante visita no Hospital Universitário Novembro de 2010 – Foto: Isabela Figueiredo

Minhas experiências dos hospitais somavam-se agora com minhas

buscas pelo aprimoramento do trabalho do palhaço, por uma pesquisa pessoal.

Durante o mesmo período tive a oportunidade de continuar essa pesquisa que

dialogava com a Universidade. Alguns meses depois de ser convidado para o

Plantão tive a chance de passar pelo processo de uma cena solo de palhaço,

que me trouxe novas e maravilhosas possibilidades sobre o meu trabalho.

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3.3 Solo e a busca por outras possibilidades

Nesse momento tive a oportunidade de estudar o palhaço solo em cena

na Universidade, na disciplina de Interpretação Teatral II. Um momento

desafiador. Organizar a cena a partir do treinamento de ator que vínhamos

desenvolvendo na disciplina e conseguir dialogar com a comicidade.

A cena foi um fiasco, nada funcionava. Eu não sabia ao certo o que

estava fazendo e nada dava certo, nem errado. Fiquei arrasado, mas me

sobrava uma esperança misturada com coragem. Sabia que era necessário

arriscar dessa forma.

Nesse dia recebi a orientação da Profª Mª. Thaís D´Abronzo, que

ministra a disciplina, de procurar oficinas de palhaço, se fosse uma linguagem

na qual eu quisesse me aprofundar. Percebia que era aquilo de fato e que

seguiria esse conselho de procurar outras referências, era o que tinha me

faltado durante esse processo. Como se houvesse escolha. Já era aquilo, e

naquele dia percebi que com o palhaço não tinha meio termo. É fracasso ou

triunfo.

Decidi que dedicaria minhas férias a isso. Viajei para Campinas e fiz

uma oficina com Andrea Macera, do Barracão Teatro. Em Campinas recebi um

conselho de uma amiga para participar de outra oficina, que aconteceria

durante o carnaval, dali uma semana. Voltei para Londrina e depois entrei no

ônibus para uma viagem que mudaria o rumo disso tudo. Rumo ao Solar

da Mímica 23 , para o retiro "Onde está o clown?"

Os sete dias que passei lá dariam para escrever muitas outras reflexões.

Provavelmente, algumas, eu nem consegui entender ainda. O fato é que fui

desmoronado naquele lugar. Toda a prepotência que havia criado. Todo o

orgulho que carregava por ter conseguido algumas conquistas em algumas

tentativas nessa nova carreira, tudo foi jogado por terra e enterrados. Lá pude

perceber o motivo de eu estar naquela busca. A frustração do solo não

chegava nem perto daquela sensação. No solo restava um resquício de

23

O Solar da Mímica & Cia – Centro de Pesquisa Teatral e Afins, criado por Alberto Gaus e Vanderli

Santos. É a primeira escola de mímica do Brasil, um espaço alternativo que há quinze anos recebe grupos

de teatro, atores e profissionais de todas as áreas, interessados em descobrir um novo estilo de

comunicação e arte. Fonte: www.solardamimica.com.br

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coragem, de um ego que se vangloriava pela atitude que eu havia tomado, mas

no Solar não me restava nada. Muitas lições sobre a arte do palhaço e da vida.

Alberto Gaus, Vanderli Santos e aquelas pessoas que passaram uma

das semanas mais turbulentas dessa minha busca, participaram desse novo

passo que eu estava disposto a dar. Eu era o que sempre entendia os

exercícios, que conseguia fazer, mas não dessa vez. Nada funcionava, mas

agora era pior ainda. Eu era desmascarado na frente de todos e não havia

pudores para falar das máscaras que eu estava usando. Foi muito pior do que

eu pensava e muito melhor do que podia ser.

A viagem e estada no Solar me mostraram que a iniciativa para essa

caminhada tinha que vir a partir das minhas atitudes. Como havia aconselhado

a Thais, se eu quisesse me aprofundar era necessário arriscar mais. Depois do

retiro voltei com a coragem necessária para fazer as saídas de rua.

3.4 Saídas de Rua

Depois da experiência no Solar voltei para Londrina com outras

perspectivas e outra coragem. Decidi que faria as saídas de rua, que tanto

ouvia falar nos livros e em palestras sobre o palhaço.

A saída de rua é basicamente um momento que o palhaço sai para

interagir com o público da rua. Poder jogar com os acontecimentos que o

cercam colocando a lógica do palhaço. É uma prática que eu aprecio muito e

com certeza fez muita diferença nesse processo artístico. Já que o palhaço dá-

se nesse encontro com o público, as saídas proporcionam inúmeros momentos

para esses encontros.

Coloquei a meta de que faria saídas todos os domingos, na feira livre.

Fiz isso por inúmeros finais de semana. Relatava e refletia sobre os

acontecimentos durante a semana e aos domingos estava lá, na feira livre,

novamente.

Comecei a extrapolar os lugares. Ir em outras feiras, outros lugares. Até

que numa dessas saídas, no calçadão de Londrina, tivemos o imenso prazer

de ganhar uma roda de presente. Eu e mais dois amigos tínhamos combinado

de fazermos uma saída juntos: Vladimir, o Cigano (Fabio Pimenta) e Ritalino

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(Thiago Marques)24. Depois de algum tempo na rua um grupo de fotógrafos que

estava naquele momento no calçadão se aproximou. Eles já eram por volta de

cinco pessoas. Depois foram parando um ou outro. Eu olhei aquilo e acendeu a

idéia de abrir a roda ali, mas abrir uma roda para fazer o que?! Não tínhamos

nada combinado, ensaiado, mas acredito que se as oportunidades aparecem é

porque estamos preparados, no mínimo, para o seu fracasso.

Há poucos dias tínhamos visto o espetáculo “Cuidado! Un payaso malo

puede arruinar tu vida” do palhaço argentino Chacovachi. Também tínhamos

acompanhado sua palestra sobre o palhaço de rua. Inspirados, nesse

momento, abrimos a roda e fizemos números improvisados. Conversava com

as pessoas de perto, olho no olho. Foi quando vi que algumas paravam

distantes, receosas de se aproximarem da roda verdadeiramente. Inspirei um

pouco mais de coragem, enchi o peito e mandei “Não entendo essa mania de

não ver as coisas direito. Já está parado aí mesmo, rapaz. Chega mais perto

que pelo menos consegue ver tudo. Ninguém tem nada de muito importante

pra fazer de domingo mesmo.” E a roda vinha junto. Sorriam. Senti-me vivo e

nem tinha como não estar ali de corpo todo. Num momento eu virei às costas

para pegar um objeto na mala e pensei “É isso, me sinto aqui, é isso que eu

quero fazer.”

Fizemos o número e puxei a finalização para a passada do chapéu. Era

um momento muito importante para mim. Queria viver a experiência de passar

o chapéu e as pessoas terem a consciência que estão pagando para artistas

que se dedicam a esse trabalho. Naquele dia voltamos vibrando para casa. Foi

uma experiência muito valiosa.

As saídas foram seguindo. Gostava de não programar o que ia fazer.

Depois desse dia da roda acidental algumas pessoas vieram pedir que

fizéssemos a roda novamente e eu preferia sair sem precisar marcar esse

compromisso. Queria mesmo era poder testar, se quisesse fazer uma roda ou

se quisesse me dedicar a qualquer outra bobagem

As saídas me davam repertório e percepção para esse jogo com o

público. No mínimo, eu conseguia perceber se agradava ou desagradava

alguém durante minhas manifestações. As saídas eram sempre proveitosas, já

24

Dois amigos de vida e universidade que dividem a ânsia por estudar as possibilidades do palhaço.

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que comecei a sair de casa com a idéia de que qualquer aprendizado que

acontecesse durante aquele tempo de saída seria válido. Desse jeito nenhuma

saída era desnecessária ou não deveria ter acontecido. O que é muito diferente

de tentativas fracassadas, não ignorava quando essas aconteciam. Várias

tentativas foram fracassadas, chegava em casa e repensava durante a semana

toda o que poderia ter acontecido de errado. No domingo me vestia e ia para a

batalha novamente.

As saídas seguiram e tive a oportunidade de fazer a oficina “O sentido

cômico do corpo”25 com o Ricardo Pucetti. Alguns exercícios do Solar e

aprendizados me auxiliavam. O exercício da escolha do figurino, os momentos

de afronta com o grupo e principalmente a generosidade quando estava

assistindo os colegas. Percebia que o sentimento de preocupação, enquanto

os outros conseguiam me prejudicava. Passei a exercitar a felicidade pelo outro

conseguir realizar o exercício, ao invés da inveja de eu não ter conseguido que

sentia antes.

Até que no último dia, depois das nossas saídas de rua, descobri um

jogo, com o casaco que havia escolhido como figurino: me apoiava no poste e

ele abria. Durante as saídas tive a oportunidade de propor esse jogo com as

pessoas na rua, notava que a recepção era positiva. Algo acontecia ali. Depois

das saídas, fomos para dentro de sala, fazer um exercício que consistia em

correr e interagir com o maior número de objetos no menor tempo possível. No

final da corrida me encontrei com um mancebo, uma bolsa e o casaco que

vestia.

Quando apoiava no mancebo o casaco abria, ia fechar o casaco e a

bolsa caia do mancebo, recuperava a bolsa e quando via o casaco estava

aberto novamente, fechava o casaco e o jogo seguia nessa repetição. O

Ricardo me orientava a continuar o jogo: “Caiu a bolsa, o casaco abriu de novo,

público...” Foi quando resolvi tirar o casaco e joguei ele em cima do mancebo.

Na hora senti meu peito explodir e as pessoas vieram junto numa gargalhada

com um espanto no meio e uma salva de palmas.

Nessa oficina consegui enxergar muitos momentos de mesquinhez e de

um ego que me prejudicaram até aquele momento. Fiquei muito feliz quando

25

Oficina realizada na Divisão de Artes Cênicas da Casa de Cultura da Universidade Estadual de Londrina em 2010 – Londrina.

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percebi que a caminhada e a busca pelos conhecimentos tinham culminado em

resultados positivos para o meu processo. Resolvi partir desse pequeno

momento para iniciar os estudos para esse trabalho prático.

Porém, antes do ano acabar, recebi um convite tentador que também me

daria muitas experiências positivas e influenciaria definitivamente minha

escolha da rua como espaço para as apresentações e perceber a riqueza dos

números interativos no trabalho do palhaço. Era a hora de participar do 1º

Festival do Nariz Vermelho de Londrina.

3.5 Espetáculo de Números – 1º Festival do Nariz Vermelho

Havia recebido a proposta de montarmos um espetáculo para apresentar

no festival que aconteceria no final do ano. Miguel Matoso26 me fez o convite

que ampliaria minhas experiências sobre o apresentar na rua e me mostraria

ótimas possibilidades de trabalho.

Como tínhamos pouco tempo e algumas intimidades musicais e dos

malabares sugeri que fizéssemos um espetáculo de números, com grande

interação com o público e com música tocada ao vivo. Os malabares entrariam

como parte integrante do espetáculo. A idéia era pegarmos a estrutura

proposta pelo Chacovachi, durante sua oficina “Manual e Guia do Palhaço de

Rua” que tinha em sua base os números e era feito para ter uma passada de

chapéu proveitosa.

Apresentei a idéia para o Miguel, sugeri que fizéssemos esse espetáculo

com essas habilidades que tínhamos e procurando pretextos para os números.

Combinamos uma coisa: apresentaríamos em qualquer lugar que nos

aparecesse. Se não tivéssemos que pagar para apresentar, faríamos. Apesar

de não imaginar que isso aconteceria conseguimos apresentações com cachê

fechado, antes mesmo do festival.

As apresentações anteriores foram de enorme importância. Testávamos

os números com a resposta do público. Depois nos encontrávamos para decidir

o que mudaríamos e o que seria mantido. Por fazermos na rua tínhamos como

26

Miguel Matoso : palhaço e músico londrinense que também atua na companhia “Teatro de Garagem”.

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base a resposta do público, mas também tínhamos nossas convicções do que

funcionava e o que não.

A roda é um pouco traiçoeira, nesse sentido. Não é só porque ninguém

parou para te ver que o que você está fazendo tem que ser descartado, por

outro lado, não significa que quando muita gente para pra te ver, você está

fazendo uma apresentação de qualidade.

Primeira apresentação Zé Froxinho e Pouca Sombra – Londrina - agosto de 2010 Foto: Léo Okuyama

O que achei de grande valia foi que eu sugeri um número com o prato de

equilíbrio. Esse era o pior momento, sempre. Comecei a quebrar a cabeça para

melhorar ele e fomos deixando os outros. Por fim, o número do pratinho, que

tanto desacreditávamos, teve uma resposta muito mais positiva do que o

número final, que não demos tanta atenção assim porque achávamos que ele

tinha grande potencial. Vinha aí mais uma lição do palhaço, de que a grande

importância é em “como” você realiza alguma coisa e não “o que” você realiza.

Chegamos então para apresentar no dia que teria dado inicio a essa

história: O Festival do Nariz Vermelho27. Afinando todos os números, a

passada do chapéu ainda me incomodava. Não conseguia dormir na noite

anterior. Pensei em contextualizar a passada de chapéu. Colocar as pessoas

dentro do jogo, comigo. De criar alguma situação, mas não sabia como. Tive

uma idéia, anotei no meu caderno e levei para o Miguel no dia da

apresentação. Pedi permissão para fazer e decidimos arriscar juntos.

Fizemos uma espécie de enquete, para saber a opinião das pessoas

sobre a apresentação. As que gostaram e as que não, pedia para que

27

Realizado nas ruas de Londrina em dezembro de 2010

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levantassem o braço. Foi aí que falamos que daríamos a oportunidade das

pessoas que gostaram pagar por uma coisa que elas já gostaram, o que seria

bem justo. Entraram no jogo, passamos o chapéu, nos divertimos.

Agradecemos.

Esse episódio serviu como excelente experiência para esse tipo

de espetáculo. De levar esse momento de teste também para as ruas e ir, a

cada apresentação mudando o que precisava dentro do espetáculo. Assim

nunca pensávamos que estava tudo fechado. Tínhamos a liberdade de jogar

com o roteiro a partir da resposta do público. Penso que isso é de extrema

importância. Essa conversa com a rua, para que assim haja essa comunicação

até o momento que não se sabe mais quem pergunta e quem responde.

Apresentação Festival do Nariz Vermelho

3.6 A cena com um cabide, alguns números e as experimentações

na rua

Com os acontecimentos anteriores estava decidido. Iria me dedicar a

montar um espetáculo de palhaço solo, de rua. Como já tinha passado pela

experiência de fazer um espetáculo com números em que a fala era a principal

via de comunicação, resolvi passar para outra possibilidade do trabalho:

trabalhar uma cena, através da lógica do palhaço, só que sem falas, à

princípio.

Recebemos a proposta, da Profª Mª Adriane Gomes para fazermos uma

cena solo para apresentarmos uns para os outros no grupo de estudos sobre o

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palhaço. Lembrei do momento com o mancebo, da oficina do Ricardo e resolvi

trabalhar a partir daquele momento.

Apresentamos algumas vezes na rua, percebi que ali morava o primeiro

momento para o trabalho prático que se une a etsa pesquisa. Precisa de uma

premissa para começar e viajar por qualquer possibilidade que surgisse e foi o

que fiz.

Cheguei e encarei a sala, sozinho. O que eu mais queria, mas me deu certo receio. Lembrei do meu processo do solo, que foi um pouco conturbado e mal-sucedido. Olhei pra sala e disse pra ela e pra mim: Vamos ver o que esses dois anos fizeram de diferença na gente. (Diário Pessoal - 30/ 03/ 2011 - Londrina)

Passei a ensaiar a cena com freqüência, procurando criar mais

momentos e novas possibilidades a partir daquele pretexto do cabide. Aliado a

prática, continuava a pesquisar e buscar novas referências em outros palhaços.

Nesse ponto, a internet, tem proporcionado uma facilidade muito maior para o

acesso a certos materiais.

As referências me auxiliavam para algumas resoluções, idéias de cenas

e também de como o trabalho poderia seguir em frente. Desde o princípio,

minha idéia era um espetáculo que intercalasse cenas e números fechados.

Uma idéia que não sabia direito no que daria. Porém, me faltava a cena, já que

os números eu já havia testado e elaborado desde o ano passado.

Comecei a encarar os ensaios como as saídas de rua: qualquer

aprendizado era interessante! Dessa forma, nenhum ensaio era ruim ou

desnecessário, tinham sua função que precisava ser encontrada. Comecei a ter

calma e perceber que o trabalho teria tempo e possibilidade de maturação.

Deixei de querer fazer o espetáculo da minha vida, mas comecei a caminhar

em direção ao espetáculo para minha vida. A idéia é abrir a possibilidade de

trabalho para os anos que seguem. Jamais encerrar essa pesquisa aqui.

A partir disso começou a surgir a figura de um militar. Influenciado pelo

figurino também, que veio junto com a cena do cabide, continuei caminhando

por essa via. O fato é que comecei a relacionar, na minha história, coisas que

tinham tido um forte impacto, em sua época. Quando lembrei da minha

experiência com o Tiro de Guerra de São Bernardo. Aonde não cheguei a

servir, mas passei por todas as fases da seleção. Fui para lá diversas vezes.

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Colocar uma lógica para aquilo tudo não era meu intuito. Queria a

bendita desculpa para estar em cena, a premissa. Pensei que poderia ser um

Soldado que não tem mais utilidade para o exército, um soldado de um país

sem guerra. A semelhança disso com o próprio nascimento do circo, com a

minha história, fez com que eu fosse alimentando esses estímulos.

Trabalhando sobre eles durante meus ensaios, até quando resolvi apresentar a

cena que estava trabalhando, na rua.

Era a primeira saída que fazia sozinho. Com o propósito de fazer uma

roda e conseguir passar o chapéu no final. Quando fui indagado por um senhor

que tirava fotos de mim, sobre o nome do espetáculo, respondi: “El General”.

Talvez por estar pensando na possibilidade desse nome há um tempo. Talvez

por estar com a lembrança fresca do filme do Buster Keaton28.

Cheguei no lugar, arrumei as coisas que tinha levado. A idéia era

chamar a roda com uma música tocada no sax e depois fazer os números que

havia pensado. Conforme a roda foi chegando iniciei os números. Depois das

músicas, depois de já ter jogado e interagido com as pessoas. Fiz um falso

começo, pedindo palmas e fui para os números.

Aquela roda teve acontecimentos ótimos. O fato de ter ido sozinho, ter

começado e terminado, passado o chapéu. Fez com que eu voltasse para casa

entusiasmado para novas tentativas. Decidi escrever os pontos que haviam

chamado minha atenção para continuar trabalhando. No final do relatório fazia

uma lista de coisas que podia melhorar para a próxima semana.

Esse passou a ser meu modo de trabalho. Durante a semana ensaiava e

improvisava a cena dentro de sala e nos finais de semana testava os números

e as possibilidades da roda nas saídas.

Os meses foram seguindo e os caminhos iam se mostrando. Quando era

possível ia para a rua aos sábados e testava novas idéias, novas cenas

ensaiadas. No entanto ainda eram momentos de apresentação de um material

relativamente pronto. Até o dia que estava com toda a vontade do mundo de

ensaiar e não tinham salas disponíveis nos meus horários na UEL. Peguei o

mancebo e minhas coisas, decidi ensaiar no calçadão. No mesmo lugar que ia

aos sábados.

28

Buster Keaton (1895 – 1966) foi ator e diretor de comédias mudas. Era considerado, na

época, o grande rival de Charles Chaplin.

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Esse dia foi transformador. Ensaiava com contato direto com o público, o

conceito de saída e roda se misturava de uma forma que eu nunca havia

experimentado. Recebia a resposta direta do público. Ia me alimentando e

continuava o jogo. Até que cheguei ao final, depois de ter juntado certo público,

bem menor se comparado aos sábados, mas totalmente atento e insistente.

Seguiram-se dias que decidia e marcava para ensaiar no calçadão,

mesmo com salas a disposição. O contato direto com o público era essencial

para o trabalho que desenvolvo e esse lugar público me dava essa

possibilidade. Levava tudo como uma apresentação, mas tinha para mim que

aquilo era um ensaio, uma experimentação. Então era um trato secreto com o

público e comigo mesmo que não passaria o chapéu nessas ocasiões. Talvez o

mais curioso desses dias é que as pessoas queriam me pagar ao final do

ensaio-apresentação. A iniciativa de passar o chapéu, vinha do público.

No início do ano separava meus relatórios e até as possibilidades de

estudos em dois momentos: os ensaios com o mancebo e as rodas. Depois

desse dia, chegava em casa e já não sabia em qual relatório deveria escrever.

Percebia que a acontecia naturalmente o que eu desejava, que os trabalhos se

tornassem um só.

Com um pensamento que já me acompanhava, comecei a realizar os

planos para conseguir juntar mais pessoas durante uma roda. Assim, teria mais

público, mais jogo e mais dinheiro no chapéu. Decidi investir num figurino e

também em uma caixa de som autônoma, que não dependesse de um ponto

de luz na praça para ela funcionar. Vendo vídeos do Chacovachi, Nino

Costrini29 e outros palhaços que se apresentavam na rua, percebia que essa

caixa era usada por eles, dando mais autonomia para o trabalho.

Quando fui para São Paulo trouxe a caixa, que coincidiu de ser

comprada nos mesmos dias que o figurino do General estava pronto. Decidi

que faria um grande apanhado do material que havia desenvolvido dentro de

sala, colocaria uma música e faria uma cena mais puxada para um estilo de

cabaré. Pesquisei alguns números nesse estilo e também fui revisitar alguns

que já conhecia.

29

Palhaço Argentino com um repertório de espetáculos de rua adaptáveis para a caixa preta ou espaços alternativos. Foi uma grande influência para esse trabalho.

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A música foi um elemento decisivo para a composição da cena e para o

apanhado das ações. Percebi que era mais um processo de troca de

informações do que simplesmente colocar a música depois que a cena estava

pronta. A música era parte integrante e também uma força motriz para novas

idéias.

Fui para a rua com essa estrutura. Decidido a ter outro tipo de relação

com a apresentação. Não falaria que teria uma apresentação. Arrumaria

minhas coisas, colocaria a música e começaria a cena. Nesse dia então

descobri essa nova possibilidade de apresentação na rua. Terminava a cena e

passava o chapéu ao final de cada uma delas.

Claro que extrapolava a cena, saia da roda, ia me relacionar e jogar com

as pessoas. A cena era um pretexto para o início disso tudo. Mais uma espécie

de material que estava testando e trabalhando.

O desapego que começou a me acompanhar durante os estudos

teóricos, agora também fazia parte da prática. Assim como escrever textos e ler

livros que não entrariam diretamente no trabalho, fazer cenas,

experimentações e números que não estariam na apresentação prática final do

trabalho foram de extrema importância para esse estudo.

Chegou o dia que mostraria essa cena para o grupo de estudos de

comicidade e para a Profª Adriane. Na semana anterior havia pesquisado

algumas outras músicas e descobri uma marcha militar, que seria uma boa

idéia para a entrada da cena. Chegada a hora de mostrar pensei em entrar

regendo uma fanfarra que não existisse e depois faria a cena. A entrada

encantou as pessoas, via uma abertura e fiquei contente com a descoberta.

Quando fui para a cena deu tudo errado, no mal sentido da coisa. Os

cabides não paravam no lugar, eu me perdi no roteiro e a cena também se

perdeu. Entrei no fracasso da situação e fui até o final. Sabia que esses

momentos também tinham muito o que me ensinar. Ao final, quando paramos

para conversar sobre o que foi mostrado fui aconselhado a tirar os cabides que

estavam mais me atrapalhavam do que me ajudavam. A entrada, por outro

lado, foi elogiada por todos.

O desapego estava, mais uma vez, presente. Tirei os cabides que

estavam me acompanhando desde o começo desse processo. Uma dúvida

pairava na minha cabeça. Como seguiria tirando o objeto que eu mais interagia

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durante a cena? Tirei. Depois percebi que o cabide ou todos os outros objetos

e artifícios para estar em cena eram menos importantes do que a minha

presença em cena. Tiraria os objetos mais importantes, para exaltar a

importância da minha presença. Isso era o que me fazia seguir em frente, estar

acompanhado apenas por mim mesmo, pelo palhaço.

Claro que entrei em crise. Como em tantos outros momentos durante

esse processo. Uma crise que precisaria resolver sozinho. Buscando

referências, novas possibilidades e trabalhando. Assistir outros palhaços e

fazer, com certeza, são as duas maneiras do trabalho ter sua evolução. Até

que resolvi pesquisar um palhaço que havia me cativado por um número com

uma fita adesiva. Descobri outros números e espetáculos dele que estavam no

youtube. E por uma conspiração do universo, descobri que o palhaço espanhol,

Leandre Ribera30, faria uma apresentação no Brasil no próximo mês. Comprei

as passagens para São Paulo e fui assistir suas apresentações.

Como já tinha visto nos vídeos, Leandre tinha outro tempo.

Considerando que seus espetáculos são mais apresentados em países frios da

Europa, é natural termos outro tipo de humor. Sua calma em cena era

espantosa para mim. Dava tempo das coisas acontecerem e aproveitava o que

sabia que eram bons estímulos. Apesar de um tempo que enfatiza certa

inocência, fez coisas de grande ousadia, como quando pegou uma lata de

refrigerante da mão de uma mulher, tomou um pouco e deu para outra pessoa,

causando riso na platéia ou quando pegou uma mochila de uma menina

durante uma cena de um assalto e abriu na frente de todos, fazendo piadas

com os objetos que encontrava dentro delas.

Leandre me mostrava outra possibilidade, dentro da mesma idéia de

interação com o publico que via no espetáculo do Chacovachi. Ele não falava

nada, mas seu corpo dizia muita coisa. Suas ações eram menores, não havia

aquele discurso durante os números, mas sua poética era exaltada e percebia

que a coragem necessária para executar essas provocações com o público

eram de grande potência. Essas apresentações me abriram outra possibilidade

de comédia e interação com o público. A improvisação que era muito presente

no espetáculo do espanhol me deu novas possibilidades de pesquisa com o

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Palhaço espanhol se formou basicamente na rua, se apresentando em diversos festivais desta linguagem

por mais de 15 anos, em diferentes países.

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público. Durante quase todo o espetáculo tinha alguém jogando com ele em

cena. Decidi então iniciar minha pesquisa nisso, as possibilidades de jogo e

construção de cena com voluntários da platéia.

Comecei a pensar em números mais abertos, que tivessem essa

possibilidade do jogo direto com um voluntário. Fui para a rua e testei dessa

maneira, várias possibilidades de jogos. Era algo que já havia testado no

Festival do Nariz Vermelho, mas agora era outra forma de jogar. Uma forma

mais sucinta, que exigia uma mímica. Porém não era uma mímica que entrava

no lugar da fala, era uma mímica econômica, que dava a possibilidade de uma

interpretação do público e ao mesmo tempo conseguia conduzir o espectador.

Essa fase do trabalho também foi de grande valor. Por não ter um

microfone ligado a caixa, ia para a rua com a idéia de testar tudo o que

conseguia fazer, dentro da dramaturgia de uma roda de palhaço na rua, sem

usar a fala para isso. No início percebia uma dificuldade, mas depois comecei a

notar que era possível fazer todo o espetáculo sem o uso da fala.

Em outubro fiz algumas apresentações com o roteiro que havia

determinado. Explorando o jogo com o público e algumas pequenas cenas

durante suas ligações. Durante as apresentações me deparei com um

problema que mudaria a visão total desse trabalho. Estar disposto a apresentar

um espetáculo onde a base é a participação do público é perigoso, já que

posso encontrar um público que não está disposto a jogar, como aconteceu em

uma apresentação. Fui para casa repensando tudo isso e comecei a

desenvolver cenas e números que não dependessem dessa participação direta

com o público.

3.7 El General – O Espetáculo Mais Incrível do Mundo

No meio de todas essas crises, de ter que juntar todo esse material de

pesquisa desses anos e montar uma demonstração prática, vieram duas

oficinas com palhaços que são grande influência no trabalho atual: Ricardo

Pucetti e o palhaço Tomate.

Durante a oficina, quando mostrei o figurino do General para o Ricardo

ele me abriu a mente dizendo que era um figurino bom, porém muito forte. Que

poderia ser usado em algum determinado número, mas seria complicado usá-lo

durante todo o espetáculo.

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Experimentamos outras possibilidades, que depois, vendo fotos,

percebia que parecia um menino. Toda a energia da figura me levava para

essa conclusão. Mostrei, durante a oficina, dois números que estava

desenvolvendo para a demonstração. Dessa vez, fiz tudo com esse novo

figurino, e isso trazia uma nova energia para as cenas. Recebi algumas dicas e

conselhos que encorpavam a idéia inicial desse projeto de pesquisa pessoal.

Fui para a casa pensando como poderia ser, essa montagem, a partir

dessa figura que se transformaria no General. Foi quando algumas idéias que

tinha no começo desse processo voltaram para se completar. A idéia de um

General falido, que lembrava os tempos de quando o circo moderno surge, que

chega na rua para fazer um show e ganhar dinheiro com isso. Como seu

espetáculo não tem grandes atrações, o General teria que ser grandioso o

suficiente para chamar público. Entrei no jogo do palhaço e pensei nesse maior

espetáculo do mundo, que não teria nada de grandioso.

Inspirado desde o ano passado pelo poema de Chico Pedrosa, O

Abilolado. Que conta a história de um guarda noturno que sai de sua cidade e

por achar que poderia pendurar diversos objetos em seu casaco, é confundido

com um militar de alta patente em outro lugar. Continuei amadurecendo e

caminhando com essa possibilidade. O poema, Das Vantagens De Ser Bobo,

de Clarice Lispector, também me dava mais argumentos para essa

dramaturgia. Toda a obra do Manuel de Barros, e claro, inúmeras outras

referências e bibliografias. Como já disse, esse foi um trabalho do desapego.

De ter mais material do que o necessário, para poder enxugar.

A dramaturgia do espetáculo foi feita a partir dessas experimentações e

organização do material. Foi além do que eu esperava e transformou-se.

Talvez pelo curso natural que esse tipo de processo permite.

Com a idéia desse novo figurino, e dessa nova dramaturgia interna, já

que o público não terá contato direto com esses textos, mas foram textos

essenciais para a pesquisa. Todo o espetáculo ganha um novo jogo. A idéia

desse General que chegará para fazer um número, talvez um ajudante que

encontra as roupas de seu falido General e decidi vesti-la, fazendo um grande

número com ela. O palhaço que chega para fazer um show e se depara com o

público, podendo variar entre apresentar cenas, viver determinadas situações,

jogar com o público e fazer números de grande habilidade.

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A demonstração prática desse trabalho é um apanhado de toda essa

pesquisa, que não tem como objetivo terminar assim que essas linhas acabem.

É mais uma etapa dessa caminhada, de um sapato maior que o pé. Para não

dar calo de tanto andar. A pesquisa do palhaço é para a vida. Uma pesquisa de

generosidade e desapego.

Agradeço a presença de todos, espero que o mundo seja outro assim

que sairmos por aquela porta. É com enorme o peito inflado de entusiasmo o

desejo de que nos encontremos mais vezes pelas ruas, praças, salas de teatro

e outros espaços, onde os sorrisos sejam possíveis e o contato humano exista.

Agora vou passar o chapéu. Faça a sua colaboração.

Até breve!

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Indo para Florianópolis, para o último festival de palhaço que participaria

antes de entregar esse trabalho escrito e fazer a apresentação pratica. Peguei

um moto taxi e o rapaz ficou abismado que iria para tão longe para fazer um

curso de palhaço, que vim para tão longe da minha família para fazer uma

faculdade com esse mesmo intuito de estudar arte. Caminhei sozinho até o

ônibus e comecei a refletir sobre isso, talvez fosse mesmo a hora de pesar tudo

o que aconteceu até aqui.

O momento de olhar para frente, mas também perceber o caminho que

percorri até agora. Admirado, percebo que ainda tem muito para caminhar. O

caminho vai se mostrando conforme vamos andando, como uma estrada:

existem os dias de nevoeiro, de sol, os momentos de parar para esticar as

pernas. Hoje, é o momento de olhar para trás e ver que percorri um caminho.

Sair de uma cidade, para estudar teatro na outra. Em uma universidade.

Em um curso que me traria o teatro, a princípio. Trouxe-me o palhaço de

presente. Londrina que me recebeu e me deu oportunidades que talvez não

tivesse em outros lugares, aqui descobri outro tempo. Descobri outras

possibilidades. Coragem, meu filho. Coragem!

Minha família que de longe me apoiava. A cada novo passo ousado, a

estrada florescia. Parecia que ela, a estrada, gostava era de ver a batalha.

Chorava, sorria, desistia, continuava. As orações, lá de casa, chegavam

sempre até aqui, mesmo quando o correio estava em greve. Quando ia visitá-

los, me sentia guerrilheiro. Indo além.

Acreditava mais, acredite. No caminho encontrava entusiastas

apaixonados pela sua arte, que já tinha se tornado um modo de vida. O teatro

me cativava, a rua me chamava. O contato com o Tablado de Arruar antes de

vir para Londrina foi essencial. Perceber a potência de mudança do mundo.

Poder responder para um menino de rua, cheirando à cola, que sua pergunta

estava certa: “O Teatro Municipal não é do município? Se eu faço parte do

município, porque não posso entrar lá?” A atriz, depois de ter se apresentado,

engoliu apertado a saliva para responder que ela estava ali para isso, em frente

ao Teatro Municipal de São Paulo, fazendo teatro, para ele, que não podia

entrar ali.

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Vim para cá em busca de um maturamento. Em busca do meu caminho

para fazer alguma diferença em mim, e assim refleti-lo. Cheguei com sede,

amigo. Sede de mais de dez horas de estrada. Pouco tempo aqui bastou para

que o universo conspirasse e colocasse o Rogério Costa na cadeira da frente,

daquela aula do primeiro ano que me deu a possibilidade de conhecer as

pessoas que trabalhavam com teatro na cidade. Queria desbravar essa

possibilidade, e assim foi.

O Centro Londrinense de Artes Circenses me deu uma carta branca,

apresentar um número durante o primeiro festival de teatro e circo que eu

poderia viver em Londrina. Fomos juntos, trabalhamos e apresentamos.

Continuamos caminhando juntos. As oportunidades se ligavam. Londrina me

deu o saxofone, me deu o samba. Me levou para cidades que eu nem sonhava

em conhecer, para trabalhar. Fazer o que estava apaixonado para fazer.

Assim cheguei até grupos que me identificava com sua opção dentro

dessa arte e também com o seu pensamento sobre ela. Até que chegou o

momento de depois de receber todas essas informações poder arriscá-las um

pouco mais. Apostar em algumas inquietações particulares, por isso teria que

seguir um pouco sozinho. Fortalecer, só.

Decidi que sairia dos trabalhos e daria tempo para esse momento

acontecer. Justamente no último ano da faculdade, onde precisaria apresentar

um trabalho de conclusão de curso, esse trabalho que você acabou de ler.

Poder arriscar, errar, acertar, errar de novo, aproveitar cada passo. Era

isso que queria, mirar mais alto. Brinco que se eu pudesse fazer uma lista das

realizações que seguiriam comigo depois de entrar na faculdade não seria tão

otimista. Consegui trabalhar com grupos que admirava antes mesmo de vir

para Londrina.

O General que surgiu, os números, as cenas, as idéias, os livros, filmes,

poemas, espetáculos, oficinas, me davam coordenadas para seguir. A rua e o

público dela foram fundamentais para essa pesquisa. As pessoas que paravam

e as que seguiam, todas elas foram essenciais para que tudo isso desse onde

deu. Para que chegasse aonde cheguei.

As considerações finais poderiam até se chamar conclusão, mas não

concluo nada. Um trabalho que aceita páginas em branco e mudanças de

última hora.

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A pesquisa do palhaço é para a vida toda. Talvez eu siga sozinho, mas

sempre acompanhado. Palhaço só existe com companhia. Companhia de

teatro, trupe de circo, companhia de companheiros. Sempre num rascunho.

Palhaço trata da imperfeição. O problema é entendê-la tão cedo. Os palhaços

velhos, são neles que devemos entender o tempo para essa arte se manifestar

plena.

Essa visão também me deu uma coragem a mais, a coragem de

arriscar. Já que o erro é iminente, a tentativa frustrada é parte atuante nessa

arte. Então tentar não pode ser pecado.

Agradeço pela oportunidade de poder iniciar essa pesquisa dentro da

universidade e fazer o que eu sempre sonhei, extrapolá-la para além desses

quatro anos, que foram transformadores.

Talvez por estar dentro desse ambiente perde-se a noção do país em

que vivemos e que ainda se morre de fome. No país que mudou o parâmetro

de avaliação para dizer que não temos tantos analfabetos assim. Nós,

privilegiados, temos a chance de estudar a arte da representação. Mais do que

isso, fazer opções dentro dessa área e escolher o que queríamos pesquisar

mais especificamente.

Escolhi o palhaço, ou fui escolhido por ele. Talvez as duas coisas juntas.

Talvez esse seja o espetáculo da minha vida, talvez descubra novas

possibilidades a partir dele. Tudo será válido. Se der certo nós comemoramos,

se der errado, rimos juntos. Estamos aqui para isso, compartilhar.

Parei de participar da corrida pelo ouro. Cada um tem a sua busca, o

palhaço veio buscar outras coisas, novos motivos para viver. Quem sabe, o

palhaço, tenha preparado um presente e assim o caminho siga para que eu

possa viver disso.

O Exército Contra Nada deve atacar. A utopia move minhas pernas,

move os sonhos, o mundo do circo. Ficar em pé no arame, andar em uma

bicicleta de uma roda só. Porque então não podemos mudar o mundo,

declarando a batalha com um exército de risadas? Vamos em frente, avante!

Sorrindo, só rindo, só.

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