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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTECENTRO DE CINCIAS SOCIAIS APLICADAS

    DEPARTAMENTO DE DIREITO PBLICOCURSO DE GRADUAO EM DIREITO

    Rafael Gomes de Queiroz Neto

    A APLICAO DA TEORIA DO DILOGO DAS FONTESCOMO FORMA DE AMPLIAO DA PROTEO JURDICA DOCONSUMIDOR

    Natal/RN2014

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    Rafael Gomes de Queiroz Neto

    A APLICAO DA TEORIA DO DILOGO DAS FONTES COMO FORMADE AMPLIAO DA PROTEO JURDICA DO CONSUMIDOR

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao cursode graduao em Direito da Universidade Federal do RioGrande do Norte, como requisito para obteno do graude bacharel em Direito.

    Orientador: Prof. MSc. Fabrcio Germano Alves

    Natal/RN2014

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    Rafael Gomes de Queiroz Neto

    A APLICAO DA TEORIA DO DILOGO DAS FONTES COMO FORMADE AMPLIAO DA PROTEO JURDICA DO CONSUMIDOR

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao curso -de graduao em Direito da Universidade Federal do RioGrande do Norte, como requisito para obteno do graude bacharel em Direito.

    Aprovado em: 22/08/2014

    BANCA EXAMINADORA:

    _______________________________________________Prof. MSc. Fabrcio Germano Alves - UFRN

    Presidente

    _______________________________________________Prof. Dr. Patrcia Borba Vilar Guimares - UFRN

    Examinadora

    ______________________________________________Prof. MSc. Samuel Max GabbayUFRN

    Examinador

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo primeiramente a Deus, por me mostrar que posso ser mais

    forte do que pensava ser.

    A esta Universidade e ao corpo docente do curso de Direito, por

    acreditar no nosso potencial, enquanto alunos, e nos ensinar a ser profissionais

    comprometidos com a sociedade e dispostos a transform-la.

    Ao meu pai Jos de Arimateia, minha me Sebastiana e meu irmo

    Francisco de Assis, pelo apoio e por tudo que sempre fizeram por mim; pela

    simplicidade, exemplo, amizade, e carinho, fundamentais na construo do

    meu carter. Sem o apoio e o amor incondicional de vocs eu jamais

    conseguiria concluir essa etapa. A vocs, todo o meu respeito e toda a minha

    gratido.

    Aos meus dois sobrinhos, Joo Pedro e Joo Gabriel, que so como

    filhos pra mim. A doura e a inocncia de vocs me fazem enxergar o mundo

    com muito mais entusiasmo!

    Aos meus colegas do curso, por me suportarem nos momentos difceis e

    me ajudarem durante toda a caminhada. com um orgulho imenso que eu

    compartilho essa vitria com vocs.

    A minha querida amiga Sandra Nogueira Alves Maciel, por despertar em

    mim o interesse pelo tema deste trabalho e pelo material emprestado durante

    sua elaborao.

    Aos demais amigos, que me aconselharam nos momentos de dvida e

    me acolheram nos dias de tormenta.

    Ao meu orientador, Fabrcio Germano Alves, por aceitar orientar este

    trabalho antes mesmo de me conhecer e pelo essencial suporte oferecidodurante o desenvolvimento da pesquisa.

    A todos que, direta ou indiretamente, contriburam para a minha

    formao, o meu agradecimento sincero!

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    Consumidores somos todos ns.

    (John Kennedy)

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    RESUMO

    O presente trabalho objetiva, valendo-se de uma pesquisa bibliogrfica na doutrinajurdica afeita ao tema (livros, artigos e revistas especializadas), bem como da anlise

    da jurisprudncia e da legislao em vigor; avaliar como a aplicao da teoria dodilogo das fontes pode contribuir para a coerncia do sistema jurdico e para aampliao da proteo do consumidor. Percebe-se que os complexos conflitosnormativos oriundos do pluralismo ps-moderno trouxeram grandes desafios para oaplicador do Direito que no podem ser superados satisfatoriamente atravs doscritrios clssicos de soluo de antinomias. Nesse contexto, a adoo da teoria dodilogo das fontes no Direito brasileiro representa uma mudana no comportamentodo jurista diante das antinomias jurdicas, pois afasta a necessidade de excluir umadas normas conflitantes do sistema e introduz a ideia de aplicao simultnea ecoerente das diversas fontes normativas do Direito. Enfatiza-se que atravs dosmltiplos dilogos realizveis entre o Cdigo de Defesa do Consumidor, o Cdigo Civile outros diplomas normativos possvel tornar a defesa do consumidor muito maisabrangente, pois qualquer disposio normativa do sistema jurdico ser aplicada comessa finalidade. Verificou-se, ainda, que a jurisprudncia ptria j adota o dilogo dasfontes como mtodo interpretativo e de resoluo de conflitos normativos,reconhecendo seus benefcios no somente no direito do consumidor, onde nasceu ese desenvolveu, mas nas diversas disciplinas jurdicas.

    Palavras-chave: Pluralismo. Conflito de normas. Dilogo das fontes. Proteo doconsumidor.

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    ABSTRACT

    The present work aims, availing oneself of a bibliographic search in the juridic doctrine

    used to the theme (books, articles and specialized magazines), add to that the analysisof jurisprudence and the legislation in force, evaluating how the apllication of thedialogue of the foutain's theory can contribute to the coherence of the judicial systemand to the amplification of the consumer protection. It perceives that the normativeconflicts complex arising of the post modern pluralism brought big challenges to theLaw applicator that can not be dominated satisfactorily through the classic rules of thesolution of antinomies. In this context, the adoption of the dialogue of the foutain'stheory in the Brazilian Law, legitimated by Private Law constitucionalisation and by therecognition of the surface effectiveness of the fundamental rights, it represents achange in the lawyer conduct in front of the judicial antinomies, because it removes thenecessity of excluding one of the rules conflictiing of the system and it introduces theidea of simultaneous application and coherence of the several normative foutains of theLaw. It emphasizes that through of the multiples possible dialogues between theDefense Consumer Code, the Civil Code and others normative diplomas it's possible tobecome the consumer's defense much more comprehensive, because any normativedisposition of the juridic system will be applied with this finality. It was examine, still,that the native coutry jurisprudence at once adopts the fontain's dialogue likeinterpretative method and the normative conflicts resolution, recognizing its benefitsnot only in the consumer law, where it rose and developed it, but in the several judicialdisciplines.

    Key-words:Pluralism. Conflict of rules. Fontain's dialogue. Consumer's Protection.

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    SUMRIO

    1 INTRODUO.................................................................................................................. 9

    2 O PROBLEMA DA CONFLITUOSIDADE NORMATIVA NA PS-

    MODERNIDADE.................................................................................................................... 12

    2.1 O PLURALISMO JURDICO....................................................................................... 14

    2.2 A INSUFICINCIA DOS MTODOS CLSSICOS DE SOLUO DE

    ANTINOMIAS.......................................................................................................................... 17

    3 A TEORIA DO DILOGO DAS FONTES COMO SOLUO DE

    CONFLITOS NORMATIVOS............................................................................................. 23

    4. A UTILIZAO DO DILOGO DAS FONTES NA APLICAO DA

    NORMATIZAO CONSUMERISTA............................................................................ 32

    4.1 DILOGO ENTRE O CDIGO CIVIL E O CDIGO DE DEFESA DO

    CONSUMIDOR....................................................................................................................... 34

    4.2 DILOGO ENTRE O CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E OS

    DIPLOMAS NORMATIVOS INTERNACIONAIS.......................................................... 38

    4.3 DILOGO ENTRE O CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E A

    LEGISLAO PROTETORA DOS HIPERVULNERVEIS..................................... 43

    5 INCORPORAO DA TEORIA DO DILOGO DAS FONTES PELA

    JURISPRUDNCIA PTRIA............................................................................................. 52

    6 CONSIDERAES FINAIS........................................................................................ 56

    REFERNCIAS...................................................................................................................... 58

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    1 INTRODUO

    Em um Direito que se mostra cada vez mais plural, tanto no que tange

    aos sujeitos nele envolvidos quanto quantidade de fontes legislativas, tornou-

    se imprescindvel que o jurista saiba proceder a uma interpretao coordenada

    das disposies normativas, a fim de tornar o sistema jurdico mais coerente e

    justo. Esse o maior desafio do intrprete ps-moderno: procurar uma perfeita

    harmonia do ordenamento jurdico, sempre objetivando preservar a unidade do

    Direito.

    Surge, pois, a teoria do dilogo das fontes, mostrando ser possvel a

    coexistncia de normas que aparentemente conflitam atravs da aplicao

    plural e simultnea das fontes normativas. Afasta-se a anacrnica ideia de

    monossoluo, segundo a qual apenas uma norma pode regular determinado

    caso concreto. Em vez de anular a aplicabilidade de uma norma, o dilogo das

    fontes prope a utilizao coordenada das diversas Leis e fontes do Direito.

    Essa exigncia de aplicao harmoniosa das Leis nasce da prpria

    Constituio Federal de 1988, que elegeu como um dos seus fundamentos a

    dignidade da pessoa humana (artigo 1, inciso III), valorizando-a como sujeito

    de direito e ampliando em favor dela o rol dos direitos fundamentais e os

    mecanismos para a sua efetivao. O olhar voltado para a pessoa humana e

    sua dignidade tambm pode ser verificado na proteo que dispensada aos

    hipossuficientes, j que a Constituio Federal dedicou especial ateno a

    quem precisa de maior tutela, como as crianas e os adolescentes (artigo 227),

    os deficientes (artigos 23, inciso II e 24, inciso XIV) e os idosos (artigo 230),

    tendo o legislador ordinrio, inclusive, criado microssistemas especficos com o

    escopo de melhor proteger alguns desses grupos.Nesse contexto, a defesa do consumidor, parte vulnervel da relao

    de consumo, tambm foi erigida categoria de direito fundamental (artigo 5,

    inciso XXXII). No entanto, em que pese estar-se despertando para um

    momento novo, em que a tutela do consumidor passa a ser um direito basilar

    de qualquer cidado brasileiro, ainda so enfrentados srios obstculos para a

    sua efetivao.

    Mesmo aps o cumprimento, pelo Congresso Nacional, da determinaoconstitucional inserta no artigo 48 do Ato das Disposies Constitucionais

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    Transitrias (ADCT), qual seja, a elaborao do Cdigo de Defesa do

    Consumidor - CDC (Lei Federal n 8.078/1990)1, ainda so inmeras as

    dificuldades para alcanar resultados satisfatrios na concretizao dos

    preceitos normativos constantes do Cdigo, notadamente diante da

    multiplicidade de diplomas legais em voga (pluralismo jurdico), que dificulta

    uma aplicao integrada e sistmica do Direito.

    Eis, portanto, o maior objetivo desse trabalho: discutir como a adoo

    do dilogo das fontes, teoria desenvolvida pelo alemo Erik Jayme e

    disseminada no Brasil por Cludia Lima Marques, pode contribuir para a

    coerncia do sistema jurdico e a ampliao da proteo jurdica do

    consumidor. Este trabalho possui tambm a finalidade de procurar maneiras

    prticas de superar a atual crise de credibilidade que afeta todas as reas do

    Direito, inclusive a consumerista.

    Partimos da necessidade de estudar maneiras viveis de dar efetividade

    aos artigos 5, inciso XXXII e 170, inciso V, da Constituio Federal, mediante

    o estudo de uma teoria que pode contribuir para alcanar esse objetivo, com o

    plusde trazer para o Direito a harmonia que tanto necessita nesses tempos de

    multiplicidade normativa e insegurana jurdica, considerando que as

    oportunidades de aplicao da teoria do dilogo das fontes so inmeras e no

    esto restritas ao Direito das Relaes de Consumo.

    Para cumprir com esses objetivos, a pesquisa foi dividida em 6

    Capitulos, incluindo a presente Introduo (Captulo 1) e as Consideraes

    Finais (Captulo 6).

    No capitulo 2, abordamos o problema da conflituosidade normativa no

    contexto da ps-modernidade, apontando suas principais caractersticas e

    como o Direito atingido pelos fenmenos decorrentes dessa fase atual dasociedade, fazendo um contraponto com o perodo histrico que a antecedeu,

    qual seja, a modernidade. Explicamos tambm os mtodos clssicos de

    resoluo de antinomias para, a partir da, demonstrar sua insuficincia, frente

    hodierna complexidade e pluralidade do ordenamento jurdico.

    1

    Atente-se para o fato de que o cumprimento foi parcial, tendo em vista que o dispositivoestabelecia o prazo de 120 (cento e vinte) dias para a elaborao do Cdigo de Defesa doConsumidor, limite que no foi observado pelo legislador.

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    No captulo 3, apresentamos a teoria do dilogo das fontes, legitimada

    pela constitucionalizao do Direito Privado e pelo reconhecimento da eficcia

    horizontal dos direitos fundamentais, como uma alternativa vivel para

    solucionar os conflitos normativos contemporneos.

    No captulo 4, abordamos as repercusses prticas da adoo do

    dilogo das fontes na proteo do consumidor e na efetivao da sua tutela,

    esclarecendo que essa teoria s pode ser utilizada para ampliar direitos, nunca

    com a finalidade de limit-los. Destacamos ainda os dilogos que podem ser

    estabelecidos entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e os demais diplomas

    normativos, nacionais e internacionais.

    No captulo 5, fizemos uma anlise dos principais julgados

    fundamentados no dilogo das fontes, a fim de confirmar a paulatina

    consolidao dessa teoria na jurisprudncia dos Tribunais brasileiros, que

    reconhecem seus benefcios para a defesa do consumidor.

    Por derradeiro, revelamos nossas concluses gerais sobre o tema, entre

    as quais a de que a utilizao do dilogo das fontes no dia a dia forense ser

    capaz de possibilitar um avano considervel na proteo do consumidor, por

    nos fazer apreender que o papel de tutel-lo de todo o sistema jurdico, e no

    somente do seu Cdigo de Defesa.

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    2 O PROBLEMA DA CONFLITUOSIDADE NORMATIVA NA PS-MODERNIDADE

    O contexto histrico contemporneo pode ser definido como ps-

    moderno2

    . A ps-modernidade um fenmeno complexo que transita por todasas formas de relaes sociais e de manifestao de pensamento humano

    (poltico, artstico, cientfico etc). Tal fenmeno expandiu-se nas ltimas

    dcadas pelo mundo inteiro e o responsvel pelo que chamamos de

    civilizao globalizada ou ps-moderna, em que a tecnologia dos meios de

    transporte, o fluxo veloz de informaes e a comunicao instantnea

    relativizaram os conceitos de tempo e espao, inserindo o individuo,

    independentemente da sua nacionalidade, em uma sociedade mundial sem

    fronteiras3.

    Em volta do fenmeno ps-moderno, dada a sua abrangncia e

    aplicao em vrios campos do saber, so inmeros os olhares e

    interpretaes. A par disso, parece haver concordncia com o fato de que esse

    contexto representa uma poca de rupturas e incertezas quanto continuidade

    de uma viso geral de mundo construda e vivenciada ao longo dos ltimos

    sculos.

    A ps-modernidade o tempo da fluidez, poca em que a sociedade

    avana em vrios sentidos, porm, levantando preocupaes quanto s suas

    atitudes e seu destino. A caracterstica da liquidez vem do fato de que os

    lquidos no tm uma forma, so fludos que se acomodam segundo o

    recipiente nos quais esto inseridos, diferentemente dos slidos, que so

    rgidos e precisam sofrer um conflito de foras para moldar-se a novas formas4.

    Assim o contexto ps-moderno: fludo e descontnuo, marcado

    profundamente pela fragmentariedade5.

    Ao contrrio da modernidade, com todas as pretenses de unidade,

    2SANTOS, Boaventura de Sousa. Os processos de globalizao. In: SANTOS, Boaventura deSousa (Org.). A globalizao e as cincias sociais. 3. ed. So Paulo: Cortez, 2005, p. 25-102.3 LYOTARDE, Jean-Franois. A condio ps-moderna. 2. ed. Trad. Jos B. deMiranda.Lisboa: Gradiva, 1989.4 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Lquida. Trad. Plnio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar,2003.5 Fragmentarriedade, nesse contexto, compreendida como incompletude das ideias,

    descontinuidade dos discursos, heterogeneidade de conceitos e ecletismo, que propicia osurgimento, no Direito, do pluralismo jurdico, na medida em que admite que todas as vozeslegtimas que ressoam da sociedade tm o direito de serem ouvidas e consideradas.

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    coerncia e universalidade de valores; a fragmentao, a indeterminao e a

    intensa desconfiana de todos os discursos universais e totalizantes so os

    marcos do pensamento ps-moderno. A cultura ps-moderna apresenta

    caractersticas bem especficas, tais como, o pluralismo de fontes do direito e

    dos sujeitos que atuam no cenrio internacional; a pluralidade, multiplicidade e

    complexidade das relaes jurdicas; a internacionalizao; a fluidez dos

    relacionamentos entre os indivduos; a fuso dos conceitos de direito pbico e

    privado; o emprego de formas contratuais simples e complexas e, ainda, a

    utilizao de conceitos novos e tradicionais a um s tempo e no mesmo

    contexto6.

    A ps-modernidade no apenas um movimento intelectual, ou

    meramente um aglomerado de ideias crticas a respeito da modernidade. Ela

    se manifesta a todo momento na nossa realidade, a partir da modificao dos

    valores, dos costumes, das instituies e dos hbitos sociais, fenmenos

    tpicos da sociedade atual. As conquistas recentes que se espraiam nos

    diversos domnios do conhecimento, combinadas com as desestruturaes

    sociais citadas atestam o quadro de transio em que estamos inseridos.

    Essas mudanas representativas da ps-modernidade tambm se projetam no

    mbito do Direito, que passa a ser enxergado como um processo em

    transformao, permevel s novas demandas e adaptvel aos novos atores

    sociais, diferentemente da viso esttica e acabada que lhe emprestava a

    ideologia iluminista dos sculos XVIII e XIX7.

    Presenciamos, verdade, uma era de crise de valores e de modelos,

    uma poca de mutaes, em que o direito, como expresso cultural de um

    povo, sofre reflexos maiores ou menores das mudanas valorativas,

    econmicas, histricas, ticas e mesmo religiosas de seu tempo8. Sendo oDireito uma das formas de expresso cultural da sociedade, diretamente

    afetado pelas variaes que emergem da cultura ps-moderna, encontrando-

    6 SILVA, Evelise Leite Pncaro da. Contratos de bens vivos: uma realidade desafiadora einstigante, a provocar transformaes sociais e jurdicas, e o dilogo das fontes. In:MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: do conflito coordenao de normasdo direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 356.7 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na ps-modernidade. In: Revista Sequncia.Santa Catarina: Universidade Federal de Santa Catarina, n. 57, dez. 2008, p. 142.8

    MARQUES, Cludia Lima. Laudatiopara Erik JaimeMemrias e Utopia. In: Cadernos doPrograma de Ps-Graduao em Direito PPGDir./UFRGS. 2. ed. Porto Alegre:Universidade Federal do Rio Grande do Sul, n. 1, mar. 2003, p. 57-58.

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    se, junto com ela, em convulso e em plena evoluo.

    A cincia jurdica, pois, se v diante do desafio de se reconstruir e

    adequar seus institutos jurdicos a um mundo marcado pela fragmentao das

    ideias. No mbito do Direito Privado, por exemplo, a tradio de elaborar

    cdigos, compreendidos como personificao da unidade e coerncia

    normativa na modernidade, no tem mais a mesma adeso de antes quando

    comparada com as tendncias atuais de descodificao e constitucionalizao

    de normas privadas. Hoje o Cdigo Civil CC (Lei Federal n 10.406/2002)

    divide espao com outros cdigos, leis esparsas e microssistemas (v.g., o

    microssistema consumerista), perdendo a centralidade no ordenamento jurdico

    que tivera outrora.

    Sa na modernidade os traos dominantes eram a racionalidade, a

    sistematicidade e a pretensa universalidade dos conceitos; com o fenmeno da

    ps-modernidade comeamos a conviver com uma realidade ambgua e

    multiforme, que se transforma cada vez mais velozmente.

    2.1 O PLURALISMO JURDICO

    correto afirmar que a sociedade contempornea , como um todo,repleta de pluralidades, seja de interesses, de culturas, de valores etc;

    necessitando assim, estar apta a assumir a resoluo de seus conflitos de

    maneira tambm pluralista, sempre com aceitao e respeito individualidade

    e diferena de cada um de seus habitantes. Atravs dessa aspirao, que

    germina do desejo da prpria sociedade, surge a ideia do pluralismo jurdico,

    cuja principal particularidade significar uma grande quantidade de fenmenos

    heterogneos e interligados.

    A cultura ps-moderna emerge em todas as manifestaes da cultura

    atual, da qual o Direito faz parte. O ps-modernismo a poca do pluralismo,

    com reflexos ntidos no Direito quando nos deparamos com pluralidade de leis

    especiais, de agentes a proteger e de sujeitos de uma relao de consumo9.

    Um dos principais sintomas de influncia do paradigma ps-moderno no

    mundo jurdico a hipercomplexidade, caracterizada pela multiplicidade de

    9 JAYME, Erik. Identit culturale et intgration: le troit internationale priv postmoderne. In:Ruceil de Cours de lAcadmie de Droit International de la Haye . Haye: Nijhoff, 1995, p. 36.

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    fontes jurdicas, materiais e formais, a regular uma pluralidade de grupos e

    interesses sociais que buscam, ao invs de valores compartilhados, o

    reconhecimento de seus prprios valores e vises de mundo (o direito

    diferena)10.

    necessrio esclarecer que tanto a modernidade quanto a ps-

    modernidade so baseadas no discurso dos direitos. No primeiro perodo,

    temos o discurso dos direitos adquiridos, da segurana e da ordem

    institucional; no segundo, por sua vez, o enfoque se d nos direitos humanos e

    fundamentais, como resultado de um objetivo de poltica legislativa que v com

    um enfoque material o princpio da isonomia, reconhecendo que necessrio

    tratar desigualmente aqueles sujeitos da sociedade considerados vulnerveis

    ou mais fracos, como crianas, idosos, deficientes, trabalhadores e

    consumidores, por exemplo11. No h nada mais diferenciador, mais individual,

    mais essencial e justo do que o reconhecimento dos direitos do homem. Se

    observarmos bem, o exerccio dos direitos fundamentais o prprio exerccio

    da individualidade e do direito que cada um tem de ser diferente12.

    O pluralismo nos impe o dever de respeitar a identidade cultural dos

    povos e os direitos humanos de forma geral. Ele exige que destinemos

    tratamento jurdico diferenciado para situaes diferentes, como forma de

    praticar o princpio da igualdade real.

    O direito igualdade um dos pilares do Direito moderno, contudo,

    compreendido quase sempre num aspecto formal, como direito negativo

    igualdade, ou seja, direito de defesa que determina a no interveno na esfera

    particular dos indivduos por parte da sociedade e do Estado. Numa sociedade

    plural nos deparamos com o direito a ser e permanecer diferente. E esse direito

    diferena tambm um dos aspectos da igualdade, dessa vez, vista numaspecto material, reconstruda por aes positivas do Estado em prol do

    indivduo inserido em determinado grupo. O saber ps-moderno no somente

    instrumento dos poderes. Ele refina nossa sensibilidade s diferenas e refora

    10 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O direito ps-moderno e a codificao. In: MARQUES,Claudia Lima (Org.). Revista de Direito do Consumidor. So Paulo: Revista dos Tribunais, n.33, jan./mar. 2000, p. 123-129.11MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Contedo jurdico do princpio da igualdade. 3. ed.Malheiros: So Paulo, 2012, p. 9/15.12

    MARQUES, Claudia Lima. O "dilogo das fontes" como mtodo da nova teoria geral dodireito. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: do conflito coordenaode normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 60.

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    nossa capacidade de suportar o incomensurvel.

    A ps-modernidade caracteriza-se pela rejeio catalogao e

    sistematizao, no sentido de no admitir a imposio de estilos de vida ou

    paradigmas dogmticos13.A pluralidade que emerge na cultura ps-moderna

    valoriza a autonomia da vontade, a liberdade, mas tambm o direito

    diferena. Conforme ensina Erik Jayme, o que caracteriza a cultura ps-

    moderna que a ideia de diferena faz nascer sobretudo o direito ao respeito

    identidade cultural14.

    Especificamente no mbito jurdico, Erik Jayme identifica as

    caractersticas da cultura ps-moderna, quais sejam: a comunicao, a

    narrao, o retorno do sentimentos, a forte tendncia de valorizao dos

    direitos humanos e o pluralismo15.

    Quanto ao pluralismo, observamos sua manifestao quando nos

    deparamos com a multiplicidade de fontes legislativas regulando um mesmo

    fato; com o fenmeno da descodificao; com os valores antinmicos

    coexistentes numa mesma sociedade (a relao consumidor x fornecedor, ,

    por sua prpria natureza, antinmica) e com o exponencial aumento dos

    sujeitos, muitas vezes difusos como so os consumidores, carentes de

    13MARIGHETTO, Andrea. Passagem da teoria sistemtico-moderna teoria finalstica ou ps-moderna. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: do conflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 120.14No idioma original: Ce qui caractrise la culture postmoderne est que lide de la diferenceentrane surtout le droit au respect de lidentit culturelle. JAYME, Erik. Identit culturale etintgration: le troit internationale priv postmoderne. In: Ruceil de Cours de lAcadmie deDroit International de la Haye. Haye: Nijhoff, 1995, p. 251.15 Para Jayme, a escolha desses valores da cultura ps-moderna parece ser arbitrria, noentanto, admite pr em destaque a ligao entre o direito e a ps-modernidade. A comunicaosem fronteiras um valor bsico do mundo ps-moderno. A cada dia o mundo se torna maissedento de comunicao, pois as pessoas difundem informaes com mais frequncia e

    trocam experincias com indivduos de lugares totalmente diferentes. Essa necessidade invadetambm o Direito (v.g a crescente importncia do estudo do direito comparado e do nmero denormas com eficcia transnacional), que tende a se internacionalizar. A narrao significa umnovo mtodo de elaborao de normas legais, no mais editadas para regular condutas, e simpara narrar seus objetivos, seus princpios, suas finalidades, positivando assim os objetivos dolegislador, de forma a auxiliar na interpretao teleolgica e no efeito til dos seus diplomasnormativos. Por sua vez, o retorno aos sentimentos (le retour des sentiments) a volta daemocionalidade no discurso jurdico, atravs dos elementos sociais ou ideolgicos extrados defora do sistema positivado, criando forte insegurana e imprevisibilidade quanto s solues aserem adotadas nos casos concretos. Tambm se refere ao individualismo e aos conflitos quepodem ocorrer como consequncia das diferenas entre os povos e suas culturas. Porderradeiro, principalmente em decorrncia da centralidade que a pessoa humana conquistouno ordenamento jurdico, vivenciamos o revival dos direitos humanos. (JAYME, Erik. Direito

    Internacional Privado e Cultura Ps-Moderna. In: Cadernos de Ps-Graduao em Direito PPGDir./UFRGS. 2. ed. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, n. 1, dez.2004, p. 59).

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    proteo estatal. Alm disso, h tambm a pluralidade de agentes ativos de

    uma mesma relao, tais quais os fornecedores, que cada vez mais se

    aparelham em cadeias e em relaes extremamente despersonalizadas16.

    Sem dvidas, o aspecto mais importante da influncia do pluralismo ps-

    moderno no mundo jurdico relaciona-se ao crescimento, em nmero e

    complexidade, de legislaes nacionais e internacionais, que no raras vezes

    disciplinam assuntos convergentes, dando ensejo ao pluralismo de fontes

    normativas.

    Na tradicional compreenso do sistema jurdico, esse fato colocaria em

    dvida o principio do direito intertemporal, segundo o qual a preservao da

    unidade e coerncia desse sistema exigiria a excluso de ao menos uma

    dentre essas Leis (ab-rogao, derrogao, revogao), a fim de sanar

    provveis antinomias.

    Contudo, acolhendo a teoria do dilogo das fontes, a aplicao, a

    integrao e a interpretao das normas jurdicas no mais pressupem a

    eliminao de uma das regras do sistema, como resultado de uma antinomia

    ou de um conflito de normas. Antes disso, o dilogo das fontes possibilita a

    coordenao e coerncia sistemtica das vrias fontes do Direito, assegurando

    a conformidade entre elas e a supremacia da Constituio Federal e, mais

    ainda, dos seus valores e direitos fundamentais. No contexto de um sistema de

    Direito que pretende abarcar mltiplos sujeitos e mltiplas fontes legislativas de

    diferentes naturezas, nasce a exigncia de um ordenamento jurdico coeso e

    justo.

    2.2 A INSUFICINCIA DOS MTODOS CLSSICOS DE SOLUO DE

    ANTINOMIAS

    A existncia de normas conflitantes ou com mesmo campo de

    regulao um problema com que se depararam juristas de todas as pocas17.

    No entanto, admitir que o ordenamento jurdico contm antinomias tambm

    admitir a falibilidade do aparelho estatal, deslegitimar o Direito e assumir sua

    16 JAYME, Erik. Direito Internacional Privado e Cultura Ps-Moderna. In: Cadernos de Ps-

    Graduao em Direito PPGDir./UFRGS. 2. ed. Porto Alegre: Universidade Federal do RioGrande do Sul, n. 1, dez. 2004, p. 36 e ss.17BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurdico. Braslia: Editora UNB, 1994, p. 81.

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    incapacidade de cumprir com um dos objetivos principais para o qual foi criado,

    que promover a paz social atravs da segurana jurdica. Nesse contexto,

    adota-se a tese de que o Direito no tolera antinomias. As normas que

    constituem um ordenamento no esto isoladas, mas se tornam parte de um

    sistema, dado que certos princpios agem como conexes pelas quais as

    normas so reunidas de modo a constituir um bloco sistemtico.

    Em suma, sendo o ordenamento jurdico um sistema, a

    incompatibilidade entre normas jamais ser intransponvel, pois qualquer

    choque entre elas pode ser resolvido recorrendo-se aos mecanismos fixados

    pelo prprio sistema, que, necessariamente, esclarecer qual o preceito deve

    ser descartado e qual deve ser declarado vlido.

    Normas incompatveis so aquelas que no podem ser ambas

    verdadeiras, dando ensejo, portanto, a trs tipos de incompatibilidades, quais

    sejam: entre uma norma que comanda fazer alguma coisa e uma norma que

    probe faz-lo; entre uma norma que comanda fazer e uma que permite no

    fazer e, finalmente, entre uma norma que probe fazer e uma que permite

    fazer18.

    Para solucionar essas antinomias e manter a unidade sistemtica do

    ordenamento jurdico, alguns critrios so oferecidos19.

    O primeiro deles a anterioridade (lex posterior derogat priori), ou seja,

    em caso de conflito entre duas normas criadas ou vigoradas em momentos

    cronolgicos distintos, sobrepe-se a norma posterior.

    A especialidade (lex specialis derogat generali) o segundo critrio a

    ser utilizado, segundo o qual dentre as normas incompatveis, sempre que uma

    for geral e outra especial, prevalecer a segunda.

    Por ltimo, temos o critrio hierrquico (lex superior derogat inferior),que consiste na prioridade dada, em caso de antinomia, a uma norma

    portadora de statushierarquicamente superior ao seu par antinmico.

    A depender da quantidade de critrios que estejam envolvidos no

    conflito normativo, podemos nos deparar com diferentes graus de coliso.

    Antinomias de 1 grau so as que envolvem apenas um dos critrios

    acima expostos. Nesse caso, a soluo simples, pois se dar da forma que

    18Ibid., p. 85

    19Ibid., p. 91.

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    acabamos de descrever (lei posterior revoga lei anterior, lei especial revoga lei

    geral e lei superior revoga lei inferior).

    Por sua vez, as antinomias de 2 grau envolvem dois dos critrios

    analisados. Nessas situaes, os mecanismos devem ser aplicados na ordem

    em que foram citados, pois h uma gradao entre eles, de maneira que o da

    anterioridade o mais frgil e o da hierarquia o mais forte de todos, dada a

    importncia do Texto Constitucional20. Assim, entre uma norma especial

    anterior e outra geral posterior, prevalecer o critrio da especialidade, sendo

    declarada aplicvel a primeira norma. Havendo conflito entre norma superior

    anterior e outra inferior posterior, prevalece tambm a primeira (critrio

    hierrquico).

    At agora, todas as hipteses mencionadas so de antinomias

    aparentes, j que podem ser resolvidas atravs de um procedimento delineado

    abstratamente. No entanto, o problema ocorre quando se tem conflito entre

    uma norma geral superior e outra norma especial e inferior, pois, nessa

    circunstncia, no estaramos diante de um conflito aparente, mas de um caso

    de antinomia real, que no poderia ser solucionado atravs de uma regra geral,

    pr-estabelecida.

    No conflito entre o critrio hierrquico e o da especialidade, havendo

    uma norma superior-geral e outra norma inferior-especial, no possvel,

    genericamente, estabelecer uma regra que d preferncia hierarquia ou

    especialidade da lei, sem contrariar a adaptabilidade do Direito. A depender do

    caso em anlise que se escolher um desses critrios, no existindo, in

    abstractu, qualquer prevalncia entre eles. Embora, segundo os ensinamentos

    20

    Conhecida a teoria de Hans Kelsen, expressada no livro Teoria pura do direito, que aduz:

    Como a norma fundamental o fundamento de validade de todas as normas pertencentes auma mesma ordem jurdica, ela constitui a unidade na pluralidade destas normas. Esta unidadetambm se exprime na circunstncia de uma ordem jurdica poder ser descrita em proposiesjurdicas que no se contradizem. No se pode, contudo, negar-se a possibilidade de os rgosjurdicos efetivamente estabelecerem normas que entre em conflito umas com as outras. [...]Um conflito de normas surge quando uma norma determina uma certa conduta como devida eoutra norma tambm determina como devida outra conduta, inconcilivel com aquela. [...]Como, porm, o conhecimento do direito procura apreender o seu objetivo como um todo desentido e descrev-lo em proposies isentas de contradio, ele parte do pressuposto de queos conflitos de normas no material normativo que lhe dado podem e devem necessariamenteser resolvidos pela via da interpretao de escalo inferior, quer dizer, entre uma norma quedetermina a criao de uma outra e essa outra, no pode existir qualquer conflito, pois a normado escalo inferior tem seu fundamento de validade na norma do escalo superior. Se uma

    norma do escalo inferior considerada como vlida, tem de se considerar como estando emharmonia com uma norma do escalo superior. (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad.Joo Baptista Machado. So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 228/232).

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    de Bobbio, deva-se optar, teoricamente, pela norma geral e hierarquicamente

    superior, em situaes especficas essa premissa pode no apresentar a

    soluo mais justa, se considerarmos que por vezes um direito previsto na

    Constituio s pode ser exercitado quando minuciosamente detalhado na

    norma infraconstitucional. A supremacia do critrio da especialidade se

    sustentaria, nessa circunstncia, com alicerce no mais alto princpio da justia:

    suum cuique tribuere21, baseado na interpretao de que o que igual deve ser

    tratado como igual, j o que diferente deve receber tratamento distinto. Esse

    princpio serviria at certa medida para solucionar antinomias, tratando

    igualmente o que igual e desigualmente o que desigual, fazendo sempre as

    diferenciaes exigidas ftica e valorativamente22.

    Ainda que realizando esse esforo interpretativo para adaptar a teoria

    de Bobbio aos casos mais complexos, o fato que, utilizando-se dos critrios

    clssicos, independentemente do tipo de antinomia verificada (se de 1 ou 2

    graus, aparente ou real), sempre que houvesse uma superposio entre os

    campos de regulao das leis ao juiz caberia decidir o conflito, declarando a

    prevalncia de uma lei e excluindo as demais do sistema23.

    Em partes, esses critrios foram, inclusive, incorporados no

    ordenamento jurdico brasileiro atravs da Lei de Introduo s Normas do

    Direito Brasileiro (Decreto-Lei n 4.657/1942), que em seu artigo 2, 1,

    descreve os casos de revogao da lei anterior por lei mais recente, seja

    quando expressamente declarado na novel legislao, ou quando esta

    incompatvel com a norma at ento vigente; e, no 2 do mesmo artigo,

    explica como proceder diante do conflito entre lei geral e especial24.

    Na viso perfeita dos mtodos de Bobbio, tpica da modernidade,

    teramos a tese (lei antiga), a anttese (lei nova) e a sntese (revogao), atrazer nitidez e confiana ao sistema jurdico. Os critrios para resolver os

    21Um dos trs preceitos de Ulpiano (jurista que influenciou profundamente o direito da RomaAntiga), que quer dizer: dar a cada um o que lhe pertence. Os outros dois so: viverhonestamente (honeste vivere) e no ofender ningum (neminem laedere).22DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 10. ed. So Paulo: Saraiva, 2014, p. 50.23BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurdico. Braslia: UNB, 1994, p. 100.24Art. 2. No se destinando vigncia temporria, a lei ter vigor at que outra a modifique ourevogue. 1. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela

    incompatvel ou quando regule inteiramente a matria de que tratava a lei anterior. 2. A lei nova, que estabelea disposies gerais ou especiais a par das j existentes, norevoga nem modifica a lei anterior.

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    conflitos de leis seriam apenas trs: anterioridade, especialidade e hierarquia, a

    priorizar-se a hierarquia. Mas em tempos de ps-modernismo, essas regras

    no so mais exclusivas ou suficientes para resolver os problemas de coliso

    entre normas. Diante da constitucionalizao do Direito Privado e da

    multiplicidade de diplomas normativos vigentes, se impe ao exegeta uma

    mudana de paradigma: da excluso (ab-rogao, derrogao e revogao) de

    uma das normas em conflito harmonia e coordenao entre as regras e

    princpios do ordenamento jurdico, com vistas a restabelecer sua coerncia25.

    A dinmica jurdica recente, notadamente com o constitucionalismo de

    valores e a fora normativa que foi reconhecida aos princpios jurdicos 26,

    demonstra que os critrios apontados por Bobbio, apesar da clareza com que

    pretendiam enfrentar os problemas das antinomias, tornaram-se insuficientes

    para tal desiderato.

    As clssicas, abstratas e simplistas tcnicas de soluo de antinomias

    j no so mais satisfatrias, pois o dinamismo e complexidade do Direito ps-

    moderno exigem uma viso sistmica e flexvel que permita a coexistncia das

    normas, a fim de que se possa obter uma maior proteo dos direitos que

    decorrem das relaes jurdicas desequilibradas, em que uma das partes

    legalmente reconhecida como vulnervel.

    De fato, o uso dos mtodos ortodoxos, embora dotados de rigor

    tcnico, pode no propiciar solues jurdicas que se mostrem adequadas,

    notadamente se cotejadas com o mandamento constitucional de proteo do

    consumidor insculpido nos artigos 5, inciso XXXII e 170, inciso V, da

    Constituio Federal. que os complicados problemas contemporneos e o

    pluralismo exigem uma eficincia no apenas hierrquica, mas principalmente

    25 JAYME, Erik. Identit culturale et intgration: le troit internationale priv postmoderne. In:Ruceil de Cours de lAcadmie de Droit International de la Haye . Haye: Nijhoff, 1995, p.259.26 inquestionvel no direito brasileiro a aplicabilidade da proposio de Robert Alexy, em suaTeoria dos direitos fundamentais, segundo a qual os princpios tambm possuem foranormativa, compondo, junto com as regras, o gnero norma jurdica. O autor alemo ensinaque os princpios so normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possvel,dentro das possibilidades jurdicas e reais existentes. Portanto, princpios so mandados deotimizao, que esto caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes

    graus e que a medida devida do seu cumprimento s depende das possibilidades reais senotambm das jurdicas. (ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Trad.Ernesto Garzn Valdez. Madrid: CEPC, 2002, p. 86).

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    funcional do Direito27.

    Prope-se, no lugar do conflito de leis, a visualizao da possibilidade

    de coordenao sistemtica destas fontes, no af de favorecer o consumidor

    com a norma de campo de aplicao material mais benfico, atravs de um

    autntico dilogo das fontes.

    27 MARQUES, Cludia Lima. Superao de antinomias pelo dilogo das fontes: o modelo

    brasileiro de coexistncia entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o Cdigo Civil de 2002.In: Revista da ESMESE. Aracaju: Escola Superior da Magistratura de Sergipe, n. 7, jan/jun.2004, p. 43.

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    3 A TEORIA DO DILOGO DAS FONTES COMO SOLUO DECONFLITOS NORMATIVOS

    A Constituio Federal de 1988, seguindo uma tendncia mundial de

    influncia do Direito Pblico sobre o Privado, nomeada pela doutrina comoconstitucionalizao do Direito Civil28, adotou como princpio fundamental a

    defesa do consumidor (artigo 5, inciso XXXII). Esse direito reconhecido na

    Constituio Federal como fundamental pelo fato de que o consumidor procura

    no mercado a satisfao de suas necessidades bsicas, como alimentao,

    sade, segurana, educao, lazer etc; tudo isso na condio de no

    profissional, de destinatrio do que o mercado produz.

    Os direitos do consumidor so direitos humanos de terceira dimenso

    29

    objetivados na Constituio Federal tambm no artigo 170, inciso V. Foi a

    necessidade de conferir proteo jurdica aos direitos dos compradores que os

    tornou direitos fundamentais, com efeito vinculante no s em relao ao

    Estado, mas tambm aos fornecedores que colocam produtos e servios no

    mercado, cabendo a todos respeitar a integridade e concretizar a defesa deste

    ente vulnervel, reconhecidamente mais fraco na sociedade. De fato, o

    comando constitucional que determina a proteo do consumidor de

    importncia sublime e deve ser interpretado de forma a lhe conferir mxima

    efetividade, pois a Constituio Federal e os direitos nela assegurados,

    precipuamente os direitos fundamentais, so normas jurdicas, passveis de

    serem exigveis e executveis, e no meramente programas ou discursos sem

    28Para aprofundamento, ver: LBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalizao do Direito Civil. In:Revista de Informao Legislativa. Braslia: Secretaria de Edies Tcnicas do Senado

    Federal, n. 141, jan./mar. 1999, p. 99-109.29Os direitos fundamentais so tradicionalmente classificados em geraes, numa tentativa detransmitir a ideia de que eles no surgiram todos em um mesmo momento histrico, mas foramfruto de conquistas progressivas da humanidade. Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins criticam autilizao do termo geraes e sugerem que seja empregada a expresso dimenses dedireitos, argumentando que todos os direitos de uma gerao seguinte se acumulam aos dasgeraes anteriores, portanto, no so excludentes. Os direitos de primeira dimenso so osque buscam restringir a ao do Estado sobre o indivduo, impedindo que este se intrometa deforma abusiva na vida privada das pessoas. Os direitos de segunda gerao so os queenvolvem prestaes positivas do Estado aos indivduos (polticas e servios pblicos). Por suavez, os direitos de terceira dimenso so os que no protegem puramente interessesindividuais, mas transcendem a rbita dos indivduos para alcanar a coletividade. Tm comovalores essenciais a solidariedade e a fraternidade. So os direitos difusos e os coletivos.

    Aqui, destacam-se o direito do consumidor, o direito ao meio ambiente ecologicamenteequilibrado e o direito ao desenvolvimento. (DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. TeoriaGeral dos Direitos Fundamentais. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2011).

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    fora normativa30.

    Nessa nova perspectiva que se lana ao Direito Privado, a Constituio

    exsurge como o ncleo e pice do ordenamento jurdico, funcionando como

    centro irradiador e marco de reconstruo do Direito Civil. Tal cenrio foi

    essencial para o surgimento da ideia de que os direitos fundamentais no

    existem somente como forma de defesa do indivduo frente ao Estado, mas

    tambm representam uma ordem objetiva de valores que vale para todos e em

    qualquer mbito do direito31.

    Se at pouco tempo tnhamos uma legislao de cunho liberal, voltada

    para a proteo da propriedade, presenciamos agora o alvorecer de um

    sistema de Direito Privado que se reveste de carter social, preocupado com a

    eticidade, a socialidade, a boa-f e a tutela dos vulnerveis. A Constituio o

    sustentculo e o limite desse Direito Privado que se reconstri sob seus valores

    (principalmente os direitos fundamentais), transformando-o em um Direito

    Privado solidrio32.

    Desse modo, a Magna Carta passou a atuar como filtro axiolgico,

    atravs do qual se procede a interpretao do Direito Civil, que adquiriu,

    segundo essa nova ideologia, o papel de contribuir para a realizao dos

    valores da pessoa humana. Princpios como a autonomia privada so

    conciliados (e mitigados) pelo da solidariedade social, da isonomia e da

    dignidade da pessoa humana, que agora fazem parte do rol de preceitos

    prprios do Direito Civil; causando-lhes, enfim, uma nova significao, que se

    manifesta, por exemplo, no reconhecimento da eficcia horizontal dos direitos e

    liberdades fundamentais.

    As modernas Constituies preveem a dignidade da pessoa humana

    como fundamento da estrutura estatal e social, sendo o seu respeito de

    observncia obrigatria em todas as aes desenvolvidas no meio social.

    essa necessidade de salvaguardar a dignidade do ser humano e os demais

    direitos fundamentais que faz com que os comandos da Constituio Federal

    30 Para aprofundamento, ver: HESSE, Konrad. A Fora Normativa da Constituio. Trad.Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Safe, 1991.31 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzn Valdez.Madrid: CEPC, 2002.32

    BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos; BESSA, Leonardo Roscoe e MARQUES,Cludia Lima. Manual de Direito do Consumidor. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais,2013, p. 28.

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    penetrem nas relaes jurdicas privadas, no que chamamos de eficcia

    horizontal dos direitos fundamentais33.

    certo que a vinculao do Poder Pblico aos direitos fundamentais

    decorre da prpria gnese desses direitos, idealizados com o objetivo de

    colocar os indivduos a salvo das interferncias estatais abusivas. Em verdade,

    os direitos fundamentais foram concebidos com o fito de limitar a atuao do

    Estado, de forma que determinados bens e interesses fossem protegidos das

    violaes advindas do poder soberano. Esta a eficcia vertical dos direitos

    fundamentais34.

    No entanto, a evoluo da sociedade demonstrou que no s o Estado

    que pode violar os direitos bsicos das pessoas. Principalmente aps a

    revoluo cientfica e industrial inaugurada no sculo XVIII, restou evidente que

    grandes corporaes tambm podem causar danos aos direitos da

    personalidade dos indivduos, ainda mais se consideramos que alguns grupos

    econmicos detm mais capital e poder econmico do que muitos pases

    juntos.

    Analisando algumas decises do Supremo Tribunal Federal (STF) a

    respeito da aplicao dos direitos fundamentais nas relaes privadas, pode-se

    concluir, mesmo sem adentrar na discusso das teses jurdicas sobre a forma

    de vinculao dos particulares aos direitos fundamentais, que a jurisprudncia

    ptria vm entendendo pela possibilidade (e at necessidade) de aplicao

    dessa doutrina.

    No RE 201819/RJ35, a Suprema Corte enfatizou que as violaes aos

    33 Segundo a teoria da eficcia horizontal dos direitos fundamentais, os destinatrios dospreceitos constitucionais so tambm os particulares, sejam pessoas fsicas ou jurdicas.

    Assegura-se, com ela, que os direitos fundamentais sejam aplicados tambm s relaesprivadas, para proteger um particular de violaes decorrentes de condutas de outrosparticulares, persistindo at hoje a discusso se essa eficcia se d de forma direta ou reflexa.O tema foi aventado especialmente na doutrina e jurisprudncia alem da segunda metade dosculo XX, tendo, em seguida, se expandido para os demais pases. (DIMOULIS, Dimitri;MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. So Paulo: Revista dosTribunais, 2011).34 A eficcia vertical dos direitos fundamentais refere-se aplicabilidade desses direitos emfavor dos governados como limitadores da ao dos governantes. O termo vertical utilizadopara enfatizar que o enfoque se d na relao entre Estado e indivduo, objetivando-seproteger da interferncia ilegal do Estado as liberdades individuais da pessoa humana. Nessaperspectiva, os direitos fundamentais so vistos como liberdades e garantias, ou seja, direitosde defesa do cidado frente ao poder estatal. A aplicao dos direitos fundamentais nas

    relaes entre o particular e o poder pblico no se discute. (Ibid.).35 STF, RE 201819/RJ, rel. Min Ellen Gracie, rel. p/ o acordo Min. Gilmar Mendes, j.11.20.2005, DJ. 27.10.2005.

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    direitos fundamentais no acontecem somente no terreno das relaes

    estabelecidas entre o cidado e o Estado, mas identicamente nas relaes

    entre pessoas fsicas e jurdicas de Direito Privado. Por conseguinte, os direitos

    fundamentais assegurados pela Constituio Federal no vinculam to

    somente os poderes pblicos, estando voltados tambm tutela dos

    particulares em face dos poderes privados.

    O Ministro Joaquim Barbosa, em seu voto-vista no processo citado,

    salienta que entre ns a aplicao dos direitos fundamentais na esfera privada

    decorrncia de diversos fatores. O primeiro deles o gradativo rompimento

    das barreiras que separavam o Direito Pblico do Direito Privado at o sculo

    XIX. Alm disso, cita o fenmeno da constitucionalizao do Direito Privado,

    mais especificamente do Direito Civil, j destacado neste Capitulo. Realmente,

    as relaes privadas, que classicamente se regiam exclusivamente pelo

    Cdigo Civil, atualmente so permeadas pelos princpios de Direito Pblico. At

    nos Estados Unidos, onde h um grande esforo visando a superao da

    doutrina da state action, as relaes privadas j no so mais inteiramente

    apartadas das limitaes que emanam da imprescindibilidade de preservar os

    direitos fundamentais36.

    Relevante mencionar que os entendimentos consagrados pelo STF nos

    julgados mencionados se aplicam perfeitamente ao Cdigo de Defesa do

    Consumidor, tendo em vista que este constitui norma principiolgica que

    disciplina um direito fundamental previsto expressamente no artigo 5, inciso

    XXXII, da Constituio Federal. Conforme aduziu o Ministro Marco Aurlio

    (relator do caso), uma das formas de irradiao da eficcia dos direitos

    fundamentais para as relaes privadas so as clusulas gerais, que

    exerceriam a funo de porta de entrada dos direitos fundamentais nodomnio do Direito Privado. Portanto, atravs da tcnica legislativa de adoo

    de clusulas gerais37, tais como boa-f objetiva, funo social do contrato etc; o

    36Outras decises do STF a respeito: RE 161.243 (DJ 19.12.97, rel. min. Carlos Velloso), emque foi aplicado diretamente o princpio constitucional da igualdade numa relao trabalhista,para que uma empresa francesa situada no Brasil fosse compelida a estender aos seusoperrios brasileiros as vantagens conferidas aos franceses que aqui laboravam; RE 158.215-4/RS (DJ 7.6.96, rel. min. Marco Aurlio), aplicando os princpios da ampla defesa econtraditrio em relao privada entre cooperado e cooperativa; RE 160.222 (DJ 1.9.95, rel.

    min. Seplvera Pertence), quando restou decidido que empresa especializada no comrcio delingerieno pode violar a dignidade das suas empregadas, submetendo-as revistas ntimas.37 Um conceito multissignificativo de clusula geral fornecido por Karl Engisch, citado por

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    microcdigo se abriu para a aplicao dos direitos fundamentais nas relaes

    que disciplina.

    O princpio constitucional da dignidade da pessoa humana, expresso no

    artigo 1, inciso III, reconhece a dignidade como elemento fundamental e

    legitimador do sistema jurdico nacional, princpio que abarca,

    indubitavelmente, a dignidade do consumidor. Corroborando essa afirmao,

    Bolson38 justifica a aplicao direta dos direitos humanos s relaes de

    consumo tambm utilizando-se do princpio pro homine, que alberga todas as

    pessoas (incluindo-se ai o consumidor). Segundo ensina, no contexto das

    relaes de consumo tambm acontecem violaes dignidade do ser

    humano, como nos casos de atos ilcitos de fornecedores que ferem a honra, a

    intimidade, a integridade fsico-psquica, a imagem e outros atributos da

    personalidade do consumidor.

    A aproximao principiolgica entre o Novo Cdigo Civil (Lei Federal n

    10.406/2002) e o Cdigo de Defesa do Consumidor (Lei Federal n

    8.078/1990), sob o manto constitucional, foi de suma importncia para a

    consolidao paulatina da constitucionalizao do Direito Privado e, por

    consequncia, para a realizao de uma comunicao entre ambas as leis,

    conduzida pelo mtodo do dilogo das fontes.

    Justamente essa viso civil-constitucional do sistema jurdico que

    possibilita a materializao do dilogo das fontes no Direito brasileiro. Tal teoria

    iluminada pelos valores constitucionais e os direitos fundamentais,

    responsvel por cunhar um novo Direito Privado, que coloca a pessoa humana

    em seu centro. No nosso caso, essa pessoa o consumidor.

    A expresso dilogo das fontes foi criada por Erik Jayme39, na

    Alberto Gosson, ao asseverar que a clusula geral aquela que se contrape a umaelaborao casustica das hipteses legais. Segundo ele, as clusulas gerais devem sercompreendidas como as formulaes das hipteses legais que, em termos de grandegeneralidade, abrangem e submetem a tratamento jurdico uniforme todo um domnio de casos.E conclui que as clusulas gerais equivalem a normas jurdicas cujo preenchimento s se darpelo magistrado quando da anlise de um caso concreto. No sendo apenas clusulas deinteno, constituem disposies normativas que utilizam, nos seus enunciados, umalinguagem de tessitura intencionalmente aberta, fluida ou vaga, caracterizando-se, tambm,pela ampla extenso de seu campo semntico. (JORGE JR, Alberto Gosson. ClusulasGerais e o Novo Cdigo Civil. So Paulo: Saraiva, 2004).38 BOLSON, Simone Hegele. O princpio da dignidade da pessoa humana, relaes de

    consumo e o dano moral ao consumidor. In: MARQUES, Claudia Lima (Org.). Revista deDireito do Consumidor. So Paulo: Revista dos Tribunais, n. 46, abr./jun. 2003, p. 289.39 Jurista alemo, professor da Universidade de Heidelberg e orientador do doutorado da

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    tentativa de propagar a imperiosa necessidade de uma aplicao coerente das

    diversas leis de Direito Privado existentes no sistema jurdico. Dilogo no

    sentido que h influncias recprocas e porque se pretende a aplicao de

    diversas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja

    complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opo voluntria

    das partes sobre a fonte prevalente.

    Ao apresentar a temtica central dos seus estudos, o autor afirma que

    o jurista deve estabelecer uma conversa entre as fontes do Direito, a fim de

    aplic-las conjuntamente, refutando a tradicional excluso mtua de fontes40. A

    essncia da ideia de Jayme , portanto, a concepo de que as normas

    jurdicas no se excluem apenas pelo fato de pertencerem a ramos jurdicos

    diferentes, mas se complementam. Migra-se da noo de conflito de leis para a

    de coordenao entre elas. A premissa que lhe d amparo a viso de um

    ordenamento jurdico plrimo, mas unitrio.

    O principal motivo para a aceitao do dilogo entre as normas a

    funcionalidade que ele traz para o sistema jurdico. cedio que o mundo

    contemporneo e ps-moderno complexo e farto por natureza. Convivemos

    com uma quantidade excessiva de diplomas normativos, que no raras vezes

    confunde at mesmo os juristas mais renomados. A revogao expressa, que

    ocorre quando a prpria lei diz quais normas so eliminadas do sistema

    quando da sua entrada em vigor41, tem se tornado cada vez mais incomum,

    pois a volumosa quantidade de leis esparsas que se edita no pas dificulta um

    olhar sistmico sob o ordenamento jurdico que possibilite ao legislador apontar

    claramente o campo de regulao de uma lei nova. Nesse contexto de inflao

    legislativa42, a maioria dos diplomas normativos aduz apenas que revogam-se

    as leis em contrrio, sem que o prprio congressista saiba realmente quaisso as leis em contrrio afastadas. Por tal motivo, transfere-se para o intrprete

    professora Cludia Lima Marques. A teoria do dilogo das fontes foi criada por ele e expostapela primeira vez em 1995, no Curso Geral de Haia.40 JAYME, Erik. Identit culturale et intgration: le troit internationale priv postmoderne. In:Ruceil de Cours de lAcadmie de Droit International de la Haye. Haye: Nijhoff, 1995, p. 9-268.41 o que ocorreu, por exemplo, com os 3, 4, 5 e 6 do art. 5 e com os artigos 15,17 e

    18, todos da Lei Federal n 7.347/85, revogados expressamente com o advento do CDC.42Caracterizada pelo aumento generalizado, inchao, intumescncia de diplomas normativos,que tm como consequncias a insegurana jurdica e a desvalorizao do sistema jurdico.

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    a rdua tarefa de realizar um exame atento, a fim de determinar com preciso

    as leis atingidas e os limites da revogao tcita.

    A sociedade atual vive na era da desordem, caracterizada pela abertura

    do sistema, por uma pluralidade de fontes e pelo nmero progressivo de

    conceitos indeterminados43. Nessa tempestade de fontes jurdicas, existentes

    ou coexistentes no mesmo ordenamento, o papel do operador do Direito passa

    ser o de reconstru-lo em cada caso concreto, avaliando a soluo que melhor

    cumpre com os escopos constitucionais, tudo isso atravs da anlise das

    diversas leis que o regulam e da aplicao concomitante dos princpios que

    do suporte a essas normas. O dilogo das fontes servir como o vetor que

    nos guiar nesse mar de intempries.

    O sistema jurdico pressupe uma certa coerncia, pois o direito deve

    evitar a contradio. O juiz, na presena de duas fontes com valores

    contrastantes, deve buscar coordenar as fontes, atravs do dilogo entre

    elas44.

    Tendo como base a dignidade do ser humano e a aplicao imediata

    dos direitos fundamentais, inquestionvel que a ideia do dilogo das fontes

    nasce para dar solues mais justas aos casos de conflitos normativos,

    resguardando o indivduo vulnervel, tornando o Direito mais flexvel e

    humanitrio.

    No Brasil, essa inovadora tese surge como alternativa clssica

    tcnica de resoluo de antinomias jurdicas, cujos critrios so: hierrquico,

    cronolgico e da especialidade. Trata-se de uma teoria visionria, por sugerir a

    substituio do paradigma de conflito entre leis pela noo de coordenao

    entre as fontes normativas. Essa viabilidade de interligao de diferentes leis

    que permite a aplicao de todas elas na soluo de uma mesma situao sempre orientada, diretamente, pela proteo dos direitos fundamentais e da

    pessoa humana45.

    O dilogo vai servir exatamente para situaes em que nos deparamos

    43 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da deciso judicial: fundamentos de direito. Trad.Claudia Lima Marques. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.44 JAYME, Erik. Direito Internacional Privado e Cultura Ps-Moderna. In: Cadernos de Ps-Graduao em Direito PPGDir./UFRGS. 2. ed. Porto Alegre: Universidade Federal do RioGrande do Sul, n. 1, dez. 2004, p. 59-129.45

    MIRAGEM, Bruno. Apresentao. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo dasfontes: do conflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dosTribunais, 2012, p. 10.

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    com conflitos de princpios e regras no tempo, ou seja, quando duas normas

    estejam supostamente aptas para serem aplicadas ao mesmo caso concreto,

    no que chamamos de antinomia jurdica. A antinomia se configura, conforme

    fora explicado, quando no mesmo ordenamento jurdico haja confronto entre

    duas normas com o igual mbito de abrangncia. Como o ordenamento jurdico

    deve ser uma unidade sistmica, no se podem tolerar antinomias em seu

    bojo.

    At pouco tempo atrs os critrios Bobbianos de soluo de conflitos

    eram as nicas opes disponveis ao jurista. Tais critrios encontram-se

    previstos no Direito ptrio atravs da Lei de Introduo s Normas do Direito

    Brasileiro (Decreto-Lei n 4.657/42). Em consonncia com o seu artigo 2, 1,

    a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja

    com ela incompatvel ou quando regule inteiramente a matria de que tratava a

    lei anterior. No entanto, essa teoria clssica mostrou-se incapaz de, sozinha,

    solucionar com justia os casos de conflitos normativos com que nos

    deparamos diuturnamente, ainda mais frente constitucionalizao do Direito

    Privado e necessidade de uma maior flexibilidade na aplicao das leis que

    esse fenmeno impe.

    Diante da incapacidade dos critrios da escolstica em lidar com a atual

    complexidade do ordenamento jurdico e da imprescindibilidade de restaurar a

    coerncia desse sistema, sempre objetivando realizar os valores ideais da

    Constituio de igualdade, liberdade e solidariedade, urge estabelecer um novo

    olhar para os antigos mtodos, em que a nova hierarquia a harmonia dada

    pelos valores constitucionais e a prevalncia dos direitos humanos; a nova

    especialidade a noo de complementao ou aplicao subsidiria das leis

    especiais, tendo prevalncia nesta aplicao a mais valorativa e depois dela,no que couberem, as demais; e a nova anterioridade, que no tem relao com

    a data de promulgao da lei, mas sim com a necessidade de adaptar o

    sistema toda vez que uma lei nele acrescida pelo Poder Legislativo46.

    O que a teoria do dilogo das fontes prope a alterao do mtodo

    de resoluo de antinomias, do monlogo de uma s norma para o dilogo

    46

    MARQUES, Claudia Lima. O "dilogo das fontes" como mtodo da nova teoria geral dodireito. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: do conflito coordenaode normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 31.

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    entre elas47, pois s a convivncia coordenada dos preceitos conflitantes

    capaz de cumprir com a verdadeira ratio do Direito contemporneo, que a

    efetivao das regras e princpios insculpidos na Constituio Federal e dos

    valores e direitos humanos em geral.

    Efetivamente, o raciocnio jurdico clssico apresenta algumas

    deficincias tanto na resoluo de conflitos de normas quanto para a

    integrao do Direito. Nesta senda, a teoria do dilogo das fontes desponta

    precisamente com o escopo de sanar essa insuficincia, e no direito do

    consumidor, dada a necessidade de maior flexibilidade que sua ndole protetiva

    exige, encontra terreno frtil para desenvolvimento48. Nisso reside a

    importncia do dilogo das fontes, que, em vez de forar o intrprete decidir

    pela aplicao de uma das leis, j parte da premissa de que haver aplicao

    simultnea delas, variando somente a ordem e o tempo da aplicao, de forma

    a restabelecer a continuidade das normas e a coerncia do sistema49.

    47 MARQUES, Cludia Lima. Superao de antinomias pelo dilogo das fontes: o modelobrasileiro de coexistncia entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o Cdigo Civil de 2002.In: Revista da ESMESE. Aracaju: Escola Superior da Magistratura de Sergipe, n. 7, jan/jun.2004, p. 44.48 MIRAGEM, Bruno. Eppur si muove: dilogo das fontes como mtodo de interpretaosistemtica no direito brasileiro. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: doconflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais,2012b, p. 67-109.49

    BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos; BESSA, Leonardo Roscoe e MARQUES,Cludia Lima. Manual de Direito do Consumidor. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais,2013, 97.

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    4. A UTILIZAO DO DILOGO DAS FONTES NA APLICAO DANORMATIZAO CONSUMERISTA

    Na mbito consumerista, inicialmente foi proposto um dilogo

    necessrio entre o Cdigo Civil e o Cdigo de Defesa do Consumidor, em

    virtude da visvel aproximao principiolgica entre esses dois sistemas50. Com

    esta proposio afastou-se a noo de que o Cdigo Consumerista seria um

    microssistema jurdico totalmente isolado e autossuficiente em relao ao

    restante do ordenamento, o que foi decisivo para a potencializao e

    desenvolvimento dessa matria, constituindo-se em um verdadeiro marco no

    estudo do Direito das Relaes de Consumo.

    Mais tarde, foi reconhecido que entre todas as reas do Direito existia a

    possibilidade de aplicao do dilogo das fontes51. Indubitavelmente, essa

    teoria se revela como uma das maiores construes do Direito contemporneo,

    no podendo estar restrita a uma especialidade especfica. Em virtude da

    riqueza dos seus argumentos, como tambm potencialidade de

    desenvolvimentos posteriores, o dilogo contribui para a evoluo do Direito

    como um todo, eliminando suas antinomias e dando-lhe efetividade,principalmente na contemporaneidade plural e complexa em que vivemos52. Se

    no se discute mais que a aplicao simultnea de fontes normativas no est

    restrita ao Direito das Relaes de Consumo, ainda mais evidente que, nesta

    50TARTUCE, Flvio. A teoria geral dos contratos de adeso no Cdigo Civil. Viso a partir dateoria do dilogo das fontes. In: MARQUES, Claudia Lima. Dilogo das fontes: do conflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 208.51 Em virtude da previso consignada no artigo 7 do CDC, de que os direitos previstos no

    Cdigo no excluem outros assegurados em normas diferentes (o que constitui o principalfundamento para a coordenao e aplicao conjunta de distintas leis com o fito de atingir umresultado que assegure maior nvel de proteo aos consumidores), no encontrar similaridadeem outras leis, questionou-se inicialmente se o dilogo das fontes seria mtodo aplicvelapenas ao direito do consumidor, ou serviria de igual maneira para interpretao das demaisnormas jurdicas. A evoluo dos estudos doutrinrios e das decises judiciais, no entanto,parece deixar claro que a teoria do dilogo das fontes pode ser aplicada nas diversas esferasjurdicas. A ttulo de exemplo, veja-se que em Direito Ambiental esse mtodo foi aplicado peloSTJ no REsp 994.120-RS, rel. Min. Herman Benjamin, 2. T., j. 25.08.2009, DJ. 27.04.2011; noProcesso Civil, no REsp 1184765-PA, rel. Min. Luiz Fux, 1. Seo, j. 24.11.2010, DJ.03.12.2010; e no Direito Administrativo, citem-se o RMS 29.183-RS, rel. Min. HermanBenjamin, 2. T., j. 06.08.2009, DJ. 31.08.2009 e o REsp 1.139.554-RS, rel. Min. Castro Meira,2. T., j. 01.10.2009, DJ. 09.10.2009.52

    DUQUE, Marcelo Schenk. O transplante da teoria do dilogo das fontes para a teoria daConstituio. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: do conflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 129.

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    rea, o seu principal diploma normativo, o Cdigo de Defesa do Consumidor,

    passvel de mltiplos dilogos, travados no exclusivamente com o Cdigo

    Civil, mas com inmeras outras disposies normativas, incluindo Tratados e

    Convenes Internacionais que disciplinem relaes de consumo, como

    veremos adiante.

    Importante destacar que, dado o escopo do dilogo das fontes, qual

    seja, ampliar a proteo jurdica ofertada aos sujeitos mais vulnerveis, no

    permitido aplicar conjuntamente as normas para chegar a resultado menos

    favorvel ao consumidor. Essa tcnica jamais dever ser utilizada para retirar

    direitos, pois s legtima se beneficiar o consumidor. Defender o contrrio

    seria analogia in pejus, que no podemos admitir. As luzes que clareiam a

    teoria em estudo tm sede nos direitos humanos, na Constituio Federal e

    nos valores nela albergados, resulta da a concluso de que os laos

    comunicantes entre as fontes s podem ser estabelecidos quando culminarem

    no alargamento da tutela constitucional estampada no inciso XXXII do artigo 5.

    Se adotssemos o dilogo como uma via de mo dupla para afirmar

    ser possvel a preponderncia de Lei menos favorvel em alguns casos, no

    estaramos adotando dilogo, mas monlogo de Lei especial in pejus53.Certo

    que estamos acostumados com a ideia de que os mtodos interpretativos e de

    integrao podem ser utilizados para o bem e para o mal, mas com a teoria

    de Erik Jayme diferente, dado o motivo maior que a norteia, qual seja, a

    promoo dos direitos humanos.

    Frente ao disposto no artigo 7 do CDC, o mtodo em questo

    claramente orientado ao acrscimo de direitos ao consumidor. Nesse sentido,

    s ser vlida quando ampli-los, jamais quando prejudic-los. Cabe mais uma

    vez ao aplicador do Direito estar atento para realizar essa anlise, elegendocomo filtro a Constituio Federal, a fim de rejeitar resultados que possam de

    qualquer maneira limitar ou dificultar o exerccio dos direitos do consumidor54.

    Diferentemente dos critrios tradicionais, o dilogo das fontes no se

    53 MARQUES, Claudia Lima. O "dilogo das fontes" como mtodo da nova teoria geral dodireito. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: do conflito coordenaode normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 61.54 MIRAGEM, Bruno. Eppur si muove: dilogo das fontes como mtodo de interpretao

    sistemtica no direito brasileiro. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: doconflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012,p. 100/101.

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    ocupa apenas da interpretao das disposies normativas, aqui o foco maior

    no resultado da sua aplicao. A finalidade que no somente o resultado da

    interpretao, mas da aplicao do Direito no caso concreto respeite o sistema

    jurdico e efetive os objetivos especficos da rea em que estiver sendo

    aplicado. Assim, por exemplo, se o dilogo est sendo utilizado no Direito

    Ambiental, o intento vai ser alargar a proteo do meio ambiente, no nosso

    caso, esse olhar voltado para a ampliao da proteo jurdica do

    consumidor.

    Em tempos passados esse novo mtodo no teria conquistado espao,

    haja vista que os valores do modernismo no eram favorveis a sua aplicao.

    Mas o cenrio agora outro. Os fenmenos da insegurana normativa, da

    fragmentariedade e do pluralismo so determinantes para a aceitao da teoria

    do dilogo das fontes como a forma de trazer a sistematicidade, flexibilidade e

    a efetividade que o Direito atual precisa. Somente nos permitimos conhecer e

    utilizar aquilo que estamos preparados para conhecer e utilizar55, e o estgio

    ps-moderno o perodo em que a sociedade mais precisa e est mais apta a

    abraar o dilogo das fontes. A teoria de Erik Jayme no poderia ter vindo em

    poca mais adequada. Apenas nesse momento histrico reconhecemos que o

    ordenamento jurdico no um sistema completo, mas completvel, ideia que

    pressuposto bsico para a sua utilizao.

    4.1 DILOGO ENTRE O CDIGO CIVIL E O CDIGO DE DEFESA DOCONSUMIDOR

    Antes de tudo, necessrio observar que o Brasil adota um modelo de

    Direito Privado que conta com dois Cdigos separados: um microssistema

    especfico de proteo ao consumidor, cujo esprito e teleologia esto ligados a

    um novo paradigma, o paradigma da diferena56, que reconhece um dos

    sujeitos da relao de consumo como merecedor da tutela estatal por ser

    vulnervel diante da superioridade do fornecedor; e um Cdigo Civil, de carter

    55 HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Trad. Pinharanda Gomes. Lisboa:Guimares, 1985.56 MARQUES, Cludia Lima. Superao de antinomias pelo dilogo das fontes: o modelo

    brasileiro de coexistncia entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o Cdigo Civil de 2002.In: Revista da ESMESE. Aracaju: Escola Superior da Magistratura de Sergipe, n. 7, jan/jun.2004, p. 23.

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    geral, criado para regular as relaes entre iguais. No entanto, no h conflito

    real entre essas Leis, apenas antinomias aparentes que podem ser resolvidas

    com o uso da aplicao ordenada, subsidiria e especial do Cdigo Civil e do

    Cdigo de Defesa do Consumidor. Esses Cdigos no podem ser

    considerados diplomas divergentes, seno conexos, e, no mbito intrincado do

    ordenamento, ferramentas que se interpenetram e dialogam permanentemente

    para a promoo da solidariedade e do personalismo constitucionais57.

    Em sendo o CDC Lei especial para as relaes de consumo, as quais

    no deixam de ser, em seu mago, relaes civis, e o CC Lei geral sobre o

    Direito Civil, dialogam ambos os diplomas legislativos no mesmo sistema. A

    norma consumerista de 1990 torna-se permevel toda vez que a incorporao

    de outras disposies normativas contribuam para a realizao do

    mandamento constitucional de proteo ao consumidor, estabelecendo-se

    laos comunicantes entre as normas em questo, que trazem como resultado a

    consecuo da ratiode ambas.

    So trs os dilogos possveis entre o Cdigo Civil e o Cdigo de

    Defesa do Consumidor, quais sejam: dilogo sistemtico de coerncia, dilogo

    sistemtico de complementariedade e subsidiariedade em antinomias

    aparentes ou reais, dilogo das influncias recprocas sistemticas58.

    No dilogo sistemtico de coerncia, quando da aplicao

    concomitante de duas Leis, uma pode servir de base conceitual para a outra,

    principalmente se uma Lei geral e a outra especial, se uma o cerne do

    sistema e a outra um microssistema especfico, no acabado materialmente,

    mas to-somente com completude subjetiva de proteo de um grupo da

    sociedade59.

    Temos aqui um dos dilogos mais comuns, afinal o Cdigo Civil a Leibasilar do Direito Privado brasileiro, enquanto que o CDC norma especial, de

    mbito restrito s relaes envolvendo consumidores (especialidade ratione

    personae, ou subjetiva), portanto, muitos institutos jurdicos nele mencionados

    57 TEPEDINO, Gustavo. Cdigo de Defesa do Consumidor, Cdigo Civil e complexidade doordenamento. In: MARQUES, Cludia Lima (Org.). Revista de Direito do Consumidor. SoPaulo: Revista dos Tribunais, n. 56, out./dez. 2005, p. 9/11.58 MARQUES, Cludia Lima. Superao de antinomias pelo dilogo das fontes: o modelobrasileiro de coexistncia entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o Cdigo Civil de 2002.

    In: Revista da ESMESE. Aracaju: Escola Superior da Magistratura de Sergipe, n. 7, jan/jun.2004, p. 23.59Ibid, p. 45.

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    esto disciplinados apenas no Cdigo Civil. o que acontece com as

    nulidades, o conceito de pessoa jurdica, prova, decadncia, prescrio e

    tantos outros conceitos no definidos no microssistema, que devem ser

    examinados luz do CC.

    Como se percebe, os conceitos gerais e as regras bsicas acerca das

    relaes jurdicas, das obrigaes e dos contratos podem ser retirados do

    Cdigo Civil, mesmo se estivermos tratando de contrato de consumo. Assim,

    por exemplo, numa compra e venda realizada entre fornecedor e consumidor,

    todas os conceitos de contratos em espcie capitaneados na Lei Civil sero

    utilizados.

    O segundo tipo de dilogo (dilogo sistemtico de complementariedade

    e subsidiariedade em antinomias aparentes ou reais) o que mais se

    contrape antiga forma de superao de antinomias, em que, decidindo-se

    pela aplicao de uma Lei, as demais eram excludas do sistema. Aqui, a

    primeira concluso a que chegamos diz sobre a no revogao do CDC de

    1990 pelo CC de 2002, j que, em vez de leis conflitantes, so diplomas

    complementares e harmnicos60. Para alm dessa concluso, o mais

    importante a constatao de que as normas do Cdigo Reale61podem, diante

    de casos concretos, se fundir com as do CDC, a fim de complement-lo.

    Por meio desse dilogo, a prpria norma abre uma opo para o

    intrprete atingir sua ratioatravs da aplicao simultnea de outras Leis que

    tambm tratam de determinada matria62, como acontece nos artigos 721, 732

    e 777, CC63. Para os casos em que o legislador no previu essa possibilidade

    60 MARQUES, Claudia Lima. O "dilogo das fontes" como mtodo da nova teoria geral dodireito. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: do conflito coordenao

    de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 17-66.61Como tambm conhecido o Cdigo Civil Brasileiro de 2002, pelo fato de o jurista MiguelReale ter sido o supervisor da sua comisso elaboradora.62Na aplicao coordenada das duas leis, uma lei pode complementar a aplicao da outra, adepender de seu campo de aplicao no caso concreto a indicar a aplicao complementartanto de suas normas, quanto de seus princpios, no que couber, no que for necessrio ousubsidiariamente. Assim, por exemplo, as clusulas gerais de uma lei podem encontrar usosubsidirio ou complementar em caso regulado pela outra lei. Subsidiariamente o sistema geralde responsabilidade civil sem culpa ou o sistema geral de decadncia podem ser usados pararegular aspectos de casos de consumo, se trazem normas mais favorveis ao consumidor(MARQUES, Cludia Lima. Superao de antinomias pelo dilogo das fontes: o modelobrasileiro de coexistncia entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o Cdigo Civil de 2002.In: Revista da ESMESE. Aracaju: Escola Superior da Magistratura de Sergipe, n. 7, jan/jun.

    2004, p. 31).63 Art. 721: Aplicam-se ao contrato de agncia e distribuio, no que couber, as regrasconcernentes ao mandato e comisso e as constantes de lei especial. Art. 732: Aos contratos

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    expressamente, o artigo 7 do CDC serve como norma de abertura do sistema,

    que permite a proteo do consumidor da forma mais abrangente possvel, seja

    atravs do prprio microssistema, seja atravs de outra previso legal mais

    benfica. Noutros termos, toda vez que um ato normativo assegurar algum

    direito para o consumidor, ele poder ser adicionado ao microssistema do

    CDC, agrupando-se na tutela especial e tendo a mesma primazia no trato da

    relao de consumo.

    Exemplo tpico de dilogo de subsidiariedade ocorre com os contratos

    de consumo que tambm so de adeso, pois, nesses casos, a proteo dos

    consumidores constante do artigo 51 do CDC pode ser complementada e

    ampliada pelo artigo 424 do CC, que dispe sobre a proteo dos aderentes64;

    outra hiptese apontada pela doutrina65 concerne ao sistema geral de

    decadncia traado no Cdigo Civil, que pode ser usado juntamente com os

    dispositivos do CDC para regular aspectos de casos consumeristas, se

    possibilitarem uma situao mais favorvel a esses.

    O Cdigo Civil aplica-se s relaes de consumo, naquilo em que suas

    normas no divergirem diretamente com as do CDC. vista disso, possvel,

    por exemplo, aplicarem-se s relaes de consumo as clusulas gerais,

    precipuamente as constantes no CC, artigo 421 (funo social do contrato),

    artigo 422 (boa-f objetiva), e artigo 187 (abuso de direito) etc. No que se

    refere prescrio, nada obstante a regra clara prevista no artigo 27 do CDC

    sobre a prescrio quinquenal, o STJ, em certas situaes especficas, tem

    aplicado o prazo geral do CC (artigo 205: dez anos) s relaes jurdicas de

    consumo66, numa aluso clara ao dilogo ora estudado.

    Por ltimo, temos o dilogo das influncias recprocas sistemticas.

    de transporte, em geral, so aplicveis, quando couber, desde que no contrariem asdisposies deste Cdigo, os preceitos constantes da legislao especial e de tratados econvenes internacionais. Art. 777: O disposto no presente Captulo aplica-se, no que couber,aos seguros regidos por leis prprias.64TARTUCE, Flvio. A teoria geral dos contratos de adeso no Cdigo Civil. Viso a partir dateoria do dilogo das fontes. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: doconflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012,p. 209.65 MARQUES, Cludia Lima. Dilogo entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o NovoCdigo Civil: do dilogo das fontes no combate s clusulas abusivas.In: MARQUES, Claudia(Org.). Revista de Direito do Consumidor. So Paulo: Revista dos Tribunais, n. 45, jan./mar.

    2003, p. 71-99.66 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Cdigo Civil comentado elegislao extravagante. 13. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 960.

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    Esse tipo de dilogo se manifesta quando uma Lei tem seu campo de atuao

    redefinido em virtude da alterao de institutos previstos em outro diploma

    normativo. Fala-se aqui das mtuas influncias que o Cdigo Civil tem no

    Cdigo de Defesa do Consumidor e vice-versa67. Dessa forma, por exemplo, as

    definies de consumidor strictu sensu e de consumidor equiparado podem

    sofrer modificaes finalsticas do Cdigo Civil, pois existe na verdade

    influncia do sistema especial no geral e do geral no especial, um dilogo de

    coordenao e adaptao sistemtica68. Deste modo, possvel afirmar que

    os dilogos de influncias recprocas sistemticas estopresentes quando os

    conceitos estruturais de uma determinada lei sofrem influncias da outra69.

    Nessa espcie de dilogo, aproveita-se no espao de aplicao de

    uma das normas o sentido alcanado pela interpretao doutrinria

    desenvolvida para outro diploma normativo. Assim, a preciso conceitual

    definida pelos juristas para princpios ou institutos presentes em uma Lei, mas

    que so comuns a dois sistemas normativos, servem para ambos. Exemplo

    disso so as significaes atuais de abuso do direito e do princpio da boa-

    f, atribudas inicialmente pensando nas relaes previstas no CDC, mas que

    com a supervenincia do CC foram para ele transplantadas.

    4.2 DILOGO ENTRE O CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E OSDIPLOMAS NORMATIVOS INTERNACIONAIS

    O dilogo das fontes requer uma nova forma de agir do jurista, que

    antes de ver revogao ou derrogao da disposio normativa, deve

    pretender, sob as luzes e valores constitucionais, conciliar os diversos diplomas

    legais, sejam eles nacionais ou no.

    Partindo desse pressuposto, podemos concluir que a teoria em estudo

    tambm possibilita a aplicao simultnea do Cdigo de Defesa do

    Consumidor e Acordos/Tratados/Convenes Internacionais. Dessa maneira,

    uma das normas pode servir de base conceitual para a outra, pode suprir uma

    67 BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos; BESSA, Leonardo Roscoe e MARQUES,Cludia Lima. Manual de Direito do Consumidor. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais,2013, p. 94.68Ibid.69

    TARTUCE, Flvio. A teoria geral dos contratos de adeso no Cdigo Civil. Viso a partir dateoria do dilogo das fontes. In: MARQUES, Claudia Lima. Dilogo das fontes: do conflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 209.

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    lacuna, ou mesmo, sob a tica de coerncia do ordenamento jurdico, quando

    aplicadas conjuntamente, podem possibilitar a ampliao dos direitos e

    garantias contidos separadamente em seus textos. Analisando a questo da

    responsabilidade civil do transportador areo por danos causados aos

    passageiros (e seus bens) tornaremos compreensveis essas afirmaes.

    O transporte areo se divide em internacional e nacional. O primeiro foi

    disciplinado pela Conveno de Varsvia (1929), que foi substituda pela

    Conveno de Montreal (1999), aprovada no Brasil por meio do Decreto

    Legislativo n 59 e promulgada em 27 de setembro de 2006 pelo Decreto

    5.910. Portanto, a Conveno de Montreal , desde 2006, o diploma legal que

    regula o transporte areo em escala internacional no Brasil.

    No sistema de Montreal, a indenizao do transportador objetiva,

    com base na teoria do risco da atividade (artigo 17, inciso I) 70, desde que no

    exceda um valor mximo, correspondente quantia aproximada de

    U$ 133.000,00 (artigo 21)71. Acima dessa quantia a responsabilidade

    subjetiva, embora com culpa presumida (art. 21, inciso II, alneas a e b) 72,

    tendo em vista que o transportador areo poder desobrigar-se do dever de

    indenizar se comprovar que o dano no se deveu culpa ou a outra ao ou

    omisso sua ou de seus prepostos ou que o dano decorrncia, unicamente,

    da conduta de um terceiro.

    J o transporte areo realizado exclusivamente dentro do territrio

    nacional regulado pelo Cdigo Brasileiro de Aeronutica CBA (Lei Federal

    n 7.565/1986), cujos princpios, notadamente no que tange responsabilidade

    civil do transportador, no diferem daqueles adotados pela Conveno de

    Montreal.

    Aps a promulgao do CDC estabeleceu-se a controvrsia em relao

    70Artigo 17, I: O transportador responsvel pelo dano causado em caso de mor