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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTECENTRO DE CINCIAS SOCIAIS APLICADAS
DEPARTAMENTO DE DIREITO PBLICOCURSO DE GRADUAO EM DIREITO
Rafael Gomes de Queiroz Neto
A APLICAO DA TEORIA DO DILOGO DAS FONTESCOMO FORMA DE AMPLIAO DA PROTEO JURDICA DOCONSUMIDOR
Natal/RN2014
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Rafael Gomes de Queiroz Neto
A APLICAO DA TEORIA DO DILOGO DAS FONTES COMO FORMADE AMPLIAO DA PROTEO JURDICA DO CONSUMIDOR
Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao cursode graduao em Direito da Universidade Federal do RioGrande do Norte, como requisito para obteno do graude bacharel em Direito.
Orientador: Prof. MSc. Fabrcio Germano Alves
Natal/RN2014
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Rafael Gomes de Queiroz Neto
A APLICAO DA TEORIA DO DILOGO DAS FONTES COMO FORMADE AMPLIAO DA PROTEO JURDICA DO CONSUMIDOR
Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao curso -de graduao em Direito da Universidade Federal do RioGrande do Norte, como requisito para obteno do graude bacharel em Direito.
Aprovado em: 22/08/2014
BANCA EXAMINADORA:
_______________________________________________Prof. MSc. Fabrcio Germano Alves - UFRN
Presidente
_______________________________________________Prof. Dr. Patrcia Borba Vilar Guimares - UFRN
Examinadora
______________________________________________Prof. MSc. Samuel Max GabbayUFRN
Examinador
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AGRADECIMENTOS
Agradeo primeiramente a Deus, por me mostrar que posso ser mais
forte do que pensava ser.
A esta Universidade e ao corpo docente do curso de Direito, por
acreditar no nosso potencial, enquanto alunos, e nos ensinar a ser profissionais
comprometidos com a sociedade e dispostos a transform-la.
Ao meu pai Jos de Arimateia, minha me Sebastiana e meu irmo
Francisco de Assis, pelo apoio e por tudo que sempre fizeram por mim; pela
simplicidade, exemplo, amizade, e carinho, fundamentais na construo do
meu carter. Sem o apoio e o amor incondicional de vocs eu jamais
conseguiria concluir essa etapa. A vocs, todo o meu respeito e toda a minha
gratido.
Aos meus dois sobrinhos, Joo Pedro e Joo Gabriel, que so como
filhos pra mim. A doura e a inocncia de vocs me fazem enxergar o mundo
com muito mais entusiasmo!
Aos meus colegas do curso, por me suportarem nos momentos difceis e
me ajudarem durante toda a caminhada. com um orgulho imenso que eu
compartilho essa vitria com vocs.
A minha querida amiga Sandra Nogueira Alves Maciel, por despertar em
mim o interesse pelo tema deste trabalho e pelo material emprestado durante
sua elaborao.
Aos demais amigos, que me aconselharam nos momentos de dvida e
me acolheram nos dias de tormenta.
Ao meu orientador, Fabrcio Germano Alves, por aceitar orientar este
trabalho antes mesmo de me conhecer e pelo essencial suporte oferecidodurante o desenvolvimento da pesquisa.
A todos que, direta ou indiretamente, contriburam para a minha
formao, o meu agradecimento sincero!
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Consumidores somos todos ns.
(John Kennedy)
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RESUMO
O presente trabalho objetiva, valendo-se de uma pesquisa bibliogrfica na doutrinajurdica afeita ao tema (livros, artigos e revistas especializadas), bem como da anlise
da jurisprudncia e da legislao em vigor; avaliar como a aplicao da teoria dodilogo das fontes pode contribuir para a coerncia do sistema jurdico e para aampliao da proteo do consumidor. Percebe-se que os complexos conflitosnormativos oriundos do pluralismo ps-moderno trouxeram grandes desafios para oaplicador do Direito que no podem ser superados satisfatoriamente atravs doscritrios clssicos de soluo de antinomias. Nesse contexto, a adoo da teoria dodilogo das fontes no Direito brasileiro representa uma mudana no comportamentodo jurista diante das antinomias jurdicas, pois afasta a necessidade de excluir umadas normas conflitantes do sistema e introduz a ideia de aplicao simultnea ecoerente das diversas fontes normativas do Direito. Enfatiza-se que atravs dosmltiplos dilogos realizveis entre o Cdigo de Defesa do Consumidor, o Cdigo Civile outros diplomas normativos possvel tornar a defesa do consumidor muito maisabrangente, pois qualquer disposio normativa do sistema jurdico ser aplicada comessa finalidade. Verificou-se, ainda, que a jurisprudncia ptria j adota o dilogo dasfontes como mtodo interpretativo e de resoluo de conflitos normativos,reconhecendo seus benefcios no somente no direito do consumidor, onde nasceu ese desenvolveu, mas nas diversas disciplinas jurdicas.
Palavras-chave: Pluralismo. Conflito de normas. Dilogo das fontes. Proteo doconsumidor.
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ABSTRACT
The present work aims, availing oneself of a bibliographic search in the juridic doctrine
used to the theme (books, articles and specialized magazines), add to that the analysisof jurisprudence and the legislation in force, evaluating how the apllication of thedialogue of the foutain's theory can contribute to the coherence of the judicial systemand to the amplification of the consumer protection. It perceives that the normativeconflicts complex arising of the post modern pluralism brought big challenges to theLaw applicator that can not be dominated satisfactorily through the classic rules of thesolution of antinomies. In this context, the adoption of the dialogue of the foutain'stheory in the Brazilian Law, legitimated by Private Law constitucionalisation and by therecognition of the surface effectiveness of the fundamental rights, it represents achange in the lawyer conduct in front of the judicial antinomies, because it removes thenecessity of excluding one of the rules conflictiing of the system and it introduces theidea of simultaneous application and coherence of the several normative foutains of theLaw. It emphasizes that through of the multiples possible dialogues between theDefense Consumer Code, the Civil Code and others normative diplomas it's possible tobecome the consumer's defense much more comprehensive, because any normativedisposition of the juridic system will be applied with this finality. It was examine, still,that the native coutry jurisprudence at once adopts the fontain's dialogue likeinterpretative method and the normative conflicts resolution, recognizing its benefitsnot only in the consumer law, where it rose and developed it, but in the several judicialdisciplines.
Key-words:Pluralism. Conflict of rules. Fontain's dialogue. Consumer's Protection.
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SUMRIO
1 INTRODUO.................................................................................................................. 9
2 O PROBLEMA DA CONFLITUOSIDADE NORMATIVA NA PS-
MODERNIDADE.................................................................................................................... 12
2.1 O PLURALISMO JURDICO....................................................................................... 14
2.2 A INSUFICINCIA DOS MTODOS CLSSICOS DE SOLUO DE
ANTINOMIAS.......................................................................................................................... 17
3 A TEORIA DO DILOGO DAS FONTES COMO SOLUO DE
CONFLITOS NORMATIVOS............................................................................................. 23
4. A UTILIZAO DO DILOGO DAS FONTES NA APLICAO DA
NORMATIZAO CONSUMERISTA............................................................................ 32
4.1 DILOGO ENTRE O CDIGO CIVIL E O CDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR....................................................................................................................... 34
4.2 DILOGO ENTRE O CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E OS
DIPLOMAS NORMATIVOS INTERNACIONAIS.......................................................... 38
4.3 DILOGO ENTRE O CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E A
LEGISLAO PROTETORA DOS HIPERVULNERVEIS..................................... 43
5 INCORPORAO DA TEORIA DO DILOGO DAS FONTES PELA
JURISPRUDNCIA PTRIA............................................................................................. 52
6 CONSIDERAES FINAIS........................................................................................ 56
REFERNCIAS...................................................................................................................... 58
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1 INTRODUO
Em um Direito que se mostra cada vez mais plural, tanto no que tange
aos sujeitos nele envolvidos quanto quantidade de fontes legislativas, tornou-
se imprescindvel que o jurista saiba proceder a uma interpretao coordenada
das disposies normativas, a fim de tornar o sistema jurdico mais coerente e
justo. Esse o maior desafio do intrprete ps-moderno: procurar uma perfeita
harmonia do ordenamento jurdico, sempre objetivando preservar a unidade do
Direito.
Surge, pois, a teoria do dilogo das fontes, mostrando ser possvel a
coexistncia de normas que aparentemente conflitam atravs da aplicao
plural e simultnea das fontes normativas. Afasta-se a anacrnica ideia de
monossoluo, segundo a qual apenas uma norma pode regular determinado
caso concreto. Em vez de anular a aplicabilidade de uma norma, o dilogo das
fontes prope a utilizao coordenada das diversas Leis e fontes do Direito.
Essa exigncia de aplicao harmoniosa das Leis nasce da prpria
Constituio Federal de 1988, que elegeu como um dos seus fundamentos a
dignidade da pessoa humana (artigo 1, inciso III), valorizando-a como sujeito
de direito e ampliando em favor dela o rol dos direitos fundamentais e os
mecanismos para a sua efetivao. O olhar voltado para a pessoa humana e
sua dignidade tambm pode ser verificado na proteo que dispensada aos
hipossuficientes, j que a Constituio Federal dedicou especial ateno a
quem precisa de maior tutela, como as crianas e os adolescentes (artigo 227),
os deficientes (artigos 23, inciso II e 24, inciso XIV) e os idosos (artigo 230),
tendo o legislador ordinrio, inclusive, criado microssistemas especficos com o
escopo de melhor proteger alguns desses grupos.Nesse contexto, a defesa do consumidor, parte vulnervel da relao
de consumo, tambm foi erigida categoria de direito fundamental (artigo 5,
inciso XXXII). No entanto, em que pese estar-se despertando para um
momento novo, em que a tutela do consumidor passa a ser um direito basilar
de qualquer cidado brasileiro, ainda so enfrentados srios obstculos para a
sua efetivao.
Mesmo aps o cumprimento, pelo Congresso Nacional, da determinaoconstitucional inserta no artigo 48 do Ato das Disposies Constitucionais
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Transitrias (ADCT), qual seja, a elaborao do Cdigo de Defesa do
Consumidor - CDC (Lei Federal n 8.078/1990)1, ainda so inmeras as
dificuldades para alcanar resultados satisfatrios na concretizao dos
preceitos normativos constantes do Cdigo, notadamente diante da
multiplicidade de diplomas legais em voga (pluralismo jurdico), que dificulta
uma aplicao integrada e sistmica do Direito.
Eis, portanto, o maior objetivo desse trabalho: discutir como a adoo
do dilogo das fontes, teoria desenvolvida pelo alemo Erik Jayme e
disseminada no Brasil por Cludia Lima Marques, pode contribuir para a
coerncia do sistema jurdico e a ampliao da proteo jurdica do
consumidor. Este trabalho possui tambm a finalidade de procurar maneiras
prticas de superar a atual crise de credibilidade que afeta todas as reas do
Direito, inclusive a consumerista.
Partimos da necessidade de estudar maneiras viveis de dar efetividade
aos artigos 5, inciso XXXII e 170, inciso V, da Constituio Federal, mediante
o estudo de uma teoria que pode contribuir para alcanar esse objetivo, com o
plusde trazer para o Direito a harmonia que tanto necessita nesses tempos de
multiplicidade normativa e insegurana jurdica, considerando que as
oportunidades de aplicao da teoria do dilogo das fontes so inmeras e no
esto restritas ao Direito das Relaes de Consumo.
Para cumprir com esses objetivos, a pesquisa foi dividida em 6
Capitulos, incluindo a presente Introduo (Captulo 1) e as Consideraes
Finais (Captulo 6).
No capitulo 2, abordamos o problema da conflituosidade normativa no
contexto da ps-modernidade, apontando suas principais caractersticas e
como o Direito atingido pelos fenmenos decorrentes dessa fase atual dasociedade, fazendo um contraponto com o perodo histrico que a antecedeu,
qual seja, a modernidade. Explicamos tambm os mtodos clssicos de
resoluo de antinomias para, a partir da, demonstrar sua insuficincia, frente
hodierna complexidade e pluralidade do ordenamento jurdico.
1
Atente-se para o fato de que o cumprimento foi parcial, tendo em vista que o dispositivoestabelecia o prazo de 120 (cento e vinte) dias para a elaborao do Cdigo de Defesa doConsumidor, limite que no foi observado pelo legislador.
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No captulo 3, apresentamos a teoria do dilogo das fontes, legitimada
pela constitucionalizao do Direito Privado e pelo reconhecimento da eficcia
horizontal dos direitos fundamentais, como uma alternativa vivel para
solucionar os conflitos normativos contemporneos.
No captulo 4, abordamos as repercusses prticas da adoo do
dilogo das fontes na proteo do consumidor e na efetivao da sua tutela,
esclarecendo que essa teoria s pode ser utilizada para ampliar direitos, nunca
com a finalidade de limit-los. Destacamos ainda os dilogos que podem ser
estabelecidos entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e os demais diplomas
normativos, nacionais e internacionais.
No captulo 5, fizemos uma anlise dos principais julgados
fundamentados no dilogo das fontes, a fim de confirmar a paulatina
consolidao dessa teoria na jurisprudncia dos Tribunais brasileiros, que
reconhecem seus benefcios para a defesa do consumidor.
Por derradeiro, revelamos nossas concluses gerais sobre o tema, entre
as quais a de que a utilizao do dilogo das fontes no dia a dia forense ser
capaz de possibilitar um avano considervel na proteo do consumidor, por
nos fazer apreender que o papel de tutel-lo de todo o sistema jurdico, e no
somente do seu Cdigo de Defesa.
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2 O PROBLEMA DA CONFLITUOSIDADE NORMATIVA NA PS-MODERNIDADE
O contexto histrico contemporneo pode ser definido como ps-
moderno2
. A ps-modernidade um fenmeno complexo que transita por todasas formas de relaes sociais e de manifestao de pensamento humano
(poltico, artstico, cientfico etc). Tal fenmeno expandiu-se nas ltimas
dcadas pelo mundo inteiro e o responsvel pelo que chamamos de
civilizao globalizada ou ps-moderna, em que a tecnologia dos meios de
transporte, o fluxo veloz de informaes e a comunicao instantnea
relativizaram os conceitos de tempo e espao, inserindo o individuo,
independentemente da sua nacionalidade, em uma sociedade mundial sem
fronteiras3.
Em volta do fenmeno ps-moderno, dada a sua abrangncia e
aplicao em vrios campos do saber, so inmeros os olhares e
interpretaes. A par disso, parece haver concordncia com o fato de que esse
contexto representa uma poca de rupturas e incertezas quanto continuidade
de uma viso geral de mundo construda e vivenciada ao longo dos ltimos
sculos.
A ps-modernidade o tempo da fluidez, poca em que a sociedade
avana em vrios sentidos, porm, levantando preocupaes quanto s suas
atitudes e seu destino. A caracterstica da liquidez vem do fato de que os
lquidos no tm uma forma, so fludos que se acomodam segundo o
recipiente nos quais esto inseridos, diferentemente dos slidos, que so
rgidos e precisam sofrer um conflito de foras para moldar-se a novas formas4.
Assim o contexto ps-moderno: fludo e descontnuo, marcado
profundamente pela fragmentariedade5.
Ao contrrio da modernidade, com todas as pretenses de unidade,
2SANTOS, Boaventura de Sousa. Os processos de globalizao. In: SANTOS, Boaventura deSousa (Org.). A globalizao e as cincias sociais. 3. ed. So Paulo: Cortez, 2005, p. 25-102.3 LYOTARDE, Jean-Franois. A condio ps-moderna. 2. ed. Trad. Jos B. deMiranda.Lisboa: Gradiva, 1989.4 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Lquida. Trad. Plnio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar,2003.5 Fragmentarriedade, nesse contexto, compreendida como incompletude das ideias,
descontinuidade dos discursos, heterogeneidade de conceitos e ecletismo, que propicia osurgimento, no Direito, do pluralismo jurdico, na medida em que admite que todas as vozeslegtimas que ressoam da sociedade tm o direito de serem ouvidas e consideradas.
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coerncia e universalidade de valores; a fragmentao, a indeterminao e a
intensa desconfiana de todos os discursos universais e totalizantes so os
marcos do pensamento ps-moderno. A cultura ps-moderna apresenta
caractersticas bem especficas, tais como, o pluralismo de fontes do direito e
dos sujeitos que atuam no cenrio internacional; a pluralidade, multiplicidade e
complexidade das relaes jurdicas; a internacionalizao; a fluidez dos
relacionamentos entre os indivduos; a fuso dos conceitos de direito pbico e
privado; o emprego de formas contratuais simples e complexas e, ainda, a
utilizao de conceitos novos e tradicionais a um s tempo e no mesmo
contexto6.
A ps-modernidade no apenas um movimento intelectual, ou
meramente um aglomerado de ideias crticas a respeito da modernidade. Ela
se manifesta a todo momento na nossa realidade, a partir da modificao dos
valores, dos costumes, das instituies e dos hbitos sociais, fenmenos
tpicos da sociedade atual. As conquistas recentes que se espraiam nos
diversos domnios do conhecimento, combinadas com as desestruturaes
sociais citadas atestam o quadro de transio em que estamos inseridos.
Essas mudanas representativas da ps-modernidade tambm se projetam no
mbito do Direito, que passa a ser enxergado como um processo em
transformao, permevel s novas demandas e adaptvel aos novos atores
sociais, diferentemente da viso esttica e acabada que lhe emprestava a
ideologia iluminista dos sculos XVIII e XIX7.
Presenciamos, verdade, uma era de crise de valores e de modelos,
uma poca de mutaes, em que o direito, como expresso cultural de um
povo, sofre reflexos maiores ou menores das mudanas valorativas,
econmicas, histricas, ticas e mesmo religiosas de seu tempo8. Sendo oDireito uma das formas de expresso cultural da sociedade, diretamente
afetado pelas variaes que emergem da cultura ps-moderna, encontrando-
6 SILVA, Evelise Leite Pncaro da. Contratos de bens vivos: uma realidade desafiadora einstigante, a provocar transformaes sociais e jurdicas, e o dilogo das fontes. In:MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: do conflito coordenao de normasdo direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 356.7 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na ps-modernidade. In: Revista Sequncia.Santa Catarina: Universidade Federal de Santa Catarina, n. 57, dez. 2008, p. 142.8
MARQUES, Cludia Lima. Laudatiopara Erik JaimeMemrias e Utopia. In: Cadernos doPrograma de Ps-Graduao em Direito PPGDir./UFRGS. 2. ed. Porto Alegre:Universidade Federal do Rio Grande do Sul, n. 1, mar. 2003, p. 57-58.
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se, junto com ela, em convulso e em plena evoluo.
A cincia jurdica, pois, se v diante do desafio de se reconstruir e
adequar seus institutos jurdicos a um mundo marcado pela fragmentao das
ideias. No mbito do Direito Privado, por exemplo, a tradio de elaborar
cdigos, compreendidos como personificao da unidade e coerncia
normativa na modernidade, no tem mais a mesma adeso de antes quando
comparada com as tendncias atuais de descodificao e constitucionalizao
de normas privadas. Hoje o Cdigo Civil CC (Lei Federal n 10.406/2002)
divide espao com outros cdigos, leis esparsas e microssistemas (v.g., o
microssistema consumerista), perdendo a centralidade no ordenamento jurdico
que tivera outrora.
Sa na modernidade os traos dominantes eram a racionalidade, a
sistematicidade e a pretensa universalidade dos conceitos; com o fenmeno da
ps-modernidade comeamos a conviver com uma realidade ambgua e
multiforme, que se transforma cada vez mais velozmente.
2.1 O PLURALISMO JURDICO
correto afirmar que a sociedade contempornea , como um todo,repleta de pluralidades, seja de interesses, de culturas, de valores etc;
necessitando assim, estar apta a assumir a resoluo de seus conflitos de
maneira tambm pluralista, sempre com aceitao e respeito individualidade
e diferena de cada um de seus habitantes. Atravs dessa aspirao, que
germina do desejo da prpria sociedade, surge a ideia do pluralismo jurdico,
cuja principal particularidade significar uma grande quantidade de fenmenos
heterogneos e interligados.
A cultura ps-moderna emerge em todas as manifestaes da cultura
atual, da qual o Direito faz parte. O ps-modernismo a poca do pluralismo,
com reflexos ntidos no Direito quando nos deparamos com pluralidade de leis
especiais, de agentes a proteger e de sujeitos de uma relao de consumo9.
Um dos principais sintomas de influncia do paradigma ps-moderno no
mundo jurdico a hipercomplexidade, caracterizada pela multiplicidade de
9 JAYME, Erik. Identit culturale et intgration: le troit internationale priv postmoderne. In:Ruceil de Cours de lAcadmie de Droit International de la Haye . Haye: Nijhoff, 1995, p. 36.
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fontes jurdicas, materiais e formais, a regular uma pluralidade de grupos e
interesses sociais que buscam, ao invs de valores compartilhados, o
reconhecimento de seus prprios valores e vises de mundo (o direito
diferena)10.
necessrio esclarecer que tanto a modernidade quanto a ps-
modernidade so baseadas no discurso dos direitos. No primeiro perodo,
temos o discurso dos direitos adquiridos, da segurana e da ordem
institucional; no segundo, por sua vez, o enfoque se d nos direitos humanos e
fundamentais, como resultado de um objetivo de poltica legislativa que v com
um enfoque material o princpio da isonomia, reconhecendo que necessrio
tratar desigualmente aqueles sujeitos da sociedade considerados vulnerveis
ou mais fracos, como crianas, idosos, deficientes, trabalhadores e
consumidores, por exemplo11. No h nada mais diferenciador, mais individual,
mais essencial e justo do que o reconhecimento dos direitos do homem. Se
observarmos bem, o exerccio dos direitos fundamentais o prprio exerccio
da individualidade e do direito que cada um tem de ser diferente12.
O pluralismo nos impe o dever de respeitar a identidade cultural dos
povos e os direitos humanos de forma geral. Ele exige que destinemos
tratamento jurdico diferenciado para situaes diferentes, como forma de
praticar o princpio da igualdade real.
O direito igualdade um dos pilares do Direito moderno, contudo,
compreendido quase sempre num aspecto formal, como direito negativo
igualdade, ou seja, direito de defesa que determina a no interveno na esfera
particular dos indivduos por parte da sociedade e do Estado. Numa sociedade
plural nos deparamos com o direito a ser e permanecer diferente. E esse direito
diferena tambm um dos aspectos da igualdade, dessa vez, vista numaspecto material, reconstruda por aes positivas do Estado em prol do
indivduo inserido em determinado grupo. O saber ps-moderno no somente
instrumento dos poderes. Ele refina nossa sensibilidade s diferenas e refora
10 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O direito ps-moderno e a codificao. In: MARQUES,Claudia Lima (Org.). Revista de Direito do Consumidor. So Paulo: Revista dos Tribunais, n.33, jan./mar. 2000, p. 123-129.11MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Contedo jurdico do princpio da igualdade. 3. ed.Malheiros: So Paulo, 2012, p. 9/15.12
MARQUES, Claudia Lima. O "dilogo das fontes" como mtodo da nova teoria geral dodireito. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: do conflito coordenaode normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 60.
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nossa capacidade de suportar o incomensurvel.
A ps-modernidade caracteriza-se pela rejeio catalogao e
sistematizao, no sentido de no admitir a imposio de estilos de vida ou
paradigmas dogmticos13.A pluralidade que emerge na cultura ps-moderna
valoriza a autonomia da vontade, a liberdade, mas tambm o direito
diferena. Conforme ensina Erik Jayme, o que caracteriza a cultura ps-
moderna que a ideia de diferena faz nascer sobretudo o direito ao respeito
identidade cultural14.
Especificamente no mbito jurdico, Erik Jayme identifica as
caractersticas da cultura ps-moderna, quais sejam: a comunicao, a
narrao, o retorno do sentimentos, a forte tendncia de valorizao dos
direitos humanos e o pluralismo15.
Quanto ao pluralismo, observamos sua manifestao quando nos
deparamos com a multiplicidade de fontes legislativas regulando um mesmo
fato; com o fenmeno da descodificao; com os valores antinmicos
coexistentes numa mesma sociedade (a relao consumidor x fornecedor, ,
por sua prpria natureza, antinmica) e com o exponencial aumento dos
sujeitos, muitas vezes difusos como so os consumidores, carentes de
13MARIGHETTO, Andrea. Passagem da teoria sistemtico-moderna teoria finalstica ou ps-moderna. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: do conflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 120.14No idioma original: Ce qui caractrise la culture postmoderne est que lide de la diferenceentrane surtout le droit au respect de lidentit culturelle. JAYME, Erik. Identit culturale etintgration: le troit internationale priv postmoderne. In: Ruceil de Cours de lAcadmie deDroit International de la Haye. Haye: Nijhoff, 1995, p. 251.15 Para Jayme, a escolha desses valores da cultura ps-moderna parece ser arbitrria, noentanto, admite pr em destaque a ligao entre o direito e a ps-modernidade. A comunicaosem fronteiras um valor bsico do mundo ps-moderno. A cada dia o mundo se torna maissedento de comunicao, pois as pessoas difundem informaes com mais frequncia e
trocam experincias com indivduos de lugares totalmente diferentes. Essa necessidade invadetambm o Direito (v.g a crescente importncia do estudo do direito comparado e do nmero denormas com eficcia transnacional), que tende a se internacionalizar. A narrao significa umnovo mtodo de elaborao de normas legais, no mais editadas para regular condutas, e simpara narrar seus objetivos, seus princpios, suas finalidades, positivando assim os objetivos dolegislador, de forma a auxiliar na interpretao teleolgica e no efeito til dos seus diplomasnormativos. Por sua vez, o retorno aos sentimentos (le retour des sentiments) a volta daemocionalidade no discurso jurdico, atravs dos elementos sociais ou ideolgicos extrados defora do sistema positivado, criando forte insegurana e imprevisibilidade quanto s solues aserem adotadas nos casos concretos. Tambm se refere ao individualismo e aos conflitos quepodem ocorrer como consequncia das diferenas entre os povos e suas culturas. Porderradeiro, principalmente em decorrncia da centralidade que a pessoa humana conquistouno ordenamento jurdico, vivenciamos o revival dos direitos humanos. (JAYME, Erik. Direito
Internacional Privado e Cultura Ps-Moderna. In: Cadernos de Ps-Graduao em Direito PPGDir./UFRGS. 2. ed. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, n. 1, dez.2004, p. 59).
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proteo estatal. Alm disso, h tambm a pluralidade de agentes ativos de
uma mesma relao, tais quais os fornecedores, que cada vez mais se
aparelham em cadeias e em relaes extremamente despersonalizadas16.
Sem dvidas, o aspecto mais importante da influncia do pluralismo ps-
moderno no mundo jurdico relaciona-se ao crescimento, em nmero e
complexidade, de legislaes nacionais e internacionais, que no raras vezes
disciplinam assuntos convergentes, dando ensejo ao pluralismo de fontes
normativas.
Na tradicional compreenso do sistema jurdico, esse fato colocaria em
dvida o principio do direito intertemporal, segundo o qual a preservao da
unidade e coerncia desse sistema exigiria a excluso de ao menos uma
dentre essas Leis (ab-rogao, derrogao, revogao), a fim de sanar
provveis antinomias.
Contudo, acolhendo a teoria do dilogo das fontes, a aplicao, a
integrao e a interpretao das normas jurdicas no mais pressupem a
eliminao de uma das regras do sistema, como resultado de uma antinomia
ou de um conflito de normas. Antes disso, o dilogo das fontes possibilita a
coordenao e coerncia sistemtica das vrias fontes do Direito, assegurando
a conformidade entre elas e a supremacia da Constituio Federal e, mais
ainda, dos seus valores e direitos fundamentais. No contexto de um sistema de
Direito que pretende abarcar mltiplos sujeitos e mltiplas fontes legislativas de
diferentes naturezas, nasce a exigncia de um ordenamento jurdico coeso e
justo.
2.2 A INSUFICINCIA DOS MTODOS CLSSICOS DE SOLUO DE
ANTINOMIAS
A existncia de normas conflitantes ou com mesmo campo de
regulao um problema com que se depararam juristas de todas as pocas17.
No entanto, admitir que o ordenamento jurdico contm antinomias tambm
admitir a falibilidade do aparelho estatal, deslegitimar o Direito e assumir sua
16 JAYME, Erik. Direito Internacional Privado e Cultura Ps-Moderna. In: Cadernos de Ps-
Graduao em Direito PPGDir./UFRGS. 2. ed. Porto Alegre: Universidade Federal do RioGrande do Sul, n. 1, dez. 2004, p. 36 e ss.17BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurdico. Braslia: Editora UNB, 1994, p. 81.
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incapacidade de cumprir com um dos objetivos principais para o qual foi criado,
que promover a paz social atravs da segurana jurdica. Nesse contexto,
adota-se a tese de que o Direito no tolera antinomias. As normas que
constituem um ordenamento no esto isoladas, mas se tornam parte de um
sistema, dado que certos princpios agem como conexes pelas quais as
normas so reunidas de modo a constituir um bloco sistemtico.
Em suma, sendo o ordenamento jurdico um sistema, a
incompatibilidade entre normas jamais ser intransponvel, pois qualquer
choque entre elas pode ser resolvido recorrendo-se aos mecanismos fixados
pelo prprio sistema, que, necessariamente, esclarecer qual o preceito deve
ser descartado e qual deve ser declarado vlido.
Normas incompatveis so aquelas que no podem ser ambas
verdadeiras, dando ensejo, portanto, a trs tipos de incompatibilidades, quais
sejam: entre uma norma que comanda fazer alguma coisa e uma norma que
probe faz-lo; entre uma norma que comanda fazer e uma que permite no
fazer e, finalmente, entre uma norma que probe fazer e uma que permite
fazer18.
Para solucionar essas antinomias e manter a unidade sistemtica do
ordenamento jurdico, alguns critrios so oferecidos19.
O primeiro deles a anterioridade (lex posterior derogat priori), ou seja,
em caso de conflito entre duas normas criadas ou vigoradas em momentos
cronolgicos distintos, sobrepe-se a norma posterior.
A especialidade (lex specialis derogat generali) o segundo critrio a
ser utilizado, segundo o qual dentre as normas incompatveis, sempre que uma
for geral e outra especial, prevalecer a segunda.
Por ltimo, temos o critrio hierrquico (lex superior derogat inferior),que consiste na prioridade dada, em caso de antinomia, a uma norma
portadora de statushierarquicamente superior ao seu par antinmico.
A depender da quantidade de critrios que estejam envolvidos no
conflito normativo, podemos nos deparar com diferentes graus de coliso.
Antinomias de 1 grau so as que envolvem apenas um dos critrios
acima expostos. Nesse caso, a soluo simples, pois se dar da forma que
18Ibid., p. 85
19Ibid., p. 91.
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acabamos de descrever (lei posterior revoga lei anterior, lei especial revoga lei
geral e lei superior revoga lei inferior).
Por sua vez, as antinomias de 2 grau envolvem dois dos critrios
analisados. Nessas situaes, os mecanismos devem ser aplicados na ordem
em que foram citados, pois h uma gradao entre eles, de maneira que o da
anterioridade o mais frgil e o da hierarquia o mais forte de todos, dada a
importncia do Texto Constitucional20. Assim, entre uma norma especial
anterior e outra geral posterior, prevalecer o critrio da especialidade, sendo
declarada aplicvel a primeira norma. Havendo conflito entre norma superior
anterior e outra inferior posterior, prevalece tambm a primeira (critrio
hierrquico).
At agora, todas as hipteses mencionadas so de antinomias
aparentes, j que podem ser resolvidas atravs de um procedimento delineado
abstratamente. No entanto, o problema ocorre quando se tem conflito entre
uma norma geral superior e outra norma especial e inferior, pois, nessa
circunstncia, no estaramos diante de um conflito aparente, mas de um caso
de antinomia real, que no poderia ser solucionado atravs de uma regra geral,
pr-estabelecida.
No conflito entre o critrio hierrquico e o da especialidade, havendo
uma norma superior-geral e outra norma inferior-especial, no possvel,
genericamente, estabelecer uma regra que d preferncia hierarquia ou
especialidade da lei, sem contrariar a adaptabilidade do Direito. A depender do
caso em anlise que se escolher um desses critrios, no existindo, in
abstractu, qualquer prevalncia entre eles. Embora, segundo os ensinamentos
20
Conhecida a teoria de Hans Kelsen, expressada no livro Teoria pura do direito, que aduz:
Como a norma fundamental o fundamento de validade de todas as normas pertencentes auma mesma ordem jurdica, ela constitui a unidade na pluralidade destas normas. Esta unidadetambm se exprime na circunstncia de uma ordem jurdica poder ser descrita em proposiesjurdicas que no se contradizem. No se pode, contudo, negar-se a possibilidade de os rgosjurdicos efetivamente estabelecerem normas que entre em conflito umas com as outras. [...]Um conflito de normas surge quando uma norma determina uma certa conduta como devida eoutra norma tambm determina como devida outra conduta, inconcilivel com aquela. [...]Como, porm, o conhecimento do direito procura apreender o seu objetivo como um todo desentido e descrev-lo em proposies isentas de contradio, ele parte do pressuposto de queos conflitos de normas no material normativo que lhe dado podem e devem necessariamenteser resolvidos pela via da interpretao de escalo inferior, quer dizer, entre uma norma quedetermina a criao de uma outra e essa outra, no pode existir qualquer conflito, pois a normado escalo inferior tem seu fundamento de validade na norma do escalo superior. Se uma
norma do escalo inferior considerada como vlida, tem de se considerar como estando emharmonia com uma norma do escalo superior. (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad.Joo Baptista Machado. So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 228/232).
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de Bobbio, deva-se optar, teoricamente, pela norma geral e hierarquicamente
superior, em situaes especficas essa premissa pode no apresentar a
soluo mais justa, se considerarmos que por vezes um direito previsto na
Constituio s pode ser exercitado quando minuciosamente detalhado na
norma infraconstitucional. A supremacia do critrio da especialidade se
sustentaria, nessa circunstncia, com alicerce no mais alto princpio da justia:
suum cuique tribuere21, baseado na interpretao de que o que igual deve ser
tratado como igual, j o que diferente deve receber tratamento distinto. Esse
princpio serviria at certa medida para solucionar antinomias, tratando
igualmente o que igual e desigualmente o que desigual, fazendo sempre as
diferenciaes exigidas ftica e valorativamente22.
Ainda que realizando esse esforo interpretativo para adaptar a teoria
de Bobbio aos casos mais complexos, o fato que, utilizando-se dos critrios
clssicos, independentemente do tipo de antinomia verificada (se de 1 ou 2
graus, aparente ou real), sempre que houvesse uma superposio entre os
campos de regulao das leis ao juiz caberia decidir o conflito, declarando a
prevalncia de uma lei e excluindo as demais do sistema23.
Em partes, esses critrios foram, inclusive, incorporados no
ordenamento jurdico brasileiro atravs da Lei de Introduo s Normas do
Direito Brasileiro (Decreto-Lei n 4.657/1942), que em seu artigo 2, 1,
descreve os casos de revogao da lei anterior por lei mais recente, seja
quando expressamente declarado na novel legislao, ou quando esta
incompatvel com a norma at ento vigente; e, no 2 do mesmo artigo,
explica como proceder diante do conflito entre lei geral e especial24.
Na viso perfeita dos mtodos de Bobbio, tpica da modernidade,
teramos a tese (lei antiga), a anttese (lei nova) e a sntese (revogao), atrazer nitidez e confiana ao sistema jurdico. Os critrios para resolver os
21Um dos trs preceitos de Ulpiano (jurista que influenciou profundamente o direito da RomaAntiga), que quer dizer: dar a cada um o que lhe pertence. Os outros dois so: viverhonestamente (honeste vivere) e no ofender ningum (neminem laedere).22DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 10. ed. So Paulo: Saraiva, 2014, p. 50.23BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurdico. Braslia: UNB, 1994, p. 100.24Art. 2. No se destinando vigncia temporria, a lei ter vigor at que outra a modifique ourevogue. 1. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela
incompatvel ou quando regule inteiramente a matria de que tratava a lei anterior. 2. A lei nova, que estabelea disposies gerais ou especiais a par das j existentes, norevoga nem modifica a lei anterior.
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conflitos de leis seriam apenas trs: anterioridade, especialidade e hierarquia, a
priorizar-se a hierarquia. Mas em tempos de ps-modernismo, essas regras
no so mais exclusivas ou suficientes para resolver os problemas de coliso
entre normas. Diante da constitucionalizao do Direito Privado e da
multiplicidade de diplomas normativos vigentes, se impe ao exegeta uma
mudana de paradigma: da excluso (ab-rogao, derrogao e revogao) de
uma das normas em conflito harmonia e coordenao entre as regras e
princpios do ordenamento jurdico, com vistas a restabelecer sua coerncia25.
A dinmica jurdica recente, notadamente com o constitucionalismo de
valores e a fora normativa que foi reconhecida aos princpios jurdicos 26,
demonstra que os critrios apontados por Bobbio, apesar da clareza com que
pretendiam enfrentar os problemas das antinomias, tornaram-se insuficientes
para tal desiderato.
As clssicas, abstratas e simplistas tcnicas de soluo de antinomias
j no so mais satisfatrias, pois o dinamismo e complexidade do Direito ps-
moderno exigem uma viso sistmica e flexvel que permita a coexistncia das
normas, a fim de que se possa obter uma maior proteo dos direitos que
decorrem das relaes jurdicas desequilibradas, em que uma das partes
legalmente reconhecida como vulnervel.
De fato, o uso dos mtodos ortodoxos, embora dotados de rigor
tcnico, pode no propiciar solues jurdicas que se mostrem adequadas,
notadamente se cotejadas com o mandamento constitucional de proteo do
consumidor insculpido nos artigos 5, inciso XXXII e 170, inciso V, da
Constituio Federal. que os complicados problemas contemporneos e o
pluralismo exigem uma eficincia no apenas hierrquica, mas principalmente
25 JAYME, Erik. Identit culturale et intgration: le troit internationale priv postmoderne. In:Ruceil de Cours de lAcadmie de Droit International de la Haye . Haye: Nijhoff, 1995, p.259.26 inquestionvel no direito brasileiro a aplicabilidade da proposio de Robert Alexy, em suaTeoria dos direitos fundamentais, segundo a qual os princpios tambm possuem foranormativa, compondo, junto com as regras, o gnero norma jurdica. O autor alemo ensinaque os princpios so normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possvel,dentro das possibilidades jurdicas e reais existentes. Portanto, princpios so mandados deotimizao, que esto caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes
graus e que a medida devida do seu cumprimento s depende das possibilidades reais senotambm das jurdicas. (ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Trad.Ernesto Garzn Valdez. Madrid: CEPC, 2002, p. 86).
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funcional do Direito27.
Prope-se, no lugar do conflito de leis, a visualizao da possibilidade
de coordenao sistemtica destas fontes, no af de favorecer o consumidor
com a norma de campo de aplicao material mais benfico, atravs de um
autntico dilogo das fontes.
27 MARQUES, Cludia Lima. Superao de antinomias pelo dilogo das fontes: o modelo
brasileiro de coexistncia entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o Cdigo Civil de 2002.In: Revista da ESMESE. Aracaju: Escola Superior da Magistratura de Sergipe, n. 7, jan/jun.2004, p. 43.
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3 A TEORIA DO DILOGO DAS FONTES COMO SOLUO DECONFLITOS NORMATIVOS
A Constituio Federal de 1988, seguindo uma tendncia mundial de
influncia do Direito Pblico sobre o Privado, nomeada pela doutrina comoconstitucionalizao do Direito Civil28, adotou como princpio fundamental a
defesa do consumidor (artigo 5, inciso XXXII). Esse direito reconhecido na
Constituio Federal como fundamental pelo fato de que o consumidor procura
no mercado a satisfao de suas necessidades bsicas, como alimentao,
sade, segurana, educao, lazer etc; tudo isso na condio de no
profissional, de destinatrio do que o mercado produz.
Os direitos do consumidor so direitos humanos de terceira dimenso
29
objetivados na Constituio Federal tambm no artigo 170, inciso V. Foi a
necessidade de conferir proteo jurdica aos direitos dos compradores que os
tornou direitos fundamentais, com efeito vinculante no s em relao ao
Estado, mas tambm aos fornecedores que colocam produtos e servios no
mercado, cabendo a todos respeitar a integridade e concretizar a defesa deste
ente vulnervel, reconhecidamente mais fraco na sociedade. De fato, o
comando constitucional que determina a proteo do consumidor de
importncia sublime e deve ser interpretado de forma a lhe conferir mxima
efetividade, pois a Constituio Federal e os direitos nela assegurados,
precipuamente os direitos fundamentais, so normas jurdicas, passveis de
serem exigveis e executveis, e no meramente programas ou discursos sem
28Para aprofundamento, ver: LBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalizao do Direito Civil. In:Revista de Informao Legislativa. Braslia: Secretaria de Edies Tcnicas do Senado
Federal, n. 141, jan./mar. 1999, p. 99-109.29Os direitos fundamentais so tradicionalmente classificados em geraes, numa tentativa detransmitir a ideia de que eles no surgiram todos em um mesmo momento histrico, mas foramfruto de conquistas progressivas da humanidade. Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins criticam autilizao do termo geraes e sugerem que seja empregada a expresso dimenses dedireitos, argumentando que todos os direitos de uma gerao seguinte se acumulam aos dasgeraes anteriores, portanto, no so excludentes. Os direitos de primeira dimenso so osque buscam restringir a ao do Estado sobre o indivduo, impedindo que este se intrometa deforma abusiva na vida privada das pessoas. Os direitos de segunda gerao so os queenvolvem prestaes positivas do Estado aos indivduos (polticas e servios pblicos). Por suavez, os direitos de terceira dimenso so os que no protegem puramente interessesindividuais, mas transcendem a rbita dos indivduos para alcanar a coletividade. Tm comovalores essenciais a solidariedade e a fraternidade. So os direitos difusos e os coletivos.
Aqui, destacam-se o direito do consumidor, o direito ao meio ambiente ecologicamenteequilibrado e o direito ao desenvolvimento. (DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. TeoriaGeral dos Direitos Fundamentais. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2011).
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fora normativa30.
Nessa nova perspectiva que se lana ao Direito Privado, a Constituio
exsurge como o ncleo e pice do ordenamento jurdico, funcionando como
centro irradiador e marco de reconstruo do Direito Civil. Tal cenrio foi
essencial para o surgimento da ideia de que os direitos fundamentais no
existem somente como forma de defesa do indivduo frente ao Estado, mas
tambm representam uma ordem objetiva de valores que vale para todos e em
qualquer mbito do direito31.
Se at pouco tempo tnhamos uma legislao de cunho liberal, voltada
para a proteo da propriedade, presenciamos agora o alvorecer de um
sistema de Direito Privado que se reveste de carter social, preocupado com a
eticidade, a socialidade, a boa-f e a tutela dos vulnerveis. A Constituio o
sustentculo e o limite desse Direito Privado que se reconstri sob seus valores
(principalmente os direitos fundamentais), transformando-o em um Direito
Privado solidrio32.
Desse modo, a Magna Carta passou a atuar como filtro axiolgico,
atravs do qual se procede a interpretao do Direito Civil, que adquiriu,
segundo essa nova ideologia, o papel de contribuir para a realizao dos
valores da pessoa humana. Princpios como a autonomia privada so
conciliados (e mitigados) pelo da solidariedade social, da isonomia e da
dignidade da pessoa humana, que agora fazem parte do rol de preceitos
prprios do Direito Civil; causando-lhes, enfim, uma nova significao, que se
manifesta, por exemplo, no reconhecimento da eficcia horizontal dos direitos e
liberdades fundamentais.
As modernas Constituies preveem a dignidade da pessoa humana
como fundamento da estrutura estatal e social, sendo o seu respeito de
observncia obrigatria em todas as aes desenvolvidas no meio social.
essa necessidade de salvaguardar a dignidade do ser humano e os demais
direitos fundamentais que faz com que os comandos da Constituio Federal
30 Para aprofundamento, ver: HESSE, Konrad. A Fora Normativa da Constituio. Trad.Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Safe, 1991.31 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzn Valdez.Madrid: CEPC, 2002.32
BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos; BESSA, Leonardo Roscoe e MARQUES,Cludia Lima. Manual de Direito do Consumidor. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais,2013, p. 28.
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penetrem nas relaes jurdicas privadas, no que chamamos de eficcia
horizontal dos direitos fundamentais33.
certo que a vinculao do Poder Pblico aos direitos fundamentais
decorre da prpria gnese desses direitos, idealizados com o objetivo de
colocar os indivduos a salvo das interferncias estatais abusivas. Em verdade,
os direitos fundamentais foram concebidos com o fito de limitar a atuao do
Estado, de forma que determinados bens e interesses fossem protegidos das
violaes advindas do poder soberano. Esta a eficcia vertical dos direitos
fundamentais34.
No entanto, a evoluo da sociedade demonstrou que no s o Estado
que pode violar os direitos bsicos das pessoas. Principalmente aps a
revoluo cientfica e industrial inaugurada no sculo XVIII, restou evidente que
grandes corporaes tambm podem causar danos aos direitos da
personalidade dos indivduos, ainda mais se consideramos que alguns grupos
econmicos detm mais capital e poder econmico do que muitos pases
juntos.
Analisando algumas decises do Supremo Tribunal Federal (STF) a
respeito da aplicao dos direitos fundamentais nas relaes privadas, pode-se
concluir, mesmo sem adentrar na discusso das teses jurdicas sobre a forma
de vinculao dos particulares aos direitos fundamentais, que a jurisprudncia
ptria vm entendendo pela possibilidade (e at necessidade) de aplicao
dessa doutrina.
No RE 201819/RJ35, a Suprema Corte enfatizou que as violaes aos
33 Segundo a teoria da eficcia horizontal dos direitos fundamentais, os destinatrios dospreceitos constitucionais so tambm os particulares, sejam pessoas fsicas ou jurdicas.
Assegura-se, com ela, que os direitos fundamentais sejam aplicados tambm s relaesprivadas, para proteger um particular de violaes decorrentes de condutas de outrosparticulares, persistindo at hoje a discusso se essa eficcia se d de forma direta ou reflexa.O tema foi aventado especialmente na doutrina e jurisprudncia alem da segunda metade dosculo XX, tendo, em seguida, se expandido para os demais pases. (DIMOULIS, Dimitri;MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. So Paulo: Revista dosTribunais, 2011).34 A eficcia vertical dos direitos fundamentais refere-se aplicabilidade desses direitos emfavor dos governados como limitadores da ao dos governantes. O termo vertical utilizadopara enfatizar que o enfoque se d na relao entre Estado e indivduo, objetivando-seproteger da interferncia ilegal do Estado as liberdades individuais da pessoa humana. Nessaperspectiva, os direitos fundamentais so vistos como liberdades e garantias, ou seja, direitosde defesa do cidado frente ao poder estatal. A aplicao dos direitos fundamentais nas
relaes entre o particular e o poder pblico no se discute. (Ibid.).35 STF, RE 201819/RJ, rel. Min Ellen Gracie, rel. p/ o acordo Min. Gilmar Mendes, j.11.20.2005, DJ. 27.10.2005.
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direitos fundamentais no acontecem somente no terreno das relaes
estabelecidas entre o cidado e o Estado, mas identicamente nas relaes
entre pessoas fsicas e jurdicas de Direito Privado. Por conseguinte, os direitos
fundamentais assegurados pela Constituio Federal no vinculam to
somente os poderes pblicos, estando voltados tambm tutela dos
particulares em face dos poderes privados.
O Ministro Joaquim Barbosa, em seu voto-vista no processo citado,
salienta que entre ns a aplicao dos direitos fundamentais na esfera privada
decorrncia de diversos fatores. O primeiro deles o gradativo rompimento
das barreiras que separavam o Direito Pblico do Direito Privado at o sculo
XIX. Alm disso, cita o fenmeno da constitucionalizao do Direito Privado,
mais especificamente do Direito Civil, j destacado neste Capitulo. Realmente,
as relaes privadas, que classicamente se regiam exclusivamente pelo
Cdigo Civil, atualmente so permeadas pelos princpios de Direito Pblico. At
nos Estados Unidos, onde h um grande esforo visando a superao da
doutrina da state action, as relaes privadas j no so mais inteiramente
apartadas das limitaes que emanam da imprescindibilidade de preservar os
direitos fundamentais36.
Relevante mencionar que os entendimentos consagrados pelo STF nos
julgados mencionados se aplicam perfeitamente ao Cdigo de Defesa do
Consumidor, tendo em vista que este constitui norma principiolgica que
disciplina um direito fundamental previsto expressamente no artigo 5, inciso
XXXII, da Constituio Federal. Conforme aduziu o Ministro Marco Aurlio
(relator do caso), uma das formas de irradiao da eficcia dos direitos
fundamentais para as relaes privadas so as clusulas gerais, que
exerceriam a funo de porta de entrada dos direitos fundamentais nodomnio do Direito Privado. Portanto, atravs da tcnica legislativa de adoo
de clusulas gerais37, tais como boa-f objetiva, funo social do contrato etc; o
36Outras decises do STF a respeito: RE 161.243 (DJ 19.12.97, rel. min. Carlos Velloso), emque foi aplicado diretamente o princpio constitucional da igualdade numa relao trabalhista,para que uma empresa francesa situada no Brasil fosse compelida a estender aos seusoperrios brasileiros as vantagens conferidas aos franceses que aqui laboravam; RE 158.215-4/RS (DJ 7.6.96, rel. min. Marco Aurlio), aplicando os princpios da ampla defesa econtraditrio em relao privada entre cooperado e cooperativa; RE 160.222 (DJ 1.9.95, rel.
min. Seplvera Pertence), quando restou decidido que empresa especializada no comrcio delingerieno pode violar a dignidade das suas empregadas, submetendo-as revistas ntimas.37 Um conceito multissignificativo de clusula geral fornecido por Karl Engisch, citado por
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microcdigo se abriu para a aplicao dos direitos fundamentais nas relaes
que disciplina.
O princpio constitucional da dignidade da pessoa humana, expresso no
artigo 1, inciso III, reconhece a dignidade como elemento fundamental e
legitimador do sistema jurdico nacional, princpio que abarca,
indubitavelmente, a dignidade do consumidor. Corroborando essa afirmao,
Bolson38 justifica a aplicao direta dos direitos humanos s relaes de
consumo tambm utilizando-se do princpio pro homine, que alberga todas as
pessoas (incluindo-se ai o consumidor). Segundo ensina, no contexto das
relaes de consumo tambm acontecem violaes dignidade do ser
humano, como nos casos de atos ilcitos de fornecedores que ferem a honra, a
intimidade, a integridade fsico-psquica, a imagem e outros atributos da
personalidade do consumidor.
A aproximao principiolgica entre o Novo Cdigo Civil (Lei Federal n
10.406/2002) e o Cdigo de Defesa do Consumidor (Lei Federal n
8.078/1990), sob o manto constitucional, foi de suma importncia para a
consolidao paulatina da constitucionalizao do Direito Privado e, por
consequncia, para a realizao de uma comunicao entre ambas as leis,
conduzida pelo mtodo do dilogo das fontes.
Justamente essa viso civil-constitucional do sistema jurdico que
possibilita a materializao do dilogo das fontes no Direito brasileiro. Tal teoria
iluminada pelos valores constitucionais e os direitos fundamentais,
responsvel por cunhar um novo Direito Privado, que coloca a pessoa humana
em seu centro. No nosso caso, essa pessoa o consumidor.
A expresso dilogo das fontes foi criada por Erik Jayme39, na
Alberto Gosson, ao asseverar que a clusula geral aquela que se contrape a umaelaborao casustica das hipteses legais. Segundo ele, as clusulas gerais devem sercompreendidas como as formulaes das hipteses legais que, em termos de grandegeneralidade, abrangem e submetem a tratamento jurdico uniforme todo um domnio de casos.E conclui que as clusulas gerais equivalem a normas jurdicas cujo preenchimento s se darpelo magistrado quando da anlise de um caso concreto. No sendo apenas clusulas deinteno, constituem disposies normativas que utilizam, nos seus enunciados, umalinguagem de tessitura intencionalmente aberta, fluida ou vaga, caracterizando-se, tambm,pela ampla extenso de seu campo semntico. (JORGE JR, Alberto Gosson. ClusulasGerais e o Novo Cdigo Civil. So Paulo: Saraiva, 2004).38 BOLSON, Simone Hegele. O princpio da dignidade da pessoa humana, relaes de
consumo e o dano moral ao consumidor. In: MARQUES, Claudia Lima (Org.). Revista deDireito do Consumidor. So Paulo: Revista dos Tribunais, n. 46, abr./jun. 2003, p. 289.39 Jurista alemo, professor da Universidade de Heidelberg e orientador do doutorado da
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tentativa de propagar a imperiosa necessidade de uma aplicao coerente das
diversas leis de Direito Privado existentes no sistema jurdico. Dilogo no
sentido que h influncias recprocas e porque se pretende a aplicao de
diversas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja
complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opo voluntria
das partes sobre a fonte prevalente.
Ao apresentar a temtica central dos seus estudos, o autor afirma que
o jurista deve estabelecer uma conversa entre as fontes do Direito, a fim de
aplic-las conjuntamente, refutando a tradicional excluso mtua de fontes40. A
essncia da ideia de Jayme , portanto, a concepo de que as normas
jurdicas no se excluem apenas pelo fato de pertencerem a ramos jurdicos
diferentes, mas se complementam. Migra-se da noo de conflito de leis para a
de coordenao entre elas. A premissa que lhe d amparo a viso de um
ordenamento jurdico plrimo, mas unitrio.
O principal motivo para a aceitao do dilogo entre as normas a
funcionalidade que ele traz para o sistema jurdico. cedio que o mundo
contemporneo e ps-moderno complexo e farto por natureza. Convivemos
com uma quantidade excessiva de diplomas normativos, que no raras vezes
confunde at mesmo os juristas mais renomados. A revogao expressa, que
ocorre quando a prpria lei diz quais normas so eliminadas do sistema
quando da sua entrada em vigor41, tem se tornado cada vez mais incomum,
pois a volumosa quantidade de leis esparsas que se edita no pas dificulta um
olhar sistmico sob o ordenamento jurdico que possibilite ao legislador apontar
claramente o campo de regulao de uma lei nova. Nesse contexto de inflao
legislativa42, a maioria dos diplomas normativos aduz apenas que revogam-se
as leis em contrrio, sem que o prprio congressista saiba realmente quaisso as leis em contrrio afastadas. Por tal motivo, transfere-se para o intrprete
professora Cludia Lima Marques. A teoria do dilogo das fontes foi criada por ele e expostapela primeira vez em 1995, no Curso Geral de Haia.40 JAYME, Erik. Identit culturale et intgration: le troit internationale priv postmoderne. In:Ruceil de Cours de lAcadmie de Droit International de la Haye. Haye: Nijhoff, 1995, p. 9-268.41 o que ocorreu, por exemplo, com os 3, 4, 5 e 6 do art. 5 e com os artigos 15,17 e
18, todos da Lei Federal n 7.347/85, revogados expressamente com o advento do CDC.42Caracterizada pelo aumento generalizado, inchao, intumescncia de diplomas normativos,que tm como consequncias a insegurana jurdica e a desvalorizao do sistema jurdico.
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a rdua tarefa de realizar um exame atento, a fim de determinar com preciso
as leis atingidas e os limites da revogao tcita.
A sociedade atual vive na era da desordem, caracterizada pela abertura
do sistema, por uma pluralidade de fontes e pelo nmero progressivo de
conceitos indeterminados43. Nessa tempestade de fontes jurdicas, existentes
ou coexistentes no mesmo ordenamento, o papel do operador do Direito passa
ser o de reconstru-lo em cada caso concreto, avaliando a soluo que melhor
cumpre com os escopos constitucionais, tudo isso atravs da anlise das
diversas leis que o regulam e da aplicao concomitante dos princpios que
do suporte a essas normas. O dilogo das fontes servir como o vetor que
nos guiar nesse mar de intempries.
O sistema jurdico pressupe uma certa coerncia, pois o direito deve
evitar a contradio. O juiz, na presena de duas fontes com valores
contrastantes, deve buscar coordenar as fontes, atravs do dilogo entre
elas44.
Tendo como base a dignidade do ser humano e a aplicao imediata
dos direitos fundamentais, inquestionvel que a ideia do dilogo das fontes
nasce para dar solues mais justas aos casos de conflitos normativos,
resguardando o indivduo vulnervel, tornando o Direito mais flexvel e
humanitrio.
No Brasil, essa inovadora tese surge como alternativa clssica
tcnica de resoluo de antinomias jurdicas, cujos critrios so: hierrquico,
cronolgico e da especialidade. Trata-se de uma teoria visionria, por sugerir a
substituio do paradigma de conflito entre leis pela noo de coordenao
entre as fontes normativas. Essa viabilidade de interligao de diferentes leis
que permite a aplicao de todas elas na soluo de uma mesma situao sempre orientada, diretamente, pela proteo dos direitos fundamentais e da
pessoa humana45.
O dilogo vai servir exatamente para situaes em que nos deparamos
43 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da deciso judicial: fundamentos de direito. Trad.Claudia Lima Marques. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.44 JAYME, Erik. Direito Internacional Privado e Cultura Ps-Moderna. In: Cadernos de Ps-Graduao em Direito PPGDir./UFRGS. 2. ed. Porto Alegre: Universidade Federal do RioGrande do Sul, n. 1, dez. 2004, p. 59-129.45
MIRAGEM, Bruno. Apresentao. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo dasfontes: do conflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dosTribunais, 2012, p. 10.
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com conflitos de princpios e regras no tempo, ou seja, quando duas normas
estejam supostamente aptas para serem aplicadas ao mesmo caso concreto,
no que chamamos de antinomia jurdica. A antinomia se configura, conforme
fora explicado, quando no mesmo ordenamento jurdico haja confronto entre
duas normas com o igual mbito de abrangncia. Como o ordenamento jurdico
deve ser uma unidade sistmica, no se podem tolerar antinomias em seu
bojo.
At pouco tempo atrs os critrios Bobbianos de soluo de conflitos
eram as nicas opes disponveis ao jurista. Tais critrios encontram-se
previstos no Direito ptrio atravs da Lei de Introduo s Normas do Direito
Brasileiro (Decreto-Lei n 4.657/42). Em consonncia com o seu artigo 2, 1,
a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja
com ela incompatvel ou quando regule inteiramente a matria de que tratava a
lei anterior. No entanto, essa teoria clssica mostrou-se incapaz de, sozinha,
solucionar com justia os casos de conflitos normativos com que nos
deparamos diuturnamente, ainda mais frente constitucionalizao do Direito
Privado e necessidade de uma maior flexibilidade na aplicao das leis que
esse fenmeno impe.
Diante da incapacidade dos critrios da escolstica em lidar com a atual
complexidade do ordenamento jurdico e da imprescindibilidade de restaurar a
coerncia desse sistema, sempre objetivando realizar os valores ideais da
Constituio de igualdade, liberdade e solidariedade, urge estabelecer um novo
olhar para os antigos mtodos, em que a nova hierarquia a harmonia dada
pelos valores constitucionais e a prevalncia dos direitos humanos; a nova
especialidade a noo de complementao ou aplicao subsidiria das leis
especiais, tendo prevalncia nesta aplicao a mais valorativa e depois dela,no que couberem, as demais; e a nova anterioridade, que no tem relao com
a data de promulgao da lei, mas sim com a necessidade de adaptar o
sistema toda vez que uma lei nele acrescida pelo Poder Legislativo46.
O que a teoria do dilogo das fontes prope a alterao do mtodo
de resoluo de antinomias, do monlogo de uma s norma para o dilogo
46
MARQUES, Claudia Lima. O "dilogo das fontes" como mtodo da nova teoria geral dodireito. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: do conflito coordenaode normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 31.
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entre elas47, pois s a convivncia coordenada dos preceitos conflitantes
capaz de cumprir com a verdadeira ratio do Direito contemporneo, que a
efetivao das regras e princpios insculpidos na Constituio Federal e dos
valores e direitos humanos em geral.
Efetivamente, o raciocnio jurdico clssico apresenta algumas
deficincias tanto na resoluo de conflitos de normas quanto para a
integrao do Direito. Nesta senda, a teoria do dilogo das fontes desponta
precisamente com o escopo de sanar essa insuficincia, e no direito do
consumidor, dada a necessidade de maior flexibilidade que sua ndole protetiva
exige, encontra terreno frtil para desenvolvimento48. Nisso reside a
importncia do dilogo das fontes, que, em vez de forar o intrprete decidir
pela aplicao de uma das leis, j parte da premissa de que haver aplicao
simultnea delas, variando somente a ordem e o tempo da aplicao, de forma
a restabelecer a continuidade das normas e a coerncia do sistema49.
47 MARQUES, Cludia Lima. Superao de antinomias pelo dilogo das fontes: o modelobrasileiro de coexistncia entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o Cdigo Civil de 2002.In: Revista da ESMESE. Aracaju: Escola Superior da Magistratura de Sergipe, n. 7, jan/jun.2004, p. 44.48 MIRAGEM, Bruno. Eppur si muove: dilogo das fontes como mtodo de interpretaosistemtica no direito brasileiro. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: doconflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais,2012b, p. 67-109.49
BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos; BESSA, Leonardo Roscoe e MARQUES,Cludia Lima. Manual de Direito do Consumidor. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais,2013, 97.
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4. A UTILIZAO DO DILOGO DAS FONTES NA APLICAO DANORMATIZAO CONSUMERISTA
Na mbito consumerista, inicialmente foi proposto um dilogo
necessrio entre o Cdigo Civil e o Cdigo de Defesa do Consumidor, em
virtude da visvel aproximao principiolgica entre esses dois sistemas50. Com
esta proposio afastou-se a noo de que o Cdigo Consumerista seria um
microssistema jurdico totalmente isolado e autossuficiente em relao ao
restante do ordenamento, o que foi decisivo para a potencializao e
desenvolvimento dessa matria, constituindo-se em um verdadeiro marco no
estudo do Direito das Relaes de Consumo.
Mais tarde, foi reconhecido que entre todas as reas do Direito existia a
possibilidade de aplicao do dilogo das fontes51. Indubitavelmente, essa
teoria se revela como uma das maiores construes do Direito contemporneo,
no podendo estar restrita a uma especialidade especfica. Em virtude da
riqueza dos seus argumentos, como tambm potencialidade de
desenvolvimentos posteriores, o dilogo contribui para a evoluo do Direito
como um todo, eliminando suas antinomias e dando-lhe efetividade,principalmente na contemporaneidade plural e complexa em que vivemos52. Se
no se discute mais que a aplicao simultnea de fontes normativas no est
restrita ao Direito das Relaes de Consumo, ainda mais evidente que, nesta
50TARTUCE, Flvio. A teoria geral dos contratos de adeso no Cdigo Civil. Viso a partir dateoria do dilogo das fontes. In: MARQUES, Claudia Lima. Dilogo das fontes: do conflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 208.51 Em virtude da previso consignada no artigo 7 do CDC, de que os direitos previstos no
Cdigo no excluem outros assegurados em normas diferentes (o que constitui o principalfundamento para a coordenao e aplicao conjunta de distintas leis com o fito de atingir umresultado que assegure maior nvel de proteo aos consumidores), no encontrar similaridadeem outras leis, questionou-se inicialmente se o dilogo das fontes seria mtodo aplicvelapenas ao direito do consumidor, ou serviria de igual maneira para interpretao das demaisnormas jurdicas. A evoluo dos estudos doutrinrios e das decises judiciais, no entanto,parece deixar claro que a teoria do dilogo das fontes pode ser aplicada nas diversas esferasjurdicas. A ttulo de exemplo, veja-se que em Direito Ambiental esse mtodo foi aplicado peloSTJ no REsp 994.120-RS, rel. Min. Herman Benjamin, 2. T., j. 25.08.2009, DJ. 27.04.2011; noProcesso Civil, no REsp 1184765-PA, rel. Min. Luiz Fux, 1. Seo, j. 24.11.2010, DJ.03.12.2010; e no Direito Administrativo, citem-se o RMS 29.183-RS, rel. Min. HermanBenjamin, 2. T., j. 06.08.2009, DJ. 31.08.2009 e o REsp 1.139.554-RS, rel. Min. Castro Meira,2. T., j. 01.10.2009, DJ. 09.10.2009.52
DUQUE, Marcelo Schenk. O transplante da teoria do dilogo das fontes para a teoria daConstituio. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: do conflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 129.
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rea, o seu principal diploma normativo, o Cdigo de Defesa do Consumidor,
passvel de mltiplos dilogos, travados no exclusivamente com o Cdigo
Civil, mas com inmeras outras disposies normativas, incluindo Tratados e
Convenes Internacionais que disciplinem relaes de consumo, como
veremos adiante.
Importante destacar que, dado o escopo do dilogo das fontes, qual
seja, ampliar a proteo jurdica ofertada aos sujeitos mais vulnerveis, no
permitido aplicar conjuntamente as normas para chegar a resultado menos
favorvel ao consumidor. Essa tcnica jamais dever ser utilizada para retirar
direitos, pois s legtima se beneficiar o consumidor. Defender o contrrio
seria analogia in pejus, que no podemos admitir. As luzes que clareiam a
teoria em estudo tm sede nos direitos humanos, na Constituio Federal e
nos valores nela albergados, resulta da a concluso de que os laos
comunicantes entre as fontes s podem ser estabelecidos quando culminarem
no alargamento da tutela constitucional estampada no inciso XXXII do artigo 5.
Se adotssemos o dilogo como uma via de mo dupla para afirmar
ser possvel a preponderncia de Lei menos favorvel em alguns casos, no
estaramos adotando dilogo, mas monlogo de Lei especial in pejus53.Certo
que estamos acostumados com a ideia de que os mtodos interpretativos e de
integrao podem ser utilizados para o bem e para o mal, mas com a teoria
de Erik Jayme diferente, dado o motivo maior que a norteia, qual seja, a
promoo dos direitos humanos.
Frente ao disposto no artigo 7 do CDC, o mtodo em questo
claramente orientado ao acrscimo de direitos ao consumidor. Nesse sentido,
s ser vlida quando ampli-los, jamais quando prejudic-los. Cabe mais uma
vez ao aplicador do Direito estar atento para realizar essa anlise, elegendocomo filtro a Constituio Federal, a fim de rejeitar resultados que possam de
qualquer maneira limitar ou dificultar o exerccio dos direitos do consumidor54.
Diferentemente dos critrios tradicionais, o dilogo das fontes no se
53 MARQUES, Claudia Lima. O "dilogo das fontes" como mtodo da nova teoria geral dodireito. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: do conflito coordenaode normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 61.54 MIRAGEM, Bruno. Eppur si muove: dilogo das fontes como mtodo de interpretao
sistemtica no direito brasileiro. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: doconflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012,p. 100/101.
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ocupa apenas da interpretao das disposies normativas, aqui o foco maior
no resultado da sua aplicao. A finalidade que no somente o resultado da
interpretao, mas da aplicao do Direito no caso concreto respeite o sistema
jurdico e efetive os objetivos especficos da rea em que estiver sendo
aplicado. Assim, por exemplo, se o dilogo est sendo utilizado no Direito
Ambiental, o intento vai ser alargar a proteo do meio ambiente, no nosso
caso, esse olhar voltado para a ampliao da proteo jurdica do
consumidor.
Em tempos passados esse novo mtodo no teria conquistado espao,
haja vista que os valores do modernismo no eram favorveis a sua aplicao.
Mas o cenrio agora outro. Os fenmenos da insegurana normativa, da
fragmentariedade e do pluralismo so determinantes para a aceitao da teoria
do dilogo das fontes como a forma de trazer a sistematicidade, flexibilidade e
a efetividade que o Direito atual precisa. Somente nos permitimos conhecer e
utilizar aquilo que estamos preparados para conhecer e utilizar55, e o estgio
ps-moderno o perodo em que a sociedade mais precisa e est mais apta a
abraar o dilogo das fontes. A teoria de Erik Jayme no poderia ter vindo em
poca mais adequada. Apenas nesse momento histrico reconhecemos que o
ordenamento jurdico no um sistema completo, mas completvel, ideia que
pressuposto bsico para a sua utilizao.
4.1 DILOGO ENTRE O CDIGO CIVIL E O CDIGO DE DEFESA DOCONSUMIDOR
Antes de tudo, necessrio observar que o Brasil adota um modelo de
Direito Privado que conta com dois Cdigos separados: um microssistema
especfico de proteo ao consumidor, cujo esprito e teleologia esto ligados a
um novo paradigma, o paradigma da diferena56, que reconhece um dos
sujeitos da relao de consumo como merecedor da tutela estatal por ser
vulnervel diante da superioridade do fornecedor; e um Cdigo Civil, de carter
55 HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Trad. Pinharanda Gomes. Lisboa:Guimares, 1985.56 MARQUES, Cludia Lima. Superao de antinomias pelo dilogo das fontes: o modelo
brasileiro de coexistncia entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o Cdigo Civil de 2002.In: Revista da ESMESE. Aracaju: Escola Superior da Magistratura de Sergipe, n. 7, jan/jun.2004, p. 23.
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geral, criado para regular as relaes entre iguais. No entanto, no h conflito
real entre essas Leis, apenas antinomias aparentes que podem ser resolvidas
com o uso da aplicao ordenada, subsidiria e especial do Cdigo Civil e do
Cdigo de Defesa do Consumidor. Esses Cdigos no podem ser
considerados diplomas divergentes, seno conexos, e, no mbito intrincado do
ordenamento, ferramentas que se interpenetram e dialogam permanentemente
para a promoo da solidariedade e do personalismo constitucionais57.
Em sendo o CDC Lei especial para as relaes de consumo, as quais
no deixam de ser, em seu mago, relaes civis, e o CC Lei geral sobre o
Direito Civil, dialogam ambos os diplomas legislativos no mesmo sistema. A
norma consumerista de 1990 torna-se permevel toda vez que a incorporao
de outras disposies normativas contribuam para a realizao do
mandamento constitucional de proteo ao consumidor, estabelecendo-se
laos comunicantes entre as normas em questo, que trazem como resultado a
consecuo da ratiode ambas.
So trs os dilogos possveis entre o Cdigo Civil e o Cdigo de
Defesa do Consumidor, quais sejam: dilogo sistemtico de coerncia, dilogo
sistemtico de complementariedade e subsidiariedade em antinomias
aparentes ou reais, dilogo das influncias recprocas sistemticas58.
No dilogo sistemtico de coerncia, quando da aplicao
concomitante de duas Leis, uma pode servir de base conceitual para a outra,
principalmente se uma Lei geral e a outra especial, se uma o cerne do
sistema e a outra um microssistema especfico, no acabado materialmente,
mas to-somente com completude subjetiva de proteo de um grupo da
sociedade59.
Temos aqui um dos dilogos mais comuns, afinal o Cdigo Civil a Leibasilar do Direito Privado brasileiro, enquanto que o CDC norma especial, de
mbito restrito s relaes envolvendo consumidores (especialidade ratione
personae, ou subjetiva), portanto, muitos institutos jurdicos nele mencionados
57 TEPEDINO, Gustavo. Cdigo de Defesa do Consumidor, Cdigo Civil e complexidade doordenamento. In: MARQUES, Cludia Lima (Org.). Revista de Direito do Consumidor. SoPaulo: Revista dos Tribunais, n. 56, out./dez. 2005, p. 9/11.58 MARQUES, Cludia Lima. Superao de antinomias pelo dilogo das fontes: o modelobrasileiro de coexistncia entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o Cdigo Civil de 2002.
In: Revista da ESMESE. Aracaju: Escola Superior da Magistratura de Sergipe, n. 7, jan/jun.2004, p. 23.59Ibid, p. 45.
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esto disciplinados apenas no Cdigo Civil. o que acontece com as
nulidades, o conceito de pessoa jurdica, prova, decadncia, prescrio e
tantos outros conceitos no definidos no microssistema, que devem ser
examinados luz do CC.
Como se percebe, os conceitos gerais e as regras bsicas acerca das
relaes jurdicas, das obrigaes e dos contratos podem ser retirados do
Cdigo Civil, mesmo se estivermos tratando de contrato de consumo. Assim,
por exemplo, numa compra e venda realizada entre fornecedor e consumidor,
todas os conceitos de contratos em espcie capitaneados na Lei Civil sero
utilizados.
O segundo tipo de dilogo (dilogo sistemtico de complementariedade
e subsidiariedade em antinomias aparentes ou reais) o que mais se
contrape antiga forma de superao de antinomias, em que, decidindo-se
pela aplicao de uma Lei, as demais eram excludas do sistema. Aqui, a
primeira concluso a que chegamos diz sobre a no revogao do CDC de
1990 pelo CC de 2002, j que, em vez de leis conflitantes, so diplomas
complementares e harmnicos60. Para alm dessa concluso, o mais
importante a constatao de que as normas do Cdigo Reale61podem, diante
de casos concretos, se fundir com as do CDC, a fim de complement-lo.
Por meio desse dilogo, a prpria norma abre uma opo para o
intrprete atingir sua ratioatravs da aplicao simultnea de outras Leis que
tambm tratam de determinada matria62, como acontece nos artigos 721, 732
e 777, CC63. Para os casos em que o legislador no previu essa possibilidade
60 MARQUES, Claudia Lima. O "dilogo das fontes" como mtodo da nova teoria geral dodireito. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: do conflito coordenao
de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 17-66.61Como tambm conhecido o Cdigo Civil Brasileiro de 2002, pelo fato de o jurista MiguelReale ter sido o supervisor da sua comisso elaboradora.62Na aplicao coordenada das duas leis, uma lei pode complementar a aplicao da outra, adepender de seu campo de aplicao no caso concreto a indicar a aplicao complementartanto de suas normas, quanto de seus princpios, no que couber, no que for necessrio ousubsidiariamente. Assim, por exemplo, as clusulas gerais de uma lei podem encontrar usosubsidirio ou complementar em caso regulado pela outra lei. Subsidiariamente o sistema geralde responsabilidade civil sem culpa ou o sistema geral de decadncia podem ser usados pararegular aspectos de casos de consumo, se trazem normas mais favorveis ao consumidor(MARQUES, Cludia Lima. Superao de antinomias pelo dilogo das fontes: o modelobrasileiro de coexistncia entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o Cdigo Civil de 2002.In: Revista da ESMESE. Aracaju: Escola Superior da Magistratura de Sergipe, n. 7, jan/jun.
2004, p. 31).63 Art. 721: Aplicam-se ao contrato de agncia e distribuio, no que couber, as regrasconcernentes ao mandato e comisso e as constantes de lei especial. Art. 732: Aos contratos
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expressamente, o artigo 7 do CDC serve como norma de abertura do sistema,
que permite a proteo do consumidor da forma mais abrangente possvel, seja
atravs do prprio microssistema, seja atravs de outra previso legal mais
benfica. Noutros termos, toda vez que um ato normativo assegurar algum
direito para o consumidor, ele poder ser adicionado ao microssistema do
CDC, agrupando-se na tutela especial e tendo a mesma primazia no trato da
relao de consumo.
Exemplo tpico de dilogo de subsidiariedade ocorre com os contratos
de consumo que tambm so de adeso, pois, nesses casos, a proteo dos
consumidores constante do artigo 51 do CDC pode ser complementada e
ampliada pelo artigo 424 do CC, que dispe sobre a proteo dos aderentes64;
outra hiptese apontada pela doutrina65 concerne ao sistema geral de
decadncia traado no Cdigo Civil, que pode ser usado juntamente com os
dispositivos do CDC para regular aspectos de casos consumeristas, se
possibilitarem uma situao mais favorvel a esses.
O Cdigo Civil aplica-se s relaes de consumo, naquilo em que suas
normas no divergirem diretamente com as do CDC. vista disso, possvel,
por exemplo, aplicarem-se s relaes de consumo as clusulas gerais,
precipuamente as constantes no CC, artigo 421 (funo social do contrato),
artigo 422 (boa-f objetiva), e artigo 187 (abuso de direito) etc. No que se
refere prescrio, nada obstante a regra clara prevista no artigo 27 do CDC
sobre a prescrio quinquenal, o STJ, em certas situaes especficas, tem
aplicado o prazo geral do CC (artigo 205: dez anos) s relaes jurdicas de
consumo66, numa aluso clara ao dilogo ora estudado.
Por ltimo, temos o dilogo das influncias recprocas sistemticas.
de transporte, em geral, so aplicveis, quando couber, desde que no contrariem asdisposies deste Cdigo, os preceitos constantes da legislao especial e de tratados econvenes internacionais. Art. 777: O disposto no presente Captulo aplica-se, no que couber,aos seguros regidos por leis prprias.64TARTUCE, Flvio. A teoria geral dos contratos de adeso no Cdigo Civil. Viso a partir dateoria do dilogo das fontes. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Dilogo das fontes: doconflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012,p. 209.65 MARQUES, Cludia Lima. Dilogo entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o NovoCdigo Civil: do dilogo das fontes no combate s clusulas abusivas.In: MARQUES, Claudia(Org.). Revista de Direito do Consumidor. So Paulo: Revista dos Tribunais, n. 45, jan./mar.
2003, p. 71-99.66 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Cdigo Civil comentado elegislao extravagante. 13. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 960.
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Esse tipo de dilogo se manifesta quando uma Lei tem seu campo de atuao
redefinido em virtude da alterao de institutos previstos em outro diploma
normativo. Fala-se aqui das mtuas influncias que o Cdigo Civil tem no
Cdigo de Defesa do Consumidor e vice-versa67. Dessa forma, por exemplo, as
definies de consumidor strictu sensu e de consumidor equiparado podem
sofrer modificaes finalsticas do Cdigo Civil, pois existe na verdade
influncia do sistema especial no geral e do geral no especial, um dilogo de
coordenao e adaptao sistemtica68. Deste modo, possvel afirmar que
os dilogos de influncias recprocas sistemticas estopresentes quando os
conceitos estruturais de uma determinada lei sofrem influncias da outra69.
Nessa espcie de dilogo, aproveita-se no espao de aplicao de
uma das normas o sentido alcanado pela interpretao doutrinria
desenvolvida para outro diploma normativo. Assim, a preciso conceitual
definida pelos juristas para princpios ou institutos presentes em uma Lei, mas
que so comuns a dois sistemas normativos, servem para ambos. Exemplo
disso so as significaes atuais de abuso do direito e do princpio da boa-
f, atribudas inicialmente pensando nas relaes previstas no CDC, mas que
com a supervenincia do CC foram para ele transplantadas.
4.2 DILOGO ENTRE O CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E OSDIPLOMAS NORMATIVOS INTERNACIONAIS
O dilogo das fontes requer uma nova forma de agir do jurista, que
antes de ver revogao ou derrogao da disposio normativa, deve
pretender, sob as luzes e valores constitucionais, conciliar os diversos diplomas
legais, sejam eles nacionais ou no.
Partindo desse pressuposto, podemos concluir que a teoria em estudo
tambm possibilita a aplicao simultnea do Cdigo de Defesa do
Consumidor e Acordos/Tratados/Convenes Internacionais. Dessa maneira,
uma das normas pode servir de base conceitual para a outra, pode suprir uma
67 BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos; BESSA, Leonardo Roscoe e MARQUES,Cludia Lima. Manual de Direito do Consumidor. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais,2013, p. 94.68Ibid.69
TARTUCE, Flvio. A teoria geral dos contratos de adeso no Cdigo Civil. Viso a partir dateoria do dilogo das fontes. In: MARQUES, Claudia Lima. Dilogo das fontes: do conflito coordenao de normas do direito brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 209.
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lacuna, ou mesmo, sob a tica de coerncia do ordenamento jurdico, quando
aplicadas conjuntamente, podem possibilitar a ampliao dos direitos e
garantias contidos separadamente em seus textos. Analisando a questo da
responsabilidade civil do transportador areo por danos causados aos
passageiros (e seus bens) tornaremos compreensveis essas afirmaes.
O transporte areo se divide em internacional e nacional. O primeiro foi
disciplinado pela Conveno de Varsvia (1929), que foi substituda pela
Conveno de Montreal (1999), aprovada no Brasil por meio do Decreto
Legislativo n 59 e promulgada em 27 de setembro de 2006 pelo Decreto
5.910. Portanto, a Conveno de Montreal , desde 2006, o diploma legal que
regula o transporte areo em escala internacional no Brasil.
No sistema de Montreal, a indenizao do transportador objetiva,
com base na teoria do risco da atividade (artigo 17, inciso I) 70, desde que no
exceda um valor mximo, correspondente quantia aproximada de
U$ 133.000,00 (artigo 21)71. Acima dessa quantia a responsabilidade
subjetiva, embora com culpa presumida (art. 21, inciso II, alneas a e b) 72,
tendo em vista que o transportador areo poder desobrigar-se do dever de
indenizar se comprovar que o dano no se deveu culpa ou a outra ao ou
omisso sua ou de seus prepostos ou que o dano decorrncia, unicamente,
da conduta de um terceiro.
J o transporte areo realizado exclusivamente dentro do territrio
nacional regulado pelo Cdigo Brasileiro de Aeronutica CBA (Lei Federal
n 7.565/1986), cujos princpios, notadamente no que tange responsabilidade
civil do transportador, no diferem daqueles adotados pela Conveno de
Montreal.
Aps a promulgao do CDC estabeleceu-se a controvrsia em relao
70Artigo 17, I: O transportador responsvel pelo dano causado em caso de mor