rago e foucault.pdf

download rago e foucault.pdf

of 16

Transcript of rago e foucault.pdf

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    1/16

    67

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    FOUCAULTUM PENSAMENTODESCONCERTANTE

    Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82, outubro de 1995.

    F

    Pensar diferentemente a Histria

    oucault revoluciona a Histria. Com esta frase polmica einstigante, Veyne chamou a ateno dos historiadores para um mo-

    vimento conceitual em curso desde os anos sessenta e para o qualainda no havamos tido olhares muito favorveis (cf. Veyne, 1982).ramos, assim, atingidos por vrios lados: de um lado, este historiador-fil-sofo questionava uma rpida apropriao daquilo que, em Foucault, podiaservir diretamente produo historiogrfica recente, a exemplo do conceitode poder disciplinar, excelente para pensarem-se as formas da dominao nocotidiano da vida social; de outro, forava-nos a refletir sobre a abrangnciado pensamento daquele filsofo, pensamento que excedia em muito nossasdesatentas miradas.

    Foi assim que, partindo de uma irrecusvel apreciao de Vigiar epunir, trabalho histrico por excelncia, publicado em 1976, caminhamos,ns historiadores, em busca da produo anterior de Foucault, em especial da

    Histria da loucura, deAs palavras e as coisas e deA arqueologia do saber,

    O efeito-Foucault nahistoriografia brasileira

    MARGARETH RAGO

    Professora do Depar-tamento de Histria doIFCH-UNICAMP

    RESUMO:O artigo investiga as transformaes nas concepes do que

    histria e, portanto, nas formas de estud-la, aps as proposies conceituais

    elaboradas por Foucault. A mudana do foco da anlise dos fatos e eventos

    para as bases epistemolgicas das formas de discurso que os conceberam

    enquanto tais, far com que o historiador busque compreender os campos

    de relaes de fora nos quais se constituem os jogos de poder, e no mais

    se deter em uma suposta verdadedocumental.

    UNITERMOS:histria,hstoria documental,histria nova,descontinuidade,subjetivao.

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    2/16

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    68

    procurando entender o que nos havia passado to despercebido e que, no en-tanto, levara uma autoridade da historiografia francesa a elevar, em alto e bomtom, sua importncia (cf. Foucault, 1977, 1978, 1981 e 1986a).

    Indubitavelmente presos a um sistema de pensamento que nos ha-via organizado to adequadamente o mundo, ao longo das dcadas de 60 e 70,localizando de um lado, as classes sociais e os seus conflitos nas inmerasformas assumidas pelas relaes scio-econmicas, vigentes no modo de pro-duo dominante no interior de nossa formao social; e de outro, munindo-nos com as intrincadas tarefas tericas da sntese das mltiplas determina-es, havamos esquecido de ler, no prprio Marx, que o passado pesa eoprime como um pesadelo o crebro dos vivos e que, sobretudo enquantohistoriadores, deveramos compreender o momento do acerto de contas e ale-gremente despedirmo-nos do passado (Marx, 1974, p. 335; 1977a, p. 5).

    De uma certa maneira, quanto mais a modernidade desmanchavano ar tudo o que estava mais ou menos slido, tanto mais nos agarrvamos necessidade de organizar o passado, arrumando todos os eventos e os seusdetalhes na totalidade enriquecida, embora pr-estabelecida. Trata(va)-se ento,para o historiador, de compreender o passado, recuperando sua necessidadeinterna, recontando ordenadamente os fatos numa temporalidade seqencialou dialtica, que facilitaria para todos a compreenso do presente e avisualizao de futuros possveis.

    O desconcerto provocado por Foucault veio por vrios lados.

    Canguilhem chamou a ateno para o impacto provocado pelo surgimento daHistria da loucura, em 1960, quando nos meios acadmicos franceses haviaespao para, quando muito, se pensar uma Histria da Razo, da Psiquiatria.Mas, da loucura? Teria ela uma histria? (cf. Canguilhem,1986, p. 37-40).Ademais, este filsofo irreverente, que alis nem era historiador, cometeraoutro sacrilgio, outra irreverncia, ao ir buscar no final do sculo 18, ondetodos celebravam a conquista da liberdade e dos ideais democrticos durantea Revoluo Francesa, nada menos do que a inveno da prisoe das moder-nas tecnologias da dominao. Enquanto todos os olhares convergiam para a

    centralidade da temtica da Revoluo, Foucault deslocava o foco para asmargens e detonava com a exposio dos avessos. A priso nascia, assim, node um progresso em nossa humanizao, ao deixarmos a barbrie do suplcio,mas muito pelo contrrio, como resultado de uma sofisticao nas formas dadominao e do exerccio da violncia.

    Afinal, o que queria aquele filsofo que anunciava que a histriados historiadores erroneamente havia-se preocupado em compreender o pas-sado, e que na verdade tratava-se de cortar e no de compreender?

    preciso despedaar o que permitia o jogo

    consolante dos reconhecimentos, dizia ele. Saber,mesmo na ordem histrica, no significa reencon-trar e sobretudo no significa reencontrar-nos. Ahistria ser efetiva na medida em que ela

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    3/16

    69

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    reintroduzir o descontnuo em nosso prprio ser. Eladividir nossos sentimentos; dramatizar nossos ins-tintos; multiplicar nosso corpo e o opor a si mes-mo. (...) que o saber no feito para compreender,ele feito para cortar (Foucault, 1979, p. 27).

    Que possibilidades restavam para os historiadores quando o passa-do passava a se reduzir a discursos, os documentos a monumentos, atemporalidade se dissolvia e os objetos histricos tradicionais j no se sus-tentavam com tanta obviedade quanto antes? E o que fazer com os sujeitos,com as classes sociais e principalmente com a classe operria, alis, respons-vel pelo conflituado mas seguro curso da histria em direo ao prometidoreino da liberdade, ou com os sujeitos histricos que, nos anos 80, compro-metiam-se com a luta pelos direitos de cidadania, como os negros, as mulhe-

    res, os homossexuais? Como ficava, ento, a tarefa do historiador, compro-metido, sobretudo desde os anos 60, com as tarefas da revoluo e com arevelao da misso histrica do proletariado, ou na dcada de 80, envolvidocom as lutas pela redemocratizao do pas e pela construo das identidadessociais?

    Para aumentar nosso espanto, aqui no Brasil, um filsofo e, emseguida, um psiquiatra publicavam dois excelentes trabalhos de Histria so-bre o perodo colonial, trazendo tona muitas histrias das quais mal tnha-mos ouvido falar. Refiro-me ao pioneiroDanao da norma, de Roberto

    Machado e outros e ao estudo de Jurandir Freire Costa, Ordem mdica e nor-ma familiar, respectivamente publicados em 1978 e 1979. Sem sombra dedvida, estes trabalhos provocaram nos historiadores um sentimento misto deestranhamento pela enorme novidade terica da anlise, e de perplexidade,pois afinal haviam sido produzidos fora da comunidade dos historiadores.

    Em suma, de um minuto para o outro, todas as nossas frgeis,desgastadas, mas reconfortantes seguranas haviam sido radicalmente abala-das por uma teoria que deslocava o intelectual dos seus espaos e funesorgnicas, questionando radicalmente seus prprios instrumentos de trabalho

    e modos de operao. O efeito de to avassaladora crtica provocou reaesdiferenciadas: de um lado, levou alguns a se refugiarem na garantia da exis-tncia da realidade objetiva e na atuao transformadora dos sujeitos hist-ricos, buscando respaldo na revitalizao do marxismo, em curso no perodo.Lembremos que, nesse momento, E. P. Thompson estourava nas paradas desucesso historiogrfico, abrindo novas perspectivas para a histria social,traduzido e difundido por todo o mundo (cf. Thompson, 1987e; Decca, 1981).Outros procuraram, mais ou menos timidamente, acercarem-se das concep-es de Foucault, tentando entender de onde vinham e para onde apontavam.

    Confusamente mesclavam as discusses sobre a positividade do poder com arealidade das classes sociais e a constituio dos sujeitos histricos1.

    De qualquer maneira, de um lado ou de outro, os historiadores nopuderam passar inclumes ao furaco Foucault e, assim como at mesmo

    1 Para uma balano

    sobre a produo his-toriogrfica brasileirade inspirao fou-caultiana, veja-seRago (1993, p. 22-32).

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    4/16

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    70

    os anti-marxistas tiveram em algum momento de suas vidas de incorporarconceitos como classes sociais, infra-estrutura scio-econmica e relaessociais de produo, os historiadores anti-foucaultianos no puderam pres-cindir das noes de discurso, poder disciplinar, genealogia e sobretudo dacontundente crtica idia da transparncia da linguagem. Alm do mais, cres-cia, tambm nesse meio, atravs de caminhos diferenciados, a redescoberta dosimblico, do subjetivo, do cultural, nas anlises histricas, cada vez maisprximas da Antropologia Histrica. J desde o final dos anos 60, e reagindode certo modo influncia de Fernand Braudel, aNouvelle Histoireretomavaa histria das mentalidades e das sensibilidades na trilha aberta por MarchBloch e Lucien Febvre e revitalizada por Philippe Aris com aHistria socialda criana e da famlia, de 1960. Como propunha Jacques Le Goff, invertiao caminho indo do poro ao sto, isto , privilegiando a superestrutura

    cultural em relao base econmica (cf. Aris, 1981; Le Goff, 1990). Cadavez mais, as discusses sobre o aspecto interpretativo da histria passavam aocupar o horizonte dos historiadores.

    bom lembrar que Foucault no se pretendeu historiador, emborapoucos tenham demonstrado um sentido histrico to forte quanto ele. Afinal,muito antes do sucesso da histria cultural, o filsofo insistia na idianietzscheana de que tudo histrico, e portanto de que nada do que huma-no deve escapar ao campo de viso e de expresso do historiador. Alm domais, se no podemos afirmar que objetos como loucura, priso, instituies

    disciplinares, corpo e sexualidade ganharam visibilidade histrica apenas apartir de seus trabalhos, no h como negar a importncia de um autor que,em pleno apogeu da classe operria, dos temas da Revoluo e da Social

    History, de filiao marxista, deslocava o foco para as minorias, para asmargens e para osAnnales. Pensemos nos inmeros desdobramentos das pro-dues acadmicas suscitadas desde ento em funo das problematizaesfoucaultianas, no apenas no Brasil. Fundamentalmente, Foucault projetouluz sobre campos at ento ignorados pela historiografia - seja por serem con-siderados como perfumarias remetendo superfcie da superestrutura,

    seja simplesmente por nem sequer serem percebidos como capazes de seremhistoricizados - e criou expresses capazes de traduz-los e pens-los. ver-dade que muitos destes campos e temas histricos tambm foram projetadospor outras correntes histricas, a exemplo do conceito de cotidiano, mas noh como negar a importncia que ganharam a partir dos procedimentos teri-cos e metodolgicos praticados por ele, a exemplo da noo da positividadedo poder.

    O prprio Foucault se filiou aosAnnales e, apesar das diferenasem relao a vrios procedimentos desta escola, defendeu uma histria-pro-

    blema, ou seja, um trabalho de pesquisa histrica que servisse para iluminar eresponder a uma problematizao colocada pelo historiador, e que desenhariano percurso aberto o prprio objeto da investigao (cf. Foucault, 1986a, In-troduo). conhecido seu debate com o historiador Jacques Lonard, em

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    5/16

    71

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    que distinguia dois modos de se fazer a Histria: o primeiro, o modo doshistoriadores, consistia em atribuir-se um objeto e tentar resolver sucessi-vamente os problemas que este colocava; o segundo, o que ele preferia, partiade um problema e procurava determinar a partir dele o mbito do objeto queseria necessrio percorrer para resolv-lo (Perrot (org.), 1978).

    Alm disso, prestando uma homenagem a esta consagrada escolahistrica, Foucault defendia, na Introduo deA arqueologia do saber, umapostura historiogrfica preocupada no mais em revelar e explicar o real, masem desconstru-lo enquanto discurso.

    Ora, por uma mutao que no data de hoje, masque, sem dvida, ainda no se concluiu, a histriamudou sua posio acerca do documento: ela consi-dera sua tarefa primordial, no interpret-lo, no

    determinar se diz a verdade nem qual seu valorexpressivo, mas sim trabalh-lo no interior e elabor-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e repar-te em nveis, estabelece sries, distingue o que per-tinente do que no , identifica elementos, defineunidades, descreve relaes(Foucault, 1986a, p. 7).

    Os objetos histricos assim como os sujeitos emergiam aqui comoefeitos das construes discursivas, ao invs de serem tomados como pontosde partida para a explicao das prtica sociais. A determinao avanava

    sobre as possibilidades da ao e afastava-se assim de uma concepohumanista e antropolgica dinamizada pela busca da Revoluo.

    Na verdade, se voltarmos a este livro to definitivo e radical emsuas proposies, encontraremos o esclarecimento do prprio autor acerca desua posio e de suas relaes com a renomada Escola dosAnnales e com aNova Histria. A Foucault apresenta uma avaliao das conseqnciasprovocadas para a Histria pelas mudanas epistemolgicas promovidas poresta vertente historiogrfica, que retomaremos no decorrer deste texto.

    Por enquanto, gostaria de lembrar que a Escola dosAnnales nasce

    em 1929, como uma reao histria triunfalista e vnementielle, das guer-ras e batalhas, privilegiadamente poltica e cronolgica da Escola Metdica,que, segundo Marc Bloch e Lucien Febvre, no percebia o acontecimento namultiplicidade dos tempos histricos, nem como dimenso superficial de umiceberg profundo. As posies radicais desses historiadores j se havia mani-festado naRevue de synthse historique, onde colaboraram, e que fora lanadaem 1900, por Henri Berr, o qual, alis, no era historiador, mas filsofo eprofessor de literatura. Inspirado por Durkheim, Berr defendia uma histria-sntese, capaz de trabalhar cientificamente com todas as dimenses da reali-

    dade, do econmico s mentalidades. Assim, inicialmente inspirados pela so-ciologia durkheimiana e, em seguida, pelos primeiros estudos estruturalistasde Ferdinand Saussure sobre a lngua e os trabalhos de Lvy-Strauss sobre asrelaes sociais e a estrutura social, os historiadores do grupo dosAnnales se

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    6/16

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    72

    preocuparam com as estruturas e os diferentes ritmos e temporalidades dosfenmenos histricos, privilegiando as longas permanncias mentais, sociais,geogrficas, etc., que Braudel identificaria posteriormente como la longuedure,ou seja, a longa durao, em detrimento das mudanas sociais2.

    A partir destas breves colocaes, seramos tentados a identific-los ou ento a aproxim-los ao marxismo. bom notar, portanto, que se deum lado no podemos identific-lo com este sistema de pensamento ou reco-nhecer em suas anlise a teoria marxista da sociedade, de outro devemos des-tacar a grande receptividade que vrios historiadores do grupo e da Nova His-tria manifestaram em relao a Marx. Se no podemos definir osAnnales e aNova Histria como marxistas, tambm no podemos tax-los de anti-mar-xistas, esquecendo que vrios historiadores, a exemplo de Pierre Vilar eMichel Vovelle, preocuparam-se em declarar suas adeses tericas e polticas

    e discutir as implicaes tericas de tais incorporaes.Retornando a Foucault, no h dvida de que, para os historiado-

    res, seu maior impacto advm da maneira pela qual interroga a histria maisdo que dos temas que focaliza. Embora os historiadores tenham visto emFoucault o historiador das instituies disciplinares ou da sociedadecarcerria e a cobrarem a voz dos vencidos, o que Veyne destaca como arevoluo epistemolgica por ele realizada vai muito alm. Seduzidos pelasinstigantes posies formuladas pelo grupo de historiadores ingleses e ameri-canos ligados Social History, os historiadores ficaram perplexos com um

    tipo de pensamento que se recusava a partir dos sujeitos e da sociedade paraconstruir sua interpretao histrica e que, alis, colocava sua prpria exis-tncia em dvida. Tratava-se, pois, de uma nova maneira deproblematizar a

    Histria, de pensar o evento e as categorias atravs das quais se constri odiscurso do historiador. No uma discusso sobre a narrativa propriamentedita, mas sobre as bases epistemolgicas de produo da narrativa enquantoconhecimento histrico. Ao invs de partir da famosa estrutura social, repre-sentada enquanto realidade objetiva tanto para os marxistas quanto para osno-marxistas, para explicar as prticas polticas, econmicas, sociais, sexu-

    ais, artsticas de determinados grupos sociais, propunha-se, ento, pensar comohaviam sido institudas culturalmente as referncias paradigmticas damodernidade em relao ao prprio social, posio dos sujeitos, ao poder es formas de produo do conhecimento.

    Veyne chamou nossa ateno para a revoluo produzida pelofilsofo na historiografia: especialmente desde o marxismo, aprendramos aenxergar a Histria comoprxis e como conscincia. Inmeras vezes repeti-mos os ensinamentos de Marx de que os homens fazem a histria, mas no afazem como querem, e sim nas condies herdadas pelo passado. Alis, para

    a gerao 68, a principal motivao para o estudo da Histria estava centradano desejo de transformao social, numa emocionada aposta na Revoluo. Ahistria confundia-se ento com ao revolucionria.

    Ora, Foucault questionou este pressuposto e afirmou que a Histria

    2 Sobre a histria dosAnna les e da NovaHistria, vejam-seDosse (1992) e Burke(1993).

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    7/16

    73

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    no mais do que um discurso, discurso este que tambm precisava serpsicanalisado e descrito em sua disperso. Este filsofo desorganizava, as-sim, no apenas o passado, que imaginvamos pronto para ser detectado etrazido tona, graas s ferramentas do materialismo histrico e dialtico,como a prpria tarefa do historiador, que repentinamente se flagrou capturadoem insidiosas armadilhas. Veyne mostrou, nesta direo, que a histria umaforma cultural, atravs da qual os homens na contemporaneidade se relacio-nam com seus eventos e com o passado. Uma forma de conhecimento, umaescrita e no ao.

    Assim, caberia ao historiador construir a trama correspondente aoacontecimento. No caso de um acontecimento da moda, que nos situasse nessecampo; se um evento poltico, seria necessrio nos apresentar governantes esditos. O que seria importante destacar no passado dependeria da construo

    da trama, da mesma forma que as causas atribudas na origem do evento sedefiniriam em funo da construo desta mesma trama. Portanto, os eventoshistricos no existem como dados naturais, bem articulados entre si, obedi-entes s leis histricas e esperando para serem revelados pelo historiador bemmunido. Um evento s ganha historicidade na trama em que o historiadorconcaten-lo, e esta operao s poder ser feita atravs de conceitos tambmeles histricos.

    Ora, repentinamente, o cho dos historiadores desabou, pois j nocontvamos nem com um passado organizado, esperando para ser desvela-

    do, nem com objetos prontos, cujas formas poderiam ser reconhecidas aolongo do tempo, nem com sujeitos determinados, nem tampouco com o fio dacontinuidade que nos permitia pensar de uma maneira mais sofisticada emtermos de processos histricos e sociais. E, ao invs de partirmos em busca dasntese e da totalidade, deveramos aprender a desamarrar o pacote e mostrarcomo fora constitudo, efetuando a descrio da disperso.

    Parece-me que esta proposta, recentemente identificada por umahistoriadora norte-americana comoA histria cultural de Michel Foucault,no foi bem aceita por uma quantidade razovel de historiadores brasileiros,

    nem se promoveram debates que pudessem esclarecer os mais preocupadoscom a definio de posies em relao a estes chamados (cf. OBrien, 1992).Numa atitude muito mais defensiva, poucos historiadores preferiram manterFoucault vivo, negando-se a esquecer Foucault (cf. Tronca, 1986;Baudrillhard, 1984).

    Como ficamos, ento, onze anos depois de sua morte? Proponhoque retomemos brevemente algumas das principais questes colocadas his-toriografia pela profunda crtica modernidade presente em Foucault. Valerialembrar ainda com Habermas, que a destruio das relaes dialgicas no se

    encontra apenas nas formas de individualizao instauradas na modernidade,mas no prprio modo de operao nas cincias humanas, onde o olhar dopesquisador se confunde com o olhar dopanptico, transformando os sujei-tos em objetos isolados, dessubjetivizando-o3.

    3 Le regard objecti-vant et examinateur,ce regard qui dcom-pose analytiquement,qui contrle et percetout, acquiert pources tablissementsune force structu-rante; cest le regarddu sujet rationnel quia perdu tout contactsimplement intuitif

    avec son environne-ment, qui a romputous les ponts avec lacomprhension, etpour qu i, dans sonisolement monologi-que, les autres sujetsne sont accessiblesque dans la positiondobjets perus tra-vers une observationpassive. Ce regard ,dans le panoptique

    conu par Bentham,est pour ainsi direarchitectoniquementf i g ( H a b e r m a s ,1986, p. 76).

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    8/16

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    74

    A produo do conhecimento histrico

    A crtica foucaultiana da cincia e da noo de verdade atingiu radi-calmente a prpria produo do conhecimento histrico, produo esta assen-

    tada em convices fundamentalmente humanistas. Esta questo pode sermelhor esclarecida, se destacarmos alguns momentos estratgicos de suaproblematizao: a crtica ao essencialismo, a desnaturalizao do objeto, oprivilegiamento do descontnuo e a proposta de histria genealgica.

    1. a crtica ao essencialismo

    J sabemos que Foucault questiona o conceito de verdade com queoperamos e, portanto, a prpria cincia se ver visada como discurso objetivosobre o real. Ele questionar fundamentalmente nossa representao da pro-

    duo do conhecimento e da verdade, desacreditando a idia que temos sobrea revelao da coisa atravs do conceito. Entendemos, na maioria das vezes,que a produo do conhecimento se faz por uma suposta coincidncia entre oconceito e a coisa, entre a interpretao e o fato, como um desvendamentodo ideolgico, na linguagem marxista, ou como uma retirada dos vus dailuso sobre a realidade objetiva. Em outras palavras, conhecer significavaencontrar a essncia da poca, do passado, da coisa, ultrapassando os engano-sos vus da aparncia para alcanar o concreto pensado e realizar a sntesedas mltiplas determinaes4.

    Para o historiador, conhecer seria revelar o objeto, atravessar a es-pessura dos discursos para encontrar o que permaneceria silenciosamenteaqum dele, chegar s coisas, interpretar o discurso para fazer atravs deleuma histria do referente(Foucault, p. 8 , 1986a). O discurso, portanto, no aqui pensado como signo, elemento significante que remeteria a contedos oua representaes, como se fosse expresso do real.

    Numa referncia a Nietzsche, Foucault afirmar que as coisas estona superfcie, e que atrs de uma mscara h outra mscara e no essncias.Nesse sentido, o filsofo prope um deslocamento fundamental para o proce-dimento histrico, propondo que se parta das prticas para os objetos e no oinverso, como fazamos. No mais partir do objeto sexualidade, por exemplo,para mostrar atravs de que formas havia se manifestado e diferenciado aolongo da Histria, mas chegar ao objeto a partir do estudo das prticas e per-ceber como e quando a sexualidade havia emergido como tema, como discur-so e como preocupao histrica. Em outras palavras, o ponto de partida setorna agora terminal. E nossa tarefa seria ento desconstru-lo, revelando asimbricadas teias de sua constituio e naturalizao.

    2. o caleidoscpio

    Trabalhar com produes culturais e no com objetos naturais naperspectiva foucaultiana significou repensar radicalmente os procedimentoshistoriogrficos, j que se tratava no mais de buscar as formas de manifesta-

    4 O concreto concre-to por ser a sntese demltiplas determina-es, logo unidade dadiversidade. porisso que ele para opensamento um pro-cesso de sntese, umresultado e no umponto de partida, ape-sar de ser o verdadei-ro ponto de partida e

    portanto igualmente oponto de partida daobservao imediatae da representao(Marx, 1977, p. 218).

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    9/16

    75

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    o de um fenmeno ao longo da histria, de partir do objeto ou do sujeitoplenamente constitudo, para ver como havia se manifestado em diferentesformaes sociais. A questo que se colocava agora era a de perceber de quemaneira asprticasdiscursivas e as no-discursivas, as redes de poder constitu-em determinadas configuraes culturais e histricas que resultam na produode determinados objetos e de determinadas figuras sociais. Uma formacaleidoscpica, alertava Veyne, ao contrrio da conhecida seqncia temporal:

    Tal o sentido da negao dos objetos naturais:no h, atravs do tempo, evoluo ou modificaode um mesmo objeto que brotasse sempre no mesmolugar. Caleidoscpio e no viveiro de plantas. (...)Como diria Deleuze, as rvores no existem: s exis-tem rizomas (Veyne, 1982, p. 172).

    NaHistria da loucura, tratava-se, portanto, de perceber atravsde que prticas institucionais e aparelhos de conhecimento a loucura foraobjetivada como doena, passando a fazer parte de determinado regime deverdade e falsidade, e se constitura como objeto para o pensamento, a pon-to de se tornar evidente que a loucura uma enfermidade. Em Vigiar e

    punir, perguntava-se como determinadas prticas discursivas e no-discursivas,tcnicas de poder e regimes de verdade constituram o objeto priso comomodo privilegiado de castigo e punio. Como fora possvel, pergunta ele, em 20anos, a passagem do suplcio para a priso como forma punitiva privilegiada?

    Enfim, estvamos acostumados a trabalhar considerando que a uni-dade dos discursos est fundada na existncia do objeto-realidade objetivo,que estaria pronto esperando por uma conscincia para ser libertado. Nessesentido, trata-se de traar a histria a partir das objetivaes pelas quais de-terminadas coisas comeam a ser tomadas como objeto para o pensamento epassam a fazer parte do objetivamente dado, como configuraes naturais. Oacontecimento, ento, no est dado como fato, mas emerge num campo deforas, assumindo determinadas configuraes. preciso, pois, desnaturalizaro evento, explicar Veyne.

    3. o privilegiamento do descontnuo

    Foucault chama a ateno para as metforas biolgicas que organi-zam o discurso histrico, atravs das quais fazamos velhas perguntas ao pas-sado e dvamos explicaes antigas, mais preocupados em construir linhas decontinuidade entre os fatos, articulando-os custa de aplainamentos fora-dos. Nem interpretar os fatos, nem estabelecer uma cadeia evolutiva entreeles, e muito menos atribuir todas essas nossas operaes a uma necessidadeinterna dos fatos histricos.

    Em nossos dias, explica ele na Arqueologia dosaber, a a Histria o que transforma os documen-tos em monumentos e que desdobra, onde se decifra-vam rastros deixados pelos homens, onde se tentava

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    10/16

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    76

    reconhecer em profundidade o que tinham sido, umamassa de elementos que devero ser isolados, agru-

    pados, tornados pertinentes, inter-relacionados, or-ganizados em conjuntos( Foucault, 1986a, p. 8).

    Isto provocou uma mudana do estatuto terico da noo edescontinuidade. O que a histria tradicional tratava de apagar e reduzir afim de estabelecer as continuidades, isto , os obstculos, passa agora a serum conceito operativo, fazendo parte da anlise histrica. Diz ele,

    a descontinuidade era o estigma da disperso tem-poral que o historiador se encarregava de suprimirda histria. Ela se tornou, agora, um dos elementos

    fundamentais da anlise histrica, onde aparece comum triplo papel (Foucault, 1986a, p. 10),

    isto , constitui uma operao deliberada do historiador; o resul-tado de sua descrio; o conceito que o trabalho no deixa de especificar.Portanto, o historiador dever constituir sriese definir que tipos de relaesser conveniente estabelecer entre elas,

    que sistema vertical podem formar; qual , de umass outras, o jogo das correlaes e das dominncias;de que efeito podem ser as defasagens, as temporali-dades diferentes, as diversas permanncias; em queconjuntos certos elementos podem figurar simulta-

    neamente; em resumo, no somente sries, mas quesries de sries - ou, em outros termos, que qua-dros - possvel constituir.(Foucault, 1986a, p. 12)

    Uma histria geral, ento, ao contrrio de uma histria total. A des-crio das disperses, ao invs da totalizao fundada na conscincia do sujeito.

    Uma descrio global cinge todos os fenmenos emtorno de um centro nico - princpio, significao,esprito, viso de mundo, forma de conjunto; umahistria geral desdobraria, ao contrrio, o espao

    de uma disperso.(Foucault, 1986a, p. 12)4. a histria genealgica

    A concepo de histria que se encontra em Foucault coloca-se apartir de uma profunda crtica concepo herdada do sujeito: crtica aosubjetivismo prprio da teoria clssica do conhecimento, em que o Sujeito colocado como condio do saber; crtica filosofia poltica, j que a polticano entendida em termos de vontades individuais e soberania; crtica vinculao tradicional entre condutas dos sujeitos em suas vidas dirias e as

    grandes estruturas polticas e sociais.Nesse sentido, Foucault propor outras questes histria, operan-do com a idia de objetivao, isto , da constituio de domnios de objetos;e de subjetivao, isto , dos modos atravs dos quais os indivduos se produ-

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    11/16

    77

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    zem e so produzidos numa determinada cultura, atravs de determinadas pr-ticas e discursos, enquantosubjetividades. Afinal, ele quem explica numaentrevista que sua questo central no era o poder, nem o saber, mas a produ-o do sujeito, sua sujeio e posteriormente as formas de subjetivao porele encontradas. Para dar conta da constituio do sujeito enquanto objeto eenquanto sujeito na cultura ocidental, estuda o poder e as disciplinas, a produ-o da verdade e os saberes; as prticas de si e as formas de subjetivao.

    Propondo-se a realizar uma ontologia histrica de ns mesmos,Foucault destituiu o sujeito do lugar privilegiado de fundamento constituinte,que ocupava na cultura ocidental, passando a problematiz-lo como objeto aser constitudo. Na 1 conferncia deA verdade e as formas jurdicas, eleafirmava:

    Faz dois ou trs sculos que a filosofia ocidental

    postulava, implcita ou explicitamente, o sujeito comofundamento, como ncleo central de todo conhecimen-to, como aquele em que no apenas se revelava a li-berdade, mas que podia fazer emergir a verdade. (...)

    Atualmente, quando se faz histria - histria das idi-as, do conhecimento ou simplesmente histria -atemo-nos a esse sujeito de conhecimento e da re-

    presentao, como ponto de origem a partir do qual possvel o conhecimento e a verdade aparece. Se-

    ria interessante que tentssemos ver como se pro-duz, atravs da histria, a constituio de um sujeitoque no est dado de antemo, que no aquilo a

    partir do que a verdade se d na histria, mas de umsujeito que se constituiu no interior mesmo desta eque, a cada instante, fundado e refundado por ela.(...) Isto , em minha opinio, o que deve ser levado acabo: a constituio histrica de um sujeito de co-nhecimento atravs de um discurso tomado como um

    conjunto de estratgias que formam parte das prti-cas sociais (Foucault, 1986b, p. 16).

    A histria ser, ento, pensada como um campo de relaes de for-a, do qual o historiador tentar apreender o diagrama, percebendo como seconstituem jogos de poder. Da, uma nova concepo de poder e das relaesque se estabelecem entre poder e saber. No mais o poder jurdico, em suaface visvel e repressiva, mas o poder positivo, invisvel, molecular, atuandoem todos os pontos do social, constituindo redes de relaes das quais nin-gum escapa. No mais um saber neutro, a cincia, que diria a verdade, mas

    um conjunto de enunciados que entram no jogo do verdadeiro e do falso.A inquietao dos historiadores certamente aumentou diante de to-

    das estas colocaes, sobretudo aqueles que, filiados tradio marxista, sen-tiram-se desalojados em sua misso central e nobre. A histria genealgica se

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    12/16

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    78

    diferencia das histria dos historiadores, isto , de uma forma de procedi-mento histrico atravessada pela referncia hegeliana, que procurava recupe-rar o que os documentos diziam, como se um passado deles emanasse e pedis-se para ser revelado. Abandonam-se, portanto, as idias de necessidade, fina-lidadee totalizao. A tarefa do historiador j no ser encontrar a finalidadede todo processo histrico, sua necessidade objetiva inscrita em leis que orga-nizariam a ordem natural do mundo, realizando uma operao de totalizao,construindo uma histria global. Como lembra Chartier, Histria nova con-tra histria filosfica, osAnnales contra Hegel (Chartier, 1990, p. 75).Trabalhar ento os documentos enquanto monumentossignificar recusar acrena na transparncia da linguagem e a antiga certeza de encontrar atravsdos textos o passado tal e qual.

    A nova histria se prope como tarefa fundamental no interpretar

    os documentos, extraindo uma suposta veracidade intrnseca a eles, mastrabalh-los desde o interior, elabor-los, como ser afirmado em Aarque-ologia do saber.

    Para Roger Chartier, um dos nomes que se destacam na historio-grafia contempornea, os estudos histricos se desenvolveram nas ltimasdcadas a tal ponto que de uma certa maneira incorporaram e ultrapassaramesta proposta foucaultiana, a exemplo da microstoria na Itlia, doantropological mode of historydos americanos, e do retorno do aconteci-mento entre os franceses. Segundo ele, passou-se, nas discusses

    historiogrficas francesas recentes, da concepo de que a tarefa do historia-dor era explicar o passado para a considerao dos modos narrativosatravsdos quais o fenmeno histrico ganha visibilidade. Em suas palavras:

    Da uma mudana paralela da prpria definioda explicao histrica, entendida como o processode identificao e de reconhecimento dos modos e

    formas do discurso posto em prtica pelo relato, e jno como explicao do acontecimento passado(Chartier 1990, p. 84).

    J Hayden White, centrando-se na importncia do estudo da inter-pretao sobre o da explicao, e refletindo sobre as tarefas do historiador nomundo contemporneo, afirma:

    O historiador no presta nenhum bom servio quan-do elabora uma continuidade especiosa entre o mun-do atual e o mundo que o antecedeu. Ao contrrio,

    precisamos de uma histria que nos eduque para adescontinuidade de um modo como nunca se fez; poisa descontinuidade, a ruptura e o caos so o nosso

    destino (White, 1994, p. 63).A volta ao sujeito?

    Por ltimo gostaria de tecer alguns comentrios sobre as ltimas

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    13/16

    79

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    ressonncias do pensamento de Foucault na produo historiogrfica brasilei-ra. Depois de haver provocado acirradas disputas entre os ardentes defensoresda voz dos vencidos, preocupados com o silenciamento da luta de classesnos trabalhos historiogrficos, e os adeptos do filsofo, para quem os sujeitosso pontos de chegada e no pontos de partida, prope-se um novo aconteci-mentoterico: a emergnciada questo da subjetivao e da tica(cf. Fou-cault, 1984, 1985).

    De uma certa maneira, Foucault respondia aos seus crticos para osquais havia dado demasiada nfase aos modos da sujeio na constituio dossujeitos, deixando, como osAnnales anteriormente, os indivduos aprisiona-dos, sem possibilidade de ao e, fundamentalmente, de resistncia e mudan-a. O filsofo voltava-se para o sujeito, apontando para as possibilidades deconstruo de novas formas de subjetivao, a exemplo das que haviam vigo-

    rado no mundo grego. A questo da autonomia individual era retomada porFoucault, aps ter apresentado nos trabalhos anteriores as formas da sujeio,como ele mesmo explicou, atravs das prticas disciplinarizantes e das redesdiscursivas.

    Alguns trabalhos foram produzidos a partir da abertura desta novatrilha, dos quais destaco trs teses de doutoramento apresentadas nos anos 90:Os prazeres da noite. Prostituio e cdigos da sexualidade feminina emSo Paulo (1990);Do trabalhador indisciplinado ao homem prescindvel,e O engenho anti-moderno.A inveno do nordeste e outras artes(cf. Rago,

    1991; Caponi, 1992; Albuquerque, 1993).Ao contrrio dos estudos que buscavam privilegiadamente as rela-

    es de poder constitutivas da vida social no mundo urbano, recortando otema da disciplinarizao e higienizao do mundo industrial, incorporou-senestes estudos a noo de subjetivao, tentando encontrar as formas atravsdas quais os prprios sujeitos participaram de sua construo enquanto sujei-tos morais - prostitutas no primeiro caso, trabalhadores urbanos no segundo,nordestinos no terceiro - aceitando, recusando, incorporando, apropriando-sediferenciadamente das linguagens existentes num determinado momento his-

    trico para construrem suas identidades pessoais, sociais e sexuais.No primeiro estudo, para alm da constituio da prpria noo de

    prostituio pelo discurso mdico e jurdico e pelas prticas disciplinarizantesque instituram o submundo nos limites da cidade, procurei pesquisar como asprprias prostitutas se constituram enquanto sujeitos morais, incorporando,redefinindo, experimentando uma ou vrias definies dos amores ilcitos.Menos uma histria social da prostituio que procurasse dar conta do coti-diano das meretrizes em So Paulo, nas primeiras dcadas do sculo XX, do queum estudo sobre a construo de nossa moderna referncia sobre as sexualida-

    des insubmissas e as prticas da comercializao sexual do corpo feminino.O segundo estudo,produzido por Sandra Caponi, uma filsofa, sobre

    o pensamento de Michel Foucault, destina um captulo ao que ela denominade Estticas da resistncia. TomandoAformao da classe operria inglesa,

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    14/16

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    80

    de E. P. Thompson eA noite dos proletrios.Arquivos do Sonho Operrio,de Jacques Rancire, como fontes primrias, a autora nos mostra, a partir dasdiscusses foucaultianas sobre a estetizao da existncia e as tcnicas desi no mundo grego, os espaos de autonomia abertos pelos trabalhadoresingleses nos incios do sculo XIX. Preocupados em embelezar essas vidascondenadas a existir na escurido da fbrica, reinventavam o cotidiano eprocuravam esculpirem-se a si mesmos como obras de arte, educando-se,debatendo os textos que alguns liam para o restante do grupo nas noites defolga, ou nos fins de semana, elaborando uma outra cultura, definindo seusprprios cdigos morais e suas formas de atuao poltica, questionando anova ordem burguesa que ento se constitua(cf. Caponi, 1992, p. 235).

    Durval de Albuquerque, que j discutira a questo da inveno doNE em outro trabalho, aprofunda aqui sua anlise trabalhando com a emer-

    gncia da regio Nordeste a partir de mltiplas prticas discursivas. Em sualeitura, os regionalistas tanto quanto os modernistas pretenderam instituir olugar da histria em oposio a uma outra regio do pas, outrora inexistenteno mapa - o NE - designado como lugar da ausncia da Histria. No imagin-rio que ento se constitui, este mundo rural tradicional, quente e abafado,marcado por ritmos lentos e pesados, lugar das vidas secas, da sensualidadeforte de mulheres como Gabriela, de movimentos sociais pr-polticos comoo cangao, centro da Casa Grande e Senzala, no teria condies mnimas depossibilidade da produo de cidados suficientemente racionais para mere-

    cerem espao privilegiado na deciso ou conduo dos rumos da Nao.Finalmente, gostaria de destacar nesse mesmo campo de

    problematizaes, a novidade terica trazida pelo feminismo contemporneo:a categoria do gnero, conceitualizada principalmente por uma historiadoraque tambm vinha da histria social, Joan Wallasch Scott (1988). Atravsdesta categoria, as intelectuais feministas tm procurado pensar a constitui-o dos sujeitos sexuais num movimento relacional e complexo, rompendocom uma lgica identitria que, incapaz de perceber e trabalhar as diferenas,aprisionava as mulheres num gueto conceitual. Deixa-se progressivamente de

    lado o estudo das mulheres, considerando-se que esta identidade no bio-logicamente fundada, mas social e culturalmente construda, e que portantodeve ser pensada em relao ao gnero masculino, tambm ele social e cultu-ralmente construdo, assim como considerando-se as mltiplas relaes quese estabelecem na vida social.

    Os estudos do gnero vm certamente ganhando um espao de des-taque nas universidades e nos ncleos de pesquisa, apontando para a necessi-dade da desconstruo de nossas referncias paradigmticas sobre a feminili-dade e a masculinidade, num mundo que certamente aprendeu com Foucault

    que as essncias e as identidades naturais so uma fico e no uma realidadeemprica e que, como cantou o poeta, as coisas esto no mundo, s que eupreciso aprender.

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    15/16

    81

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    Recebido para publicao em maio/1995

    RAGO, Margareth. The effect-Foucault in Brazilian historiography. Tempo Social; Rev. Sociol.USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82, october 1995.

    ABSTRACT: The article analyses the transformations in the concepts of what

    is history and, thus, in the forms of studying it after Foucault formulated his

    conceptual propositions. The change of the analysis focus from facts and

    events to the epistemological bases of the discourse forms that conceived

    them will make it possible for the historian to comprehend the fields of power-

    relations in which power-games constitute themselves without detaining in a

    supposed documentary truth.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. (1993) O engenho anti-moderno. A inven-o do Nordeste e outras artes. Campinas. Tese de doutoramento.Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da UNICAMP.

    ARIS, Philippe. (1981)Histria social da criana e da famlia. Rio de Ja-

    neiro, Zahar.BAUDRILLARD, Jean. (1984) Esquecer Foucault. Rio de Janeiro, Ed.Rocco.

    BURKE, Peter. (1993)A escola dos Annales. So Paulo, Editora da UNESP.

    CANGUILHEM, Georges. (1986) Sur lhistoire de la folie en tant quvnement.Le Debat, n 41, septembre-novembre.

    CAPONI, Sandra (1992)Do trabalhador indisciplinado ao homem prescind-vel. Campinas.Tese de doutoramento. Tese de doutoramento. Insti-tuto de Filosofia e cincias Humanas da UNICAMP.

    CHARTIER, Roger. (1990)A histria cultural entre prticas e representa-es. Lisboa, Difel.

    COSTA, Jurandir Freire. (1979) Ordem mdica e norma familiar. Rio de Ja-neiro, Graal.

    DECCA, Edgar de. (1981) O silncio dos vencidos. 5 edio. So Paulo,Brasiliense.

    DOSSE, Franois. (1992) A histria em migalhas. So Paulo, Ensaio/Ed.UNICAMP.

    FOUCAULT, Michel. (1977) Vigiar e punir. Rio de Janeiro, Vozes._______ . (1978)Histria da loucura. So Paulo, Perspectiva.

    _______ . (1979) Nietzsche, a genealogia e a histria. In: ______ .Microfsica

    UNITERMS:history,documentary history,new history,descontinuity,subjectivity.

  • 8/13/2019 rago e foucault.pdf

    16/16

    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82,outubro de 1995.

    82

    do poder.Organizado por Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal.

    _______ . (1981)As palavras e as coisas. So Paulo, Martins Fontes.

    _______ . (1984) O uso dos prazeres. Rio de Janeiro, Graal.

    _______ . (1985) Os cuidados de si. Rio de Janeiro, Graal.

    _______ . (1986a)A arqueologia do saber. 12 edio. So Paulo, ForenseUniversitria.

    _______ . (1986b)La verdad y las formas juridicas. Mxico, Gedisa.

    HABERMAS, Jrgen. (1986) La Critique de la Raison.Le Dbat. Paris, n 41,septembre-novembre.

    LEGOFF, Jacques. (1990)A histria nova. So Paulo, Martins Fontes.

    MACHADO, Roberto et alii. (1978)Danao da norma. Rio de Janeiro, Graal.MARX, Karl (1976) O mtodo da economia poltica. In: _______ . Contribui-

    o crtica da economia poltica. So Paulo, Martins Fontes.

    _______ . (1974) O 18 brumrio de Lus Bonaparte. So Paulo, Abril Cultu-ral.

    _______ . (1977) Crtica da filosofia do direito de Hegel. Introduo. Temasde cincias humanas, So Paulo, Grijalbo, n 2.

    OBRIEN, Patrcia. (1992) A histria cultural de Michel Foucault. In: HUNT,

    Lynn.A nova histria cultural. So Paulo, Martins Fontes.PERROT, Michelle (org.). (1978)Limpossible prison. Paris, ditions du Seuil.

    RAGO, Margareth. (1993) As marcas da pantera: Foucault para historiadores.Resgate, Campinas, n 5, Centro de Memria da UNICAMP.

    _______ . (1991) Os prazeres da noite. Prostituio e cdigos da sexuali-dade feminina em So Paulo. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

    SCOTT, Joan W. (1988) Gender and the politics of history. New York,Columbia University Press.

    THOMPSON, E. P. (1987)A formao da classe operria inglesa. Rio de Ja-neiro, Paz e Terra.

    TRONCA, talo. (1986) Foucault vivo. Campinas, Editora Pontes.

    VEYNE, Paul. (1982) Como se escreve a histria. Foucault revoluciona ahistria. Braslia, Editora da UnB.

    WHITE, Hayden. (1994) Trpicos do discurso. So Paulo, EDUSP.