“Rain Man” Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

download “Rain Man” Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

of 12

Transcript of “Rain Man” Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

  • 7/24/2019 Rain Man Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

    1/12116 REVISTA OLHAR - ANO 05 - NO8 - JAN-JUN / 03

    CINEMA

    *Este artigo um captulo indito do nossolivro Teorias da Mente(no prelo).1LOSANO, M.G. (1992).

    Para chegarmos abordagem do complexo e intrigante funcionamentopsquico do protagonista de Rain Man, nas questes de sua relao crebro/mente(C/M), temos que, forosamente, percorrer um trajeto prvio pelo territrio daFilosofia da Mente (FM).

    1. Introduo: Inteligncia Artificial

    O nascimento da Inteligncia Artificial (IA) pode parecer contemporneo,pelo menos na acepo moderna do termo: a utilizao do computador como meio

    de simulao dos processos naturais atribudos inteligncia humana. Entretanto, odesejo de realizar mquinas inteligentes data da Antigidade. Certamente, uma dasprimeiras menes ao tema encontra-se no canto XVIII da Ilada, do escritor gregoHomero, no qual Hefesto, deus do fogo, tinha construdo mesas com trs ps munidosde rodzios, que se deslocavam sozinhas nos palcios dos deuses.

    Houve na tradio judaica o Golem, autmato com forma humana, feito demadeira e argila e que se tornava servo do rabino, capaz de inscrever uma palavramgica na sua fronte. Mais tarde, no sculo XVI, comeou-se a sonhar com autmatossimulando o corpo humano. Este sonho perdurou. No sculo XVII, Descartes,tambm ele fascinado pelos autmatos, introduziu a idia de animal-mquina jcom a esperana de que certas atividades humanas pudessem ser simuladasmecanicamente. Esta esperana tomou corpo no sculo XVIII com Vaucanson, que

    construiu primeiro um autmato tocador de flauta e posteriormente, em 1783, o seuclebre pato capaz de nadar, de bater as asas cada asa era composta por cerca deduas mil peas de engolir gros e eliminar dejetos, neste caso bolinhas de pocoloridas (adaptado de Losano1).

    A imagem impressionou os espritos da poca e, em 1747, La Mettrie publicouLHomme machineonde era pela primeira vez posta em causa a distino entre ohomem e a mquina. Em 1769 aparece um autmato ainda mais completo: o deKempelen, sob a forma de um turco sentado sobre um cofre e colocado em frentede um tabuleiro de xadrez. Este autmato teve um grande sucesso, contudo, era umafraude: um jogador ano encontrava-se dissimulado dentro dele para assegurar ojogo. Mas, o sonho estava lanado e o sculo XX iria concretiz-lo: em 1912, Torres

    RAIN MANRAIN MANRAIN MANRAIN MANRAIN MANSOB A MIRA DA

    FILOSOFIA DA MENTE *

    ADALBERTO TRIPICCHIO **

    ANA CECLIA TRIPICCHIO ***

  • 7/24/2019 Rain Man Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

    2/12117REVISTA OLHAR - ANO 04 - NO7 - JAN-JUN / 03

    y Quevedo construa um autmato capaz de jogar as finais de rei e torre contra rei e,em 1945, Zuse foi o primeiro a programar as regras do jogo de xadrez.

    Em 1949, Claude Shannon, o criador da teoria matemtica da informao,desenvolveu os princpios bsicos de um mtodo para jogar xadrez. Em 1950, Tu-ring construiu um programa de xadrez que simulara manualmente.Ao mesmo tempo, estava-se continuamente inventando novosautmatos a fim de se reproduzir, numa primeira fase, ocomportamento animal: foi o caso do Philidog, em 1929, queconseguia seguir um raio luminoso e latir em funo da intensidade

    desse raio; por volta de 1950, as tartarugas de Walter e araposa de Ducrocq, j autnomas e capazes de explorarparcialmente um ambiente. Em torno de 1947, foi sobretudoTuring quem primeiro considerou a hiptese da realizao de umacriatura inteligente e no humana; o relatrio que ele escreveu aesse respeito no foi muito apreciado na poca, embora j setratasse da definio das aplicaes que compem, hoje em dia, aIA: jogos, resolues de problemas e demonstraes de teoremase traduo automtica.

    Surge na Filosofia da Mente (FM) uma grande indagao:Pode uma mquina pensar?

    Ela foi feita, e respondida afirmativamente, por Turing

    2

    ,em seu artigo de 1950, Computao e Inteligncia. A IA noexistiria sem as conquistas da neurofisiologia. A partir dos anos50, torna-se possvel desenvolver modelos de neurnios partindode hipteses precisas, inspiradas nas ligaes neuronaisobservadas em diversas famlias animais, desde insetos at polvo, r e gato.

    A partir dos anos 50 aparecem os primeiros programas de clculo formal.Os informticos (ou computlogos), descobrem que as suas mquinas podem servirpara muitas outras coisas sem ser fazer clculos e, em particular, que podem ma-nipular smbolos.

    O ano de 1956 torna-se chave para a IA. Dois acontecimentos contribuempara isso:

    1) Boden3 faz referncia a Newell, Shaw e Simon, que, em 1955, comunicam comunidade cientfica:- Inventamos uma mquina pensante! Logo depois, em1956, desenvolviam o primeiro verdadeiro programa de IA, oLogic Theorist, queproduzia pela primeira vez a demonstrao automtica de teoremas da lgicaproposicional do tipo se p e q, ento p e se no (no-p) ento p;

    2) a reunio no Colgio de Darmouth com vrios investigadores, na qual apresentado o Logic Theorist pelos seus autores, que propem a designao deInteligncia Artificial para melhor denominar esta nova perspectiva de trabalhos visandoreproduzir e dar modelos de comportamentos at ali reservados somente aoshumanos.

    Distinguimos trs modalidades de IA:1. IA simblica atravs da simulao da mente.2. IA conexionista atravs da simulao do crebro, baseada em redes

    neurais artificiais.3. IA corporificada reagindo ao ambiente atravs da simulao do

    comportamento inteligente das mentes encarnadas, como parte do projeto da novarobtica dos anos 70 (Teixeira4).

    Estes eventos marcam a formao e a institucionalizao da nova disciplinana dcada de 50: a Inteligncia Artificial (IA), e logo depois, as chamadas CinciasCognitivas. A idia de que processos mentais poderiam ser estudados luz de ummodelo computacional apresentava uma boa alternativa para os dilemasmetodolgicos de investigao na FM e na Psicologia.

    2 TURI NG, A. (1 950/ 1996 ). ETEIXEIRA, J.F., pp.19-60.3 BODEN, M.A. (1994).4TEIXEIRA, J.F. (2000), n.4, pp.147-

  • 7/24/2019 Rain Man Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

    3/12118 REVISTA OLHAR - ANO 05 - NO8 - JAN-JUN / 03

    2. Funcionalismo reducionista

    Afinal, a IA tem contribudo para bem se reavaliar o problema C/M?Ora, sendo a IA produzida por dispositivos que no tm a mesma arquitetura,

    nem a mesma composio biolgica e fsico-qumica do crebro - afinal estamosfalando de ser vivo do reino orgnico versusser bruto do reino mineral levou-nos,assim, formulao de uma teoria especfica das relaes C/M: o funcionalismo.

    O funcionalismo teve seu apogeu nos anos 70. Assim, em 1975, Putnam5

    publica um artigo sobre as relaes crebro/mente inspiradas pela ptica daInteligncia Artificial, promovendo um funcionalismo especfico, apoiado na analogiaentre mentes, crebros e computadores digitais. Este misterioso labirinto interno noslembra um softwareque estipula quais as instrues que um computador deve seguirpara realizar uma determinada tarefa, qual um fio de Ariadne, ligando os doisextremos input/output.

    O funcionalismo implica uma postura monista materialista no-reducionista.Um aparelho de rdio (hardware) toca uma msica (software). A msica e o aparelhode rdio so coisas distintas, irredutveis uma outra, embora sejam ambas necessriaspara realizar o evento completo. Esta concepo sustenta que estados mentais sodefinidos e caracterizados pelo papel funcional que eles ocupam no caminho entre oinpute o output a caixa-preta de um organismo ou sistema.

    3. Funcionalismo reducionista em uma situao sui generis

    Um dos mais fascinantes fenmenos que, com alguma freqncia, surge emdoentes psiquitricos crnicos, a presena de determinadas aptides cognitivasextraordinariamente desenvolvidas. Renem-se nestes casos, no mesmo indivduo,capacidades francamente diminudas em muitas reas do funcionamento psquico,com outras, extremamente desenvolvidas6. As aptides mais freqentemente relatadasso: matemticas, mecnicas, grficas e musicais. Coexistem nestes doentes focos degenialidade em um funcionamento psquico global, como regra geral, enormementedeficitrio.

    Tratam-se de situaes raras, cerca de seis vezes mais freqentes no sexomasculino7. Tm sido descritos casos em doentes com Dficit Intelectual, comTranstorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), e em portadores da Sndrome de Gillesde la Tourette8, mas as situaes clnicas a que mais tipicamente se associam so oAutismo e a Sndrome de Asperger. A denominao mais abrangente em uso hoje,independente do transtorno de base, Syndrome des Savants (Sndrome dos Sbios),em geral, mantida no idioma francs original. A expresso proposta inicialmente foideAutistic Savant(Autista Sbio), por Bernard Rimland, em 1978, em artigo para arevista Psychology Today, a qual j vinha em substituio histrica e deselegante

    denominao Idiot Savant(Idiota Sbio). Por no ser exclusividade nem dos autistas enem dos deficientes em nvel de idiotia, prefervel falar-se em Syndrome des Savants.Existe o autismo infantil precoce, j manifestado desde a nascena; o sintoma

    autista que surge na evoluo da esquizofrenia de apresentao clnicapredominantemente catatnica; o defeito autista residual e permanente dasesquizofrenias terminais; o autismo de crianas com esquizofrenia precocssima, quepode ser confundido com o verdadeiro autismo infantil nuclear; existe a sndromeautista que acompanha a sndrome catatnica, que pode surgir sintomaticamente pelasmais variadas causas exgenas. Existe, ainda, a expresso mecanismos autistas, muitocara aos psicanalistas, que a descrevem como ncleos psicticos que qualquer serhumano razoavelmente normal (vale dizer, neurtico) pode manifestar ao longoda vida e nas mais variadas circunstncias. Alis, quem de ns no se vale deste recurso

    5PUTNAM, H. (1992).6ARAJO, A. (1997).7TREFFERT, D.A. (1988).8 MORIARTY, J. (1993).

  • 7/24/2019 Rain Man Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

    4/12119REVISTA OLHAR - ANO 04 - NO7 - JAN-JUN / 03

    quando o meio ambiente real ou ilusoriamente hostil. Basta que nos voltemos paradentro de ns mesmos, para o nosso si-mesmo, ou self, e neste mundo interiorrefugiarmo-nos dos estmulos externos. Por meio da defesa do Ego chamadaclivagem, ou isolamento, cindimos os ambientes interno e externo em compartimentosestanques. Neste caso, entretanto, no perdemos o controle ego-consciente da situao.

    No verdadeiro autismo, no dizer de Minkowski9, h uma perda do contatovital com a realidade. Nada mais profundo, autnomo e necessrio do que estacondio patolgica das mais terrveis encontradas na clnica neuropsiquitrica.

    Como primeiro contato clnico com o autismo, podemos dizer, de modo

    amplo e genrico, que ele se caracteriza por um desenvolvimento francamentedeficiente da capacidade de interao social e de aquisio da linguagem alm deuma restrio acentuada do leque de interesses e atividades, que so tipicamenterepetitivas e estereotipadas10.

    Foi Leo Kanner11 quem, pela primeira vez, descreveu esta condio, em1943, e por isso, ela designada por Autismo de Kanner.Ele considerava o autismo infantil inato. Em 1956,observou, porm, crianas que nasciam sem sinais dadoena, vindo a apresent-la mais tarde. Talvez, em funodisto, Kanner, que alm de psiquiatra exerceu tambm aPsicanlise, especulou a possibilidade do autismo ser

    causado pelo fato de seus portadores terem sido nainfncia insuficientemente amados. Atualmente praticamente unnime aceitar-se sua origem como sendobiolgica.

    Kanner postulou o limite de idade para validao deste diagnstico, fixando-o em 30 meses. Aps esta idade, deve-se considerar a possibilidade de sintoma autsticode uma esquizofrenia precocssima. De qualquer forma, sempre muito difcil situarcom preciso a idade exata de surgimento do autismo.

    Muito se debateu se haveria um continuum entre o autismo infantil e aesquizofrenia, sendo portanto uma mesma doena. A maioria dos autores, hoje,afirmam serem duas patologias totalmente distintas. Embora apoiados por diversoscritrios clnicos, nada se pode afirmar em Psiquiatria em termos diagnsticos, pois a

    Natureza esconde-nos a etiologia de todas as doenas mentais. Esse fato estperfeitamente de acordo com os estudos da Filosofia da Mente, onde a questo darelao crebro/mente/conscincia no foi ainda explicada definitivamente.

    O quadro clnico clssico do autismo infantil assim se apresenta:1. O recm-nascido: parece diferente dos outros bebs; parece no precisar

    de sua me; raramente chora; torna-se rgido quando no colo; s vezes muito reativoaos elementos e irritvel;

    2. Os seis primeiros meses: no pede nada; no nota sua me; sorriso,resmungos, resposta antecipada so ausentes ou retardadas; falta de interesse porjogos, muito reativo aos sons;

    3. De seis a doze meses: no afetuoso; no interessado por jogos sociais; nocolo indiferente; ausncia de comunicao verbal ou no-verbal; hipo ou hiper-reativo aos estmulos; averso por alimentao slida; etapas do desenvolvimentomotor irregulares ou retardadas;

    4. O segundo e terceiro anos: indiferente aos contatos sociais; comunicamexendo a mo do adulto; o nico interesse pelos brinquedos consiste em alinh-los;intolerncia novidade nos jogos; procura estimulaes sensoriais como ranger osdentes, esfregar e arranhar superfcies, fitar fixamente detalhes visuais, olhar mos emmovimento ou objetos com movimentos circulares; particularidade motora: baterpalmas, andar nas pontas dos ps, balanar a cabea, girar em torno de si mesmo;

    5. O quarto e o quinto anos: ausncia de contato visual; no brincar: ausnciade fantasias, de imaginao, de jogos de representao; linguagem limitada ou ausente;ecolalia (repetio do que ouve); inverso pronominal; anomalias do ritmo do discurso,

    9MINKOWSKY, E. (1927).10APA DSM IV TR (2002).11KANNER, L. (1971).

  • 7/24/2019 Rain Man Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

    5/12120 REVISTA OLHAR - ANO 05 - NO8 - JAN-JUN / 03

    do tom e das inflexes; resistncia s mudanas noambiente e nas rotinas.

    6. Apresentam, em geral, baixo Quociente deInteligncia (QI), realizam melhor as tarefas que exigemaptides motoras, visuo-espaciais e mnmicas, queaquelas que exigem aptides intelectuais ou verbais.Os escores mais baixos so obtidos no raciocnio ver-bal abstrato e os escores mais altos nas tarefas demontagem.

    Se excedemos nestes dados todos para darum pano-de-fundo bastante claro ao leitor. Apesar

    destas restries todas, como bem assinalou pela primeira vez com aguda percepofenomenolgica, Hans Asperger12, professor de pediatria e diretor da seo dePedagogia Curativa da Clnica Peditrica da Universidade de Viena, ao registrar emseu livro Pedagogia Curativa, de 1952 (1 ed.), que o quadro global dos autistas no to univocamente desfavorvel, mas muito pelo contrrio.

    A Sndrome de Asperger tem algumas afinidades com o autismo, mas, aocontrrio do que se passa neste, no h um atraso significativo na aquisio dalinguagem e nem sub-normalidade intelectual13.

    O interesse marcante dos doentes com autismo ou com sndrome de

    Asperger por reas restritas - datas, nmeros de telefone, horrios de transporte paraviagens etc. - e uma espcie de obsesso por detalhes, permitem compreender ofato de que, quando o seu quadro clnico melhora, as aptides referidas so, geralmente,afetadas negativamente. H que se referir, nestas situaes, que os interessesdemonstrados so fonte de prazer e bem estar, ao contrrio do que se passa, porexemplo, no transtorno obsessivo-compulsivo em que so fonte de intensa ansiedade14.

    Os casos estudados e descritos so de natureza muito diversa e vo desde acapacidade para reter uma pera ou uma oratria depois de a ouvir uma nica vez,at memorizao na ntegra de um dicionrio de nove volumes ou de um nmerocom trezentos dgitos15.

    4. Os calculadores de calendrios

    Outra capacidade extraordinria, que ocasionalmente surge tambm emdoentes psiquitricos crnicos - e uma das que tem suscitado maior curiosidade - oclculo de calendrios (ou clculo do dia-data), isto , determinar rapidamentequal o dia da semana correspondente a determinada data16. A extenso do perodode tempo abrangido pela capacidade de clculo, pode ser muito limitada ouextremamente dilatada, bem como abarcar tanto o passado como o futuro17. Aocontrrio de outras aptides, trata-se de uma capacidade que apenas raramente temsido descrita em indivduos sem doena mental18.

    Em alguns casos, associam-se na mesma pessoa, outras capacidadesextraordinariamente desenvolvidas, como por exemplo, uma memria extraordinriapara datas de aniversrio, a aptido para determinar o dia do ms em que se celebraa Pscoa em determinado ano (o Domingo a seguir primeira Lua Cheia depois doequincio da Primavera) etc.

    O mtodo utilizado pelos calculadores de calendrios, tem sido objeto deinvestigao. Freqentemente impossvel obter dos doentes a explicao dos seusprocedimentos, ou por ausncia de discernimento sobre o mtodo utilizado, ou porincapacidade de traduzi-los verbalmente. Alguns acham mesmo estranha e duvidosaa incapacidade das outras pessoas para obter um desempenho semelhante.

    Em muitos casos, estes calculadores demonstram conhecer a estrutura e

    12 ASPERGER, H. (1952).13APA DSM IV TR (2002).14APA DSM IV TR (2002).15 SACKS, O. (1985).16ARAJO, A. (1997).17YOUNG, R.L. (1994).18NORRIS, D. (1990).

  • 7/24/2019 Rain Man Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

    6/12121REVISTA OLHAR - ANO 04 - NO7 - JAN-JUN / 03

    as regularidades do calendrio, por exemplo, a de que o dia 1 de Abril e 1 de Julhocorrespondem sempre ao mesmo dia da semana, ou a de que existem 14 padres decalendrios anuais e que a sua seqncia se repete de 28 em 28 anos.

    O conhecimento desta ltima regra, sem o conhecimento da exceo a queest sujeita, leva alis alguns destes calculadores a cometerem erros sistemticos nasdatas anteriores a 1900 e posteriores a 2100. que, no calendrio gregoriano promulgado pelo papa Gregrio XIII e gradualmente adotado por todos os pases- os anos de mudana de sculo no divisveis por 400 no so bissextos. Assim, oano 2000 foi bissexto, mas o ano 1900 no o foi e o ano 2100 no o ser.

    A complexidade da estrutura do calendrio deriva do fato de os ciclos quelhe servem de base (rotao da Terra, rotao da Lua em torno da Terra e translaoda Terra em torno do Sol) terem duraes que no so mltiplas umas das outras.Um ano tem 52 semanas e mais um dia (dois no caso dos anos bissextos). A no sereste(s) dia(s), todas as datas do ano calhariam sempre no mesmo dia da semana, e oclculo do dia-data seria bem mais simples... Assim, em anos subseqentes, os diasda semana avanam um dia para a mesma data, mas, se o ano for bissexto, avanamdois (em datas posteriores a 29 de fevereiro), os anos bissextos sucedem-se emperodos de quatro anos, mas os anos de mudana de sculo no divisveis por 400no so bissextos.

    Mais rigorosamente, os ajustamentos no calendrio so necessrios pelo fato

    de um ano solar no ser exatamente igual a 365 e seis horas (hiptese em que oajustamento resultante da introduo dos anos bissextos seria suficiente), mas sim365 dias, 5 horas e quase 49 minutos19. Mesmo com este ajustamento, subsiste umadefasagem entre o ano solar e o ano do calendrio gregoriano, de perto de 26 segundos(um dia ao fim de 2800 anos), pelo que, dentro de alguns sculos, ser necessrionovo ajustamento.

    O matemtico portugus Pedro Nunes nasceu em Alccer do Sal em 1502.Em 1577, isto , um ano antes da sua morte, Pedro Nunes recebeu um convite doPapa Gregrio XIII para colaborar na reforma do calendrio juliano. Nenhumaresposta escrita chegou a ser enviada para Roma, mas deve ter chegado uma mensagemoral, segundo a qual Pedro Nunes teria afirmado, pouco antes de morrer, que qualquercalendrio conteria sempre erros, uma afirmao que continua, portanto, vlida. Aps

    o falecimento de Pedro Nunes, Gregrio XIII mandou ainda verificar todo o seuesplio, numa tentativa derradeira de encontrar alguma referncia que ajudasse noprocesso de reforma do calendrio, mas nada foi encontrado.

    Aparentemente, a utilizao pelos calculadores de calendrios de estratgiasde clculo baseados nas regras referidas, deveria tornar as respostas, dada a suacomplexidade, bem mais demoradas do que aquilo que acontece em muitos doscasos descritos20. Acontece, no entanto, que muitos doentes psiquitricos crnicos,desenvolvem um fascnio muito particular pelos nmeros e pelos padres cclicosregulares que eles podem representar, com os quais, ao longo do tempo, vo-sefamiliarizando.

    Existem frmulas para o clculo de calendrios, como por exemplo:y = d + INT[(13 m - 1) / 5] + a + INT[a / 4] + INT[c / 4] - 2 csendo que:S = y - 7 INT[y / 7]para:d - dia do ms;INT - parte inteira do nmero real (por exemplo: INT [7,86] = 7);m - ms, sendo que Maro corresponde a 1, Abril a 2, etc.;a - ano, representado pelos dois ltimos algarismos (por exemplo, em 1796, a = 96);c - sculo, representado pelos dois primeiros algarismos do ano (por exemplo, em 1826, c = 18);S - dia de semana pretendido, sendo que domingo corresponde a 0, segunda-

    19GOULD, S.J. (1998).20ARAJO, A. (1997)

  • 7/24/2019 Rain Man Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

    7/12122 REVISTA OLHAR - ANO 05 - NO8 - JAN-JUN / 03

    feira a 1 etc.)Como regra geral, os calculadores de calendrios no tiveram, de qualquer

    modo, acesso a frmulas do gnero da apresentada atrs. Eles teriam de as inferir,ou, ento, recorrer a tabelas. Entretanto, eles no possuem as aptides matemticasmais bsicas para tais operaes21.

    Estes fatos levaram hiptese de, pelo menos em alguns dos casos, estar emjogo uma capacidade muito desenvolvida no mbito da memria, especialmente amemria eidtica. Alguns destes doentes mostram um grande interesse porcalendrios, passando grandes perodos de tempo examinando-os. Outros tero

    estudado obsessivamente os chamados calendrios perptuos. Admitindo-se opapel fundamental da memria, principalmente a memria visual, pelo menos emalguns dos casos estudados, a designao calculador de calendrios, tornar-se-iainadequada, se aplicada a todas as situaes do gnero.

    Tem sido tambm valorizado o papel do reforo positivo e da motivao,mas o desempenho destes doentes parece no melhorar com a idade22,23. O treinopode, no entanto, ter um papel importante. Um estudante do ensino superior, foitreinado, em poucas sesses, a calcular, por alguns segundos, atravs de um algoritmoque lhe foi fornecido, o dia da semana de qualquer data entre os anos 1600 e 2000(24).Lewis Carrol, matemtico e escritor (conhecido pela obraAs Aventuras de Alice no Pasdas Maravilhas), executava esse clculo em cerca de 20 segundos, utilizando uma frmula

    de sua prpria autoria

    25

    .Os gmeos descritos por Oliver Sacks em O Homem que Confundiu a Mulhercom um Chapu26, tinham, alm de outras capacidades matemticas extraordinrias,uma aptido prodigiosa para o clculo de calendrios. Um aluno universitrio tentoucom persistncia igualar o seu desempenho: Langdon praticava dia e noite (...) masno conseguia igualar a velocidade dos dois gmeos. Subitamente e de um modoque ele nunca conseguiria descrever com exatido, passou a consegui-lo: O clculopassou a ser automtico; ele j no precisava efetuar conscientemente as vriasoperaes27.

    Tanto a possibilidade dos doentes inferirem algumas das regras que utilizam,como a impossibilidade de as verbalizarem, aparentemente surpreendentes, no sertanto se tivermos em conta o que se passa na aquisio de outras aptides e

    particularmente das aptides lingsticas: somos capazes de adquirir competnciaslingsticas, freqentemente em vrios idiomas, sem necessidade de termos conscinciada utilizao das regras sintticas envolvidas, ou de sermos capazes de as verbalizar28,29,30.A incapacidade de formular uma regra, no significa necessariamente que essa regrano esteja sendo aplicada.

    5. Os calculadores de nmeros primos

    Ao contrrio do clculo de calendrios, algumas aptides matemticas que

    tm sido descritas em doentes psiquitricos crnicos, no parecem susceptveis deexplicao, quer por um desenvolvimento muito acentuado da memria visual, querpor uma capacidade de clculo aritmtico excepcional. , tambm, o caso dacapacidade de gerar ou identificar nmeros primos31,32, dado no ser conhecidanenhuma frmula matemtica que permita decidir, perante certo nmero natural,caso se trata ou no de um nmero primo, ou que permita gerar nmeros primos es primos33, bem como, dada a irregularidade da sua seqncia, em contraste com aregularidade, apesar de complexa, da estrutura do calendrio34.

    Pierre de Fermat foi um matemtico francs que ficou conhecido sobretudopelo chamado O ltimo teorema de Fermat35 - segundo o qual impossvelexprimir uma potncia maior que dois como a soma de duas potncias idnticas.

    21BENTO, A. (1989).22OCONNOR, N. (1992).23WELLING, H. (1994).24MORIARTY, J. (1993).25SPITZ, H.H. (1994).26 SACKS, O. (1985).27 GOULD, S.J. (1998).28 NORRIS, D. (1990).29 HERMELIN, B. (1986).30 OCONNOR, N. (1992).31 SACKS, O. (1985).32WELLING, H. (1994).33 OCONNOR, N. (1992).34ARAJO, A. (1997).35 SINGH, S. (1999).

  • 7/24/2019 Rain Man Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

    8/12123REVISTA OLHAR - ANO 04 - NO7 - JAN-JUN / 03

    Fermat teria demonstrado este teorema, pois escreveu na margem de um livro aseguinte nota: Descobri uma demonstrao verdadeiramente maravilhosa deste fato,que esta margem demasiado estreita para conter. Houve muitas demonstraesmaravilhosas do ltimo teorema de Fermat, todas com um ponto em comum:estavam erradas. Algumas revistas de matemtica passaram a anunciar na contracapaque no aceitavam demonstraes do ltimo teorema de Fermat, que se tornou oproblema mais famoso da histria da matemtica, at que, em 1995, aps 350 anosde tentativas infrutferas, Andrew Wiles o resolveu36.

    Ora, em 1640 Pierre de Fermat julgou ter encontrado uma frmula que

    produziria apenas nmeros primos -( 2 2)n+ 1

    - mas passado cerca de um sculo, Euler (que tentou ele prprio, sem sucesso,demonstrar o teorema de Fermat), provou que a frmula de Fermat falhava paran = 5 (37), propondo ele prprio uma outra,

    n2- n + 41

    mas que viria igualmente a constatar-se falha, agora para n = 41 (38).Tambm a frmulan2- 79 n + 1601

    falha para n = 80 (39).Por outro lado, para decidir, perante certo nmero natural, se se trata ou no

    de um nmero primo, so conhecidos alguns procedimentos, dos quais o mais simples o que recorre ao Crivo de Eratstenes (inventado pelo matemtico grego dosc. III a.C., que lhe deu o nome): constri-se uma lista com todos os nmerosnaturais entre 2 e n, retiram-se todos os mltiplos de 2, depois os mltiplos de 3,depois os de 5 (o 4 e seus mltiplos j foram retirados) e assim sucessivamente. Soconhecidas adicionalmente, algumas tcnicas para aumentar a eficcia destesprocedimentos (por exemplo, prova-se que basta proceder do modo descrito at raiz quadrada de n).

    A sucesso dos nmeros primos no obedece a qualquer regra conhecida.Desde Euclides, os mais brilhantes matemticos tentaram sem sucesso encontrarpadres nos nmeros primos40.

    Estes fatos levaram utilizao de uma seqncia de nmeros primos, como

    proposta para, por intermdio de sinais de rdio, tentar comunicao com eventuaiscivilizaes extra-terrestres, com os argumentos de que, por um lado, a matemticaconstitui uma linguagem universal, e por outro, uma tal seqncia s poderia terorigem biolgica41.

    Ainda mais, embora a freqncia de nmeros primos decresa medidaque esto em jogo nmeros progressivamente maiores (h mais nmeros primosentre 0 e 100 do que entre 1000 e 1100), a sua existncia no previsvel em funode qualquer regularidade e a sua quantidade infinita, como demonstrou Euclides,com a sua prova por reduo ao absurdo.

    Os nmeros primos esto ainda envolvidos na clebre Conjectura deGoldbach o mistrio mais profundo dos nmeros primos a hiptese segundoa qual todo o nmero par maior que dois a soma de dois nmeros primos, cujaprova, um desafio que tem ocupado muitos matemticos ao longo de mais de 250anos, no foi ainda obtida42.

    Alguns doentes psiquitricos, notadamente sofrendo de autismo, so capazesde identificar e/ou calcular, nmeros primos com seis - e mesmo mais - algarismos.O mtodo que utilizam, continua insatisfatoriamente compreendido. Em alguns casosno possuem qualquer conhecimento sobre operaes matemticas, nem mesmosobre as mais bsicas, como uma simples multiplicao ou diviso, e no tiveramseguramente acesso a tabelas de nmeros primos; reconhecem-nos apenas comoespeciais ou estranhos, mas sem um conhecimento pleno do conceito de nmeroprimo.

    Alguns destes doentes tero desenvolvido uma familiaridade com os nmeros

    36 BUESCU, J. (2001).37 GAMOW, G. (1962).38WELLING, H. (1994).39 GAMOW, G. (1962).40 BUESCU, J. (2001).41 SAGAN, C. (1987).42 DOXIADIS, A. (2000).

  • 7/24/2019 Rain Man Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

    9/12124 REVISTA OLHAR - ANO 05 - NO8 - JAN-JUN / 03

    de tal ordem que lhes permite estabelecer entre eles relaes semelhantes s que, deacordo com as regras gramaticais, estabelecemos com as palavras43. Habitualmente, etal como acontece tipicamente com os calculadores de calendrios, os doentescom estas aptides no conseguem descrever os seus procedimentos.

    Talvez, em alguns casos, possa estar em jogo uma capacidade cognitiva decarter eidtico extraordinariamente desenvolvida: uma espcie de aptido muitoparticular para a manipulao de imagens mentais44. Tratar-se-ia, por exemplo, dedecidir sobre a possibilidade ou impossibilidade de formar grupos com umaquantidade igual de objetos, de modo que a quantidade total destes perfizesse o

    nmero em causa; ou ainda a possibilidade de formar apenas linhas, e no retngulos,como acontece nos no-primos, com um determinado nmero de objetos ou pontos45.Um interesse particular por estes nmeros poder-se-ia desenvolver, o que associado ausncia de interesses de outro gnero (tpico sobretudo no autismo), permitiria a

    familiarizao com esta atividade, que ao longo dos anos, levaria capacidade extraordinria de gerar ou identificar nmerosprimos de vrios algarismos46. No est portanto em jogoqualquer tipo de clculo, mas sim um numeralismo icnico:estes doentes dedicar-se-iam a vaguear livremente entre estranhaspaisagens numricas.

    Os gmeos estudados e descritos por Oliver Sacks47,

    por exemplo, quando interrogados sobre o modo comoidentificavam nmeros primos de vrios algarismos, respondiamsimplesmente: Vemos. Do mesmo modo, quando uma caixade fsforos caiu, os fsforos se espalharam e os gmeos gritaram111 e explicaram que no os tinham contado, mas que ostinham visto48.

    Trata-se, portanto, de uma aptido distinta da dos calculadores de calendrios(quando de verdadeiros calculadores se trata, e no de doentes que recorrem a umamemria eidtica muito desenvolvida). Temos, no entanto, de levar em conta quetoda a aritmtica dos calendrios tem por base o nmero primo sete, e que os nmerosprimos, no que diz respeito ao clculo aritmtico, tm caractersticas muito particulares,sobretudo pela possibilidade de produo de padres cclicos perfeitos.

    As aptides cognitivas especiais em doentes psiquitricos crnicos, muitosdeles francamente deficitrios em muitas reas do funcionamento psquico,proporcionam, em alguns casos, nveis de desempenho difceis de igualar por indivduosnormais, ou mesmo por pessoas treinadas52. O restrito leque de interesses de certosdoentes e em particular de doentes sofrendo de autismo ou Sndrome de Asperger(a generalidade dos indivduos normais, no passaria, por exemplo, vrias horas,diariamente, a examinar calendrios), e o fascnio de alguns pela repetio e pelaregularidade, bem demonstrado pela freqente intolerncia a pequenas alteraes dasrotinas dirias, so fatores que no se devem esquecer.

    6. Aptides matemticas

    notrio o fascnio que os nmeros exercem em certas pessoas. Algumasdesenvolvem uma familiaridade extraordinria com eles. Brincam, no dia-a-dia, comos nmeros, como se fossem seus companheiros (eventualmente os nicos): Osnmeros so amigos meus. O que significa para si o 3844? s um trs, um oito, umquatro e um quatro. Mas eu digo: Ol, 62 ao quadrado49. Um amigo dos nmerosinteiros50, reconhecer de pronto 256 como 2 elevado 8 potncia, ou 199, 457 e1009 como nmeros primos.

    Alguns autistas atingem desempenho excepcional em matemtica, assim,

    43 CLARKE, R. (1990).44WELLING, H. (1994).45 DOXIADIS, A. (2000).46WELLING, H. (1994).47 SACKS, O. (1985).48WELLING, H. (1994).49 DOXIADIS, A. (2000).50ASPERGER, H. (1966).

  • 7/24/2019 Rain Man Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

    10/12125REVISTA OLHAR - ANO 04 - NO7 - JAN-JUN / 03

    escolhemos e pinamos alguns exemplos citados pelo prprio Asperger, em seulivro, para emprestar subsdios nossa hiptese funcionalista. ele quem diz: Comoexemplo, descreveremos o mtodo aritmtico de um menino de oito anos e meio:

    27 + 32 [responde prontamente]: So 39. E, espontaneamente, explica comofez o clculo: 2 x 12 so 24, 3 X 12 so 36, lembro-me dos 3 (quero dizer que 27 o mesmo que 2 X 12, aumentado em 3), e continuo calculando....

    58 + 34: So 92, ou melhor, 60 e 32, pois sempre calculo base de dezenas.34 12: So 22; 34 mais 2 so 36, menos 12 so 24, menos 2 so 22; isto

    ocorreu-me com a maior rapidez e facilidade que qualquer outra coisa.

    47 15: So 32, ou bem, somar 3 e ao que se h de subtrair e somartambm outros 3; ou bem, subtrair primeiro 7 e depois 8.

    52 25: So 27: 2 x 25 so 50, mais 2 so 52, mais 25 mais 2 so 27.Agora um problema (lembremos que o menino est na segunda srie do

    grau elementar e que, segundo informao escolar, no consegue, por causa de suasdificuldades para aprender, sequer o nvel mdio de sua classe):

    Uma garrafa, com a tampa, custa 1 real e 10 centavos [alteramos as moedas].A garrafa custa 1 real mais que a tampa. Quanto custa cada um em separado? Emcinco segundos d a soluo correta. A nosso pedido, explica como achou a soluo:Se a garrafa custa 1 real mais, haver que se descontar esse real, e dos 10 centavosrestantes dever ficar, todavia, algo para a garrafa; portanto, tenho que dividir por 2,

    e assim a tampa custar 5 centavos e a garrafa 1 real e 5 centavos

    51

    .Ficamos somente com este exemplo verdico e paradigmtico. Eis aqui onosso personagem protagonista do Rain Man,onde o autista, j adulto, faz clculosbastante complexos, mais rapidamente do que os outros personagens com umacalculadora.

    De fato, eles ganham de qualquer campeo em Kum, tcnica japonesa defazer clculos com muita rapidez, necessitando seus praticantes, porm, de muitotreino e dedicao.

    Quando se pergunta a um desses autistas como ele chegou ao resultado, ououvimos uma elaborao mental fantasiosa secundria, caso do exemplo deste garotode oito anos e meio dado por Asperger, ou, no caso de adultos, ouvimos dizersimplesmente: No sei. O nmero simplesmente aparece pronto em minha cabea.

    Em alguns casos as aptides matemticas impressionam sobretudo pelaprecocidade com que se desenvolvem. O matemtico alemo Gauss, por exemplo,teria dez anos quando o seu professor pediu turma que somasse todos os nmerosde 1 a 100. Gauss respondeu imediatamente 5050; tinha calculado mentalmente que100+1=101, 99+2=101, 98+3=101, etc., e que 50X101= 5050(52). O matemticohngaro Paul Erds, aos 3 anos, divertia os convidados da me, perguntando-lhes adata de nascimento e dizendo quantos segundos tinham vivido53.

    Se um fato que aptides matemticas extraordinrias surgem por vezesem doentes psiquitricos crnicos, tambm tem sido notada a freqncia com quegrandes vultos da histria da matemtica adoeceram mentalmente.

    Cantor e Gdel, por exemplo, sofreram de psicoses; Gdel morreu desubnutrio, porque, estando internado num hospital em Princeton, recusavasistematicamente qualquer alimento, convencido de que os mdicos o estavamenvenenando 54. Sidon, um matemtico hngaro que trabalhou muito comtrigonometria, apresentou esquizofrenia; tinha um delrio de perseguio e, certa vez,quando amigos matemticos se deslocaram sua casa com a inteno de visit-lo,entreabriu a porta e disse: Por favor, melhor virem outra hora e para visitar outrapessoa55. Tambm o matemtico John Nash, do premiado filme Uma Mente Brilhante,apresentou esquizofrenia. Aos 21 anos defendeu uma tese de doutoramento sobre aTeoria dos Jogos que, 50 anos mais tarde, lhe valeria o Prmio Nobel. O fato deno existir Prmio Nobel de Matemtica (Nobel no o instituiu, mas tambm noinstituiu o de Economia e, mesmo assim, ele foi criado em 1969), levou situaocuriosa de um matemtico ganhar um Prmio Nobel de Economia em 1994.

    51 OCONNNOR, N. (1992).52 BUESCU, J. (2001).53 DOXIADIS, A. (2000).54 HOFFMAN, P. (2000).55 BUESCU, J. (2001).

  • 7/24/2019 Rain Man Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

    11/12126 REVISTA OLHAR - ANO 05 - NO8 - JAN-JUN / 03

    Propomos a seguinte hiptese: feita a pergunta o input que penetrapelos transdutores ao interior da caixa-preta (o crebro), que passa a funcionarcom total autonomia, isto , apresentando somente estados cerebrais puros, rompendoa indissolvel simbiose psiconeural. Em seguida, devolve o resultado correto pelosefetuadores o output. Secundariamente, como no caso do garoto de Asperger,vem uma explicao, fruto de uma pobre racionalizao mental que, se fosse aplicadade fato, somente iria impedir a soluo da questo proposta.

    Algum poderia contestar: Mas e a atividade mental inconsciente?Vejamos: no caso do autista, com um rendimento cognitivo deficitrio,

    embotamento afetivo e volitivo, qual seria o caudal de contedo reprimido que seuincipiente ego-consciente poderia ter alojado em seu inconsciente dinmico? Queexperincias aritmticas teria realizado, e aprendido, para intuir prontamente resultadoscorretos? Ainda algum poderia contestar: Mas o inconsciente no somente oreprimido, ou fonte de intuies. Certo. Vejamos o que sobra: nossa memriafilogentica que se aloja no ncleo da vitalidade pulsional de nosso inconsciente, fontede nossa energia psquica, ou elan vital, ou libido sexualis. Pois bem, no nos consta quenossos ancestrais fossem bons matemticos, alm disso, o material desta camadamais profunda de nossa psiqu, jamais conscientizvel. Entretanto, podemos admitir,sem grande esforo, que exatamente a tenham-se estruturado circuitarias prontas aserem acessadas para realizar prodgios, como os do pequeno paciente de Asperger.

    Mas algum poderia ainda dizer: E o que roda nessa circuitaria, qual um software, no atividade mental? Pois bem, para quem aceitar esta imagem, hard/soft // crebro/mente, diramos que no momento do grande prodgio dos autistas de Asperger, elesso tal e qual um computador em processamento.

    Turing pergunta se uma mquina pode pensar, ao que ainda no temosresposta, por outro lado, perguntamos: _ Para qu, Turing? Se podemos afirmarque seres humanos autistas j funcionam muito bem, como mquinas, e sem precisarpensar. Tambm nos trabalhos de Rodney Brooks, do laboratrio de IntelignciaArtificial do Massachusetts Institute of Technology, USA, o MIT, e um dos precursoresdo movimento da Nova Robtica, encontramos dois artigos seus, escritos em1991, Intelligence without representation eIntelligence without reason, com os quais fazemosestreita analogia com a matria aqui apresentada. Finalmente, aos seguidores da

    psicologia profunda, podemos destacar a questo do inconsciente dinmico, que osautistas certamente possuem, mas, e as mquinas, ser que tambm no o possuem?Quanto ao Projeto COGde Rodney Brooks, um pequeno rob que est crescendol no MIT, como uma criana humana, no estaria ele j salvando os resultadosbem sucedidos de suas experincias como se fora seu patrimnio gentico-inconsciente?

    Referncias Bibliogrficas

    APA AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION DSM-IV-TR . Climepsi Ed., 4ed., 2002.

    ARAJO, A. & DUARTE, J. Aptides cognitivas especiais em doentes psiquitricos crnicos: Apropsito de um caso. Psiquiatria Clnica, v.18, n.2, pp.124-129, 1997.

    ASPERGER, H. Pedagogia curativa. Barcelona: Ed. Luis Miracle, 1966.BENTO, A. & cols. Doentes crnicos com aptides especiais. A propsito de dois casos decalculadores de calendrios. Revista do Hospital Jlio de Matos, n.2, pp.111-118, 1989.BODEN, M.A. Filosofa de la inteligencia artificial. Mxico: F C E, 1994.BUESCU, J. O Mistrio do bilhete de identidade. Lisboa: Ed. Gradiva, 2001.CLARKE, R. O Homem Mutante. Lisboa: Ed. Bertrand, 1990.DOXIADIS, A. O tio Petros e a conjectura de Goldbach. Lisboa: P. Europa-Amrica, 2000.GAMOW, G. Um, Dois, Trs... Infinito.Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1962.GOULD, S.J. O Fascnio do millennium. Lisboa: Ed. Europa-Amrica, 1998.HERMELIN, B. & OCONNOR, N. Idiot Savant calendrical calculators: Rules and regularities.Psychological Medicine, n.16, pp.885-893, 1986.HOFFMAN, P. O Homem que s gostava de nmeros. Lisboa: Ed. Gradiva, 2000.

  • 7/24/2019 Rain Man Sob a Mira Da Filosofia Da Mente

    12/12

    KANNER, L. Psiquiatria infantil. Buenos Aires: Ed. Paids, 1971.LOSANO, M.G. Histrias de autmatos. Da Grcia clssica Belle poque. So Paulo: Cia. das Letras,1992.MORIARTY, J. & cols. An idiot Savant Calendrical Calculator. Psychological Medicine, v.23, n.4,pp.1019-1021, 1993.NORRIS, D. How to build a connectionist Idiot (Savant). Cognition, n.35, pp.277-291, 1990.OCONNOR, N. & cols. Idiot Savant calendrical calculators: Maths or memory.Psychological

    Medicine, n.14, pp.801-806, 1984.OCONNOR, N. & cols. Do young calendrical calculators improve with age?Journal of ChildPsychology and Psychiatry, v.33, n.5, pp. 907-912, 1992.PUTNAM, H. Razo, verdade e histria. Lisboa: Publ. Dom Quixote, 1992.

    SACKS, O. O Homem que confundiu a mulher com um chapu. Lisboa: Ed. Rel. Dgua, 1985.SAGAN, C. O crebro de Broca. Lisboa: Ed. Gradiva, 1987.SINGH, S. O ltimo teorema de Fermat. So Paulo: Ed. Record, 1999.SPITZ, H.H. Lewis Carrolls formula for calendar calculating. American Journal on Mental Retarda-tion, n.98, pp.601-606, 1994.

    TEIXEIRA, J.F. Psicologia, cincia cognitiva e simulao. Olhar, v.1, n.4, pp.147-156, 2000.TREFFERT, D.A. The Idiot Savant: a review of the syndrome.American Journal of Psychiatry,n.145, pp.563-572, 1988.

    TURING, A. Computao e inteligncia. Em: TEIXEIRA, J.F. Crebros, Mquinas e Conscincia.So Carlos: EDUFSCar, pp.19-60, 1996.

    WELLING, H. Prime Number Identification in Idiot Savants.Journal of Autism and DevelopmentalDisorders, v.24, pp.199-207, 1994.

    YOUNG, R.L. & cols. The intelligence of calendrical calculators.American Journal on MentalRetardation, v.99, n.2, pp.186-200, 1994.

    _______________________________________

    **Adalberto Tripicchio mdico, bilogo e doutorando no Departamento de Filosofia eMetodologia da Cincia da UFSCar.***Ana Ceclia Tripicchio biomdica, filsofa e ps-graduanda em Filosofia na Unicamp