Rainer Maria Rilke Pequena Antologia Poesias

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POESIAS Rainer Maria Rilke (Áustria, 1875-1926) http://groups-beta.google.com/group/digitalsource

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Poesias

POESIAS

Rainer Maria Rilke

(ustria, 1875-1926)

http://groups-beta.google.com/group/digitalsourceA gazela

Gazella Dorcas

Mgico ser: onde encontrar quem colha duas palavras numa rima igual a essa que pulsa em ti como um sinal? De tua fronte se erguem lira e folha

e tudo o que s se move em similar canto de amor cujas palavras, quais ptalas, vo caindo sobre o olhar de quem fechou os olhos, sem ler mais,

para te ver: no alerta dos sentidos, em cada perna os saltos reprimidos sem disparar, enquanto s a fronte

a prumo, prestes, pra: assim, na fonte, a banhista que um frmito assustasse: a chispa de gua no voltear da face.

(Traduo: Augusto de Campos)A noite

A noite vem buscar secretamenteatravs das dobras das cortinasbrilho de sol esquecido em teu cabelo.Olha, nada mais quero que no sejater entre as minhas tuas mos , e sertranqilo e bom, todo cheio de paz.

Fazes-me crescer a alma que estilhaao dia-a-dia em cacos; e assim ganhauma amplitude que milagre teu:Nos seus molhes de aurora vo morreras primeiras ondas de infinidade.A Pantera

No Jardin des Plantes, Paris

De tanto olhar as grades seu olhar esmoreceu e nada mais aferra. Como se houvesse s grades na terra: grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexvel do seu vulto em crculos concntricos decresce, dana de fora em torno a um ponto oculto no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila se abre em silncio. Uma imagem, ento, na tensa paz dos msculos se instila para morrer no corao.

(Traduo: Augusto de Campos)

A primeira elegia

Se eu gritar, quem poder ouvir-me, nas hierarquiasdos Anjos? E, se at algum Anjo de sbito me levassepara junto do seu corao: eu sucumbiria perante a suanatureza mais potente. Pois o belo apenas o comeo do terrvel, que s a custo podemos suportar,e se tanto o admiramos porque ele, impassvel, desdenhadestruir-nos. Todo o Anjo terrvel.Por isso me contenho e engulo o apelodeste soluo obscuro. Ai de ns, mas quem nos poderiavaler? Nem Anjos, nem homens,e os argutos animais sabem jque ns no mundo interpretado no estamosconfiantes nem vontade. Resta-nos talvezuma rvore na encosta que possamos reverdiariamente; resta-nos a rua de onteme a fidelidade continuada de um hbito,que a ns se afeioou e em ns permaneceu.Oh, e a noite, a noite, quando o vento, cheio do espao do universonos devora o rosto -, por quem no permaneceria ela, a desejada,suavemente enganadora, que com tanto esforo se ergue frenteao corao isolado? Ser ela para os amantes menos dura?Ah, um como o outro eles se ocultam de sua prpria sorte, apenas.Acaso no o saibas j? Lana de teus braos o vazioem direco aos espaos que respiramos; talvez que as avesnum voo mais ntimo sintam o ar assim expandido.Sim, na verdade as Primaveras precisavam de ti. Muitas estrelasaguardavam que nelas reparasses. Para tise erguia uma vaga no findo passado; ou,ao passares por uma janela aberta,um violino entregava-se-te. E tudo isso era para ti uma misso.Mas soubeste cumpri-la? No te distraa a contnuaexpectativa, como se tudo te anunciassea Amada? (Como a poderias acolher em ti,se grandes e estranhos pensamentos te invademou abandonam ou em ti permanecem ao longo da noite?)Se porm ests saudoso, canta as Amantes, cujocelebrado sentir todavia est longe de ser imortalizado.Canta, e como tu as invejas quase, as que foram abandonadas, cujo amorte parece maior, do que o daquelas que o viram apaziguado. No cessesde recomear esse sempre insuficiente louvor;e pensa: o heri dura sempre; at a sua queda mais no foido que o simples pretexto para o seu derradeiro nascimento.Mas as Amantes so acolhidas de novo na esvada natureza,pois as foras que tudo isto produzemno existem duas vezes. Ters tu cantado de Gaspara Stampaj suficientemente a lembrana, para que a jovem mulhera quem o amado deixou, possa sentirpelo sublime exemplo de uma tal Amante: Ah, ser como ela!No ser tempo de estas dores antiqussimas se tornaremfinalmente fecundas? E no ser tempo de ns,os que amamos, nos libertarmos de quem amamos, como trmulos vencedores?De sermos como a flecha que, vencendo o arco, se solta, toda mpeto,passando a ser mais do que ela prpria? Pois em nenhum lugar se permanece imvel.

Vozes, vozes. Ouve-as, meu corao, como outrora apenasos santos as ouviam: de tal modo que o apelo imensoos erguia do solo; contudo permaneciam ajoelhados,inconcebivelmente, a isso destentos:ouvir: era assim todo o seu estar. Mas tu no poderias sequer em ti escutara voz de Deus. Ouve, porm, o sopro, ininterrupta mensagemque a ti chega, modelado no silncio.E agora ouves o murmrio dos jovens que morreram.Na verdade, onde quer que entrasses, fosseem igrejas de Roma ou de Npoles, no era o destino deles que no silncio te interpelava?Ou, ento, uma inscrio sublime te impressionava,como a da lpide que h pouco viste em Santa Maria Formosa.Que esperam todos eles de mim? tenho de serenamente retirar-lheso vu de injustia que por vezes perturbao puro movimento dessas almas.

certo ser estranho no mais habitar a terra,no mais agir conforme o que mal acabramos de aprender,no mais dar s rosas e a todas as outras coisas identicamente promissoraso significado do humano futuro;no mais ser o que se tinha sidoem infinitamente angustiadas mos, e abandonar ato prprio nome, como se fosse um brinquedo quebrado. estranho no mais desejos desejar. Estranho,passar a ver sem conexo, disperso pelo espao,tudo o que antes tinha unidade. Estar morto laborioso e cheio de recomeos, at que aos poucosnos apercebamos da eternidade. - Mas todos os vivoscometem o erro de fazer distines demasiado rgidas.Os Anjos, diz-se, no sabem muitas vezes se se movempor entre os vivos ou por entre os mortos. A eterna correnteconsigo arrasta incessantemente todas as idades,atravs destes dois domnios, e o seu som a ambos se impe.Afinal, de ns j no precisam aqueles que to cedo nos foram arrebatados,suavemente se vai perdendo o gosto pelo que terreno, tal como ao crescernos desprendemos da doura do peito materno.Mas ns, que de to grandes mistrios necessitamos, ns para quem o luto to frequentemente a fonte de feliz amadurecimento -: poderamos sem eles existir?Ou ser v a lenda de que foi outrora, ao prantear-se Lino,que a primeira msica ousou penetrar na aridez do espanto?Ento, apenas quando esse jovem, quase um deus, de sbitono espao do terror para sempre se ocultava, o vazioatingiu por fim a vibrao que agora nos arrebata, nos consola, nos ajuda.

In As Elegias de Duno, traduo de Maria Teresa Dias Furtado,

Assrio & Alvim, Setembro de 1993.

A segunda elegia

Todo o Anjo terrvel. No entanto, ai de mim!pelo canto vos invoco, aves da alma quase mortais,por saber o que sois. Para onde foram os dias de Tobias,quando um de entre os mais luminosos apareceu, no simples limiar da entrada,um pouco diferente, em traje de viagem, j nada aterrador;(Um jovem para outro jovem, quando este curiosamente olhou para o exterior).Mas se agora esse Arcanjo dos perigos, de detrs das estrelas,descesse at ns, um s passo que fosse, o nosso corao,pulsando violentamente, far-nos-ia perecer. Quem sois, afinal?

Seres desde o incio felizes, excessos da Criao,cumeadas, cimos no alvorecerde tudo o Criado -, plen da florao divina,elos de luz, cadncias, escadarias, tronos,espaos de puro ser, escudos de deleite, tumultosde um deslumbrado sentir impetuoso e, de sbito, cada um um espelho: e a sua beleza irreprimvelde novo recolhida no seu prprio rosto.

Porm ns, ao sentir, desvanecemo-nos. Ai de ns,ao respirar nos extinguimos; de brasido em brasidovamos perdendo o nosso aroma. E algum nos diz:sim, tu corres no meu sangue, tu encheseste quarto, a Primavera... Para qu? No pode deter-nos,em si e em seu redor nos ocultamos. E os que so belos,quem poder impedi-los de partir? No seu rosto se levanta incessantementee se esvai a aparncia. Tal como o orvalho matinal sobre a ervao que nosso evapora-se de ns, como o calor de umprato fumegante. Oh, sorrir para onde? Oh, erguer os olhos:afastando-se ao longe, a onda do corao, nova e clida -;ai de mim! o que ns somos. Ficar nos espaosem que nos dissolvemos o nosso sabor? Os Anjos apenasapreendero o que seu, o que de si irradiaou por vezes como por engano algode ns neles fica? Haver nos seustraos um pouco de ns, tal como o vagono rosto das mulheres grvidas? Mas tudo issolhes alheio, na vertigem do regresso a si. (Como poderiam aperceber-se disso?)

Se o entendessem, os Amantes poderiam, na aragem nocturna,falar de estranhas coisas. Tudo parece ocultar-nos.Eis que as rvores so; as casasonde vivemos existem ainda. Apenas nspassamos por tudo numa troca de ar.E tudo unanimemente nos silencia, em parte porvergonha talvez e em parte por indizvel esperana.

Amantes, a vs, que um no outro vos bastaispergunto eu por ns. Estendeis as mos um ao outro. Que provas tendes?Olhai, as minhas mos apercebem-se de queso cada uma delas e o meu rosto gastonelas se poupa. Isso d-me uma ligeirasensao. Mas quem ousaria s por isso ser?Porm, a vs que no deslumbramento do outrocresceis at que ele, subjugado,vos implora: mais no -; a vs que sob as mostendes maior riqueza do que a das vindimas;a vs que muitas vezes pereceis s porque o outrotanto vos excede: eu pergunto por ns. Bem sei,tocai-vos com tanta felicidade porque as carcias permanecem,porque no desaparece o lugar que com ternuracobris, porque debaixo pressentis a purapermanncia. Assim, vos prometeis a quase eternidadedo vosso abrao. Porm, quando vencerdes o sustodo primeiro olhar e a saudade janelae o primeiro passeio pelo jardim, uma vez:continuareis vs, Amantes, a s-lo do mesmo modo? Quando vos levais boca para beber -; bebida por bebida:como abandona ento, estranhamente, o que bebe esse acto de beber.

Acaso no nos surpreendeu nas ticas estelas funerrias a contenodos gestos humanos? No pousavam amor e despedidanos ombros to levemente, como se fossem feitos de matriadiferente da nossa? Recordai-vos das mos,suavemente apoiadas sem presso, ainda que nos torsos haja fora.Senhores de si, cientes: este o nosso limite,isto nosso - tocarmo-nos assim; os deuses que nos comprimem com mais fora. Mas prprio dos deuses.

Ah, pudssemos ns encontrar algo humanopuro, contido, simples, uma estria nossa de terreno frtil,entre rio e penhascos. Porque o nosso corao nos excedetal como neles. E no podemossegui-lo com os olhos em imagens que o apaziguem, nem emcorpos divinos em que, maior, se contm.

(Amo as horas nocturnas)

Amo as horas nocturnas do meu serem que se me aprofundam os sentidos;nelas fui eu achar, como em cartas velhssimas,j vivida a vida dos meus diase como lenda longnqua e superada.

Delas eu aprendi que tenho espaopara uma segunda vida, vasta e sem tempo.

E por vezes me sinto como a rvoreque, madura e rumorosa, sobre uma camparealiza o sonho que o menino foi(em volta do qual apertam suas razes quentes)e perdeu em tristezas e canes.

(In Poemas As Elegias de Duno Sonetos a Orfeu,Traduo de Paulo Quintela, Edies Asa, 2001)Aos olhos dos AnjosAos olhos dos Anjos, os cimos das rvores

so talvez razes que bebem os cus;

e, no cu, as razes profundas de uma faia

parecem-lhes cumeeiras de silncio.

No ser que, para eles, a terra transparente,

face a um cu cheio como um corpo?

Esta terra ardente onde o olvido dos mortos

se lamenta e chora - beira das nascentes.

Danarina espanhola

Como um fsforo a arder antes que cresa a flama, distendendo em raios brancos suas lnguas de luz, assim comea e se alastra ao redor, gil e ardente, a dana em arco aos trmulos arrancos.

E logo ela s flama, inteiramente.

Com um olhar pe fogo nos cabelos e com a arte sutil dos tornozelos incendeia tambm os seus vestidos de onde, serpentes doidas, a romp-los, saltam os braos nus com estalidos.

Ento, como se fosse um feixe aceso, colhe o fogo num gesto de desprezo, atira-o bruscamente no tablado e o contempla. Ei-lo ao rs do cho, irado, a sustentar ainda a chama viva. Mas ela, do alto, num leve sorriso de saudao, erguendo a fronte altiva, pisa-o com seu pequeno p preciso.

(Traduo: Augusto de Campos)Exerccios ao Piano

O calor cola. A tarde arde e arqueja. Ela arfa, sem querer, nas leves vestes e num tude enrgico despeja a impacincia por algo que est prestes

a acontecer: hoje, amanh, quem sabe agora mesmo, oculto, do seu lado; da janela, onde um mundo inteiro cabe, ela percebe o parque arrebicado.

Desiste, enfim, o olhar distante; cruza as mos; desejaria um livro; sente o aroma dos jasmins, mas o recusa num gesto brusco. Acha que faz doente.

Fonte Romana

Borghese

Duas velhas bacias sobrepondo suas bordas de mrmore redondo. Do alto a gua fluindo, devagar, sobre a gua, mais em baixo, a esperar,

muda, ao murmrio, em dilogo secreto, como que s no cncavo da mo, entremostrando um singular objeto: o cu, atrs da verde escurido;

ela mesma a escorrer na bela pia, em crculos e crculos, constante- mente, impassvel e sem nostalgia,

descendo pelo musgo circundante ao espelho da ltima bacia que faz sorrir, fechando a travessia.

(Traduo: Augusto de Campos)Gostava de cantarGostava de cantar a algum uma cantiga de embalar,sentar-me a seu lado, e ficar sossegado.Gostava de embalar-te murmurando uma cano,estar contigo na orla do sono.Ser a nica pessoa acordada em casaa saber que a noite est fria.Gostava de ouvir c dentro e l fora,ouvir-te, ouvir o mundo e os bosques.Os relgios tocam a rebate,e podes ver o tempo at ao fim escoar-se.Ao fundo da rua um estranho passae incomoda o co de um vizinho.Por trs, o silncio. Pousei os meus olhosem ti como numa mo aberta,e eles prendem-te ao de leve e deixam-te ir,quando algo se move no escuroHora grave

Quem agora chora em algum lugar do mundo,Sem razo chora no mundo,Chora por mim.

Quem agora ri em algum lugar na noite,Sem razo ri dentro da noite,Ri-se de mim.

Quem agora caminha em algum lugar no mundo,Sem razo caminha no mundo,Vem a mim.

Quem agora morre em algum lugar no mundo,Sem razo morre no mundo,Olha para mim.

(Traduo: Augusto de Campos)

Morgue

Esto prontos, ali, como a esperarque um gesto s, ainda que tardio,possa reconciliar com tanto frioos corpos e um ao outro harmonizar;

como se algo faltasse para o fim.Que nome no seu bolso j vazioh por achar? Algum procura, enfim,enxugar dos seus lbios o fastio:

em vo; eles s ficam mais polidos.A barba est mais dura, todaviaficou mais limpa ao toque do vigia,

para no repugnar o circunstante.Os olhos, sob a plpebra, invertidos,olham s para dentro, doravante.

(Traduo: Augusto de Campos)O Anjo

Com um mover da fronte ele descarta tudo o que obriga, tudo o que coarta, pois em seu corao, quando ela o adentra, a eterna Vinda os crculos concentra.

O cu com muitas formas lhe aparece e cada qual demanda: vem, conhece -. No ds s suas mos ligeiras nem um s fardo; pois ele, noite, vem

tua casa conferir teu peso, cheio de ira, e com a mo mais dura, como se fosses sua criatura, te arranca do teu molde com desprezo.

(Traduo: Augusto de Campos)

O cego

Ele caminha e interrompe a cidade, que no existe em sua cela escura, como uma escura rachadura numa taa atravessa a claridade.

Sombras das coisas, como numa folha, nele se riscam sem que ele as acolha: s sensaes de tacto, como sondas, captam o mundo em diminutas ondas:

serenidade; resistncia - como se espera de escolher algum, atento, ele soergue, quase em reverncia, a mo, como num casamento.

(Traduo: Augusto de Campos)

O fruto

Subia, algo subia, ali, do cho,quieto, no caule calmo, algo subia,at que se fez flama em floraoclara e calou sua harmonia.

Floresceu, sem cessar, todo um vero na rvore obstinada, noite e dia, e se soube futura doao diante do espao que o acolhia.

E quando, enfim, se arredondou, oval, na plenitude de sua alegria, dentro da mesma casca que o encobria volveu ao centro original.

(Traduo: Augusto de Campos)O mundo estava no rosto da amada

O mundo estava no rosto da amada - e logo converteu-se em nada, em mundo fora do alcance, mundo-alm.

Por que no o bebi quando o encontrei no rosto amado, um mundo mo, ali, aroma em minha boca, eu s seu rei?

Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi. Mas eu tambm estava pleno de mundo e, bebendo, eu mesmo transbordei.

(Traduo: Augusto de Campos)O solitrio

No: uma torre se erguer do fundo do corao e eu estarei borda: onde no h mais nada, ainda acorda o indizvel, a dor, de novo o mundo.

Ainda uma coisa, s, no imenso mar das coisas, e uma luz depois do escuro, um rosto extremo do desejo obscuro exilado em um nunca-apaziguar,

ainda um rosto de pedra, que s sente a gravidade interna, de to denso: as distncias que o extinguem lentamente tornam seu jbilo ainda mais intenso.

(Traduo: Augusto de Campos)O torso arcaico de Apolo

No conhecemos sua cabea inauditaOnde as pupilas amadureciam. MasSeu torso brilha ainda como um candelabroNo qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado

Detm-se e brilha. Do contrrio no poderiaSeu mamilo cegar-te e nem leve curvaDos rins poderia chegar um sorrisoAt aquele centro, donde o sexo pendia.

De outro modo erguer-se-ia esta pedra breve e mutiladaSob a queda translcida dos ombros.E no tremeria assim, como pele selvagem.

E nem explodiria para alm de todas as fronteirasTal como uma estrela. Pois nela no h lugarQue no te mire: precisas mudar de vida.

(Traduo: Augusto de Campos)O solitrio

No: uma torre se erguer do fundo do corao e eu estarei borda: onde no h mais nada, ainda acorda o indizvel, a dor, de novo o mundo.

Ainda uma coisa, s, no imenso mar das coisas, e uma luz depois do escuro, um rosto extremo do desejo obscuro exilado em um nunca-apaziguar,

ainda um rosto de pedra, que s sente a gravidade interna, de to denso: as distncias que o extinguem lentamente tornam seu jbilo ainda mais intenso.

(Traduo: Augusto de Campos)Os poetas se tem disseminado

Os poetas te tm disseminado(tempestade atravs das linhagens de todos),mas eu quero de novo interpelar-teno vaso que te d tanta alegria.Andei errante por diversos ventos;mil vezes eras tu que me empurravas.Tudo que encontro, eu trago;como taa, de ti faz uso o cego;bem fundo te escondera a criadagemmas o mendigo te mantm na altura,e muitas vezes junto a uma crianaboa parte de teu sentido estava...Bem vs que eu sou algum que anda procura.Algum que atrs das mosanda escondido e assim feito um pastor.(Tu podes esse olhar, que o enraivece- o olhar dos outros - dele desviar.)H um que sonha coroar-te a tie acabar coroando a si mesmo.

Os anjos

Tm todos bocas cansadas

e almas claras, sem orla.

E passa-lhes por vezes pelos sonhos

uma saudade (como de pecado).

Parecem-se quase todos uns aos outros;

esto calados nos jardins de Deus,

como muitos, muitos intervalos

no seu poderio e melodia.

S quando desdobram as asas

que despertam qualquer vento:

Como se Deus, com as suas largas

mos de estaturio, passasse

as folhas do escuro Livro do PrincpioPrtico

Quem quer que sejas: Quando a noite vem,sai do teu quarto onde tudo conheces;a tua casa a ltima ante o longe:Quem quer que sejas.Com teus olhos, que, de cansados, malconseguem libertar-se do teu limiar gasto,levantas devagar uma rvore negrae pe-la ante o cu: esguia, s.E fizeste o mundo. E ele grandee como palavra ainda a amadurar no silncio.E quando o teu querer abrange o seu sentido,teus olhos o abandonam, ternamente...

in Poemas - Elegias de Duno - Sonetos a Orfeu,Prefcios, Seleco e Traduo de Paulo Quintela,Edies Asa, 4. Edio, 2001

Que fars tu, meu Deus, se eu perecer?

Que fars tu, meu Deus, se eu perecer?Eu sou o teu vaso - e se me quebro?Eu sou tua gua - e se apodreo?Sou tua roupa e teu trabalhoComigo perdes tu o teu sentido.

Depois de mim no ters um lugarOnde as palavras ardentes te sadem.Dos teus ps cansados cairoAs sandlias que sou.Perders tua ampla tnica.Teu olhar que em minhas plpebras,Como num travesseiro,Ardentemente recebo,Vir me procurar por largo tempoE se deitar, na hora do crepsculo,No duro cho de pedra.

Que fars tu, meu Deus? O medo me domina.

(Traduo: Augusto de Campos)So Sebastio

Como algum que jazesse, est de p, sustentado por sua grande f. Como me que amamenta, a tudo alheia, grinalda que a si mesma se cerceia.

E as setas chegam: de espao em espao, como se de seu corpo desferidas, tremendo em suas pontas soltas de ao. Mas ele ri, inclume, s feridas.

Num s passo a tristeza sobrevm e em seus olhos desnudos se detm, at que a neguem, como bagatela, e como se poupassem com desdm os destrutores de uma coisa bela.

(Traduo: Augusto de Campos)