RAÍZES - uel.br E DESTINO/2 MEMORIAL/1... · tratamento ortodôntico de meu irmão caçula por...

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15 RAÍZES 1.1 ORIGENS Descendo de japoneses. Meus avós paternos, Koyone e Yassaburo Teshima, imigraram ao Brasil em 1929, quando meu pai, Tsutomu, tinha um ano. A exceção de Antonio, o irmão mais velho, seus oito irmãos - Naoko, Rosa, Teruo, Tokio, Helena, José, Afonso e Tomás – nasceram no Brasil. Meus avós maternos deixaram o Japão em 23 abril de 1934, com seis filhos - Sumie, Yasue, Ritsue, Guiti, Toshishigue e Ritsuo. Seiko, minha mãe, e Tokiko nasceriam no Brasil. Essa terra os acolheria com língua estrangeira e paus para cada família construir seu próprio teto. Enquanto nutriam esperança de dias melhores, pouparam o quê e quando puderam. Estruturas familiares e orientação social distintas definiriam linhas a serem trilhadas por suas gerações seguintes. Meus avós paternos tiveram 8 de seus 10 filhos nascidos no Brasil, contavam apenas com suas forças físicas nas lavouras de café, lugar de trabalho que outrora fora de italianos. Deixavam os filhos pequenos sob pés de café, enquanto, ao longo de anos, manejavam enxada, peneira, derriçavam grãos. Ainda pequeno, meu pai ficava em casa, cuidando dos menores, enquanto meus avós estavam na roça. Eram extremamente pobres. Meu pai ele mesmo cozinhava arroz em fogão de lenha e, uma vez pronto, salgava-o com missô 1 e alimentava os irmãos. Para irem à escola, os dois filhos mais velhos iam descalços. Os anos se passaram e meu avô passou a cultivar verduras. Meu pai saía diariamente com a carriola e ia até a cidade para vendê-las. No fim da manhã, quando sobravam alguns pés de alface, ele as dava a um proprietário de restaurante. Este, em troca, lhe dava um prato de comida. As verduras também seriam os ingressos para meu pai assistir a filmes de Faroeste. Com o dinheiro das verduras, meu avô manteve os estudos do meu pai em outra cidade. Morava, então, em pensionato de dois advogados, Dr Abelardo e Dra Lavinia. Depois de concluir os primeiros estudos, meu avô ainda mandaria meu pai a outra cidade, aos cuidados de um alemão, dono de frigorífico. Lá meu pai trabalharia em troca de pensão na casa da família do proprietário durante os anos de seu curso de Contabilidade. No dia de sua colação de grau, foi informado pela escola que não poderia exercer a profissão, em decorrência de medidas governamentais brasileiras restritivas a nacionais oriundos dos países do chamado eixo Roma-Berlim-Tóquio, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Essa restrição colocaria meu pai de volta ao frigorífico e, somente anos mais tarde, à condição de contador e depois gerente de agência Ford no Norte do Paraná. Foi nessa condição que meu pai resgataria seus pais da lavoura e os acomodaria em sua primeira casa, em chácara, no interior do Paraná. Tsutomu somente voltaria aos bancos escolares aos 46 anos, após passar em seu primeiro vestibular na Universidade Estadual de Londrina (UEL), por onde se graduou em Direito, aos 51 anos. Exerceu essa profissão apenas após aposentar-se como comerciante. Tendo meus avós maternos chegado ao Brasil com a maioria dos filhos nascidos, os mais velhos foram mão-de-obra nas fazendas de criação de bicho de seda e contribuíram para que a família em poucos anos pudesse comprar terras no interior paulista, de onde, anos mais tarde, se mudariam para o Norte do Paraná. Ao 1 Condimento à base de soja.

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RAÍZES

1.1 ORIGENS

Descendo de japoneses. Meus avós paternos, Koyone e Yassaburo Teshima, imigraram ao Brasil em 1929, quando meu pai, Tsutomu, tinha um ano. A exceção de Antonio, o irmão mais velho, seus oito irmãos - Naoko, Rosa, Teruo, Tokio, Helena, José, Afonso e Tomás – nasceram no Brasil. Meus avós maternos deixaram o Japão em 23 abril de 1934, com seis filhos - Sumie, Yasue, Ritsue, Guiti, Toshishigue e Ritsuo. Seiko, minha mãe, e Tokiko nasceriam no Brasil. Essa terra os acolheria com língua estrangeira e paus para cada família construir seu próprio teto. Enquanto nutriam esperança de dias melhores, pouparam o quê e quando puderam. Estruturas familiares e orientação social distintas definiriam linhas a serem trilhadas por suas gerações seguintes. Meus avós paternos tiveram 8 de seus 10 filhos nascidos no Brasil, contavam apenas com suas forças físicas nas lavouras de café, lugar de trabalho que outrora fora de italianos. Deixavam os filhos pequenos sob pés de café, enquanto, ao longo de anos, manejavam enxada, peneira, derriçavam grãos. Ainda pequeno, meu pai ficava em casa, cuidando dos menores, enquanto meus avós estavam na roça. Eram extremamente pobres. Meu pai ele mesmo cozinhava arroz em fogão de lenha e, uma vez pronto, salgava-o com missô1 e alimentava os irmãos. Para irem à escola, os dois filhos mais velhos iam descalços. Os anos se passaram e meu avô passou a cultivar verduras. Meu pai saía diariamente com a carriola e ia até a cidade para vendê-las. No fim da manhã, quando sobravam alguns pés de alface, ele as dava a um proprietário de restaurante. Este, em troca, lhe dava um prato de comida. As verduras também seriam os ingressos para meu pai assistir a filmes de Faroeste. Com o dinheiro das verduras, meu avô manteve os estudos do meu pai em outra cidade. Morava, então, em pensionato de dois advogados, Dr Abelardo e Dra Lavinia. Depois de concluir os primeiros estudos, meu avô ainda mandaria meu pai a outra cidade, aos cuidados de um alemão, dono de frigorífico. Lá meu pai trabalharia em troca de pensão na casa da família do proprietário durante os anos de seu curso de Contabilidade. No dia de sua colação de grau, foi informado pela escola que não poderia exercer a profissão, em decorrência de medidas governamentais brasileiras restritivas a nacionais oriundos dos países do chamado eixo Roma-Berlim-Tóquio, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Essa restrição colocaria meu pai de volta ao frigorífico e, somente anos mais tarde, à condição de contador e depois gerente de agência Ford no Norte do Paraná. Foi nessa condição que meu pai resgataria seus pais da lavoura e os acomodaria em sua primeira casa, em chácara, no interior do Paraná. Tsutomu somente voltaria aos bancos escolares aos 46 anos, após passar em seu primeiro vestibular na Universidade Estadual de Londrina (UEL), por onde se graduou em Direito, aos 51 anos. Exerceu essa profissão apenas após aposentar-se como comerciante. Tendo meus avós maternos chegado ao Brasil com a maioria dos filhos nascidos, os mais velhos foram mão-de-obra nas fazendas de criação de bicho de seda e contribuíram para que a família em poucos anos pudesse comprar terras no interior paulista, de onde, anos mais tarde, se mudariam para o Norte do Paraná. Ao 1 Condimento à base de soja.

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contrário de meus parentes paternos, a família de minha mãe cresceu com fatura de grãos, legumes, carne, peixe, ovos e frutas, que produzia e extraía de sua propriedade rural. Tinha condições de mecanizar a lavoura e logo descobriu o valor mercantil dos pescados. Empregavam famílias de brasileiros, a quem minha avó alimentava, quando chegavam de outras localidades, e a quem distribuía os fartos alimentos. Enquanto meu pai foi tolhido de exercer ofício de contador, a extensão do que em inglês chamamos de backlash (reação forte e violenta à mudança social ou política) fez minha mãe, ainda criança, testemunhar sua família enterrar livros e discos de canções japonesas, pouco do que tinham trazido, de navio, ao imigrarem ao Brasil. Também criança, poderia ouvir música de disco tocado com espinho de laranjeira, em lugar da agulha original, para efeito de som abafado e reduzido, sob futons2. Essas práticas se deviam ao medo de batidas e arrestos por parte da milícia brasileira. Ao contrário de meus parentes paternos, que foram encaminhados a escolas brasileiras, meus parentes maternos tiveram sua educação restrita ao primário. Minha mãe aprendeu a ler e a escrever em japonês, ensinada pelo irmão mais velho. Somente aprenderia português quando, aos 10 anos, foi para cidade, morar e trabalhar como empregada na casa da irmã mais velha, para poder cursar o primário. Lá minha mãe não apenas faria café em fogão à lenha todas as manhãs antes de ir à escola. Lavaria e enceraria o chão de tábuas, tiraria água de poço, lavaria pinicos e todos os pares de alpargatas usadas pela família em uma cidade sem água encanada, sem esgoto, sem asfalto, sem calçamento. Dessa família, todos os filhos formar-se-iam, no futuro: Adhemar, administrador de empresas, Alcides, médico ortopedista, Dália, professora, Yoshiko, professora e bacharel em Direito. Com a irmã mais velha, Sumie, aprenderia lições de economia de que lhe serviriam de exemplo na vida adulta; de capricho com os utensílios da cozinha, de cuidado das roupas, assim como os pontos e laçadas de crochê e tricô. Chamada de volta ao sítio, Seiko foi cuidar de sua mãe, Ayame, cuja saúde, ao longo dos anos, apenas se degradaria. Os desejos intelectuais de Seiko seriam extinguidos por seu pai, Yoichi Miura, que lhe dizia que mulher não precisava estudar. A vida de minha mãe, no campo e na cidade, somente lhe traria figuras femininas próximas (mãe e irmãs) submetidas ao trabalho braçal e doméstico e à procriação sem controle de natalidade. Seiko somente retornaria à cidade, anos mais tarde, para aprender bordado e corte-e-costura. Deste fez não somente sua profissão, mas fundamental pilar que permitiu que meu pai voltasse a estudar em idade madura, que pagou tratamento ortodôntico de meu irmão caçula por longos 7 anos, que me permitiu estudar inglês a partir dos 13, que possibilitou recursos para construção de nossa casa em Londrina. De grão em grão, Seiko reuniu recursos para um dia dizer adeus e rumar para o Japão, em busca de trabalho, de renda, pois até então criara os filhos, vivera por eles e, ainda assim, a vida não lhe era confortável e segura. No Japão, minha mãe trabalhou como lavadora de pratos, em restaurante; como costureira em fábrica de capas de banco de automóveis; como cuidadora de pacientes em hospitais, residências e convento. Esses trabalhos árduos nunca lhe tiraram a leveza das mãos, a fineza e fluidez dos traços de sua escrita, que contradizem possíveis expectativas de baixo padrão gráfico. Com sua simplicidade, espontaneidade, honestidade, franqueza e dedicação, conquistou respeito e consideração de todos a quem serviu. Retornou ao Japão a passeio, ocasião em que reviu familiares, amigos e ex-patrões. O resultado das idas de Seiko ao Japão

2 Cobertor japonês feito de espessa camada de fibra de algodão, encapado com tecido, usado no inverno.

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se traduziu em conforto para casa, garantia de sua aposentadoria e de meu irmão mais velho, Mauro.

Foto 1: Família Miura em sua casa. Miyagi-Ken, Kashima-Daí, Japão.

Foto 2: Família Yoichi Miura (Japão).

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Foto 3: Família Yoichi Miura (Brasil). Patrimônio São José, 1937.

1.2 VALORES FAMILIARES

Pesam sobre minha existência valores familiares cunhados por gerações e gerações muito anteriores a de meus pais, das quais eles próprios podem não ter consciência, como eu descobri que não tinha. Somente vim a reconhecer e a estranhar valores com os quais fui educada, a partir da leitura do livro The Japanese mirror (1980), do escritor holandês Ian Buruma, estudioso de culturas asiáticas. Um dos valores que destaco aqui refere-se à característica matriarcal das estruturas familiares. A mãe é figura-esteio, abnegada, que abre mão de sua vida em favor dos filhos. No Japão, essa dedicação tem seu preço, pois os cuidados com a mãe passam a ser responsabilidade do filho mais velho, este o único herdeiro de toda família. A mãe exerce autoridade sobre a família, sobre o filho e nora (sim, que horror!) e manipula a estes com uso de chantagem emocional. Tira proveito do sentimento de culpa daquele pela dedicação e sofrimento desmedidos da mãe (um “dramalhão”). Felizmente, minha mãe apenas criou seus filhos, contando histórias que viveu e sempre dando exemplo de independência financeira do marido, por questão lógica, também dos filhos. Suas histórias versavam sobre o quanto trabalhou na casa da irmã Sumie, que um dia lhe puxou as longas tranças, como “forma” de lhe repreender; que seu sobrinho, o filho mais velho de Sumie, Adhemar, um dia puxou com violência a corda que trazia o balde de água do poço, que Seiko manivelava, sendo que o mecanismo bateu com toda força em seu rosto. Minha tia, Tokiko, que também morou com a mesma irmã para também ir à escola primária, contou-me que no Natal nem ela nem Seiko ganhavam presentes, enquanto os sobrinhos, filhos de Sumie, sim. Cansei de ouvir histórias de privação de convivência familiar, de início

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do trabalho ainda em idade infantil, de varrição de sonhos de estudos e tantas outras durante minha infância e adolescência. Eu as interpretava como forma de nossos pais mostrarem que minha vida e a de meus irmãos, por mais duras que fossem, não chegavam perto da que eles haviam suportado. Como eu detestava ouvir essas histórias, sempre contadas por minha mãe com tom de “bronca”, fiz questão de não contar mazelas a meu filho. Guardei-as no silêncio que não incomoda a ninguém e, se hoje delas me recordo, é com a finalidade de expor o que penso que são fibras da minha existência. Era muito pequena e me lembro, ainda hoje, que tudo que queríamos, tínhamos de pedir a nosos pais, com as costas de uma mão na palma da outra, juntamente com o pedido: chyodai. Não era preciso nem falar nem entender japonês. A língua para repreender, chamar atenção e dar ordens era sempre a japonesa: se falássemos à mesa, durante as refeições (damate-tabenassai), se andássemos descalços (hadashi!), se alguém sumisse com a tesoura da minha mãe (hassami doko-i-tá?) etc. A função da linguagem para meus pais era tão-somente declarativa, mesmo quando faziam uma pergunta (onde está a tesoura?), não esperavam qualquer resposta verbal, mas apenas que o objeto fosse trazido de volta imediatamente. Ensinaram-nos somente a dizer ‘sim’ em japonês: hai. Ai de nós, se disséssemos sim (em português) ou qualquer outra forma “criativa”. Éramos imediatamente punidos, fosse com um único olhar, fosse de maneiras físicas. Não aprendemos a palavra não em japonês. Sabíamos esta palavra em português porque íamos à escola desde cedo. Somente conheci a palavra não (i-ê) quando já tinha meus 9 anos, observando que minhas primas usavam de vez em quando essa palavra e eu suspeitava de seu significado. Ordens dos pais jamais deviam ser questionadas ou atendidas com lentidão, má vontade ou raiva, pois qualquer uma dessas manifestações paralinguísticas era invariavelmente “corrigida”. Nossos pais não abriam exceções. Pelo contrário, quando um fazia uma arte ou algo errado, ninguém haveria de rir ou de “apreciar” ver o outro apanhando. Todos apanhavam.

Da cultura japonesa, meu pai nos ensinou a não desperdiçar um grão de arroz, ao lavá-lo, antes de prepará-lo ou ao guardarmos a sobra para outra refeição. Ele explicava que um grão de arroz levava muito tempo para nascer e chegar ao ponto de ser colhido, beneficiado e nos servir de alimento; que os hashis (utensílio oriental feito de dois longos palitos de madeira

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usados em lugar de garfos) nos permitem fazer o que nem garfo, nem colher fazem: pegar um único grão de arroz.

Minha mãe nos ensinou valores culturais japoneses, por meio de fábulas: (1) o dever de guardar o melhor da refeição para quem vem depois (fábula do pássaro que, presumindo sua mulher ter ingerido as partes nobres do alimento servido, abre-lhe a barriga para no seu interior encontrar apenas cascas. Seu mal-fadado destino é cantar uma única toada: poto-sake-tá para o resto da vida); (2) a união daqueles, que individualmente, podem ser fragilizados por alguém de maior tamanho e esperteza, e que, juntos, dão lição em quem abusou de seus atributos sobre alguém indefeso (fábula do macaco que troca sua semente de caqui por um oniguiri3 de um caranguejo, e que, quando o caquizeiro começa frutificar, galga os galhos da árvore, come todos os maduros e atira no caranguejo os verdes e duros. Todo fraturado, o vitimado é encontrado por seus pequenos amigos, a abelha, a castanha e

o pilão. Indignados, juntos, arquitetam e executam senhora lição no macaco); (3) a união, então de ser humano e animais, que, sozinhos, não teriam força para vencer opressores e exploradores de toda uma população, possibilita, pelo uso das potencialidades individuais daqueles, vencer estes (fábula do Momotaro-san, que nasceu de dentro de um grande pêssego, que boiava em um rio, do qual foi tirado por um casal ancião. Ele cresceu e um dia partiu, levando consigo um embornal com bolinhos feitos por sua “mãe”, os quais distribuía

3 Bolinho de arroz.

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aos animais que se juntaram em sua caminhada e exitoso propósito de liberar seu povo subjugado). Todas essas fábulas compartilham entre si valores morais e éticos de solidariedade e justiça; algumas delas, de bravura e coragem. 1.3 RELIGIÃO

Meus avós eram budistas. Meus pais, católicos. Casaram-se na igreja, em 7 de setembro de 1957. Adultos, ambos tinham nomes de batismo ocidentais: João e Teresa. Cresci ouvindo pessoas chamarem meu pai de Sr. João e minha mãe, dona Teresinha ou dona Teresa. Esses nomes de batismo lhes foram dados para facilitar suas vidas na sociedade brasileira. Nem por isso seriam poupados de chacotas na escola. Uma vez católicos, inscreveram todos seus filhos nessa congregação. Íamos todos os Domingos à missa, de manhã. Devia ficar agitada quando me cansava do rito, porque tomava um beliscão muito eficaz, capaz de corrigir desde a postura, assim como paralisar os nervos dos pezinhos que subiam e desciam o apoio de madeira destinado apenas aos joelhos dos fieis. Fui batizada e registrada com prenome ocidental e sobrenome paterno: Simone Teshima. Também recebi instrução para Primeira Comunhão e Crisma, assim como seus sacramentos. Participava de grupo de jovens nipônico, pois meus pais haviam encontrado, em Londrina, igreja em que se rezam missas bilíngues (japonês e português). Como minhas irmãs mais velhas, meus irmãos e eu fizemos parte do grupo de jovens. Além de ensair cânticos para as missas, produzíamos um jornal mensal da pastoral e fazíamos promoções beneficientes. Seria assídua à missa e a tal grupo até um Domingo, em retiro espiritual, que fiz uma pergunta ao Padre e ele me esconjurou. Como achei a reação dele injusta e desproporcional, comuniquei a meus pais minha decisão de não mais assistir às missas. Meus pais silenciaram e continuam, até hoje, membros dessa congregação. Embora tivesse deixado de ir à igreja, mantinha minha “fé”: prometi a Deus que, se protegesse meu irmão Rui, enquanto ele estava no Exército Brasileiro, em Brasília, que eu deixaria de comer pão por um ano. (Ainda bem que foi só um ano!). Em ano ainda recente, fiz minha segunda promessa, esta, porém, prefiro não contar, apenas mencionar que recebi a graça rogada e cumpri com palavra empenhada. Há boas décadas, meu pai, juntamente com outros membros da comunidade religiosa, deu suporte à fixação de irmãs japonesas em Londrina, bem como à edificação de creche mantida por sua congregação. Desde então, a creche que iniciou modestamente e atualmente conta com instalações prediais e funcionais novas, abriga e educa crianças de famílias de baixo poder aquisitivo e de região originalmente caracterizada por habitações extremamente precárias (favela). Casei-me com João Bento Reis Junior (JB), aos 21 anos, em 19 de setembro de 1987. Batizamos nosso filho, Vinicius, em 1988. Inscrevi-o nas aulas de catequese, para prepará-lo para a Primeira Comunhão. Ao ver seus primeiros escritos no

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caderno de religião, discordei dos valores realçados pelas aulas e decidi retirá-lo dessa preparação, assim negando-lhe, na infância, esse e demais ritos. Em tempos de extremo sofrimento não apenas meu, mas de todos os familiares, causado por grave doença a que Vinicius foi acometido, à entrada da vida adulta, as orações da infância voltar-me-iam, senão impiedosamente, como bálsamo para inúmeras noites de pranto já sem lágrimas, de escuridão até o amanhecer, que, nem mesmo com o sol me permitiam tatear caminhos. Tanto orei quanto as orações vieram até a mim, em especial, por minha agora ex-colega de trabalho, Adja Balbino de Amorim Barbieri Durão4, minha terna e leal amiga, Adja. Igualmente doutora, Denise, também, foi instrumento abençoado, vindo a meu encontro, em fevereiro de 2011, para me confortar e trazer fonte de esperança que muitas vezes julguei ter perdido (5-6). Anos mais tarde, digo recentemente, encontrar-me-ia nas orações que rezei quase como mantra, para superar o desejo mórbido e implacável de morte, sentimento sorrateiro e persistente, que, com fé, quando não minha, sempre da minha família, principalmente de Márcia, minha irmã e advogada, de suporte médico e psicológico diferenciados, de medicação adequada, da esperança de estar bem para Vinicius e também para meus alunos. Voltei à igreja de meus pais, onde fui recebida pelo mesmo padre a quem atribuí razão de meu afastamento. Ele sempre me cumprimenta surpreso com minha presença e contente por ela. Um sorriso sincero e um forte aperto de mão têm poderes reconciliatórios; dispensam embates e palavras. 1.4 CRIAÇÃO

Os valores mais acentuados na minha criação são indissociáveis: honestidade e honra. Era muito pequena e nunca esqueci as duas surras que meu irmão mais

4 Doutorado em Linguística, pela Universidad de Valladolid, Espanha 5 1 Coríntios, 6-10: Nem ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o Reino de Deus. 6 Mateus 5, 1-12: 1 Vendo as multidões, Jesus subiu ao monte e se assentou. Seus discípulos aproximaram-se dele, 2 e ele começou a ensiná-los, dizendo: 3 Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus. 4 Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados. 5 Bem-aventurados os humildes, pois eles receberão a terra por herança. 6 Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos. 7 Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão misericórdia. 8 Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus. 9 Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus. 10 Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, pois deles é o Reino dos céus. 11 Bem-aventurados serão vocês quando, por minha causa, os insultarem, os perseguirem e levantarem todo tipo de calúnia contra vocês. 12 Alegrem-se e regozijem-se, porque grande é a sua recompensa nos céus, pois da mesma forma perseguiram os profetas que viveram antes de vocês.

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velho, Mauro, levou da minha mãe, por ter trazido objetos escolares que não lhe pertenciam. Minha mãe não aceitava nenhuma explicação: achados, permuta, que diria apropriação indébita. Fazia-o devolver. O trabalho sempre fez parte da rotina doméstica de todos os filhos desde a infância. Minha mãe me ensinou a lavar banheiro quando eu tinha nove anos. Aprendi a tarefa para executá-la diariamente, por anos a fio. Todos arrumavam a própria cama. Meus irmãos mais velhos, Mauro e Rui, lavavam a calçada. Minhas irmãs mais velhas, Lavínia e Márcia, lavavam e enxugavam a louça, respectivamente. Eu limpava o fogão, a mesa e o chão da cozinha. Tinha quase doze anos quando minha mãe passou a me designar a preparação do almoço, quando não do jantar. Éramos uma família de nove pessoas. Além disso, meu pai dava refeição para seu funcionário. Aprendi a cozinhar o trivial para um batalhão. Minha mãe me ensinou a aumentar o volume de pratos à base de proteína

como medida econômica (alimentar muitos com pouco). Deixei de cozinhar quando passei a trabalhar fora de casa, como minhas antecessoras, Lavínia e Márcia. Desde então, tornei-me responsável por meus gastos, e minha mãe me ensinou a importante lição de não gastar mais do que ganho. Com pai e irmã advogados, aprendi, por observação, que leis são feitas para promover justiça; não são para serem usadas por quem as conhecem como instrumento de opressão sobre

leigos. Preciso registrar que tenho horror a seres que, diante de qualquer cisco, por se acharem superiores aos terráqueos, ameaçam processá-los e/ou acabam por fazê-lo. Nem tudo o que eu vivi ao longo de diferentes fases da minha vida estendi a outros. Ninguém precisa sofrer, porque alguém antes sofreu. Ninguém precisa ser negligenciado porque alguém o foi. Se minhas experiências contribuíram de algum modo à educação de Vinicius, muitas delas eram exatamente o oposto do que quis e valorizei para ele. Ainda muito pequeno, tinha dois anos, mas já sabendo falar, um dia fui com Vinicius a uma loja de departamento. Fiz compras e, quando nos dirigíamos ao estacionamento, ele, segurando com as duas mãos algo sob a camiseta, me disse: ‘olha o que eu peguei, mãe!’. Estava com um sorriso vitorioso no rosto e, quando eu vi que eram duas balas, lhe respondi: ‘filho, nunca pegue nada que não é seu. Se você quer algo, peça. Se pudermos lhe dar, sempre daremos. Agora, vamos devolver as balas e depois comprá-las’. ‘Ai, mãe!’. Sem mais nem menos ai, assim o fizemos. Ele morto de vergonha, devolveu as balas no mostruário de doces. Então, ele escolheu das mesmas balas, que daí compramos. Anos mais tarde, ele já era um moço e passeávamos em um antigo e grande mercado de Londrina (Mercado Shangri-lá). Estávamos também com Lucas, o então primo mais novo de Vinicius. Eis que Lucas pega uma castanha de um saco à beira do corredor central pelo qual andávamos e Vinicius o interpelou: ‘não pode pegar nada do que não é seu’. Se não me falha a memória, foi só isso o que ele disse, mas, naquele instante eu saberia que uma única lição na infância fica pela vida toda.

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Desde os três anos de idade, quando Vinicius começou a ir ao jardim de infância, zelava pelos seus materiais escolares e seu asseio. À medida em que foi crescendo e avançando nas séries escolares, tanto o pai quanto eu acompanhávamos suas tarefas. Sempre que julguei necessário, conversei com suas professoras. Ensinei para meu filho que o importante não era a nota, mas a aprendizagem; que uma nota nem sempre é justa, tampouco reflete o que alguém sabe ou aprendeu. Levei Vinicius às aulas de tênis e íamos juntos à natação. Tendo deixado que meu trabalho na UEL tomasse progressiva-mente o meu tempo, fui devidamente cobrada por meu filho sobre a falta que ele sentia de uma prática que adotamos após minha conclusão do mestrado: todas as tardes ele escrevia uma redação, que eu lia e, quando era o caso, corrigia e explicava por quê. Quando Vinicius passou a ir sozinho à natação, tal independência significou uma tarefa a menos dentre muitas minhas. Contamos com os serviços de transporte particular para que ele cursasse inglês em instituto de línguas. Esse serviço também o levava ao Colégio, de onde eu ia diariamente apanhá-lo à saída das aulas.

Sempre fizemos as refeições juntos e sempre que o pai estava em Londrina o

esperávamos para almoçar e jantar. Tivemos o privilégio de ter um filho que foi uma criança ativa e feliz, que brincou muito, que

sempre foi discreto, modesto, humilde, afetuoso e inteligente. Ele brincava com amigos e estes, muitas vezes, pousaram em nossa casa. A ele ensinamos que sempre pedisse a seus pais o que desejasse, pois o atenderíamos, se tal fossem nossas possibilidades. Não queríamos que passasse “vontades”, tampouco queríamos um filho que desse nenhum valor aos esforços dos pais.

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Assim como, aos 8 anos, descobri na leitura refúgio do mundo, recomendei a Vinicius que levasse consigo um livro, que pudesse ler quando não se sentisse à vontade entre outras pessoas. De uma viagem que fez a Porto Alegre para visitar a avó paterna, ele voltou tendo lido quase todo The Da Vinci Code7, livro que o

motivaria a estudar uma terceira língua estrangeira, o francês (depois do espanhol). O interesse pela leitura em língua inglesa, para um jovem afixionado por jogos de computaor, foi mantido com a série de J. K. Rowling, das aventuras de Harry Potter. Vinicius entraria na vida adulta tendo lido Armas, germes e aço: os destinos das sociedades humanas8 - presente de seu amigo holandês, Klaas van Veen e que enriqueceria suas leituras no curso de Geografia, na UEL.

Minha mãe adora ler, lê e relê seus livros favoritos. Por isso, embora tenha alguma marca de sua primeira língua - a japonesa - (principalmente na entonação), tem em seu repertório vocabular palavras sofisticadas, que deve a leituras de obras como Mussashi (volumes I e II), Memórias de uma Gueisha, Montanhas e rios, Chuva negra, Cem anos de solidão, Pijama listrado, Código da Vinci, O símbolo perdido, Inferno, O rato de Wan-shai, O diário de Anne Frank, Joana, a louca, 1888, O Egípcio, Anjos e Demônios (seu predileto). Smirk, em inglês, é um sorriso misterioso, de satisfação ou prazer de ter ou saber algo que as outras pessoas não sabem. Posso dizer que I smirked ao ouvir avó Seiko, septuagenária, e neto, Vinicius, à saída do cinema, criticarem o filme Anjos e demônios, comparando este ao livro que leram – ela, em português; ele, em inglês. Eu, que não lera o livro, fiquei à margem das agulhadas à produção cinematrográfica. Falando por mim mesma, o hábito faz o gosto pela leitura e esta, na minha vida, tornou-se essencial.

7 O Código Da Vinci (Dan Brown). 8 Guns, germs and steel: the fates of human societies, de Jarred Diamond (1997). Prêmio Pulitzer.