Ramon Ferreira - Força Viva de Um Inferno (2014)

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Força viva de um inferno

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Copyright © 2014, Ramon Ferreira Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009. Coordenação editorial Ramon Ferreira Direitos desta edição reservados à editora Coqueiro Verde [email protected] www.editoracoqueiroverde.com.br Printed in Brazil/ Impresso no Brasil CIP-Brasil. Catalogação na fonte. Cadastro na Biblioteca Nacional F4133f

Ferreira, Ramon, 1989- Força viva de um inferno/ Ramon Ferreira - Paripiranga: Coqueiro Verde, 2014. 1. Romance brasileiro. I. Título

CDD-B869 CDU-82-312.1

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“O que te escrevo é matéria bruta”.

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“Sua alma desmaiava lentamente, enquanto ele ouvia a neve cair

suave através do universo, cair brandamente, como se lhes descesse a hora final sobre todos os vivos e todos os mortos”.

JAMES JOYCE

“É que o mundo todo vivo tem a força de um inferno”. CLARICE LISPECTOR

“A porta do futuro vai se abrir. Lentamente. Implacavelmente. Estou no limiar. Só existe esta porta e o que espreita atrás dela.

Tenho medo. E não posso chamar ninguém por socorro. Tenho medo”.

SIMONE DE BEAUVOIR

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SUMÁRIO 1. Cristiano ............................................................................................ 11

2. A visita do pai ................................................................................... 25

3. Encontro............................................................................................ 33

4. Ulisses ................................................................................................ 45

5. Banhos de mar ................................................................................. 53

6. Ulisses e Cristiano ........................................................................... 63

7. Um pesadelo ..................................................................................... 67

8. Crepúsculo ........................................................................................ 85

9. O grande passeio ........................................................................... 113

10. Recado ........................................................................................... 119

11. Força viva de um inferno ........................................................... 129

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1. Cristiano Do quarto era possível ouvir o som quase inaudível da televisão. O relógio marcava cinco horas da tarde, alto, sonoro. Uma batida lânguida e completamente melódica. As ruas permaneciam indiferentes, com todas aquelas pessoas sempre tão ocupadas que mal conseguiam perceber a beleza que havia ao redor, na cidade. Alguns vendedores limpavam as calçadas e era também possível, mesmo de longe, ouvir o roçar das vassouras sobre o chão frio, cinza, encoberto pelo ar gelado que fazia.

Ao longo do enorme corredor do apartamento havia uns passos ligeiros e pequenos, inteiramente cadenciados pela natureza virgem e pelo sabor da descoberta recente do caminhar. Junto a eles misturavam-se também inúmeros objetos pequenos, todos eles coisas de crianças, espalhados pelo assoalho da sala, colocados sorrateiramente sobre a mesa grande de vidro, que deixava também sobre si um jarro enorme com algumas flores artificiais. A cor de cada um deles era, talvez, a única coisa que quebrava a paisagem cinza muito comum àquela época do ano em que o céu parecia querer desabar sobre a cabeça de todos

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– da criança, das pessoas apressadas e do vendedor atento. Cristiano continuava sua enorme caminhada através do corredor e a cada passo que dava era como se sentisse o mundo reverberar sob os seus pés que estalavam de brancos, amaciados pela própria pele macia de quem há pouco saíra do berço e dos braços da mãe, sempre tão cuidadosa com todas as coisas relacionadas a ele. A pele tocava o chão e o coração de Cristiano palpitava violento, mesmo sem ninguém ali perceber. Os olhos fixos observavam apenas o destino e, mal sabia ele, que aquela seria mesmo uma prática tão comum em sua vida: observar somente o ponto de chegada, sem ao menos se importar com tudo o que havia à sua volta, no caminho. Por um segundo, parecia que um pequeno desequilíbrio o empurraria para o chão, os braços balançando fortes, e agora o coração ainda mais acelerado e uma dança pequena solta sobre o ar – os pés firmes o mantiveram ainda de pé. O corredor, pensava ele talvez, não parecia tão grande como agora o era enquanto ele continuava com os seus passos ligeiros. O teto em riste, as paredes frias, preenchidas cuidadosamente com os quadros que a avó teimava manter mesmo passados tantos anos de uso de cada um deles, as portas entreabertas, os quartos sonoros. Parou um instante, já na sala, e olhou a porta que dava para a varanda aberta, com as suas cortinas imensas, brancas e esvoaçantes.

Da varanda era possível ver a rua pequena em que jazia o prédio repleto de apartamentos. E na rua as árvores preenchiam certo vazio com os seus galhos entrecortados e as suas folhas que

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balançavam com o vento frio de inverno. De repente, um pássaro pequeno, era possível Cristiano ver da porta aberta, um pássaro pequeno pousava sobre um dos galhos, debruçava-se à espreita, e lançava-se rapidamente sobre outro galho qualquer, como em brincadeira. Os olhos dele eram vivos e as cores que preenchiam o seu corpo quase insignificante coberto de penas leves davam uma alegria qualquer àqueles galhos mortos que acompanhavam o mesmo cinza que predominava no céu.

De quando em quando, Cristiano permanecia quieto e passava então a observar estas coisas meio insignificantes que teimavam existir à sua volta. Então, ficava em silêncio, mas o barulho vivo da televisão do quarto da mãe resistia, baixinho, assim como também o canto cadenciado do pássaro sobre os galhos, na árvore e seu canto era também colorido e preenchia o frio enorme que fazia dentro do apartamento. A avó caminhava na cozinha, arrastando os chinelos, tranquila e quando não havia o barulho dos seus chinelos, ou Cristiano por um segundo esquecia-se completamente da televisão da mãe, ele parecia lançar-se a um silêncio absoluto e o dia desabrochava em uma tristeza intensamente cinza de inverno, com o seu céu inteiramente nublado. Aproximou-se, com os seus passos pequenos, da porta aberta – as cortinas debruçadas sobre a parede enorme mais pareciam massas de ar congeladas pelo frio imenso que permanecia, e lá de cima, da varanda, era como se ele não estivesse mesmo ligado ao mundo, a não ser pelo pássaro pequeno que também o observava curioso da árvore. Sua mãe o

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chamava, do quarto, aumentava o som da televisão e era possível ouvir:

Teu biquinho a chilrear, Tuas pernas a tremer... E ela continuava chamando-o, para que ele também ouvisse

a canção que tanto gostava: Neste baile bailarás, Dois saltinhos tu darás e voarás... Seguiu para o quarto da mãe, hipnotizado pela canção que

atravessava o corredor, invadindo os seus ouvidos, e os passos pequenos apressavam-se cada vez mais. Lá, lançou-se aos braços dela ternos, quentes e vivos e deu uma gargalhada alta, solta de felicidade. A mãe lhe fazia cócegas na barriga, tocando-lhes todo o corpo com as mãos macias e perguntava o que ele estava fazendo àquela hora caminhando pela casa, sozinho. Cristiano riu, passou o dedo indicador no rosto da mãe, em brincadeira e, depois, lançou-se sobre a cama enorme em que ela permanecia deitada, protegendo-se do frio que fazia lá fora:

- Há um pássaro na janela, disse ele. Tal como os próprios pés, ou mesmo as mãos da mãe, sua

voz era também macia. “É mesmo, benzinho?”. A janela da mãe permanecia fechada, com suas cortinas

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grossas escuras escondendo-a completamente do dia que fazia lá fora, com sua tarde morta, despida inteiramente de cores. A televisão continuava cantando a sua canção infantil, mas Cristiano lhe dava tão pouca importância que nem mesmo a mãe ousara retirar-lhe a atenção do pássaro do qual ele falava. Manteve-o entre os braços, enquanto ele continuava:

- Ele é tão pequeno, mas tão pequeno que nem parece ser vivo! Daí eu queria ele pra mim, aqui dentro.

Sua mãe raciocinou rapidamente, pensou em alguma resposta simples que o confortasse de certa forma pois, bem sabia ela, era mesmo impossível manter o pássaro ao alcance das mãos pequenas de Cristiano. Lembrou-se ela de quando, certa tarde, encontrara o garoto no chão da sala colocando formigas no bolso, de modo que todas elas estivessem seguras de verdade das pessoas que logo chegariam na sala e, independentemente de qualquer ser vivo que ali houvesse, pisariam tranquilas sobre o chão, onde as formigas seguiam um rumo determinado à procura de alimento. Mas as formigas eram facilmente alcançáveis, enquanto o pássaro jamais deixaria ser pego para servir-lhe de inspiração de cores na tarde nublada que fazia. Há, de certo modo, àqueles que jamais se deixam prender de nenhuma forma e são exatamente estes que preenchem os nossos dias com as mais puras cores que podem existir no mundo. Os olhos grandes de Cristiano permaneciam atônitos, como se esperassem de alguma forma que a mãe lhe apontasse uma solução para o seu desejo mais profundo. Ela lhe sorria,

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olhava-o também desconcertada diante de algo tão improvável como aquilo que ele lhe havia pedido. Só então, quando ele tomava consciência do olhar carinhoso da mãe é que Cristiano sabia que ali ele estava completamente protegido de qualquer perigo ou sofrimento.

Uma chuvinha fina caía agora sobre a cidade enorme, e os prédios imensos, vistos do alto, de longe, mais pareciam caixas tristes onde se depositavam todas aquelas pessoas apressadas sempre com tanto por fazer. Mas enquanto estivesse no quarto, sobre a cama quente e macia, nenhuma chuva fina ou mesmo nenhum céu nublado o assolaria, lhe empunhariam qualquer medo da vida e de todas as coisas que há à sua volta. Além disso, a própria mãe, assim como o pássaro pequeno visto há pouco, enchia o dia de Cristiano de muita cor e leveza e era como se o céu triste deixasse de existir e desse mesmo espaço ao mais puro céu azul em explosão de sol. Sua mãe era mesmo uma dessas pessoas que, independentemente de qualquer coisa, irradiaria a mais intensa força de luz, o mais quente raio de sol que uma figura humana seria capaz de emitir.

- Você sabe que não pode trazer o pássaro no bolso, não é? Ele a olhava ternamente, com os olhos grandes, de

assombro, mas como se estivessem agora em pedido de perdão. A avó passava agora pelo corredor, aparecendo muito

rapidamente através da porta do quarto da mãe e, sorridente, perguntava o que aquele pingo de gente fazia àquela hora da tarde perdido assim pela casa. Depois, falou alguma coisa sobre

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o jantar e sobre o frio que ainda fazia na cidade: era mesmo necessário fechar todas as portas e janelas, já que há muito ela não via a temperatura baixar tanto em uma cidade como aquela, cheia de mar. Sobre o casaco novo, a avó falava que logo concluiria a costura do seu e, aproveitando o que sobrara do tecido, houvera feito um também para Cristiano, pois o garoto estava quase despido de roupas de frio naquele inverno rigoroso.

Daí, ele desceu aborrecido dos braços da mãe quando esta lhe disse, mesmo com o maior cuidado que uma mãe pode ne-gar algo ao filho pequeno, que não era, de nenhuma forma, possível manter o pássaro colorido sob a sua guarda, ao alcance das mãos. A mãe o colocou sobre o carpete macio que fazia cócegas nos pés de Cristiano e este tentava em vão observar algum sinal do dia, ou mesmo do pássaro, através da janela coberta de cortina. E, de longe, o barulho forte do motor de um veículo atravessava a rua imensa, desaparecendo aos poucos logo em seguida, enquanto Cristiano permanecia imóvel, à espera de alguma solução.

- E se os gatos maus comerem os pássaros não haverá mais nenhum deles! Disse ainda.

Talvez ele ainda estivesse lá, da janela, espreitando-se sobre os galhos, a observar Cristiano desolado.

No chão, ele foi até um dos seus carros pequenos, todo vermelho esse, e tomou-o com as mãos. Começou, assim, a passear por entre todos os objetos do quarto, atravessando mesmo as paredes e os cantos infinitos que pareciam

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multiplicar-se cada vez mais à medida que Cristiano passava com o seu carro pequeno. Ele continuou, então, conduzindo-o até a porta do quarto até olhar, mais uma vez, para a mãe sobre a cama com a televisão à sua frente, e lançar-se ao que restava do apartamento, o corredor, os demais aposentos, a varanda. O carro pequeno vermelho habitado apenas pela mão pequena de criança continuava a atravessar todo aquele ambiente, passando por debaixo da mesa, e sobre o tapete subindo, sabe-se lá como, a poltrona grande, macia. Os olhos de Cristiano permaneciam vivos, a apreciar a estrutura sólida do carro, enquanto uma de suas mãos pequenas tocavam o tapete que mais parecia um gatinho peludo e quente. Diante dele, também o jarro com as flores artificiais que, mesmo nesta condição de semimorta, a avó cuidava com tanto zelo. Uma corrente fininha de vento frio passou pela sala, pois a porta para a varanda estava aberta, e balançou quase invisível a estrutura plástica das flores, e o olhar de Cristiano aguçava-se ainda mais.

No quarto, percebera ele, todas as coisas imóveis permaneciam como ele houvera deixado há pouco, antes de correr para a mãe a avisar-lhe que havia o pássaro na janela. Cada brinquedo, cada qual com sua estrutura e todos os seus traços tão íntimos e específicos, inteiramente mortos, imóveis, caídos sobre o chão do quarto, esperando-o apenas para que as suas mãozinhas pequenas e quentes lhe deem a vida necessária, impregnando-lhes do mais puro movimento da brincadeira de criança. Imaginou uma cidade, e tudo o que havia ali espalhado

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passava a ter um sentido inteiramente seu porque havia postes, e janelas, e sobrados, e avenidas no que, para muitos, era só um amontoado.

- Posso atropelar o gato mau com o meu carro enquanto coloco o pássaro pequeno no bolso e o livro de todos os perigos que têm por aqui – pensou, enquanto passeava com o brinquedo na sua cidade imaginária. Estava triste, pois esperava que o seu amigo recém conquistado continuasse à sua espreita da janela, mas os seus olhinhos castanhos não mais o viam em lugar algum.

Quem sabe ele houvesse se lançado ao cinza que explodia no horizonte e, assim, tivesse mesmo se perdido completamente porque a cidade era tão imensa que lhe dava medo.

Sentou-se aturdido e passou a enfileirar cada brinquedo seu, como se estivesse imaginando uma avenida imensa, igual àquela que vira outro dia enquanto voltava do médico com a mãe e o táxi demorara tanto a chegar para busca-los. Olhou para cima e os prédios gigantes pareciam querer mesmo desabar sobre a cabeça de todos aqueles que passavam despreocupados pela avenida, e a sirene ensurdecedora de uma ambulância o estarrecera tanto com o barulho que nem o pensamento pensava.

De súbito, então, uma surpresa grande lhe houvera sido feito pelo novo amigo que fizera há pouco: ele o observava ainda da janela, mesmo depois de todos aqueles movimentos – em que Cristiano parecia tê-lo abandonado. O garoto esboçou um

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movimento alto, um grito de alegria, mas logo imaginou que isso poderia assustar o seu amigo, então preferiu permanecer leve, tranquilo, senão jamais o teria para si, da forma com que ele queria de verdade. O pássaro permanecia pousado sobre o galho alto. Caso ele olhasse para baixo, pensava Cristiano, era capaz de ter uma tontura e cair diante de todos aqueles metros que o separavam do chão. Suportou o quanto ele pode, então correu novamente para o quarto da mãe, embebido da mais pura alegria que poderia haver no mundo:

- Eu não disse, minha mãe, que o pássaro é meu amigo? A mãe surpresa: - Então, deixe-o que se vá. Ditas estas últimas palavras, Cristiano sentiu-se atingido e

sua alegria dissipara-se um pouco, a ponto dele guardá-la apenas para si. Não compreendia exatamente o que a mãe estava lhe dizendo quando pediu que ele o deixasse ir, quem sabe ela apenas estivesse zombando do garoto, visto que a necessidade de ter para si o pássaro pequeno aumentava cada vez que Cristiano referia-se a ele, com sua voz mansa, doce.

- Ah, minha mãe, ele não pode ir porque ele é meu amigo – insistiu o garoto.

- É exatamente por isso que ele precisa ter a liberdade de ir embora quando achar necessário e você jamais poderá tê-lo em seu bolso ou dentro de uma gaiola – respondeu novamente a mãe, muito paciente diante da erupção de desejo que Cristiano sentia pelo seu amigo quase invisível.

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- Eu já falei do gato mau que poderá machucar ele para sempre e será toda minha a culpa se isso acontecer – respondeu o garoto, como se proteger o amigo fosse sua responsabilidade.

- Creio que ele saiba se cuidar em relação ao perigo que é ter um gato mau aqui no prédio, amor – disse a mãe. Até porque se ele chegou até a sua janela foi porque conseguiu livrar-se, não?

Era possível, naquele instante, ouvir os passos cadenciados da avó que atravessava mais uma vez o corredor do apartamento, enquanto um ventinho frio abria um pouco mais a porta do quarto da mãe, rangendo.

- Precisa agasalhar-se, Cristiano – disse a mãe, preocupada com o frio que parecia aumentar.

- Eu estou querendo salvar o meu amigo e a senhora fica preocupada o tempo inteiro só comigo, minha mãe! – respondeu ele, impacientando-se.

- Não posso me preocupar com todas as pessoas do mundo de uma vez só, Cristiano. Preciso cuidar primeiro de você, que é meu filho e está sob minha responsabilidade, entende?

- Sim, eu sei, mas e quanto ao meu amigo que está lá fora? - Ele que se arranje – respondeu a mãe. - Eu não acredito, minha mãe! – respondeu ele. - É mesmo? Perguntou a mãe, divertindo-se com o garoto. - Sim, é mesmo! – disse o garoto, em riste, e dirigiu-se para

a avó que passava exatamente naquele instante pela porta do quarto, atravessando de novo o corredor. – Ah! Minha avó, veja só o que minha mãe está dizendo aqui!

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- Conte para mim, meu amor, o que tem dito a tua mãe... – respondeu a avó toda cheia de carinho e atenção, como se ela fosse mesmo capaz de fazer todas as coisas possíveis para o garoto; olhando-o atenta e ao mesmo tempo serena, com o mesmo olhar de avó que todas lançam sobre seus netos.

Cristiano permaneceu em silêncio. - Agora ele tem a ideia fixa de que quer pegar para si um

pássaro que pousou em sua janela – respondeu a mãe, sorridente, olhando-os com os seus olhos grandes.

- Sim – disse Cristiano. - Oh, céus – disse a avó -, mas você bem sabe meu amor que

não há menor possibilidade que isto aconteça. O pássaro é pequeno e livre; jamais trocaria a sua liberdade de mundo para ficar dentro de um apartamento. Lá fora é melhor pra ele.

- Estou há um tempão tentando dizer isto para ele – disse a mãe com seus gestos complacentes.

- Ora, tenho certeza que logo logo ele deixará de lado essa ideia e voltará aos seus brinquedos – disse a avó.

- Mas se eu quero ele comigo – disse Cristiano – é porque tenho medo que um gato o coma, pois há muitos gatos maldosos rondando por aí.

- A vida é assim mesmo, meu amorzinho, devemos deixar que as coisas aconteçam como elas precisam acontecer.

- Está vendo como sua avó está certa, Cristiano? Você mesmo falou outro dia que ela nunca está errada – disse a mãe.

Cristiano pensou um pouco:

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— Ele queria se esconder do gato mau! — E por que o gato é mau? Perguntou a tia, que apareceu. — Porque, respondeu Cristiano, ele come o pássaro! A tia tentava confortá-lo: — Mas assim é a vida para eles, meu amor. A tia se afasta devagarzinho, acende um cigarro e caminha

lentamente até a cozinha para onde, junto com ela, foi a avó. Cristiano permanece ainda diante da varanda aberta – um vento forte esbarra contra o seu corpo pequeno – a chuva se anuncia diante do horizonte. Da cozinha é possível sentir o cheiro forte de café, o jantar sendo preparado passo a passo cuidadosamente. “Melhor fechar essa porta, Cristiano, porque vai cair uma chuva daquelas”, diz a avó da cozinha. Mas o céu está tão bonito assim triste, pensa ele. Não é mesmo incrível como os pássaros atravessam o céu escuro de maneira tão coerente?

A mãe vai até a cozinha onde estão a avó e a tia, cumprimenta-as:

— Conseguiram convencê-lo de que o pássaro não estava pedindo ajuda alguma, mas apenas espreitando algum alimento fácil no apartamento?

— É provável que ele mantenha essa ideia fixa na cabeça, disse a avó.

O apartamento foi acendendo as luzes e fechando as portas enquanto, lá fora, a chuva desabava soberana e fria. O som da televisão se mantinha, ainda, vindo do quarto da mãe e o cheiro forte de cigarro, do quarto da tia que estava sempre tão cansada

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de toda aquela trabalheira de aulas particulares. No quarto da avó, esta estava já em sono profundo com os pés repousados sobre dois travesseiros grandes. Cristiano percorre todo o apartamento, imita o voo longínquo do pássaro, depois deita com a mãe, dorme enquanto a noite desabrocha como uma flor aberta.

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2. A visita do pai Quando, da última vez, tinha visto o pai, este viera visitá-lo já na casa da sua avó e Cristiano ficou muito curioso e atento em relação àquele homem que o tratava com tanto zelo; depois se sentou com a mãe no sofá.

— Está tão crescido o garoto... A mãe olhava Cristiano, desconcertada: — Sim, já é um rapaz. Naqueles instantes em que o pai estava na sala – a avó logo

trouxe o café excessivamente forte que ele tomava com muito gosto – a mãe estava séria:

— Próxima semana quero levá-lo para um passeio na Orla... Dizia o pai.

— Agora com o colégio ele poderá sair apenas aos domingos, respondia a mãe.

— Pode ser também no domingo, quando tenho folga do serviço. Eu o levarei também a um passeio no parque, se quiser...

Todos na casa o observavam desconfiados. Não era possível que o pai pudesse ter mudado em tão pouco tempo.

— Impossível não notar o nariz do pai aqui pregado na cara,

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não? Dizia ele. Depois pousava a xícara pequena no centro, enquanto

pegava o garoto e o colocava em seu colo: — Os olhinhos miúdos são meus também! Percebeu como

temos olhos iguais? Como você pode parecer tanto assim comigo, garoto? As mãozinhas pequenas são da mãe...

— Sim, concordou a mãe, quando o olho diretamente nos olhos dele é como se eu estivesse mesmo olhando você...

— Será igual a mim quando crescer e isso é muito bom! Herdará a minha feição! Mas essa timidez com certeza é da mãe também, disse ele rindo.

A mãe tentava ficar um pouco mais confortável diante da situação para ela um tanto diferente: a primeira visita do pai a assustara muitíssimo.

— Depois eu o levarei para jogar futebol comigo, aos domingos mesmo...

O pai falava sobre os planos infinitos que tinha para eles – sobre os programas de domingo que haveria de fazerem juntos: levá-lo à praia também porque, acreditava ele, os banhos de mar são mesmo necessários à boa saúde de um homem. Ele o levaria aos domingos, bem cedinho, assim que o sol começasse a nascer para que o garoto, já desde cedo, se familiarizasse com a grandeza estranha do mar.

— Igual ao pai... Ficaram depois o pai e a mãe se entreolhando, sem saber

exatamente o que fazer agora, depois da visita. Desde que se

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separaram, esta era a primeira vez em que ele aparecera para visitar o filho. Ele tomou a pequena xícara mais uma vez à mão, bebeu os últimos goles já frios de café forte. Depois ficou passando o dedo através da borda da xícara, o dia estava nublado – quase já chovendo. A avó ofereceu mais café, depois acendeu a lâmpada grande da sala para que todos ficassem mais confortáveis, da janela era possível ver as primeiras gotas de chuva caindo sobre a cidade.

— Jamais deixaria o meu filho, disse o pai. Ele talvez estivesse arrependido de todas as coisas que dissera para a mãe outrora, arrependera-se também, quem sabe, por abandoná-la sozinha como fizera há poucos meses. Depois olhava o garoto como se estivesse a enxergar um prêmio grande, enquanto este, ainda desconfiado, mantinha-se a uma distância segura, mais próximo da mãe. Cristiano – repetia o pai – Cristiano é mesmo um nome tão bonito, forte como um touro. Depois havia ainda toda a vida adiante: os passeios com o pai, as horas infinitas ao lado da mãe, o café da manhã com a avó e as lições de matemática com a tia – havia também a adolescência ainda e todas as descobertas tão necessárias à formação humana de qualquer indivíduo. O pai, certamente, deveria acompanhá-lo ao longo de todas as mudanças, ao longo de todo desenvolvimento até a fase final de homem feito. E ambos sentariam à mesa de um restaurante qualquer e conversariam sobre como o tempo passou rápido, sobre como a vida nos parece longa e, no entanto, passa tão rápido como o romper de uma semente

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qualquer em solo fértil. A avó bem sabia destas coisas relacionadas ao tempo, desde que seu avô morrera – há quase dez anos – ela aprendera muito acerca da vida e das possibilidades que ela nos guarda sempre.

O pai continuava ainda tomando o café que a avó servia tranquila. A mãe mexia o cabelo de Cristiano com a ponto dos dedos, enrolando-os carinhosamente.

— Acordo ainda à noite, às vezes – dizia o pai – e sinto como se estivéssemos casados; como se nunca houvéssemos nos separado e, por isso, caminho toda a casa à sua procura. Levo um tempo para perceber a realidade: deito novamente e aos poucos as coisas vão ficando novamente claras para mim. Por isso mantenho o mesmo hábito de abrir as janelas de madrugada e fumar um cigarro até que as coisas se debrucem de novo perante essa realidade que me cerca agora.

A mãe estava quieta: — As coisas têm uma razão de acontecer... — Tem sido, continuou o pai, a mesma sensação que

mantenho desde que o meu pai morrera há quase trinta anos atrás. Eu ainda tão criança acordando de madrugada e aguardando que a realidade volte ao seu estágio natural: aguardando que qualquer esperança de que ele voltasse e entrasse pela porta do meu quarto deixasse infinitamente de existir. Algumas vezes ainda eu abria a janela também, tal como

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tenho feito hoje, só não havia naquela época a presença estranha do cigarro e este prazer absurdo dos diabos, e soltava uma gargalhada enquanto falava, mas as sensações não são assim, de todo modo, diferenciadas. Mas – continuou ele voltando-se agora para a mãe – tenho certeza que logo esse pesadelo passará e eu me acostumarei ao que me foi imposto agora, da mesma forma que me acostumei à ausência estranha do meu pai quando, ainda criança, ele morrera naquele acidente terrível.

— Lembro-me de toda a história... Respondeu a mãe. — Minha mãe está um pouco adoentada esses dias, disse o

pai. — Mas tenho certeza de que ela ficará logo boa. A mãe tomava mais um pouco de café também. A avó e a tia

permaneciam, cada qual, em seu quarto. Cristiano caminhou até o quarto, observou cuidadosamente todos os brinquedos, todos os objetos espalhados sobre os armários, dentro do guarda-roupa: lembrou-se subitamente do que o pai acabara de falar, da mania que ele mantinha de acordar de madrugada e esperar que certas sensações deixassem a sua mente e a realidade novamente pesasse sobre sua cabeça e seu corpo: herdara então este hábito do seu pai, pensava ele, depois ficaria da janela, sozinho, olhando o sol nascer lá por detrás da cidade, transbordando tudo completamente de luz.

A noite começava a debruçar-se sobre o horizonte, as luzes

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estranhas da cidade estavam já todas elas acesas, colorindo aquele mar revolto de prédios enormes e avenidas, com nuvens pesadas espalhadas no céu.

— Espero que tenha gostado de ver o seu pai — Disse a mãe para ele já sobre a cama, pronto para dormir — Pois ele não deve se demorar para vir aqui mais uma vez e levá-lo a um passeio qualquer.

Cristiano mexia, quase desatencioso, os dedos pequenos de sua mãe, misturava-os aos seus ainda menores.

— O que foi, meu amor? Por que essa carinha triste? Não está feliz por seu pai ter voltado a procurá-lo novamente?

— Acho que estou, mamãe... Ela o beijou ternamente, arrumou um pouco o lençol. — Pois então, prepare-se: ele estará sempre contigo. — É que às vezes as pessoas têm jeitos diferentes de mostrar

quando estão felizes, por isso eu estou assim quieto. A mãe o olhava surpresa: — Exatamente isso, meu amor: as pessoas, cada qual,

possuem diferentes formas de demonstrar que estão felizes... — E como é não ser feliz? A mãe ficou calada — não sabia exatamente o que

responder, por isso abraçou-o enquanto o colocava para dormir. A tia veio ao quarto, chamou a mãe. — Não está com sono? — Estou, mamãe... — Então dorme um pouco.

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— Não vai me responder? — Sim, claro, meu amor, mas preciso antes que você me

faça uma coisa. Amanhã bem cedo, assim que acordar, eu quero que você me faça um desenho sobre o que é estar feliz — sobre como você se sente quando está feliz e, ao lado, quero que me faça outro desenho sobre como você se sente quando não está feliz... Depois ela o beijou mais uma vez, desejou-lhes boa noite.

— E se eu não souber? — Não souber o quê, meu amor? Perguntou a mãe. — Se eu não souber desenhar como é estar feliz? A mãe ficou enrubescida: — É claro que você saberá. Depois, levantou-se, fechou um pouco a janela para que

apenas um ventinho fresco adentrasse o quarto, caminhou até a porta, apagou a luz:

— É claro que você saberá desenhar como é estar feliz... Ou por acaso nunca se sentiu feliz em nenhum momento da sua vida?

— Nunca, disse ele.

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3. Encontro Bem, continuou então: fechou o apartamento e olhou rapidamente o corredor vazio - seu vizinho não percebera que ele estava saindo e, por isso, não abriu a porta para espiar de novo a sua vida - seguiu, assim, sozinho, rumo ao lugar onde talvez Ulisses o esperava. Marcaram o encontro no Líder às dez horas e aquela deveria ser uma noite especial, pois tudo estava meio fresco e bom. Arrumou um pouco a camisa enquanto descia o elevador e sussurrou um “boa noite” quase inaudível ao porteiro que raramente lhe dava alguma atenção. Antes de sair, no entanto, olhou mais uma vez a carteira: não estava mesmo esquecendo-se de nada - a noite poderia ser longa.

Seguiu indiferente pelas ruas mal iluminadas. O bairro estava sempre muito movimentado com todo

tipo de gente que se é possível imaginar - Cristiano se sentia enojado quando via no caminho as pessoas que ficavam a essa hora vendendo o corpo pelas avenidas: não entendia como alguém poderia transgredir àquele estágio de vida.

Sentia muito medo ainda: não sabia o que o futuro lhe reservava.

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“Era mesmo possível viver dessa maneira?” perguntava-se. E, enquanto caminhava por entre as calçadas, ia percebendo que ele próprio estava sujeitando-se a viver sob aquela condição que, inclusive, todos aqueles perdidos na noite escura também viviam. Preferiu não pensar.

Tudo bem: Cristiano sabia que Ulisses não o amava - nem mesmo seria capaz diante do que houvera construído em toda a sua vida - mas, com certeza, no mínimo, Ulisses sentia um carinho muito especial por Cristiano. Impossível deitar-se com alguém na mesma cama e se prestar a todas as suas vontades daquela maneira por todo esse tempo. Sim, Ulisses não o amava - era um fato -, mas isso nunca aproximou Cristiano àquela mesma condição dos que viviam a vender-se naquelas avenidas.

Conheceram-se por acaso num desses becos meio imundos que costumam ficar conversando com os amigos e bebendo alguma coisa gelada para lhes aliviar o calor insuportável que fazia sempre naquela cidade. Olharam-se por um instante - o suficiente para que Cristiano o convidasse para tomar alguma coisa - e, como era de costume, Ulisses aceitara sem nenhuma objeção: não tinha mesmo nada a perder. Terminaram a noite num hotelzinho desses que existem aos montes em qualquer esquina - Cristiano mal cabia em si de tanta emoção: Ulisses era mesmo desses que raramente estão por aí assim disponíveis.

Depois de quase seis meses de relações esporádicas, finalmente houvera chegado a hora de Cristiano saber o que

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Ulisses queria afinal: continuaria a sua vida medíocre ao lado de uma esposa raquítica e um filho que nem o trata como pai ou seguiria ao lado de Cristiano nessa coisa absurda que era o relacionamento que possuíam? O resultado dessa conversa, no entanto, poderia machucá-lo profundamente, bem sabia Cristiano: a grande pergunta poderia ser perigosa demais e Ulisses, como um animal selvagem, quem sabe fugisse de repente na primeira tentativa de aprisioná-lo. Ainda assim, o risco, mesmo sendo fatal, era também extremamente necessário para os planos que Cristiano tinha em mente. Ele não poderia simplesmente desperdiçar mais o seu tempo ao lado de um homem que mal acreditava na possível relação que estava se solidificando entre eles - afinal, estavam já há quase seis meses encontrando-se três ou quatro vezes por semana e realizavam-se juntos - mesmo diante das diferenças que entre eles persistiam. Não havia mais como esconder esse desejo irrefutável que Cristiano nutria; precisavam estar cada vez mais próximos - estavam planejando inclusive fazer uma viagem para Recife logo em breve.

Sentou-se finalmente numa das mesas do Líder e esperou que alguém o atendesse - as pessoas caminhavam indiferentes pelo Largo e, de vez em quando, um casal passava abraçado. Um homem gordo na mesa ao lado falava muito alto e parecia estar com muita fome, pois quando se calava finalmente, enfiava um pedaço grande de carne na boca e mastigava-o com prazer.

Pediu uma água, mesmo não estando com tanta sede

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assim, mas estava com a garganta seca e o fato de beber a água, quem sabe, mostrasse para os outros que ele estava por fazer alguma coisa ou esperando alguém. Olhou o relógio impaciente: faltavam ainda alguns poucos minutos para às dez horas - Ulisses não poderia fazer isso - ele não poderia simplesmente deixá-lo esperando em vão. Com certeza, logo em breve ele apareceria de repente e sentaria ao seu lado com aquele jeito que era unicamente seu - aquele modo de se comportar que acendia tanto os desejos de Cristiano. Olhou o relógio novamente e segurou o cardápio como se estivesse escolhendo o seu prato. Estava tão concentrado e, ao mesmo tempo, tão ansioso que nem percebeu quando Ulisses sentou-se à sua mesa e olhou-o fixamente. Cristiano não se mostrou surpreso; pelo contrário: estava indiferente à sua presença e falou um “como vai” insignificante, sem sabor algum. Voltou para o cardápio logo em seguida e, lendo ainda os pratos disponíveis, perguntou para Ulisses se ele estava com fome ou se iria preferir beber alguma coisa antes do prato principal. “Faça como quiser”, respondeu Ulisses.

Cristiano percebeu de imediato que eles estavam em guerra, pois sabiam exatamente o que pretendiam dizer um ao outro naquela noite. Fechou o cardápio educadamente e pediu uísque para ambos, depois olhou finalmente para Ulisses e disse rispidamente estar surpreso com as coisas que, até então, estavam acontecendo e, principalmente, estavam ainda por acontecer. “Não entendo onde você pretende chegar com essa

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conversa”, sussurrou Ulisses enquanto Cristiano olhava o homem gordo na mesa ao lado: “Sim, você entende”, respondeu ele. E continuou: “eu sei que você é capaz de entender onde eu quero chegar porque, ao que parece, desses seis meses que se passaram, até agora eu não cheguei a lugar nenhum”. Ulisses estava inquieto - quem sabe ele não conhecesse realmente com quem estava envolvido até então: no começo, ele acreditava se tratar de um caso extraconjugal como qualquer outro dentre os vários que arrumou durante toda a sua vida. Por isso, naquele momento, ele talvez não estivesse compreendendo a profundidade dos fatos - estava impaciente e mexia com esforço o anel que carregava consigo no polegar - respirou profundamente e agradeceu ao garçom a bebida forte.

— Pretende mesmo colocar tudo a perder só porque eu não poderei ir contigo nessa viagem à Recife?

— Você mesmo sabe, Ulisses, que este não é o problema de fato: existem muitas outras coisas que precisamos acertar. Não suporto mais vê-lo ir embora deitar-se todas as noites com outra pessoa.

— Ela é a mãe do meu filho, respondeu Ulisses, você precisa entender que eu quero estar presente na vida do meu filho, pois ele é a única coisa que tenho na vida - ele é a coisa que mais amo nesse mundo e quero que ele perceba o quanto é importante para mim - parou um instante, bebeu um gole e continuou: — Desde o começo você sabia da existência do meu filho e da mãe dele - em nenhum momento eu escondi isso de

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você. Cristiano o olhava com indiferença. — Estou farto dessas suas histórias, Ulisses. Você mesmo

sabe que mal consegue sustentar o seu próprio filho com o salário miserável que recebe - a mãe dele precisa trabalhar o dia inteiro para que não lhe falte nada. Aquele garoto pode, sim, ser o seu filho também, mas ele é, acima de tudo, filho daquela mulher que se mata para poder criá-lo e educá-lo. Cristiano passava o dedo na borda fria do copo que pairava sobre a mesa. A grande questão é essa: eu quero simplesmente saber onde fico nessa história toda - ou pretende esconder isso pra sempre? e repetiu com força: Até quando você pretende continuar nessa?

— Você fica onde está agora, respondeu Ulisses. — Eu não estou em lugar algum! — Espero que fique feliz então acabando logo com tudo

isso porque não suporto mais essa culpa toda em cima de mim. — Culpa? Espantou-se Cristiano. — Você sabe que não gosto de homens. — Eu não acredito mais nisso. Depois de todas as coisas

que fizemos, você não me convence mais. — Eu acho que seja hora de você ir embora da minha vida,

então. Disse Ulisses. Cristiano finalmente fora atingido pela angústia - pela

angústia que era viver e precisar estar ao lado de alguém para sentir-se forte e capaz de enfrentar todas as coisas que nos são tão comuns em nossa vida. A simples possibilidade de não mais ter Ulisses ao seu lado o assustava. Respirou profundamente e

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olhou Ulisses com certo desprezo; pensou por um instante: “sim, era uma guerra, mas não havia porque temer - ele era mais forte que Ulisses”. Disse, finalmente: “sei que você não quer que eu vá embora - eu sei que você me ama e está confuso diante disso”.

— Não, respondeu Ulisses, eu não o amo. Cristiano bebeu um pouco mais e sentiu-se um degrau

acima de Ulisses: estava forte e repleto de si - continuou: “você me ama, sim, pois, se não o fosse, já teria me deixado há muito tempo”.

Neste momento, Ulisses permaneceu calado - fora humilhado, atingido. Sentiu-se agora indefeso e sem resposta alguma - preferiu permanecer calado, então.

Cristiano ainda mais forte continuou: “não me venha também falar que está comigo por interesse - eu não acredito: raramente lhe pago uma bebida ou, por acaso, esqueceu-se que, na maioria das vezes, você mesmo pagou o motel?”

Ulisses não compreendia - aquilo não era possível ser compreendido: logo ele, que agora tinha um filho e uma mulher sorridente, logo ele sentia-se meio perdido com aquele sentimento-que-não-tem-nome; era possível mesmo estar gostando de um homem? Mas aquilo feria todos os seus princípios: desde pequeno, fora educado a não aceitar tal aberração.

O que estava, então, fazendo ali? Tudo era muito divertido, tudo estava sendo muito

divertido, mas não se poderia aceitar que tudo ali ultrapassasse a

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barreira intransponível da diversão. Atravessar essa barreira seria quebrantar a sua condição de homem. Amanhã mesmo, certamente, Ulisses voltaria para sua casa e deitaria com a sua mulher: o que fazer quando a própria vida nos é intolerável? Era mesmo possível ser ainda feliz diante de todas as coisas que ele havia construído até ali? Ulisses amava, sim, o seu filho e tinha, apesar de tudo, muito orgulho dele, mas lhe faltava alguma coisa ainda - essa coisa desconhecida. Ele acreditava que fosse talvez o amor da sua mulher, mas com um pouco mais de tempo, percebera ele que não era necessariamente aquilo.

Em busca dessa coisa-meio-sem-nome, arranjou-se em diversas aventuras extraconjugais, mas nada adiantava.

No final, acabava sempre sozinho e culpado. Até que, numa noite dessas, Ulisses deparou-se com

aquele rapaz bonito e extremamente educado que, do nada, convidara-o para beber alguma coisa. Sim, ele aceitara realmente porque estava ainda em busca de alguma coisa que nem ele, ao certo, sabia o que era. Aceitou e, aos poucos, foi percebendo que aquele rapaz tão inteligente era capaz de ouvi-lo como ninguém no mundo fora, alguma vez, capaz. Aquele rapaz era Cristiano - que olhava Ulisses de uma maneira extremamente única desde todo o início. Ulisses já sabia o quanto Cristiano o desejava. “Ninguém, em toda a minha vida, desejou tanto estar comigo”, pensava. Cristiano o procurava não somente como fonte de prazer e sexo: buscava-o também como companhia e, muitas vezes, convidava-o para conversar até bem tarde em uma casa

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noturna qualquer. Gostavam, também, de ir à praia aos domingos - o Porto

ficava ainda mais belo nestas manhãs ensolaradas de domingo. Ulisses nadava como ninguém enquanto Cristiano, muito raramente, atravessava as poucas ondas que rebentavam contra ele. Divertiam-se bastante estando um a lado do outro e, depois da praia, um banho frio, doce e uma cama fresca com janela aberta bem ventilada para matarem a tarde juntos. Só mesmo à noite, quando chegava em casa, daria uma atenção qualquer à sua mulher.

Sim, pensava Ulisses, ele vivera, mesmo lentamente, ao lado daquele homem que agora o olhava meio com desprezo.

— Você não pode fazer isso, disse Ulisses. — Acha mesmo que sou eu quem estou fazendo todas

essas coisas? — Sim, acho. — Talvez, disse Cristiano, se você percebesse as coisas que

você mesmo tem feito, tudo seria diferente. — Eu não sei ao certo o que fazer. — Não? — Simplesmente não sei ao certo o que fazer, pois essa é

uma situação completamente diferente de todas as coisas que vivi.

— Você é o responsável pelo seu destino. — Eu nem mais tenho um coração, disse Ulisses. — Sim, você tem, pois se não tivesse, eu nem teria me

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aproximado de você. — Talvez você não tenha me entendido: eu tenho um

coração, mas que nunca se mostra. Cristiano se calou. — O melhor que eu posso fazer, talvez, é mesmo ir embora

de uma vez por todas, continuou Ulisses. Afastou-se finalmente. Cristiano não estava ainda

acreditando no que houvera acontecido: sim, ele escolhera - ele escolhera deixá-lo. Cristiano fora engolido pelo orgulho - a vontade de dizer que as coisas não precisariam tomar aquele rumo lhe assolou o espírito, mas, se o fizesse, talvez demonstrasse todas as fraquezas que levava consigo. Cristiano assistia sentado o desmoronar de uma relação completamente distorcida que mudara para sempre o rumo do seu caminho e mostrava, ainda, o quanto a vida poderia ser inesperada e ao mesmo tempo feliz. Ulisses o fazia feliz. Mesmo diante de todas as limitações que ele carregava; talvez isso o fizesse ainda mais especial. Ulisses o fazia feliz como em toda a sua vida ninguém o fizera. Lembrou-se, tolamente, de quando Ulisses batia à sua porta ou ligava para desabafar um problema ou uma preocupação qualquer - eles se abraçavam, mesmo diante da porta entreaberta, depois se olhavam pacientes: nunca, em toda sua vida, houvera experimentado aquela sensação que pulsava - ele olhava o rosto frágil de Ulisses que, tentando esconder algumas lágrimas que, vez ou outra, estancavam dos seus olhos. Beijavam-se depois e, na tentativa de encontrar-se naquela vida

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tão aturdida que ambos levavam, deitavam-se abraçados e olhavam-se com grande prazer.

Ulisses parou um instante na porta do bar e olhou Cristiano que continuava, aparentemente, indiferente diante de todas as dores que lhe assolavam o espírito naquele momento. Ulisses olhou-o rapidamente e, num único impulso, lançou-se ao Largo até perder-se dentre as muitas outras pessoas que passavam por ali.

Cristiano agora completamente sozinho. “Ele foi embora”, pensou consigo. — Ele me ama, disse ainda. Cristiano mantinha ainda a esperança: deveria haver

alguma possibilidade de ser feliz - deveria haver algo no mundo que o fizesse olhar em volta e perceber o quanto a vida lhe era grata, sim. Pagou a conta e foi até a saída - o mundo continuava acontecendo ainda como sempre fora desde o início - o mundo lhe pertencia todo agora como nunca pertencera.

Cristiano estava confiante em relação a todas as coisas que estavam ainda por acontecer.

Sim - Ulisses o procuraria novamente, assim como das outras vezes que, por alguma bobagem qualquer, eles se desentendiam.

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4. Ulisses Todas aquelas sensações híbridas o tomavam completamente.

Uma mistura absurda de medo e impaciência perante todas as coisas que estavam por acontecer; uma sensação de insegurança e, ao mesmo tempo necessidade de estar próximo das pessoas que tanto se ama – seria impossível calcular aquela combinação inteiramente incoerente: uma vontade inexplicável de manter todas as coisas exatamente como elas estão e, ao mesmo tempo, modificá-las a fim de se experimentar a felicidade completa em seu estado mais bruto.

Ulisses, quem sabe, pudesse explicá-lo de forma mais concisa esta sensação. Ele sempre o compreendia das maneiras mais coerentes que uma pessoa poderia compreender outra no mundo. O pássaro pequeno, porém livre, corria todos os perigos que uma criatura totalmente indefesa poderia correr. A liberdade o condicionava ao perigo grande da vida, lançava-o por inteiro ao abismo mais sagrado no mundo: poder escolher seu próprio caminho.

Sentia-se inteiramente pleno por ter escolhido o seu próprio trajeto, no entanto, isso o condicionava ao perigo grande que há

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na vida esta que se vive plenamente. Tinha receio de que logo se machucasse – assim como o pássaro capaz de escolher sozinho o seu plano de voo completamente à mercê da própria morte - esta que se materializava em um gato de pelo macio e quente, cheio de vida e sorrateiro. E caso logo aparecesse um gato enorme que despedaçasse o seu corpo indefeso? Isso o excitava. O perigo que se corre enquanto se vive o excitava de todas as maneiras possíveis. Depois, morrer era também uma possibilidade. A morte carregava em seu bojo a grandiloquência que é a ausência triste em pleno verão – o sol forte, o mar calmo, transparente e o corpo morto numa manhã fresca de sábado.

Naquele dia mesmo em que conheceu Ulisses, lembrou-se subitamente do corpo morto sobre o asfalto quente que vira pouco antes. Enquanto o taxi cortava a avenida com pressa, algumas pessoas observavam a carne já sem vida exposta sobre o asfalto – não era possível perceber a causa da morte – mas havia, ainda assim, a presença sombria desta indesejada dos vivos diante do cenário que lhes fora exposto. O homem com os braços abertos, a cabeça um pouco caída para o lado, os carros passando ao redor. A crueza da cena o havia paralisado: quem sabe ele tivesse uma namorada, ou mesmo um filho que sentiria, a partir de agora, o peso grande de sua ausência – ou mesmo os seus pais, pois não se tratava de um homem velho. E, daqui a algumas semanas, a sua carne fria, podre e morta sob a terra vermelha de um cemitério qualquer, as pessoas que logo o esqueceriam, seus colegas de trabalho que levariam suas vidas

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adiante: a morte era mesmo a coisa mais absurda que alguém poderia ter criado para dar a coerência completa da vida. Todas as canções que viriam a seguir, todas as comemorações ou mesmo os acontecimentos que agora ele não mais acompanharia. Logo, chegaria mais uma vez o Natal e então a sua casa pesaria, talvez, com a sua ausência. Enquanto Cristiano tinha ao seu alcance todas as horas que seguiriam adiante, o corpo morto não possuía absolutamente nenhum segundo a mais sequer de vida: aquele corpo no asfalto só carregava o peso grande da matéria morta, da carne sem vida e sangue frio, parado. Esta ausência completa de vida e de horas o excitava também.

Isso, no entanto, não o fazia de modo algum um homem mau. Sentir-se atraído pelo mistério grande da morte não o condicionava à anormalidade. Qualquer forma de mistério o atraía muitíssimo – fora o mistério na face tranquila de Ulisses que logo o chamou a atenção naquela noite mesma em que vira o homem morto. Qualquer forma de mistério excitava – o escuro grande da noite, o silêncio suntuoso da morte ou mesmo o olhar distante de Ulisses todas as vezes que, de manhã, ele observava a avenida movimentada da janela grande do apartamento: esse é o segredo maior que levava consigo, pensava ele.

Ou, quem sabe, se ele deixasse de lado toda essa coisa meio obscura de mistérios e se tornasse uma pessoa comum – como todas as outras iguais que vê, de quando em quando, ao se

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esbarrar numa rua movimentada ou num restaurante qualquer. Mas naquela manhã, ele acordara diferente. Uma sensação

cobria todo o seu espírito: seria essa a chamada plenitude a que tantos se referem? Os seus gestos sempre leves, muito cuidadosos como se vivesse sempre à beira de uma estrutura fina de vidro – como se qualquer gesto mais violento fosse capaz de destruir uma escultura fina de gelo; os seus gestos estranhamente vaporosos que, inclusive, às vezes irritavam Ulisses. Fica segurando todas as coisas, mesmo os objetos mais duros, como se estivesse com um passarinho recém-nascido entre as mãos, reclamava Ulisses. Sim, qualquer gesto mais forte o mataria, bem sabia Cristiano e, por isso, continuava ainda com os seus modos cuidadosos. Acreditou, no entanto, que a coisa a que chamavam de plenitude era possível apenas nos romances de amor – ou mesmo no cinema: para a vida real, estes sentimentos quase sempre passavam despercebidos como o fio meio transparente de um rio minúsculo meio à floresta escura. A felicidade não lhes era mesmo possível de modo algum: a felicidade, tal como ele ouvira sua mãe ou sua avó falar, nunca lhes seria possível. Os olhos permaneciam ainda abertos, observando atentamente a estrutura esbranquiçada do teto, o desenho formado pelo lustre pequeno que sua mãe lhe dera de presente desde que ele fora morar sozinho. Depois, as cortinas azuis encobrindo as janelas abertas, o vento fresco invadindo o quarto, transportando-se para o apartamento; a felicidade jamais lhes seria possível, mesmo ele morando sozinho em um

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apartamento grande, perfeitamente confortável, mesmo Ulisses acordando de manhã bem cedo e abrindo as janelas para o dia que desabrochara há pouco. A convicção de não crer nessas bobagens criadas pela humanidade a fim de dar um sentido qualquer às suas vidas jamais assolaria a mente completamente liberta de Cristiano. Observo todos abaixo, na avenida escura, pensa Cristiano, e procuro, por Deus, quem sou. Procuro compreender um pouco da inquietude do meu espírito, desses anseios que nada no mundo, aparentemente, é capaz de satisfazer. O trabalho, o apartamento fresco, Ulisses: era esse o começo da felicidade? Inteiramente, o mundo todo é perfeito. O mundo em suas mais complexas estruturas – desde a forma leve e invisível de um átomo, até o Universo em todas as suas dimensões – o mundo todo é perfeito porque, por mais que nós tentemos, nunca seremos capazes de compreendê-lo; eis o grande sentido de todas as coisas. A não-compreensão do que está à sua volta – a própria não-compreensão do que seja, efetivamente, a felicidade é que torna o mundo inteiramente interessante para todos eles; para Ulisses, inclusive, que sempre se preocupou tanto em dar as explicações mais racionais que se é possível obter, tal como um grande matemático hindu. Quer dizer, o mundo todo existe apenas em nome da esperança de que as nossas forças não sejam inúteis – existe apenas, meu Deus, em nome da banalidade que teimamos repetir cotidianamente ao longo dos nossos dias tão insossos, enquanto o Universo explode numa expansão sem fim. O que me tranquiliza é que

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tudo o que me cerca agora carrega em seu bojo o que há de ser mais divino no mundo: a verdadeira perfeição, devaneia Cristiano. Desde o átomo primeiro que forma a estrutura lisa do vidro que cerca a minha janela até a rocha imensa encontrada ali perto, no terreno baldio. Tudo o que existe, segue, cada qual a seu passo, a verdadeira perfeição; e, somente assim, é que podemos compreender o sentido oculto dos acontecimentos. Subitamente, ele fora tomado por um ímpeto de tranquilidade, por uma segurança tão grande que somente a presença silenciosa de Ulisses dormindo ao seu lado seria capaz de lhe proporcionar. É curioso, meu Deus, o quanto o mundo é grande e, no entanto, deitar-me com Ulisses o faz ainda mais imenso, mesmo eu compondo uma estrutura tão ínfima neste horizonte sem fim. O Universo caberia, ele todo, na sua própria cama, enquanto Ulisses repousava distraído.

De onde surgia aquela ansiedade grande perante o seu próprio futuro?

Acordara muito cedo, como de costume, e logo preparou o café da manhã – agora que estava sozinho, não poderia mais esperar sua avó perguntar o que ele gostaria de tomar no café. Enquanto organizava os lençóis, lembrou-se subitamente quando, em criança, observava a tia já à mesa, a mãe arrumando os seus lençóis, a avó colocando o café quente nas xícaras pequenas: aquelas eram suas primeiras lembranças. Deixou-se ser invadido por aquelas sensações – a aspereza macia do tapete na sala, o sol atravessando a janela, repousando sobre o piso, as

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folhas de uma pequena planta na varanda balançando com o vento fresco da manhã –, aquela era a sua vida. Sua infância sempre tão preenchida pela presença terna da tia, da mãe e da avó – enquanto o seu pai muito raramente o visitara – talvez o tenha feito uma ou duas vezes, lembrava-se Cristiano, durante toda a sua infância.

Deitou-se mais uma vez na cama, os lençóis estalavam em um branco caudaloso, pareciam escorrer ao longo do quarto. Lembrou-se, rapidamente, da imagem de Ulisses, da sua voz meio rouca falando ao seu ouvido. Lembrou-se da maneira feroz que ele tinha de contorcer-se enquanto estava embebido de gozo puríssimo; Cristiano beijando-o ternamente enquanto ele palpitava de prazer. O cheiro forte, o calor grande que habitava ao longo de todo o seu corpo: tudo aquilo o excitava ainda mais. Poderiam estar numa praia deserta qualquer, tal como em seus sonhos de jovem, diante do mar escuro rebentando contra a areia, formando ondas repletas de espumas vivíssimas, poderiam estar numa dessas praias desertas e tomarem um ao outro com o mesmo desejo tão profundo enquanto o coração de ambos reluzia de felicidade. O pássaro solto o observando de um galho qualquer era o mesmo que aquele das tardes chuvosas de sua infância. Atravessando o céu completamente escuro de mar. O mundo todo o pertencia: a sua infância enquanto ao lado dos pais, a separação, a casa da avó tranquila com a tia, o corredor imenso, o mundo todo o pertencia quase por inteiro. Depois de tudo, havia além disso Ulisses, havia toda a vida ainda a ser

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vivida ao seu lado, acariciá-lo, compartilhar a sua existência com a dele e, enfim, a felicidade plena. A busca eterna mais absurda da humanidade era também a sua: a felicidade.

Contorceu-se de prazer. Aquela era a forma mais concreta de se mostrar um gozo de vida próprio, ultrapassando mesmo a própria libido. Em que momento desaparecera a criança doce que ele sempre fora desde tão cedo? Sentiu-se envergonhado. Contorceu-se, no entanto, mais uma vez ainda em êxtase. A noite seguiria tranquila, o céu estaria completamente escuro – seria impossível enxergar as estrelas estando ele rodeado de prédios luminosos como aqueles. Um vento fresco escorreria também pela janela, balançaria a cortina e debruçar-se-ia sobre o seu corpo nu, escorrendo através das suas curvas completamente masculinas. O relógio continuaria marcando marcando. Lembrou-se de Ulisses mais uma vez, onde ele estaria agora, ou mesmo se havia alguma companhia ao seu lado. O coração palpitando feroz, a noite derramada sobre a cidade.

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5. Banhos de mar A praia era imensa e o cheiro secreto do mar invadia agora todo o seu corpo naquela manhã ainda fria.

O taxi atravessava a orla, lançava-se à imensidão da praia, contornando-a tranquilamente. Cristiano estava ainda sonolento, pousando a cabeça sobre o ombro da tia muito entusiasmada. A cidade caminhava perante os seus olhos quase fechados, as pessoas já tão cedo caminhando ao longo dos calçadões, a praia deserta, a luz do sol tocando muito levemente a espuma fresca das ondas que brilhavam e contorciam-se enquanto se derramavam sobre a areia dura. Uma nuvem pequena, oca e solitária atravessava o céu e a grandiosidade daquele mar azul a fazia ainda menor.

A tia pediu que parasse o taxi e desceu muito apressadamente; a areia estava já quente e ela mal teve tempo de atravessar a avenida – por pouco, outro carro que passava também não a atropelou – mas seguiu mesmo assim até as águas frias e salgadas do mar. Tocou-as com a ponta dos dedos, molhou um pouco a face já suada e caminhou pela areia, sentindo as ondas já sem força tocando os seus pés muito

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levemente. — A essa hora quase toda a praia está vazia, disse ela a

Cristiano ainda silencioso. E foram caminhando ao longo daquela imensidão banhada

de um sol fresco, inteiramente despido de nuvens ao redor: o sol, todo ele, nu diante da grandiosidade do mar. Cristiano contorcia-se de prazer, sentia a brisa balançar o seu cabelo imenso, nesgo de mar. O barulho das ondas debruçando-se sobre a praia, para eles, era uma melodia rítmica como um Adágio de Mozart.

— É mesmo uma pena que você não possa mais ficar conosco ainda por algum tempo, e logo tenha que se mudar, disse ainda a tia. Uma rajada forte de vento por pouco não levara o seu chapéu – ela o segurou com uma das mãos, enquanto a outra mantinha entrelaçada ao braço forte de Cristiano. Não posso ainda acreditar que o tempo passou tão depressa!

Conceber o tempo ideal para que alguém se distancie – de qualquer forma possível – da nossa vida não é propriamente uma tarefa fácil. O sol brilhava ainda mais forte e Cristiano chamou a tia para beber alguma coisa numa pequena mesa colocada sobre a areia ao longe – precisariam ainda caminhar um pouco mais, o sol estava já mais alto e quente àquela hora da manhã.

Depois, sentaram-se e a tia permaneceu calada observando, muito atentamente, um ou outro transeunte que caminhasse

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através da praia àquela hora da manhã. O ar fresco a tomava por inteiro, lançava-a numa liberdade que palavra alguma seria capaz de traduzir. Cristiano, no entanto, mantinha ainda o mesmo ar severo, sério.

— Eu o amo. E a palavra “amor” para ele agora soava como o canto

irrisório de um pássaro qualquer voando sobre a praia imensa, levado pelo ar. O amor seria mesmo este sentimento absurdo que, depois de usado, poderia ser levado pelo vento como um canto qualquer ou talvez uma folha pequena carregada por um minúsculo fio de água. Depois ele deixou escorrer uma lágrima pequena que atravessou sua face coberta de areia finíssima espalhada pela brisa. O garçom trouxe muita água que parecia estalar de tão gelada, colocou-as sobre a mesa pequena, serviu-a em copos grandes de vidro transparente e voltou-se para o restaurante há alguns metros da areia. A água era fresca, invadia milimetricamente o corpo inteiro de Cristiano e, por um momento, lançando-o a uma frieza estranha, como se fosse o medo da vida. O cheiro distante da comida que era feita no pequeno restaurante misturava-se à brisa fresca que escorria sobre a areia já quente da praia, sobre as pessoas sonolentas que caminhavam nas calçadas imensas. A tia mantinha ainda o mesmo ar repleto em seu esmero e dedicação.

— E ele me ama, também! Respondeu Cristiano enquanto a tia o observava muito carinhosamente.

Depois veio o garçom trazendo mais água e suco de laranja.

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— Eu espero, do fundo do meu coração, que ele o ame também, assim como você a ele. A tia sempre teve dessas coisas, sempre o entendeu da melhor maneira possível, compreensiva e tranquila, tal como era quase todos os dias, desde que Cristiano era ainda uma criança correndo ao longo do corredor enorme no apartamento com a avó.

O vento forte permanecia ainda vivo sobre todas as coisas e todas as pessoas que passavam, naquele instante, por ali. Cristiano pensou em caminhar um pouco sobre as águas imensas, lançando-se à grandeza do mar que rebentava agora em fortíssimas ondas – sentindo a água atravessar-lhes completamente o espírito como em forma de libertar-se finalmente de toda a sua própria vida.

A tia permanecia muito atenta, sentada, tomando suco de laranja sem nenhum açúcar. Cristiano caminhando sozinho diante do mar, o azul que reluzia com a luz do sol refletida nas águas em movimento, o cheiro forte das ondas e a solidão a que se tinha entregado enquanto, distante, a cidade permanecia quase imóvel. Deixou que o mar o alcançasse até os joelhos, quase lhes tocando o short leve e macio.

Ao longe, no céu, algumas poucas nuvens espalhavam-se largamente sobre o espaço azul que mais parecia infinito de tão imenso. Cristiano tornava-se apenas um ponto um pouco negro – dada as cores mais escuras da tintura de suas roupas – naquela mistura de azul vazio de céu e toneladas de água revolta quebrando-se em ondas e espumas. Depois, ele abaixou-se e

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tomou uma porção pequena de água salgada entre as mãos, observou os grãos minúsculos de areia em movimento ainda, a grandeza que era a própria pequeneza do mar.

Seguiu caminhando pela praia, lembrando-se das horas infindáveis que passava através da orla enquanto seguia para o trabalho, anos atrás: o ritual quase imutável de atravessar as avenidas iluminadas de mar ao som da música tranquila que quase sempre saudava mais um dia em sua vida enquanto os ônibus enormes e os milhares de carros seguiam indiferentes. De vez em quando, uma nuvem mais espessa encobria o sol e certo frescor tomava conta daquele pedaço de mar, alguns pássaros pequenos circundavam as rochas mais distantes à procura de um alimento qualquer. Certa tristeza, no entanto, tomou-o de repente. Uma vontade imensa – quase do tamanho do próprio mar – de não ser mais ele mesmo, de não precisar viver todas aquelas coisas a que vinha se submetendo: Ulisses agora em sua vida há poucos meses, a própria possibilidade dele – de repente – abandonar todas as coisas e seguir através de um caminho completamente novo e distante de Cristiano. E, ainda assim, as praias continuariam incrivelmente lindas, continuariam seguindo a sua mais secreta perfeição que arquitetura humana alguma é capaz de sustentar. As águas semitransparentes do Atlântico, a areia espessa, o vento forte rebentando sobre o seu peito e a lembrança de Ulisses – que estaria agora dormindo, talvez, ou mesmo tomando um café forte, como ele próprio costumava acentuar sua preferência; nada como um café

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extremamente forte para começar o dia, repetia sempre e, depois, seguia o mesmo ritual enquanto o preparava cuidadosamente, tal como sua própria mãe o ensinara. E mesmo assim, todos os anos seguiriam indiferentes, todos os dias e todas as próprias manhãs ensolaradas conseguiriam ainda manter a mesma calma de outrora, ainda que Ulisses não mais fizesse parte da sua vida. Enquanto houvesse a vida – tal como a conhecemos em seu estado mais superficial – haverá sempre esta mesma sensação de possível perda que teima em perdurar sobre todos aqueles que amamos: a vida, em si, só pode ser assim classificada se a sua possível ausência completa nos seguir sempre, tal qual a sombra da infelicidade sobre os corações estranhos daqueles que amam. Ulisses um dia morrerá, lembrou-se subitamente. Ulisses um dia morrerá e, ainda que permaneça vivo, poderá escolher não mais compartilhar a sua vida ao meu lado. Ulisses poderá, a qualquer momento, desaparecer completamente da minha vida até que apenas os retratos antigos e os objetos ínfimos, que mantenho sempre comigo tão bem guardados, servirão como prova perante todas as coisas que juntos vivemos. E, ainda assim, as ondas rebentarão contra as rochas distantes na praia.

A vida agora parecia extremamente clara e inteiramente possível de ser compreendida: eis o grande ciclo que a literatura popular tanto vos comenta; eis a grande explicação para todas as coisas que vivemos – pois, em certo momento o seu próprio ciclo com Ulisses também cessará e restarão apenas os

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momentos vividos, as lembranças de um passado intensamente aproveitado.

Depois tomaram um táxi e voltaram para o apartamento. No caminho, era possível ver ainda a mesma praia, as pessoas caminhando através das calçadas enormes da orla, as praças espalhadas e os prédios que mais pareciam blocos sérios e tristes. A tia estava exausta e comentava tranquila como a praia, mesmo nas visitas mais rápidas, tinham aquele poder de enfadar tanto as pessoas; disse que estava ansiosa para chegar logo em casa, tomar um banho gelado e deitar na cama fresca, com a janela aberta. Cristiano permanecia ainda silencioso com o corpo meio banhado em sal e suor. A pele um pouco ressecada e o cabelo um tanto bagunçado pelo vento enquanto, lá fora, as avenidas, as pessoas e os prédios caminhavam através da janela pequena do automóvel. Respirou profundamente, comentou qualquer coisa sobre o tal cansaço a que se referia sua tia e voltou a observar a paisagem tão próxima e, ao mesmo tempo, tão distante e inalcançável. Era mesmo incrível como os anos tinham passado tão rapidamente, pensava ele agora. Parecia que a última vez em que vira o pai fora há algumas semanas e lá se vão quase nove anos desde a sua morte. A notícia, lembrava-se Cristiano, não havia sido naquela época a mais terrível que recebera até então, mas somente agora certas coisas passavam a ter algum sentido: a possibilidade de ausentar-se completamente da vida de todos aqueles que nos são importante é verdadeiramente real, pois seu pai era mesmo uma prova clara

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disso. A noite houvera seguido como outra qualquer, a chegada da escola, o banho fresco e depois a janta que a sua avó houvera preparado com o mesmo carinho de sempre. Enquanto terminava a janta e se preparava já para o festival de desenhos que o esperava na televisão, o telefone tocou com a notícia. Talvez pela chuva, ou mesmo a rodovia encharcada: não houve tempo necessário para frear e a colisão foi inevitável. A mãe, naquela noite, precisou tomar vários comprimidos para dormir enquanto a avó desatava-se de preocupação: a tia precisou sair naquela mesma noite para resolver algumas coisas, mas o festival de desenhos estava tão divertido – como qualquer outro dia normal. No outro dia, lembrava-se Cristiano, ele não precisou ir à aula, nem mesmo pôde ver o corpo do pai já preparado para o sepultamento que se realizou no largo cemitério. A tarde desabrochava-se num frescor típico daquelas depois da chuva, a terra ainda úmida e as pessoas, no entanto, muito sérias acompanhando o cortejo. Cristiano voltou para a casa da avó, naquele dia, ainda muito desconcertado em relação a todas as coisas que houveram acontecido desde a noite anterior. Ao voltar do cemitério, ele tirou o pequeno terno, e seguiu para o banheiro onde sua mãe já o esperava. Enquanto ela o banhava, explicou com detalhes o que havia acontecido; falou da sua nova condição agora e, também, que não mais seria possível Cristiano ver o seu pai. A ideia da morte não estava ainda muito clara em sua cabeça – naquela época, o peso de uma ausência como aquela ainda não tinha assim tanto efeito sobre

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ele. De que forma agora aquela ausência pesaria sobre sua vida? Era mesmo possível que as pessoas pudessem desaparecer das nossas vidas? A mãe lhe dizia que, ao seu lado, Cristiano estaria sempre protegido e que ela jamais o abandonaria. Cristiano, agora maior, iniciava novas experiências, conhecia pessoas novas no trabalho ou mesmo na faculdade – Ulisses também o acompanhava há alguns meses. A cidade enorme, as pessoas indiferentes, o táxi parando em frente ao prédio naquela manhã que estava já meio nublada. Subiu as escadas, entrou no seu quarto e decidiu: agora que começara a trabalhar, Cristiano precisava de um lugar inteiramente seu. Falou com a família e todos concordaram, desde que, aos finais de semana, sempre que possível, Cristiano os visitasse para uma tarde alegre de domingo.

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6. Ulisses e Cristiano — Viver requer coragem, disse Cristiano a Ulisses.

Buscar, sem cessar, a felicidade mesmo em sua forma mais bruta requer a coragem de um exército em plena guerra. A coragem necessária para lançar-se ao que efetivamente o fazia feliz, a coragem de compartilhar sua vida por inteiro era o que mais fazia Ulisses desacreditar na ideia da própria felicidade. O amor nunca o libertaria. O amor, tal como ele conhecera já desde muito pequeno, jamais o libertaria daquela sua condição humanamente frágil. De que modo poderiam se entregar um ao outro – de maneira tão própria – sem, no entanto, sentirem-se acuados diante das impossibilidades que aquela paixão súbita causava?

A tarde explodia em céu azul, completamente despido de nuvens – muito comum na cidade. Alguns pássaros pousavam, de quando em quando, em volta do pequeno riacho límpido e parado, saltavam tranquilos, tocavam com o bico o espelho de água quase transparente e lançavam-se subitamente ao voo enorme. Os carros sempre tão apressados atravessavam a avenida ao lado parque, desaparecendo dentro da cidade cinza.

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Cristiano esteve sempre muito ligado a essas coisas relacionadas à natureza: achava muitíssimo interessante como os pássaros costumavam dormir nas árvores espalhadas ao longo das ruas e avenidas, o modo incomum que eles, já de madrugada, enquanto o dia amanhece, acordam desabrochando um canto alegre, repleto de vida; depois lançavam-se ao perigo no voo e nos observavam do céu aberto: não poderia existir sensação mais sublime que sentir o vento forte rebentando contra as penas minúsculas de suas asas, enquanto se atravessava o espaço infinito. Era mesmo incrível como todas aquelas coisas tão naturais – o voo de um pássaro quase invisível, o balanço tranquilo das águas com o vento fresco, as folhas desabrochando e lançando-se ao solo vivo da terra – era mesmo incrível como todas aquelas coisas continuariam a existir – tal como sempre foi desde o início da eternidade – e, agora, Cristiano finalmente acompanhado de uma alma completamente inteira e sua, compartilhando consigo a grandiosidade de suas vidas. E por mais que chegassem verões caudalosos ou invernos desabando em chuvas sem fim, nada o desconsolaria, pois, o que esperava desde muito cedo, mesmo quando ainda era um adolescente, finalmente havia se concretizado: estar ao lado de alguém que o acolheria por toda sua vida era mesmo um presente grande.

— Coragem, por exemplo, de assumir o que somos, disse ainda.

Sentiu, então, uma palpitação forte em seu coração, a possibilidade de qualquer resposta negativa de Ulisses era, para

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Cristiano, uma situação desoladora. Tinha inúmeros medos ainda, desde quando era uma criança correndo através do corredor imenso do apartamento da avó, e mantinha – incrivelmente – certos receios que nem mesmo a presença segura da sua mãe era capaz de evitar. Cristiano, no entanto, não poderia continuar levando a sua vida daquela maneira, escondendo para quase todos à sua volta aquilo que ele verdadeiramente era: precisava-se lançar ao grande abismo que estava sendo a sua vida e somente a coragem necessária a quem vive poderia lhe lançar adiante. Ulisses precisava também dessa mesma coragem a que Cristiano tanto se referia.

— Talvez a maneira com que você tenha levado a sua vida ao longo desses anos tenha sido mais coerente, disse Ulisses.

— Não existe apenas uma forma coerente — respondeu Cristiano.

E falava sobre as inúmeras formas de vida possível, sobre como nunca era, verdadeiramente, tarde para se tentar a felicidade plena. Dizia que, desde muito cedo, aprendera a pedir muito pouco da vida e, por isso, era exatamente o que dela ele esperava: muito pouco – a tranquilidade de um apartamento enquanto a tarde morria na cidade, o cheiro forte do café no começo de noite e, por fim, televisão e cobertor. Obviamente todos aqueles planos mantinham também a presença silenciosa de Ulisses. Cristiano o amava. Ulisses sorria diante daquela consideração – tentava conter-se, controlar as sensações que nunca, em toda a sua vida, fora educado controlar. Depois

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segurava uma folha seca e muito pequena entre os dedos, deixava-a para que o vento a levasse – a brisa forte que fazia naquela noite era já o anúncio do verão que estava por vir. E continuava sorrindo, como se aquela fosse a maneira mais coerente de manter-se inteiro diante dos planos que Cristiano construíra para si. “Ulisses, preciso te dizer que desde a última vez em que nos vimos – ao longo desses meses todos em que temos nos encontrado, dizia ele – não tenho pensado em absolutamente nada senão na vida a dois que podemos construir juntos”. Ulisses se sentia tal qual um animal selvagem, prestes, quem sabe, a experimentar o amor – essa prisão.

Uma criança corria sozinha no parque, era possível ouvir o barulho das folhas secas quebrantadas sob seus pés.

Enquanto a tarde desmoronava no horizonte, acendendo todas as luzes da cidade, o parque aos poucos se esvaziava, Cristiano voltou-se logo para o apartamento, foi deitar-se para que a manhã seguinte viesse. Acordou, no entanto, de madrugada: a janela grande do quarto aberta, o coração palpitando feroz. Olhou a cidade adormecida e silenciosa: Ulisses fazia parte deste oceano imenso de casas e prédios, pensava.

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7. Um pesadelo O golpe seguinte houvera sido, aparentemente, mortal: o líquido branco e meio viscoso explodira do seu útero ferozmente - agora estava já tudo exposto. Ele profundamente assustado. “Tentei ainda expulsá-la para longe de mim, pensava Cristiano em profunda agonia, tentei, sim, expulsá-la”.

Provavelmente, a própria barata não compreendia as tentativas de Cristiano para expulsá-la dali - ele nem mesmo percebia o risco que a sua vida estava correndo. Enquanto Cristiano, que nunca tinha visto aquele bicho assim tão de perto sob essa perspectiva, estava em desespero, a barata corria corria de um lado para o outro como uma tonta procurando alguma passagem escura para esconder-se e, assim, salvar-se.

Naquele dia mesmo, depois de acordar às três horas da madrugada, Cristiano caminhou levemente até a cozinha atravessando o enorme corredor escuro. Tinha sede, mas, antes mesmo de alcançar o copo dentro do armário, ele se desesperou de nojo da barata que lhes surgia por debaixo do refrigerador: lançou, de súbito, o primeiro objeto que lhe veio à mente - o chinelo no qual estava calçado - e, o que parecia uma tarefa

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simples - expulsar a barata para longe - tornou-se, por fim, uma batalha genuinamente napoleônica, pois, nada retirava a convicção da barata em lançar-se aos pés de Cristiano. O primeiro golpe houvera sido em vão.

Precisaria ter mais cautela ou perderia essa guerra: segurou com firmeza o seu segundo chinelo e, num golpe dessa vez certeiro, explodiu o útero marrom e gordo da barata - seus micro órgãos espalharam-se no chão frio da cozinha. Cristiano respirou profundamente aliviado. Era possível que ela, a barata, tivesse mesmo vida própria? A cozinha quase escura, Cristiano perdido ainda sem saber ao certo o que fazer depois de cometido o seu crime - o relógio na parede marcava marcava marcava silencioso. Mas as coisas não seriam assim tão fáceis como ele pensava já que, no instante exato em que Cristiano se aproximou do corpo da barata, de repente a surpresa: a barata estava viva ainda e tentava caminhar mesmo com o seu ventre completamente exposto.

A barata caminhou lentamente. Profundamente, arrastou-se ainda como se buscasse mesmo

sangue vivo - ele agora mais desesperado - “ela é imortal “, pensou.

À medida que se arrastava, aos poucos, a barata ia deixando um rastro de sangue pulsante - um rastro de fome de vida. A barata, acima de tudo, procurava viver. Certamente, naquele estado, ela não iria muito longe. Nem Cristiano.

Lembrou-se, então, do que lera tolamente numa revista: é

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possível que ela, a barata, consiga viver até mesmo três dias sem a própria cabeça. “Ela pode querer se vingar de mim, pensava Cristiano em profunda agonia, quem sabe chame inclusive todo o seu bando”. E, nutrido dessa mesma agonia, lançou o terceiro golpe também certeiro sobre a barata. Pausa. Não era apenas uma barata: era um objeto vivo aquela carapaça dura e marrom explodida.

Depois, respirou aliviado e percebeu que, mesmo na sua condição de semimorta, a barata mexia ainda as pernas para o alto como se aquele fosse o seu último sinal de socorro.

“Haveria mesmo alguma espécie de vida por detrás daquela casca grossa de barata?” Perguntava-se.

E, se fosse assim, a barata – assim como Cristiano – costumava ter pesadelos típicos de quem vive?

O encontro com Cristiano, talvez, houvera sido, para a barata, como um pesadelo, mas dessa vez real.

A barata estava morta – Cristiano, não. Essa era a única coisa que poderia diferenciar uma criatura

viva de outra qualquer? Cristiano continuava assustadíssimo. Aquilo o assustava - mas o assustava de verdade. Cristiano

ficava tenso como um cavalo posto à cela: depois, caminhou até a janela onde jazia o céu escuro, completamente pontilhado.

No fundo, as estrelas eram como um pedaço da sua terra, eram a única coisa que restava ainda dos seus outros tempos, das suas outras vidas, porque olhar as estrelas hoje ainda é como olhar as estrelas há três milênios.

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Cristiano não tinha consciência alguma de todas as coisas que estavam ainda por acontecer. Abriu a janela do apartamento e sentou-se no parapeito - permaneceu completamente calado em voz e em espírito. A janela era enorme, toda rodeada de vidros - um vento forte e vazio soprava sobre os seus cabelos. Era vento de madrugada. Cristiano não sabia, mas a vida estava lhe propondo a mais doce e pura solidão - a solidão de pássaro selvagem. Seu ninho era o mundo. Cristiano precisava agora esperar o nascimento de cada uma de suas asas - esse é o processo doloroso de coloração dos anjos. Ele tinha as asas que estavam ainda por nascer.

Uma árvore uivava na rua escura - os grilos teciam a madrugada e, de vez em quando, um pássaro noturno navegava céu adentro. “Posso sentir o cheiro forte de vida que há em minha volta - todas as coisas sedentas por viver. Assim como Ulisses que tem, também, sede por viver”, pensava Cristiano. A própria barata estava sedenta por viver, sabia ele.

Lembrou-se das galinhas que viviam na fazenda antiga da tia-avó. Todas as galinhas tinham asas e, no entanto, não podiam voar. Cristiano gosta das galinhas mesmo quando elas comem as baratas e, depois, Cristiano come as galinhas: essa é a absurda contradição da vida que se vive assim, de repente. Quando as galinhas deixarem de comer as baratas, Cristiano não terá mais porque comer as galinhas e aí tudo perderá o sentido.

Cristiano sorriu. Estava ainda tão assustado com o fato de a barata ter lhe aparecido assim de repente que, por pouco, não

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colocara um ovo de tanta aflição. Uma vida houvera sido perdida naquele instante - a vida da barata, mas, a essa altura, ele não sabia nem o que lhe era mais valioso: se a vida humana ou a do bicho. O fato de ter consciência de que se vive faz a sua vida ser mais especial que todas as outras? Aquilo era absurdo.

“Eu preciso entrar em contato com as coisas que me são verdadeiramente valiosas, pensava ele. A passagem de qualquer vida no mundo é tão breve, tão frágil, lembrava-se”.

“Por mais que eu tente - por mais que eu tente, as coisas não estão verdadeiramente desnorteadas do real sentido que possuem. Tudo no mundo fora criado para durar somente por enquanto - por mais que eu tente, todas as coisas não podem ficar estacionadas o tempo inteiro. A casa antiga, a vida que se vivia - tudo acontece o tempo todo. Mas o mistério na noite ainda acontece por causa da esperança: a esperança de estar vivo no próximo instante. Não sei. Não sei: mas prefiro estar entregue a essas coisas pálidas em nome de um futuro tão vasto que me atinge obliquamente como o raio de uma estrela já morta. Eu sou feito de instantes… percebes o que há realmente em mim?”

“Gosto de sentir o cheiro da brisa numa manhã ensolarada que está ainda por nascer”, pensava ainda.

“O cantar frio dos galos por entre os quintais cheios de árvores. Impossível acreditar que tudo o que existe já, no mundo, não seja, também, uma parte essencial de mim. Estou entregue”.

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Cristiano precisa entrar em contato com o silêncio que ele descobriu, por acidente, ser a reunião de todas as vozes - mas a sua voz também é o silêncio que canta e colore o vazio que o cerca.

A voz de Cristiano é tão estridente que ele mal consegue ouvi-la. Ele precisaria ainda de cem trilhões de vozes para que o seu silêncio fosse realmente inaudível.

Ele sabe que existe e, por isso, ele o sente. Essa coisa misteriosa a que chamam de vida continua a persegui-lo.

Os seus olhos estão abertos. Agora não estão mais. Estão abertos de novo. O que acontecerá quando eles se fecharem para sempre? Cristiano queria mesmo voar. Ele não sabe, mas, no fundo, a vida toda é um grande “adeus”. A própria vida lhe acena “adeus” todos os dias em que ele é forçado aceitar-se diante das imperfeições que lhe vão surgindo ao longo do caminho, assim naturalmente, como se lhes brotasse do solo vivo.

Cristiano é este solo vivo e irradia o vazio - longos espaços vazios circulados de vida.

Cristiano soprou tão forte que deu origem a todas essas coisas que existem no mundo agora. Ele é uma parte essencial de Deus. Foi o sopro de vida de Cristiano que fez nascer tudo o que há no mundo - ele criou o sol, a chuva e o vento da noite também. Enquanto Cristiano está vivo, o que o mantém ainda assim é a possibilidade de compartilhar as várias existências que o compõe. Cristiano estava ao lado de Deus naquele grande dia e

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ele sabe o que havia antes mesmo da própria criação. Cristiano viu Deus nascer e segurou-O até em seus braços com enorme carinho. Ele O segurou e aqueceu-O com toda a proteção que se é possível dar a um filho. Ele O viu dando os primeiros passos e o primeiro sorriso também: sorriso grande de criança forte. O que havia antes mesmo da pré-existência da própria pré-existência é o que Cristiano viu, mas não consegue entender.

Cristiano não se lembra com tanta clareza de todas as coisas que viveu, ou, se ele lembra, não encontra os termos necessários para traduzir. Algumas coisas serão sempre indizíveis. Ele tenta, com grande esforço, lembrar-se de alguma coisa que lhe seja útil para, quem sabe, dormir em paz.

Antes de Deus criar o Universo havia silêncio grande. No princípio, Ele disse: “que se faça a luz”, e foi feito o

grande erro porque, se existe a luz, deve existir também a ausência dela e toda ausência é podre.

Mesmo estando mergulhado em Sua infinita sabedoria, Deus cometeu o erro grave.

Mas Cristiano sabe que, inclusive Ele, pode errar. Esse vazio que se sente agora é a Sua presença diante de tudo o que há no Universo. Inclusive Cristiano também é parte essencial do Universo que ele desconhece - por isso essa sensação tão vazia e forte.

Não há mais, no entanto, o que dizer nem ao menos a quem falar. Mesmo assim ele precisa continuar, pois enquanto vai falando, Cristiano tem certeza de existir ainda. Ele não pode

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acrescentar um ponto final nessa coisa meio desconhecida e incerta que existe agora entre ele e a própria vida - Cristiano continuará para sempre: tudo o que ele tem a dizer nunca acabará. Tudo o que Cristiano se tornou não possui um início próprio, assim como, também, nunca terá um final bem acabado. Ele o é desde sempre. Desde que o mundo passou, finalmente, a ser mundo, o céu era já tão azul como fora desde os seus tempos de criança. Ele gostava, quando criança, de observar o céu enquanto morriam as tardes.

O pesadelo de Cristiano: certa vez sonhara que, ao chegar dentro do mundo, todas as coisas estavam ainda em construção: os anjos harmoniosos caminhavam colocando todas as árvores, as paredes e as pessoas no seu devido lugar. Cristiano entrava e dizia: “o que está acontecendo aqui?” Os anjos se escondiam rapidamente quando ouviam sua voz surgir assim tão de repente.

“Você não deveria estar aqui agora, Cristiano”, dizia um deles lá de longe, mas era tão longe que ele nem conseguia vê-lo. “Aonde eu deveria estar então?” perguntava ele espantado. “Volte para o lugar de onde você veio”, respondiam. “Mas eu não sei de onde eu vim. Eu não tenho para aonde ir!” E começava a chorar como um doido por não ter para onde ir. Depois olhava o relógio. Ele marcava. Esperou que todas as coisas fossem sendo colocas em seu lugar - todas as árvores, as paredes e as pessoas - esperou que todas as coisas fossem colocadas em seu lugar e, quando parecia que estava já tudo

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terminado, ele olhava o relógio novamente. Ele marcava ainda o mesmo instante que o de tempos atrás. Todas as coisas, todas as pessoas - a vida inteira era um enorme teatro. As pessoas que o cercam existem somente enquanto durar a peça, depois disso, cada uma delas irá para a sua casa.

Cristiano não tem para onde ir. Estar completamente sozinho no mundo é a liberdade mais

dolorosa que se pode existir. Estar completamente sozinho no mundo não deveria nem

mesmo ser visto como uma espécie de liberdade e, no entanto, ela o é. A liberdade perigosa de existir. Existir é um fardo, sabia Cristiano. Um fardo necessário.

As árvores estão libertas mesmo quando as raízes rochosas lhe prendem no solo duro? Sim. Estão libertas das agonias que nos limitam. Árvore é árvore aonde quer que ela vá. Quanto a nós, precisamos estar em constante ebulição. O apartamento estava escuro, triste e vazio. Olhou ao seu redor - continuava vazio ainda. Estava completamente suado. A sua cama era oca, Ulisses continuava seu sono profundo. Não havia chão nenhum que pudesse suportá-lo. Pisar no chão seria crime. Fechou os olhos novamente - era como se os mantivesse ainda abertos. Aos poucos, Cristiano fora se recompondo do pesadelo. Não havia por quem chamar: ninguém o compreenderia, mesmo Ulisses – que é o mais apto a compreendê-lo. Tocou o chão frio com a ponta dos dedos: sim, estava tudo ali. Depois, sentou-se devagarinho como se pedisse perdão por estar vivo ainda. Estava

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meio desesperado. Algo estaria por acontecer - algo que o mudaria para sempre estava por acontecer.

A realidade começava agora a se reconstruir ao redor do apartamento escuro de Cristiano. Os lençóis quentes, as flores: tudo estava novamente no lugar que lhe era devido. Ele permanecia imóvel, como se olhasse muito estranhamente o teto do seu quarto. Pensou, de repente, “estou entregue à vida e, ainda que não bastasse, preciso correr contra um tempo que parece querer me enterrar a cada segundo que o relógio, da parede, vai contando, contando”. O relógio era alto, silencioso. Cristiano o olhava fixamente quando, finalmente, uma ideia nasceu tão de repente que, para não perdê-la no ar, ele logo se lançou ao que houvera lhe surgido.

Tocou o chão frio, áspero. Caminhou lentamente e, ao se deparar com o relógio que agora o assombrava, sentiu que ele era, sim, mais forte que aquele objeto. O abraço forte do tempo o tomava por completo - era abraço materno, como se, em sonho, Cristiano estivesse sentido a realidade. “Este relógio continuará contando, contando, contando por toda a eternidade, inclusive as horas que eu não mais possuir para mim”, pensou. Lá fora o dia se misturava ainda ao escuro grande da noite e, juntos, produziam uma cor meio indizível que se espalhava desde o horizonte. Estava frio e Cristiano permanecia ainda imóvel diante do tempo. Aquilo que lhe surgira há pouco certamente não serviria como solução para nenhum de seus medos, no entanto, quem sabe lhe acalmasse o espírito.

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Retirou o relógio da parede num só golpe e, mesmo sem nenhuma pausa, lançou-o ao chão desfazendo-o em pedaços.

Havia ainda a obrigação de viver. Todas as pessoas que o cercavam - todas sempre tão alegres - todas as pessoas lhes diziam que havia, sim, a obrigação de viver. Era mesmo possível ser feliz, deveria acreditar Cristiano. E lembrava-se de Ulisses, ao seu lado, compartilhando a vida dele com a sua. Assim como Ulisses, milhões o repetiam todos os dias: o grande sentido da vida. E todas as coisas pareciam confundir-se cada vez mais.

“Lembra-se, Cristiano, quando, em nosso primeiro passeio juntos, fomos à piscina numa manhã feliz de sábado. E era como se toda a nossa vida estivesse por começar naquele instante - como se estivesse mesmo por começar naquele dia!” Recordava Ulisses. “Naquela noite mesma, fomos jantar fora com alguns dos nossos melhores amigos. Foi uma ocasião muito divertida”.

Depois, relembrar todos aqueles passeios antigos lhe faria muito bem. Todas as suas lembranças, muitas de suas alegrias, ficaram guardadas naqueles tempos em que o trabalho lhes tomava quase a vida inteira. Agora a carreira, o casamento: sim, era muito bom estar vivo. Era muito bom acordar bem cedo e respirar profundamente aquele ar meio gélido de cada manhã.

O que, então, lhes faltava? De onde surgiam todas aquelas coisas meio sem significado?

Teria essa mesma oportunidade, ainda que daqui a

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cinquenta anos? Não compreendia o funcionamento do tempo - não compreendia como os objetos sólidos, ou mesmo as pessoas - iam se desfazendo no ar; até que, de repente, não restava absolutamente nada de uma vida inteira.

As horas não passavam - ainda que os ponteiros caminhassem caminhassem caminhassem, as horas não passavam e Cristiano sentia como se estivesse dentro de uma noite estranhamente feroz: estranhamente sem fim. Os sons da madrugada o perturbavam - os curiosos sons daquilo que nem mesmo parece existir. Quando acabaria o seu pesadelo? A barata permanecia morta ainda sobre o chão frio da cozinha.

Morta ainda - agora em decomposição: desfazendo-se no ar de acordo com o seu mais estranho medo sobre o tempo. E o sopro de vida da barata, por onde estaria? Existia? Certamente, sim - bem como todos os outros bichos que viviam por aí. Até mesmo o microscópico inseto que nem mesmo Cristiano era capaz de perceber possuiria também um sopro de vida estranhamente próprio. Somente isso explicaria essa busca sem fim que todos têm pela vida.

Fechou os olhos mais uma vez e tentou acreditar que estava dormindo tranquilamente como o fazia sempre antes dessas ideias absurdas lhe invadirem o espírito.

Fechou os olhos, mas, logo, a aparente tranquilidade dissolveu-se em um estranho vazio e Cristiano sentiu como se estivesse caindo, caindo, caindo.

E mesmo que tentasse apanhar com as mãos qualquer

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estrutura sólida para sustentar-se, não havia nada o que apanhar.

Estava completamente sozinho caindo, caindo. Desesperou-se. Não havia exatamente lugar algum por onde

seu corpo estivesse atravessando - nem mesmo o vazio. Mas como poderia estar caindo então? De onde surgia

aquela sensação estranha? Morrer é estar caindo? Não havia mais como suportar tamanha angústia.

Acordou em um sobressalto. Estava ainda em seu quarto. Mais um pesadelo houvera assolado o seu espírito.

Água. Tomaria um enorme copo com água e todas as coisas voltariam ao lugar de onde nunca deveriam ter saído. Estava enlouquecendo? Não. Tinha sede ainda, pois, com o susto da barata ele próprio esquecera da água. Voltaria até a cozinha? Teria ainda a coragem necessária para tanto? Não sabia exatamente o que fazer.

Era completamente possível ainda sentir o cheiro de morte que vinha da cozinha. “Por que todas as criaturas vivas possuíam esta sede pela vida?”, perguntava-se Cristiano.

Até mesmo aquela barata pré-histórica que estupidamente vagava pela casa dentro da madrugada sem fim tinha também a sede incalculável pela vida. Isso a aproximava ainda mais de qualquer ser humano racional.

Voltou à cozinha. Seus passos leves se perdiam no escuro da

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madrugada. O ronco distante de um automóvel espalhava-se no espaço. Abriu o armário e cuidadosamente retirou o copo transparente. A barata continuava no chão.

Se observasse mais de perto, veria que as suas antenas se mexiam ainda. A vida continuava ali – a grande sede de vida. Seria assim com qualquer criatura viva? Aquilo era mesmo algo espantoso. Cristiano colocou o copo sobre a pia e debruçou-se no chão. Seu corpo estava quente. Olhava a barata mexer as suas antenas – olhava a barata, na verdade, sob um ângulo que nunca, em toda sua vida, houvera visto.

Ficou, como um tonto, deitado ao lado da barata. Quem mais, ali, clamava pela vida? Teria ele, por ser humano, maior direito de viver? E todas as criaturas sólidas que vagam pela noite escura – que passeiam sobre o jardim, voam sob o céu escuro da madrugada: todas as criaturas vivas não seriam também uma parte sagrada de Deus? A racionalidade que todos tanto lhe impunham o faria melhor que todas as coisas? Deitado ali, sobre o chão frio, Cristiano se sentia igual à barata: completamente despido de qualquer direito. O ar quente que ele expirava fazia marcas no assoalho. A mancha branca deixada pela barata ao se arrastar – o cheiro da morte se misturava ao próprio cheiro quente da vida. De repente, uma lágrima que desabrochava da face imóvel de Cristiano. Virou-se um pouco e lançou agora o seu olhar triste sobre o teto imóvel do apartamento. Respirou fundo e fechou devagar os olhos. Haveria ainda tantas tardes tranquilas por viver. Enquanto permanecia

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de olhos fechados, sentiu como se um corpo pousasse cuidadosamente sobre o seu num enorme abraço. Cristiano deixou ser entregue àquele afago perdido na madrugada – sentiu, então, uns lábios doces tocarem os seus. Ao abrir os olhos muito tranquilamente, viu que Ulisses tinha agora pousado a cabeça sobre o seu peito quente.

“Estou tão assustado”, disse Cristiano silenciosamente. “Estou tão assustado”, repetia ele ainda.

“Quando todas essas coisas passarem, todas essas sensações, este medo; eu espero que você continue ao meu lado e então, tudo será diferente. Poderemos ser livres de novo”, disse Cristiano que, ao fechar os olhos e tentar tocar os cabelos macios de Ulisses só então percebera que estava sozinho diante da barata já agora sem vida. “O que estou fazendo?”, pensou. Levantou, assim, num sobressalto e colocou um pouco de água no copo. Somente então, ao tomar o primeiro gole, olhou diante da janela e percebeu que o dia já começava a nascer. Os primeiros raios tímidos de sol se mostravam ao longe no horizonte. Talvez se vestisse para mais um passeio qualquer – ou permaneceria em casa enfrentando todas as possibilidades que insistiam em existir.

Permaneceu imóvel ainda. Esperou que a água escorresse no interior de todo o seu corpo. Era mesmo possível conseguir descansar com aquele aperto forte de Ulisses contra o seu peito? Assustou-se, no entanto, com o barulho vindo de fora do apartamento. Ouvira a voz de Ulisses chamando-o na avenida.

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Foi até a janela e procurou dentro da escuridão algum sinal de vida que fosse. Sim, pensava ele, ouvira a voz de Ulisses chamando-o lá fora: Cristiano! Cristiano! Dizia. Saiu finalmente da cozinha e meteu-se diante do enorme corredor.

Todas as luzes apagadas, o ar fresco da madrugada em riste: não teve medo nenhum, certamente, pois, confiava muito em Ulisses. Lançou-se através da avenida enorme - todas aquelas pedras, as árvores… parecia que a voz de Ulisses ficava cada vez mais distante. Procurou-o por entre todos os cantos, através de todas as ruas e, inclusive, dentro da praça também diante do prédio em que viviam tranquilamente desde que passaram a morar juntos. Lá, a escuridão prevalecia em absoluto - podia ainda ouvir ao longe os passos de algum animal que o observava assustado.

Não havia absolutamente nada. Estava sozinho e perdera toda a sua tranquilidade - caminhou sobre o asfalto frio que jazia morto, triste e só. Era possível ver ao longe os primeiros raios de sol meio alaranjados que rasgavam o horizonte em festa - alguns pássaros também contornavam o silêncio com o seu canto, anunciando manhã que estava por vir.

Uma terrível angústia lhe tomou o peito, de repente. Era possível ouvir ao longe os chamados de Ulisses - era tudo muito nítido em seus ouvidos. Passou a procurá-lo por entre todas as ruas, atravessando-as, inclusive, aos montes.

Gritou por Ulisses algumas vezes até e desesperou-se diante daquela busca incapaz de ser alcançada.

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Gritou novamente como se esse fosse o modo mais eficaz de reconhecer onde estaria ele agora.

Por um segundo, parou finalmente. Sentou-se e, por pouco, não desabou sobre o chão frio que parecia pertencer-lhes de certa maneira tão viva - sentiu o seu coração pulsar em saudade. Saudade de si mesmo, até.

“Morrer é assim?”, perguntou-se. Morrer é estar completamente sozinho diante do dia que começa a nascer?

De repente, o portão do prédio aberto. Alguém diante da porta e a madrugada morrendo aos poucos. “Ulisses!”, pensou Cristiano. Sim. Era muito nítida toda aquela visão. Cristiano caminhou em sua direção até que ele, ao reconhecê-lo, lançou-se também aos seus braços. “Cristiano!”, gritou Ulisses assustado.

Depois de alguns instantes - quando o sol estava já por nascer - Cristiano acordou finalmente do susto. Ulisses não o esperava na porta. Ulisses teria morrido, mesmo enquanto o dia começava a nascer cheio de vida? Cristiano ainda atordoado: “impossível que tudo aquilo seja meramente criação de minha cabeça - tudo estava tão nítido! Era mesmo possível ouvir a sua voz!”. Ninguém o compreenderia, certamente.

“A realidade é essa coisa da qual faço parte? Essa coisa absurda que cada vez mais me distancia da vida - vida de verdade? Não é possível que eu esteja novamente caindo no discurso da Criação”. Caso houvesse algum sinal de vida ou, talvez, uma esperança, Cristiano seria lançado à sua mais antiga culpa por nada ter feito.

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A morte era uma simples questão de aceitação e comprometimento com a eternidade. Haveria, certamente, algo por vir depois de lacrados os olhos de tudo o que há de sólido no mundo - mas as coisas insossas devem possuir algum significado e, para nós, somente parecem insossas porque na verdade, elas não são.

“Meu Deus, dizia Cristiano, não sei o que fiz de mim mesmo - não sei o que fiz das pessoas que vivem ainda ao meu redor”. Para ele, Ulisses não estava mais ao seu lado. Cristiano continuou perturbado na manhã seguinte. E se Ulisses o deixasse, como viveria? Resolveu dali mesmo, então, preparar um café da manhã todo especial. Arrumou a mesa, os pãezinhos frescos, as frutas recém-colhidas, as janelas abertas.

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8. Crepúsculo Amor. Cristiano pensou, desde a infância, que este sentimento o tomaria por completo e o faria a pessoa mais feliz de todo o mundo. Quando soava, a palavra “amor” mais parecia aquela coisa sobrenatural capaz de domesticar qualquer criatura selvagem. De repente, Ulisses parecia, para ele, um bicho meio selvagem, capaz de fugir a qualquer instante e, por isso, embebido pela palavra “amor”, quem sabe, ele permanecesse ao alcance de Cristiano.

Naquela tarde, enquanto Ulisses não havia ainda voltado do trabalho, Cristiano sentou-se um pouco no chão da sala – com as janelas abertas e o vento fresco de fim de tarde invadindo todo o apartamento – e sentiu o frio que começava já a fazer anunciando a noite que logo seguiria. O barulho distante da rua, as pessoas de quando em quando no corredor do prédio e a sensação absurda de que ao passo em que a qualquer momento Ulisses logo apareceria para continuar vivendo ao seu lado, havia ainda a possibilidade dele jamais retornar e, até mesmo, decidir voltar à vida que ele levava com a esposa raquítica e o filho.

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Tentou retomar a consciência, enquanto levantava. Caminhou até a cozinha pequena, tomou um copo nas mãos com água excessivamente gelada e pôs a beber gole a gole, pois estava seco de sede. Acendeu a luz da sala e, da janela aberta, um violino distante tocava meio fora do tom. O mar permanecia ainda calmo, preenchido de frescor e escuridão já àquela hora. O silêncio possível tornava todas as coisas meio sombrias e ameaçadoras para Cristiano – o mais breve silêncio que fazia àquela hora da noite lançava-o a mais terrível solidão que alguém no mundo seria capaz de conceber. O mundo todo se esvaziava completamente de vida humana. O violino parou com a sua música estridente, o som distante dos carros preenchia agora todo o espaço vazio. Os passos no corredor não eram de Ulisses – Cristiano bem o conhecia; talvez o vizinho chegando do trabalho assim como todas as outras vezes. Havia ainda a opção do voo em pleno oitavo andar: havia a possibilidade de se manter inteiramente desligado de todas essas coisas que tanto assolavam o seu coração, mas esta, quem sabe, não fosse a solução mais coerente para o que Cristiano planejava ainda ao lado de Ulisses. A força estranha da solidão o tornaria mais humano, derramaria sobre o seu peito a sua própria vida e tudo o que está ligado a ela, depois rastejando, absorvê-lo-ia cada centímetro do seu corpo esguio.

A janela aberta o tomava como a uma possibilidade qualquer de libertação. De repente, os braços abertos como em preparo para o voo, o mundo se desfazendo completamente à

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sua volta e o impacto final no solo duro e seco. É possível morrer, pensou Cristiano. No entanto, a vida inteiramente completa e feliz que levava ao lado de Ulisses o fazia redobrar a consciência. A terrível liberdade de existir o tomava agora e felicidade nenhuma no mundo o faria novamente enfrentar todas as coisas que outrora enfrentara em nome deste sentimento por Ulisses.

— É possível morrer. O seu rosto quente era adocicado e gentil. Sua mãe, certa

vez, falou-lhes sobre como era ele um garoto especial que mudara completamente o rumo de todas as coisas na casa. Sua chegada, na época, fora festeja com grande entusiasmo por todos ali envolvidos e, por isso, ele nasceria nesta promessa de concertar todas as coisas na vida das pessoas que estavam ao seu redor. Era imenso demais o amor que ele nutria pelo próprio mundo. A morte seria súbita e débil, depois toda aquela papelada, uma ambulância retirando o seu corpo da rua quente, os curiosos em volta: aquele seria mesmo um fim inteiramente desagradável para ele, sempre acostumado ao mínimo de conforto e comodidade em todas as suas decisões. No entanto, retomou ainda a consciência, Cristiano passaria agora a ser apenas um peso morto e só. Não estaria presente para resolver absolutamente nada em relação à sua própria morte. Apenas a ausência eterna de si mesmo que ecoaria por entre todos os dias que deveriam seguir indiferentes de qualquer coisa. Depois o sol amanhecendo novamente, as ruas claras, completamente

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iluminadas, as pessoas novamente repletas com suas vidas fartas e, finalmente, a noite morta, em silêncio.

Sobre a mesa pequena – diante das quatro cadeiras tímidas – havia o vaso antigo com algumas flores suaves; azuis como o céu e inteiramente sobrepostas à natureza morta do apartamento pequeno, vazio. A toalha sua avó mesma bordara e lhe dera de presente quando Cristiano saíra da sua casa. Os móveis todos da cozinha pareciam sobreviver sem a presença desprezível de Cristiano – todos aqueles objetos pequenos, as compras feitas ainda naquela semana para os dias seguintes, os pequenos potes transparentes com os grãos e o café preto, estúpido: era este o mundo que Cristiano sempre sonhara desde os seus tempos mais remotos da adolescência.

Cristiano retomou a consciência – tentou deixar um pouco de lado a sua obsessão inexplicável pela morte e passou a observar todas as coisas que conquistara até então, diante do trabalho duro que dera. Se preparasse o jantar, logo Ulisses estaria no apartamento preenchendo todo aquele espaço morto com a mais pura alegria viva que se pode existir. Depois do jantar, alguma coisa na televisão e assim suceder-se-iam todos os dias e anos seguintes – se é que se pode acreditar na possibilidade de Ulisses acompanhar Cristiano ao longo dos próximos anos de sua vida. Mesmo assim, pensava, era importante que ele estivesse aqui e agora: era o suficiente. A força que tinha sua presença sobre a vida de Cristiano era, sim, algo inacreditável – ele o cobria com toda segurança que alguém

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precisava mesmo possuir. Desceu as escadas, triunfante, seguiu pelo saguão de

entrada, quase vazio se não fosse a presença estranha e constante do porteiro que raramente lhe emprestava qualquer atenção. Na rua, um jovem o observava sentado na pequena mesa de uma lanchonete qualquer de esquina. Cristiano sentia toda liberdade que se poderia existir naqueles pequenos instantes. Esquecia-se completamente de Ulisses e pensava, divertido, que seria muito engraçado convidar um desses jovens quaisquer que há aos montes na cidade para uma dormir ao seu lado em seu apartamento.

Depois prepararia uma comida rápida, observaria o horizonte de sua janela e o corpo do jovem desconhecido sobre a sua cama, em sono profundo. De repente, Ulisses não mais existiria de forma alguma em sua vida. A sua presença estranha, a sua segurança, o seu modo sempre constante de olhar se esvaziaria por inteiro e, quem sabe, apenas assim, Cristiano saberia o que a vida lhe havia reservado. Era dolorosa aquela prisão a que ele se submetia em nome do amor que sentia – e escolhia manter vivo – por Ulisses. Ulisses, bem sabia Cristiano, mantinha ainda a esposa e o filho sob sua proteção também; e, por isso, Cristiano se perguntava agora se seria mesmo traição dormir com um corpo qualquer destes que o circulavam na cidade. Um súbito desejo tomou todo o seu espírito. O rapaz continuava observando-o meio de longe, disfarçado, enquanto Cristiano fingia esperar por alguém olhando, impaciente, o

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relógio. Depois seguiu para a padaria e comprou alguns pães frescos. Voltou para o apartamento. As pessoas na rua pareciam evitar a sua presença estranha, pareciam querer esmagá-lo como a um inseto perigoso. Fechou a porta e pode, enfim, sentir-se um pouco mais seguro de novo.

Sentiu-se um pouco mais feliz ao observar o jovem que também o desejava? Sentia-se um pouco mais feliz mesmo diante da ausência de Ulisses? Era possível seguir sua vida sem ele?

Preferiu não pensar. Observou, do seu apartamento, a rua abaixo, as pessoas

caminhando apressadas, a noite que já se sobressaía diante da cidade enorme. Ulisses não precisaria saber... Pensou ainda. Por que ele não poderia tentar viver de verdade?

Um pouco de música talvez diluísse aquela estranheza que agora o acobertava de maneira tão íngreme. Cristiano permanecia ainda sobrevivendo através dos poucos movimentos que o compunha: parecia deslizar diante da aspereza grande da vida e, por isso, a música talvez o empregasse uma calma que verdadeiramente não lhe é própria, no entanto, lhe é extremamente necessária. A música o tornava a mesma criança pueril e humilde que sempre fora desde os tempos na casa da avó. Sentia uma nostalgia imensa, uma vontade grande de retomar aquela mesma vida tranquila e descrente em relação às

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coisas grandes de si e do mundo. As mesmas notas dissonantes, a mesma voz adocicada: aquilo era capaz de lhe fazer a criatura mais humana que poderia existir. Aquela sensação o lançava ao mais doce abismo da morte, da saudade e da grandeza de certos espíritos.

Seguiu até a cozinha, imaginou ouvir os passos distantes de Ulisses – com a sua voz meio estridente reclamando de alguma coisa qualquer, algum descuido de Cristiano na casa. Caso ele se recordasse bem, Cristiano perceberia que desde o aparecimento de Ulisses – mesmo em circunstâncias tão adversas – era possível, pensava, era possível perceber que sua vida melhorara significativamente. A maçã pousada sobre a mesa, a maçã com a sua mesma estrutura desde os tempos mais remotos da Antiga Roma. Nenhum movimento, no entanto, parecia conseguir tomar na boca aquele sabor úmido e adocicado da maçã.

De repente, enquanto aproximava-se vagarosamente até a maçã colocada matemática sobre a mesa em perfeito equilíbrio com todas as coisas – com o próprio prédio imenso que vivia, no oitavo andar – enquanto aproximava-se, Cristiano sentia aumentar em si a mesma insegurança que, na adolescência, tanto o atormentava. Uma fadiga se sobrepunha ao seu próprio espírito, a mesma vontade de lançar todas as coisas que tanto o assolavam janela abaixo e, quem sabe, tentar uma vida mais próxima ao que realmente aquietava o seu coração. Cristiano era o único culpado. Há somente um culpado no amor para que todos, no entanto, quase sempre saiam feridos.

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Houvera passado alguns minutos ou mesmo três mil anos? O sol desaparecera sob o horizonte.

Cristiano lembrara-se, subitamente, das tardes imensas em que, junto à sua tia, permanecia quase imóvel mergulhado ao som triste e cadente do piano clássico em que esta estava quase sempre envolvida. “A música, sem dúvidas, é a maior grandeza que qualquer ser humano é capaz de guardar nessa vida”, repetia ela diante dos olhos curiosos de Cristiano. Depois, o disco imenso na vitrola compacta e, finalmente, Debussy.

— É inconcebível, Cristiano, que o mesmo recado que nos foi dado por um homem inteiramente desconhecido pelo mundo moderno esteja ainda tão claro e dissonante a partir da sua mais perfeita criação artística. Dizia a tia meio abobalhada enquanto se deixava levar pelos tons de Clair de Lune. A música o tomava por completo e uma sensação quase absurda de total desprendimento do mundo físico absorvia o corpo do garoto que permanecia ainda deitado, com a tia, no quarto quase escuro de tarde chuvosa. Se ouvisse, mais uma vez, agora em seu apartamento a mesma canção que a tia ouvira tantas vezes ao longo da infância de Cristiano, certamente a mesma sensação de desprendimento, misturada à mais pura nostalgia que se é possível sentir do seu tempo de infância, quem sabe, preenchessem o coração de Cristiano. Depois o remorso amargo: entregara-se inteiramente a um homem que jamais o amaria de verdade, alguém que jamais entregaria para Cristiano a sua vida.

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Em seguida, ainda nas mesmas tardes tristes, sua tia procurava também ouvir algo um pouco menos triste, alguma canção capaz de preencher com o mínimo de cores possível o cinza que insistia existir no céu imenso, nublado e frio. As guitarras elétricas logo surgiam, as vozes meio estridentes muito comuns naquela época em que Cristiano não passava ainda de uma criança ingênua, boba e só. A mãe logo batia na porta chamando-os para o jantar e repetia com aquela fraternidade materna típica que qualquer dia desses, a tia enlouqueceria o garoto. Enlouquecer, para a tia, seria o mesmo que encontrar-se, verdadeiramente, naquele mundo de retardados. Sua avó logo se fazia notar comentando o quanto a tia houvera se revolucionado após o contato com aquelas músicas inteiramente novas que se repetiam no próprio rádio e na TV.

— Bobagens, minha mãe... bobagens... Cristiano, àquela hora, preso agora na TV, precisava quase

sempre ser arrastado para que, junto com os demais de sua família, mantivesse a mesma tradição de jantarem todos à mesa.

— Esse menino qualquer dia desses enlouquece... Cristiano se sentia grato e confortável, mesmo diante das

adversidades que surgiram ainda no casamento da mãe, mesmo diante da ausência do pai – com os seus compromissos quase intermináveis e o olhar sério que mantinha quando o via – Cristiano era inteiramente livre para escolher aquilo que o faria verdadeiramente feliz, como dizia sempre sua tia: o menino logo terá oportunidade de fazer-se grande e, assim, trilhar um

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caminho completamente novo que ninguém na família houvera ainda trilhado. Deverá ser artista, repetia a mãe. De vez em quando a outra tia aparecia também para o jantar: qualquer dia desses eu o levo para casa, pois os primos sempre o convidam para passar uma tarde qualquer com eles nessas férias. E continuava falando ainda da vida feliz que construíra ao lado do marido e dos filhos pequenos que este lhe proporcionara de repente.

— Tenho certeza que, qualquer hora dessas, você ainda retoma o seu casamento, minha irmã...

Retomar aquela vida ao lado de um homem que não a amava por completo? Perguntava-se a mãe.

— Uma pessoa nunca a amará verdadeiramente, continuava a irmã, porque somos, nós mulheres, no fundo, os seres mais desconhecidos que podem existir no universo. Ninguém nunca nos amará do modo exato que merecemos ser amadas porque nem mesmo nós somos capazes de nos conhecer no sentido mais amplo de nossa essência. Daí a necessidade do perdão, daí a necessidade cada vez mais urgente de que compreendamos que nossos homens, eles próprios, desconhecem a nossa natureza mística e, mesmo assim, arriscam-se a estar ao nosso lado.

Cristiano observava os pratos quase vazios de todas aquelas mulheres diante da mesa – a avó, sempre tão cordial e compreensiva; a mãe, que mais parecia uma flor aberta; e as tias que conversavam de maneira alegre e mesmo assim distinta.

— Somos um mistério para nós mesmas...

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Depois, foram todas para a sala e, enquanto tomavam algumas taças de vinho, conversavam ainda alegremente sobre aquelas antigas distinções entre elas próprias e os homens.

A natureza imaterial de uma mulher, diziam, está acima da sua condição física. Uma mulher se faz, por assim dizer, a partir da sua essência imaterial, a partir do seu perfume adocicado e feroz, mesmo ela estando em um corpo inteiramente desconfortável e desconhecido.

— Ulisses... Ulisses, repetia agora Cristiano sozinho. Como era possível conceber que Ulisses – o seu Ulisses –

houvera se entregado à natureza desconhecida de uma mulher, como era possível que aquele corpo – que era unicamente seu – havia de se deitar no colo quente e letífero de uma mulher. O seu corpo nu, em êxtase.

— Cristiano? Perguntou, de repente, uma voz. — Sim? Respondeu ele. — O que faz aí sozinho, no escuro? — Tudo. Vagarosamente, o corpo de Cristiano foi retomando a sua

forma física, percebendo todas as coisas que havia à sua volta e, substancialmente, as lembranças da infância se distanciavam mais e mais a cada segundo em que ele, meio assustado com a luz agora acesa que Ulisses, meio cansado, acendera para encontrar um objeto qualquer na cozinha e perguntar o que fazia ele ali, completamente sozinho, em devaneio. A maçã permanecia ainda sobre a mesa, agora iluminada. O silêncio da

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casa enfim quebrado dava espaço para o corpo enorme de Ulisses que abria o refrigerador e tomava um pouco de água, enquanto falava alguma coisa qualquer do trabalho recém-conquistado. Depois reclamava do trânsito que, cada vez mais, tornava a vida naquela cidade um inferno e, por fim, aproximava-se de Cristiano ainda em silêncio, observava-o diretamente nos olhos e tentava contornar a sua face meio desconcertada de como levar a vida. “Por acaso, estava – perguntou Ulisses – por acaso estava devaneando sobre a maionese outra vez, como hoje de manhã?” Cristiano sorria meio encabulado. “Quanto a qualquer devaneio – respondia ele – mais vale um cachorro morto”. A janela ainda aberta os lançava à cidade enorme que persistia existir ainda sob o horizonte, dentro da noite imensa que fazia àquela hora.

Cristiano lhe contara sobre como, enquanto pensava o que preparar para o jantar, havia lembrado as tardes chuvosas com a tia, ou mesmo as noites intermináveis com a família no jantar. Era mesmo improvável que todas as coisas vividas outrora voltassem com a mesma intensidade quando havia enquanto estas aconteciam, mas, de forma alguma, isto desconsiderava a possibilidade de se manter na memória todos aqueles momentos bons para que, vez ou outra, eles viessem à tona e encobrisse Cristiano de certa calma necessária à vida naquela cidade infernal – como dizia sempre Ulisses.

Ulisses, depois de certo momento, enquanto tomava ainda a água, pousava – meio rispidamente – o copo frio sobre a pia e

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tirava a camisa quente que, por sua vez, revelava o corpo forte e suado de homem que ele sempre preservara mesmo durante o casamento com a mulher e o filho. Cristiano o abraçava – assim mesmo, suado – e, por um instante, fechava os olhos tentando imaginar como seria a sua vida sem aquele calor imenso que irradiava do corpo enorme de Ulisses, sem aquela força estranha que lhe era tão necessária para enfrentar todas as coisas a que estava submetido, mesmo naquela forma de vida que mantinha agora, desde o início da sua fase adulta. O corpo de Ulisses era quente, úmido e carregava consigo ainda o cheiro forte do perfume que o próprio Cristiano lhe dera no último aniversário – aquele cheiro meio amadeirado e doce, muito próprio.

Ulisses observava Cristiano naquela sua forma mais frágil e insegura – com o mesmo olhar meio perdido e indiferente em relação a todas as coisas a que estava submetido na vida suburbana que levava. Os seus olhos eram imensos, castanhos e vivos. Ulisses correspondeu ao abraço de Cristiano e permaneceram ainda na cozinha, diante da maçã enorme que servia como testemunha frente à grandeza que era a entrega ali de ambos.

— Estive hoje tão assustado, disse Cristiano. Ulisses o observava agora mais diretamente: — Por quê? — Senti hoje, mesmo de repente, a sensação que seria se eu

o perdesse... Ulisses sorriu meio desconcertado:

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— Ora, Cristiano... — Parecia de verdade... — E por acaso você acha que eu posso, assim de repente,

desaparecer completamente de sua vida? Acha mesmo que eu seria capaz de fazê-lo?

— Não, não acho. Ulisses o abraçou ainda mais forte, tomou o corpo inteiro

de Cristiano e prendeu-o sobre o seu. — Talvez por ficar tanto tempo sozinho em casa essas ideias

absurdas tenham lhe acontecido. — Talvez... — Mas agora eu estou aqui ao seu lado, não é? Não precisa

mais sofrer por causa dessas ideias absurdas. Cristiano sorriu. — Não chega a ser um absurdo, mas uma possibilidade. Ulisses o olhou, meio espantado: — Uma possibilidade remota, digamos... — Que, mesmo por isso, não deixa de existir. — Você está obcecado com essa ideia. — Não, não é uma obsessão. Ulisses voltou ao seu copo com água. Cristiano passou a mão sobre o corpo de Ulisses, tocou-lhes

as costas, depois sobrepôs as duas mãos no ombro do rapaz. — Eu o amo, disse ainda. Suas mãos representavam a sede imensa que Cristiano

sentia do corpo quente e forte de Ulisses. Cada vez mais os

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braços foram se encontrando aos poucos, o beijo quente e vivo de rapaz sobre as costas imensas de Ulisses, esfriando um pouco o seu espírito. Ulisses o tomou pelos braços, voltou a sua face séria sobre a face também reservada de Cristiano – o coração palpitando feroz – pensou ainda em falar qualquer coisa, mas logo desistiu, era inútil naquele instante qualquer palavra.

O mesmo corpo forte e estranhamente adocicado de Ulisses tornava a existência de Cristiano toda ela inteiramente mais intensa. Aprendera, ao longo destes últimos anos em que esteve ao seu lado, muitas coisas acerca da vida e sobre como os corações humanos podem assolar-se com o maior peso que pode haver uma ausência. O corpo forte, de Ulisses, era a maior obra de arte que poderia existir em todo o Universo: seu corpo imenso, sobre os lençóis meio amarrotados e extremamente brancos da cama, numa manhã qualquer em que juntos acordavam para enfrentar a insistência dos dias – não havia coisa alguma no mundo que se igualasse àquela visão, pensava Cristiano - “seu corpo, dizia ele, possui luz própria, é mesmo possível notar”.

Desde que observara Ulisses naquela esquina imunda, numa noite qualquer, todas as formas daquele corpo pareciam conduzi-lo a um estágio de vida mais elevado que todos os outros naquela cidade infernal. Depois, aquela troca já íntima de olhares – a conversação inteiramente ausente de palavras, os corpos mesmo distantes falando a língua universal, até que, de repente, Cristiano o convidara para uma bebida qualquer. Teria

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ele a mesma capacidade de fazê-lo com outro rapaz daqueles que existem aos montes nos becos e nas esquinas imundas da cidade? É provável que não, pensava Cristiano. Ele sentia, já de inicio, todas as coisas possíveis que viveria ao lado daquele homem, até então, estranho, daí a sua necessidade emergencial de entrar logo em contato.

Cristiano falando-lhe: — Espero que você não tenha acreditado que sou desses que

iniciam um diálogo possível qualquer com o primeiro que aparentemente se mostra interessado... Eu senti o quanto você era diferente desde o primeiro olhar.

— Eu não disse isso, respondeu Ulisses, eu já havia também percebido que você não estava habituado àquela situação.

Cristiano revirou-se um pouco na cama, sentou-se de maneira mais confortável enquanto o vento fresco da noite desabrochava da janela atravessando o quarto.

— Não me achou ridículo fazendo aquilo? Oferecendo uma bebida qualquer a um estranho...?

— Não, não achei. Cristiano sorriu, deixando transparecer um pouco a sua

enorme timidez de menino. Os olhos um pouco arregalados, a gargalhada macia, o rosto de Ulisses quase enterrado sobre o travesseiro. Depois silêncio. O barulho distante dos carros sobre as avenidas. Cristiano disse ainda:

— Mas fui. Ulisses sorriu também, levantou da cama e seguiu para a

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porta do quarto tomando, em seguida, o caminho da cozinha através do corredor. Cristiano o observava em silêncio – mas um silêncio comedido, inteiramente visual, ainda que a chama quente de um inferno assolasse o seu coração que palpitava feroz. Ulisses voltou com um copo repleto de água extremamente fria em uma das mãos, colocou-o sobre o criado-mudo, falou alguma coisa qualquer sobre sua sede noturna que, desde muito criança, ele era acometido. Cristiano ainda silencioso, fez que tomaria a água, por implicância, zombando de Ulisses.

Depois a mesma voz tranquila de Ulisses: — Não compreendo de que forma uma pessoa, assim como

você, é capaz de amar a mim. Cristiano permanecia ainda no mesmo silêncio seu habitual

das conversações noturnas, meio sorridente. — O que tanto o impressiona nisso? Perguntou. Ulisses não tinha ainda o domínio pleno das palavras para

expressar exatamente as coisas todas que se passavam em seu coração. Tentou falar alguma coisa, mas parou logo em seguida:

— Eu acho que...

— É mesmo pouco provável, digamos assim, continuou Cristiano, que eu não esteja definitivamente apaixonado, não?

Ulisses o observava agora silencioso. — É provável que a paixão tenha deixado de existir. Disse

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ainda. — O que restou, então? Cristiano parou um pouco, sentia-se meio envergonhado –

com a sua habitual timidez – em abrir-se assim. — A questão não é exatamente o que restou, tendo em vista

que os nossos sentimentos não seguem os mesmos padrões concretos e matemáticos. Não restou, porque todas essas coisas a que nos temos entregado não é, meramente, uma operação numérica qualquer. Os nossos sentimentos – falo como qualquer ser humano – eles tendem a evoluir, a transformar-se continuamente, mesmo quando nós menos percebemos. Confesso que inicialmente fui seduzido apenas pela sua força física e sua maneira singular de expressar-se naquela noite quente, mas, ao conhecê-lo melhor, pude perceber, no entanto, que o que há aí dentro, em seu coração, existe de uma maneira tão verdadeira que apenas alguns poucos são capazes de atravessar certas barreiras instransponíveis tal como tenho me aventurado. Finalmente, amor.

Ulisses o observava assim ainda mais tranquilo e curioso por desconhecer, até então, as declarações que Cristiano agora concretizava de maneira tão natural.

— A mera paixão física, atrativa, Ulisses, foi continuamente evoluindo para aquilo a que temos tantas vezes nos submetido, mesmo de maneira indevida; por isso, cada momento ao seu lado, conhecendo-o de certo ângulo que pessoa alguma no mundo fora capaz de te conhecer, cada momento ao seu lado

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reafirma apenas a certeza do quanto você é especial e incrível. Não pude me conter, lancei-me ao teu abismo, sem nenhum paraquedas.

Ulisses o abraçou – agora ainda mais forte – tomou o seu corpo por inteiro através daquele abraço afetuoso e quente – tal como um animal feroz que sente a fragilidade de sua cria e, por isso, para protegê-lo, agarrava-o de modo que nenhum mal que pudesse afligi-lo. Cristiano sentia milimetricamente a força estranha de Ulisses mesmo no interior daquele abraço afetuoso e, quando ele finalmente o soltava, Cristiano sentia-se como uma pedra minúscula lançada no interior de uma floresta escura, completamente desprotegido. Quando estava com Ulisses, pensava Cristiano, sentia-se finalmente em paz.

— É incrível, para mim, conceber que fugindo dos problemas com minha antiga mulher, tentando me distrair um pouco das dores de cabeça a que era submetido, eu encontrei o homem que mudaria para sempre a minha vida. Eu, jamais, seria capaz de prever que qualquer coisa parecida acontecesse...

Cristiano, ao lado de Ulisses, sentia-se ainda mais homem. Assim como Ulisses próprio também falava o mesmo: ao lado dele, toda a sua masculinidade se aflorava e não havia motivo algum no mundo que o faria sentir-se inferiorizado diante da sua relação com Cristiano. Não havia mesmo mistério algum diante daquele relacionamento: a natureza os fizera assim, e seria assim que Deus – imaginava Cristiano – os respeitaria como a Sua mais pura e fiel criação. Eis o amor, diria Deus, o

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amor em seu estágio mais sincero é a maior prova que há de minha existência. Deus, em sua infinita sabedoria, criara aquele amor extremamente sincero e bom para confundir ainda mais a cabeça dos homens.

— Não me sinto, de forma alguma, inferior em deitar-se contigo em nossa cama e nos prestarmos ao que há de mais divino no universo. Não me envergonho da maior felicidade que tenho sentido de maneira tão bruta, sem estereótipos, sem prescrições dogmáticas, sem especulações religiosas... O medo de amar-te, Ulisses, não existe mais.

Ulisses contava sobre todas as coisas que lhe aconteceram no trabalho naquele dia, sobre como as colegas sempre procuravam alguma forma de empurrar-lhes para uma aventura qualquer – mal sabiam elas da vida que Ulisses levava ao lado de Cristiano, afinal, era mesmo muito comum este desconhecimento da vida alheia em uma cidade como aquela imensa, com todo o tipo de gente que se pode existir em qualquer lugar do mundo. Aquela existência infinitamente desinteressante que todos os outros levavam em suas vidas, enquanto Ulisses se entregava a mais sincera forma de amor, era mesmo uma das maiores decepções que este percebia sempre que conversava com aquelas pessoas.

Cristiano, na semana seguinte, voltaria ao trabalho e, por isso, temia um pouco o fato de não mais estar plenamente disponível para atender Ulisses a partir de então. Acostumara-se com a vida tranquila que levava cuidando de todas as coisas, e da

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casa, enquanto Ulisses trabalhava fora. Ulisses, no entanto, repetia quase sempre o mesmo discurso de Cristiano sobre como era importante buscar, cada qual, a sua independência financeira em tempos tão complexos como aqueles em que viviam.

Aqueles dias últimos de férias, no entanto, deveriam fazê-lo muito bem: as mesmas manhãs ensolaradas – refrescadas apenas pelo que sobrou dos ventos frios de inverno – as manhãs ensolaradas, o rádio já ligado bem cedo e o café sobre a mesa inteiramente ornamentada. O trabalho sempre o consumia tanto, mal lhe fornecia qualquer possibilidade para Cristiano experimentar cuidadosamente cada sensação como aquela minúscula que é a manhã ensolarada banhada de sopro frio.

A noite permanecia ainda. Atravessava aquelas horas todas, lançava-se sobre o silêncio grande que logo quase toda a cidade faria. Ulisses, deitado sobre a cama imensa, fechava compassadamente os olhos, de leve, tentando, em vão, escapar um pouco do sono que o encobria. Cristiano, ainda muito vivo, observava-o atentamente, depois caminhava até a janela, olhava o mar.

Conseguira, até então, tudo o que sempre sonhara desde a mais tenra adolescência: houvera arrumado um trabalho, saído de casa, estava agora casado com alguém que amava verdadeiramente. O que mais esperar da vida? O mundo todo poderia, quem sabe, interromper todas as suas transformações e lançar-se ao mais puro modo estático para que todas as coisas

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convertam-se, plenamente, à eternidade? O mundo todo vivo teria mesmo essa capacidade?

Da última vez em que alguém tocara assim tão profundamente o seu coração, Cristiano pensou, “enfim, amor”. Lembrou-se, distante, de André, no entanto, todas as decepções, todos os desentendimentos que ocorreram em seguida o fez desconfiar de que certas coisas não possuem o mesmo tempo cronológico que foi como os seus avós, ou mesmo seus pais. A felicidade custava, sim, chegar para alguns, mas, certamente, ela logo viria. Bastava a paciência necessária para que ele, logo em seguida, lançasse-se novamente a esse abismo.

Cristiano despiu Ulisses cuidadosamente, com receio de acordá-lo. A camiseta que ele colocara depois do banho, a bermuda leve que ele mesmo escolhera da última vez em que foram fazer compras; depois o cobriu até a cintura com o lençol que sua avó mesma lhe dera quando Cristiano se mudou para aquele novo apartamento. A luz do quarto, agora, apagada – apenas a pequena luminosidade da cidade lá fora atravessando a janela e derramando-se sobre o assoalho do apartamento. De vez em quando, o vento entrava também, passeava pelo corpo semicoberto de Ulisses, desabrochava no corredor.

Cristiano voltou à cozinha – a mesa ainda posta da janta, os pratos espalhados. Lembrou-se subitamente do pesadelo que tivera, lembrou-se inesperadamente da barata morta sobre o chão frio da cozinha. Teria sido mesmo um pesadelo ou aquilo havia sido real?

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Parou um instante: todos aqueles objetos pequenos, toda aquela louça tão suave; até quando tudo ali permaneceria no presente? Olhar o objeto, agora, seria o mesmo que olhar esse objeto daqui a três, cinco ou dez anos? Qual a linha tênue separava o presente do passado? Sua mais profunda preocupação, talvez, consistisse na possibilidade de Ulisses tornar-se, também, parte de um passado bem vivido.

De repente, a lembrança da infância – a lembrança de todos os objetos que, desde as suas primeiras memórias visíveis, já o acompanhavam: o corredor imenso, as almofadas extremamente leves e tranquilas sobre as enormes poltronas, sobre o enorme sofá; a mesa da sala banhada de luz do dia, as flores de plástico mortas e, no entanto, coloridas, sobre a mesa de vidro. As cores felizes de todos aqueles dias, as luzes imensas daquelas horas tão fugidias e, agora, enfim, a realidade: o sabor insosso e escorregadio da realidade o tomava por inteiro. Estava a um passo da eternidade? Ulisses dormia profundamente.

Depois o silêncio. O céu abrandava-se ao longo da madrugada. O dia houvera

sido muito tranquilo, mesmo depois do pesadelo da noite anterior, o dia houvera sido muito tranquilo e fresco enquanto Cristiano preparava todas as coisas para Ulisses em casa. O vento se lançava ainda sobre o apartamento – parecia querer tomar todo o espaço unicamente para si, enquanto Cristiano devaneava.

Sentiu que, logo em breve, algo extremamente importante

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aconteceria em sua vida, mas não sabia ele do que aquilo, em si, se tratava. Ainda naquela tarde sua avó ligara para ele e houvera dito muitas coisas sobre como, no seu último exame médico, o doutor lhe havia apenas receitado alguns calmantes e mais uma pequena dieta com pouco açúcar. Sua avó falava sempre com grande entusiasmo sobre todas as coisas possíveis, perguntava sobre Ulisses, recomendava-lhes algumas novas receitas, perguntava sobre como estava Cristiano ao longo das suas férias. Depois passava a falar da casa, sobre como sua mãe estava satisfeita e feliz desde que entrara na faculdade – ainda que, para ela, aquilo não tivesse propriamente nenhuma grande finalidade. Mas ela precisa mesmo se distrair, dizia sempre a sua avó.

Depois da ligação, Cristiano lembrou-se de como, quando jovem, sua mãe lhe falava sobre o desejo de estudar.

Silêncio. A desconfiança de que Ulisses em breve o deixaria, então,

de súbito, tomou-lhes toda a face e o enrubesceu. Um frio enorme o encobriu, por inteiro, e era como se o vento grande da madrugada estivesse agora inteiramente dentro dele – recompondo-se em longas rajadas amargas. Se Ulisses o deixasse, pensou, ele morreria. Não seria, de forma alguma, capaz de sustentar o peso enorme que a ausência dele lhe causaria. Certamente, pensou ainda, morreria. O apartamento enorme, as ruas sempre tão cheias de gente como eram naquela cidade: tudo ali era muito ele.

As manhãs alegres de sábado inteiramente preenchidas de

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sol e vento fresco não teriam, jamais, o mesmo sabor sem que Ulisses estivesse ali para, ao lado de Cristiano, aproveitar todas aquelas sensações tão íntimas. Repetiu ainda: se Ulisses o deixasse, ele morreria. Não haveria mais porque tanto trabalhar, não existiria motivo algum para que Cristiano tanto lutasse ao longo de todas essas horas mortas – Ulisses era o ar que Cristiano respirava. Jamais voltaria para casa sozinho, ou mesmo deixaria que aquela ausência o sufocasse pouco a pouco: preferiu não pensar. Esses três anos em que esteve ao lado de Ulisses o fomentou a necessidade de sempre estar próximo de alguém que o fizesse verdadeiramente, passo a passo, feliz.

Mas essa angústia, no entanto, era de onde originária? De Ulisses dependia a sua felicidade? Cristiano não sabia. Não havia como dar prova de algo que nem mesmo Cristiano era capaz de confirmar existir: não havia alguém no mundo capaz de lhe provar o quanto sua felicidade resistia ainda mesmo em seu estado mais bruto. Entregou-se, assim, de corpo inteiro a Ulisses – como se este fosse, verdadeiramente, sua grande e única chance de sentir-se, de todo modo, feliz. Ulisses, no entanto, de repente, parecia escorrer por entre os dedos de Cristiano como quando tentamos manter intacto um pedaço de areia entre as mãos. E era ali que findara completamente a sua felicidade – a sua tentativa última à verdadeira felicidade.

O amor seria o seu caminho único à salvação? O amor jamais o salvaria, pois mesmo Cristiano desconfiava das incertezas do próprio amor.

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— O amor jamais me pertenceu porque ele, em suma, jamais existiu.

Enquanto Ulisses permanecia ainda adormecido, Cristiano caminhava ao longo do apartamento vazio – meio perdido diante de todas as suas lembranças; diante de todas as limitações que o seu próprio coração lhe impunha. A cidade esvaziava-se por completo agora, um ou outro carro atravessava distante a avenida e era possível ouvir vozes perdidas dentro da noite. O rosto pálido de Ulisses sobre o travesseiro, o calor da sua respiração e toda aquela segurança que apenas ele era capaz de transmitir mesmo diante da noite enorme que jazia sobre a cidade.

— Eu acho... Eu acho que... — Cristiano tentava ainda falar qualquer coisa, no entanto todo aquele mistério era demais para ser quebrantado.

As horas foram passando silenciosas. O relógio batia compassado na parede da sala, cada vez mais a cidade parecia adormecer ainda mais profundamente. O desespero o tomava agora, a possibilidade que, qualquer dia, Ulisses desaparecesse completamente de sua vida o angustiava mais profundamente. Se Ulisses assim o fizesse, Cristiano certamente morreria.

Nem tudo, no entanto, estava perdido ainda. O peso da ausência de Ulisses seria a dor mais intensa que alguém poderia carregar ao longo de sua vida e Cristiano, certamente, seria

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capaz de enfrentar exatamente toda esta caminhada.

A sombra dos seus antepassados o atormentava. Cristiano lembrava-se logo da avó, muito cuidadosa, diante de todas aquelas tardes mornas ao longo do apartamento enquanto Cristiano era ainda uma criança tão frágil e pequena. Do pai, pouco se recordava: talvez apenas algumas visitas esporádicas – três ou quatro –quando ele tentava, em vão, reconciliar-se com sua mãe, mas esta nunca cedera. Depois a tia que, ao chegar do trabalho, carregava Cristiano nos braços e o jogava em sua cama, divertindo-o tanto. Todas aquelas horas eram mesmo iguais? Cristiano não conseguia dormir. Sentia ainda que logo algo aconteceria e para sempre ele seria atormentado por todas aquelas possibilidades que apenas alguns poucos que vivem verdadeiramente são atormentados continuamente. Qualquer forma de felicidade jamais lhe seria suficiente. Toda a grandeza dos dias e das horas que seguiriam umas sobre as outras jamais preencheria o vazio que Ulisses – somente Ulisses – era capaz de provocar. Aquele era o único caminho a que submeteria toda a sua vida: aquela forma de existir era unicamente a maior grandeza que uma pessoa poderia possuir verdadeiramente.

A felicidade lhe era fugidia. O próprio gozo, para ele, soava como um retumbante lamento. Todas as pedras que carregava consigo, ao longo dos bolsos pequenos de criança ainda naqueles mesmos passeios antigos com a mãe, sempre lhe foram,

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sim, tão necessárias quanto o ar de todas aquelas horas mortas. A madrugada logo avançaria profundamente, assim como na última noite e o mesmo tormento que outrora o tomou, de súbito, quem sabe agora estivesse completamente se dissipado, mas as sensações ainda o acompanhavam como no dia anterior – a mesma estranheza do apartamento, da vida que levava com Ulisses. Se não conseguisse dormir mais uma vez, amanheceria morto de cansado para o dia seguinte e Ulisses estranharia o seu comportamento meio irritado diante de todas as horas que se sucederiam. O mundo todo parecia dormir silenciosamente agora e Cristiano experimentava a límpida impressão de ser a única criatura viva diante de todo o Universo que o contornava. Inspirou profundamente – sentiu o ar frio invadir os seus pulmões. Nada mais, fora daquele mundo que era o seu apartamento e a vida ao lado de Ulisses, nada mais fazia sentido algum.

Diante da janela pensou: como seria o seu corpo caindo naquela madrugada última entre todos os vivos no Universo? Qual seria mesmo o peso da luz? Usou, no entanto, um pouco do raciocínio matemático que ainda lhe restava: o mundo existe.

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9. O grande passeio Observar como era sua vida, desde que Ulisses adentrara, de repente, os porões úmidos e frios de sua existência, era o mesmo que uma criança – quando esta tentava, inútil, relembrar seu passado de útero. Mergulhado na placenta, o corpo vivo e já pulsante de Ulisses era um milagre. Os olhos meio abertos, as mãos pequenas, frágeis, e os órgãos microscópicos. De repente, movimento. Era já a vida, em seu estado mais bruto de origem. Hoje, Ulisses já homem – transbordando toda sua sexualidade assim tão livremente – hoje, Ulisses com sua voz grave, ressonante. O som da sua risada, o peso dos seus passos: impressionante o modo como a vida encontra sempre os seus meios para que todas as coisas aconteçam da maneira mais própria.

Enquanto caminhava, naquela noite, anos atrás, rumo ao seu encontro com Ulisses, Cristiano sentia o modo irregular como as pedras da rua sobrepunham-se umas sobre as outras e empurravam os seus pés para cima, com força. De repente, parou um pouco: observou o pequeno restaurante todo ele já repleto de desconhecidos que se espalhavam largamente diante

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das inúmeras mesas, diante do pouco espaço que havia ali. O Líder era mesmo um espaço concorrido para toda aquela gente que, quase sempre, espremia-se entre as mesas e cadeiras espalhadas diante do Largo. As mulheres sempre tão doces e requintadas que cruzavam as pernas, e mexiam levemente no cabelo; os homens um pouco mais abertos, mas carregando ainda certo ar de leveza e graça dentro daquelas roupas pouco confortáveis que, mesmo assim, eles insistiam usar.

Cristiano parou diante da porta do restaurante, procurou rapidamente qualquer lugar confortável em que pudesse, com calma, conversar com Ulisses. Enquanto o esperava, uma súbita felicidade tomava conta de todo o seu espírito, depois mexia impaciente o cardápio à sua espera, Cristiano tentava não pensar em todas as coisas que estavam ainda por acontecer enquanto Ulisses permanecesse em sua vida, enquanto eles pudessem compartilhar aquele sonho, ainda que, para Ulisses, as coisas fossem caminhando – ou, pelo menos, deveriam caminhar – de um modo um pouco mais lento, pois havia ainda o receio e a própria desconstrução da sua sexualidade. Mesmo assim, ainda que para Ulisses tudo caminhasse de modo um pouco mais lento, certamente Cristiano abdicaria de toda a pressa e urgência que sempre manteve de existir.

Cristiano seria mesmo capaz de abdicar de todas aquelas contagens regressivas e, com isso, aguardaria o tempo que fosse necessário para que todas as coisas acontecessem do modo exato que ele planejara para ambos. Toda a sua felicidade estava já

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planejada ao lado de Ulisses. Respirou um pouco antes de seguir para a mesa vazia mais

próxima. Respirou profundamente como se aquela fosse, verdadeiramente, a sua hora final. Depois abriu os olhos, o mundo continuava à sua volta.

A mesa era pequena, preenchida com uma toalha quadriculada cuidadosamente bordada sob a toalha transparente maior. Havia ainda algumas flores sobre a mesa, além do cardápio. Caminhou lentamente até poder sentar-se de maneira confortável e, assim, acalmar um pouco toda a sua impaciência.

Agora estava somente à espera de Ulisses. Quanto tempo houvera durado aquela noite? Impossível concentrar-se na própria simples contagem. Era incrível o quanto aqueles instantes pareciam tão petrificados em sua memória... o quanto, mesmo num passado distante, aquela noite ainda parecesse permanecer no presente.

O dia rebentava agora diante da sua janela, Ulisses acordando:

— O que faz aí, Cristiano, acordado ainda a essa hora? — Estava com pouco sono porque ainda ontem à tarde

dormi por algumas horas e, com isso, acordei assim cedo. O café já posto cuidadosamente sobre a mesa fria, grossa. A

mão quente de Ulisses tocando o ombro esguio de Cristiano e o dia amanhecendo diante da janela. Ulisses o beijou no pescoço como em agradecimento, tocou-lhes a cintura e sentiu a presença forte de Cristiano sobre todas as coisas em sua vida.

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Ulisses, em seguida, sentou-se diante da mesa farta: sentia-se meio envergonhado diante de toda aquela disposição de Cristiano, mesmo após esses anos um ao lado do outro. Preferiu não pensar. Beijou-lhes novamente em agradecimento.

A cada gesto de Ulisses, Cristiano parecia desconfiar ainda mais da sua própria realidade. Sentia como se todas as coisas existentes no mundo estivessem, de certa forma, desconexas das suas próprias funções. O café quente diante da mesa – assim como fora outrora, nos dias anteriores –, os anos que seguiam indiferentes, o casamento com alguém que, de verdade, fazia o seu coração pulsar de maneira mais forte e viva: era mesmo possível que a sua vida toda seguisse de tal maneira como o ritmado som de um instrumento afinado e contínuo? Cristiano se assustava diante da possibilidade de, em algum momento, o silêncio que lhes é tão próprio tomasse uma forma efetiva.

Essa é a maior de todas as grandezas, pensava ele. Enfrentar os momentos de mais pura dor e solidão é a capacidade que o faz humano e, por isso, diferente de todos os outros animais ditos irracionais que estavam à sua volta. Era possível, continuava Cristiano, reconhecer inúmeros animais irracionais de sua própria espécie – aqueles incapazes de perceber o quanto o fim da felicidade lhes é uma retomada para que a vida lhes seja mais densa. Cristiano se sentia desprotegido diante da ausência de Ulisses. Toda a sua vida – ou mesmo a mãe, a tia e a avó – jamais tomariam o mesmo contorno que a presença simples de Ulisses já traçava em sua vida.

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Que desespero! Pensava Cristiano. De repente, perceber que Ulisses não mais estaria com ele era uma situação inteiramente nova. Ainda que, para Ulisses, aquela fosse uma possibilidade quase a zero, para Cristiano jamais deixou de ser uma possibilidade efetivamente capaz de acontecer. Seu coração palpitava feroz, como se em consonância com o próprio coração de Ulisses sentado à mesa diante do café. Uma voz lhes falava – seria isso o que chamam de intuição?

Cristiano jamais movera sequer uma palha afim de que Ulisses – em toda a sua vida juntos – deixasse de contar com essa mesma possibilidade. Cristiano não era do tipo que se refazia a cada instante com o intuito de demonstrar para Ulisses o quanto ele era capaz de reinventar-se para uma existência completa e feliz – constantemente renovada. Existia, de certa maneira, algum modo de manter toda aquela mesma forma de vida pulsante e feroz? Algumas dúvidas sempre se mostraram constantes.

A grandeza suprema daqueles que sacrificam todas as coisas na vida para encontrar a felicidade – mesmo em seu estado mais bruto! A coragem que a vida requer é mesmo sobrenatural, pensava Cristiano, e disto ele já tinha consciência desde a adolescência quando seguia diariamente para a escola preparando-se para os exames finais rumo à faculdade e à vida toda que o aguardava tão de repente. Quando saiu do colégio e, enfim, atravessou a fase adulta, Cristiano pensava acerca da primeira coisa que lhe passou pela cabeça naqueles tempos:

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enfim, a liberdade! Depois, retomava a consciência lembrando-se o quanto a vida seguiria ainda ceifando quase todas as suas oportunidades.

As horas sobrepunham-se umas às outras, mortas. O vento ainda frio da manhã fresca passeava sobre o seu rosto, descendo junto ao pescoço, enquanto Ulisses experimentava já o café adocicado e quente.

Lembrou-se do passeio que fariam no interior ainda naquele final de semana próximo. Respirar um pouco daquele ar puro – a que seus avós estavam condicionados desde a mais tenra juventude – quem sabe fizesse bem. O verde que explodia diante dos campos imensos espalhados ao longo do horizonte, a água transparente que escorria através dos caudalosos rios em volta: a vida em seu estado mais natural. Tudo isso tranquilizaria o seu coração e, assim, Cristiano poderia perceber o quanto havia ainda muito por fazer ao longo dessa sua jornada intensa. Cristiano comentou rapidamente, enquanto Ulisses experimentava agora s pãezinhos frescos. Este concordou: seria mesmo muito bom para ambos. Preciso me deitar um pouco mais, disse Cristiano, ainda durante o café – havia aquela vantagem em estar de férias. Depois Ulisses deveria seguir adiante, voltar ao trabalho, enquanto Cristiano continuava inteiramente bombardeado por aqueles pensamentos talvez absurdos.

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10. Recado Naquela primeira manhã, Cristiano sentiu que não podia mais.

“Talvez você jamais me compreenda, Cristiano, mas preciso ir-me agora para nunca mais. Eu vos suplico: não morra. Por mim e por tudo o que de bom vivemos um ao lado do outro; eu vos suplico: enfrente todos os momentos que seguirão mesmo sem a minha presença ao teu lado porque eu não tenho nada mais nessa vida a não ser a certeza do teu amor. Enquanto houver vida, todas as coisas no mundo hão de se consertar... enquanto houver você, eu tenho absoluta certeza de que há ainda, vivo no mundo, o mais verdadeiro amor. Eu suplico que Deus nos ajude; eu Vos peço que essa incompreensão seja a maior dádiva que possa haver no mundo porque não somos nada mais que essa pura e solitária incompreensão.”

Agora sozinho, naquela cidade tão pequena e vazia, Cristiano percebera que não era mais, de forma alguma, possível lutar contra aquela possibilidade que há tanto sempre permaneceu em sua memória, redobrando o fardo pesado das suas costas: enfim, a batalha houvera se dissipado. Sentiu-se derrotado, mas ao mesmo tempo certo alívio tomou conta da

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sua alma porque não mais havia dúvida alguma que assolasse o seu coração. Todas as dúvidas tinham caído por terra. Todas aquelas sensações absurdas – todas as madrugadas em que o sono demorava tanto por vir – toda a sua intranquilidade diante da simples possibilidade de, um dia, Ulisses não mais estar em sua vida era, agora, real.

Estendeu os braços vazios – debruçou-se contra o seu próprio corpo e, por um momento, sentiu um leve desequilíbrio. Os braços vazios estavam ainda repletos do que sobrou da presença de Ulisses: os braços vazios possuíam ainda alguma coisa estranha – as sobras do carinho, do cheiro adocicado e, ao mesmo tempo, feroz daquele que, nesses últimos anos, fora inteiramente seu de corpo e espírito. No quarto, quase nada restara do seu homem: as roupas, ou mesmo os poucos objetos pessoais, não estavam mais nos lugares de costume como nos últimos dias em que estiveram naquela cidade. De repente, Cristiano tentava chorar baixinho. Aquela era a sua forma mais íntima de expressar o peso imenso da dor. Depois redobrava a consciência, tentava não pensar. Mas era mesmo impossível acreditar que poderia voltar para o seu apartamento, na capital, e retomar a sua vida tal como era anos atrás, antes de Ulisses aparecer. Façamos assim, pensou Cristiano baixinho, eu vos deixo ser e, em troca, ele me deixa ser também porque a maior prova de amor que uma pessoa pode dar a outra é a possibilidade desta ser aquilo que verdadeiramente sempre fora, mesmo nos tempos mais remotos em que nem havia ainda

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aquele amor. U-lis-ses. Sussurrava de maneira quase inaudível e, assim,

um frio intenso assolava o seu coração. Incrível era mesmo a força que certas palavras pareciam ter quando, em nossas vidas, elas verdadeiramente têm. Talvez Cristiano não voltasse mais ao apartamento e à vida que deixara na cidade – antes de lançar-se ao descanso desses dias no interior. “Terei de enfrentar as mais duras horas tendo apenas a mim mesmo como maior companhia”. Esta era a vida, repetia Cristiano para si. U-lis-ses.

Sentou-se um pouco sobre a cama ainda desarrumada – os lençóis meio espalhados, os travesseiros ainda amassados com o calor de seu corpo – sentou-se na cama e preferiu engolir toda aquela dor inteiramente sozinho: não chamou por ninguém naquele instante. Toda a sua dor – todo o desespero que desde a mais antiga infância assolava a sua vida – houvera se solidificado e tomado corpo. U-lis-ses: bastava um nome para que tudo fizesse sentido. A janela aberta denunciava o dia que estava já amanhecendo lá fora: toda a vida continuando como sempre fora desde quando Cristiano ainda se pertencia.

Se houvesse ainda o mar à sua espera, assim como quando tempos atrás Cristiano caminhava com a sua tia, se houvesse ainda o mar e todas as possibilidades que uma manhã ensolarada na praia é capaz de nos oferecer, quem sabe as coisas não fossem, de certa forma, um pouco menos duras para com Cristiano? No entanto, o peso da cidade perdida naquele espaço inteiramente verde e frio, a atmosfera morta e sombria da cidade

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que aos poucos vai se esvaziando parecia sufocá-lo ainda mais. A solidão era agora a sua maior companhia. Cristiano sabia que nunca retomaria a consciência, tal como fora anos atrás.

As mesmas cortinas que ainda na manhã anterior esvoaçavam livres, agora pareciam densas e perturbadas. Nenhum vento – mesmo aquele mais fresco da manhã – era capaz de consolidar qualquer movimento ínfimo. O pano frio mantinha a sua estrutura imóvel, como se todo ele fosse a mais dura escultura de mármore projetada por um grande artista. A janela estava ainda aberta enquanto o dia desabrochava lá fora.

Tentou ainda dormir um pouco, tentou fazer como se aquele momento fosse apenas um pesadelo triste que logo passaria assim que acordasse. Voltou à cama, debruçou-se sobre a leveza melancólica dos lençóis, os olhos acentuavam ainda mais toda a tristeza que assolava o seu próprio coração. Enquanto permanecesse completamente sozinho, trancado naquele quarto pequeno, o mundo todo parecia não estar a par da sua nova situação. Poderia esconder-se de todos os amigos – até mesmo de sua própria família ou de tudo o que se sucedera. Suas mãos jorravam uma frieza quase sobrenatural. Cristiano teve medo.

A manhã desenvolvia-se tranquila. De vez em quando o canto cadenciado e rítmico de um pássaro adentrava os seus ouvidos de modo suspeito e estrangeiro. Poderia ainda sentir a leveza do seu perfume? Aquele mesmo aroma adocicado de Ulisses que mais parecia cheiro frio de mato molhado tomava

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conta de todo o seu quarto, do seu próprio corpo e, inclusive, do seu espírito. Então, perguntava-se: como se livrar assim do cheiro forte de alguém? Como livrar-se do aroma triste de uma pessoa quando esta é capaz de incendiar toda a sua alma com a mais intensa força que apenas a solidão se faz irradiar?

O vento assobiava tranquilo sobre os telhados – escorria diante dos seus pés docemente. Incrível, pensava Cristiano, como era possível, mesmo assim, Ulisses fazer parte daquele ambiente extremamente solitário e duro que era o mundo agora. Cristiano sabia que mesmo sem Ulisses, este ainda preencheria o vazio na vida de qualquer pessoa que fosse no mundo – menos ele. Apenas Cristiano estaria inteiramente fora deste imenso conjunto de almas humanas a serem preenchidas pelo espaço que somente Ulisses é capaz de preencher. Logo, todas as demais horas decorreriam compassadas, a tarde se construiria e o céu iria se contorcer de preguiça para as horas seguintes que também deveriam chegar. E logo tudo seria contornado pelo laranja sombrio do crepúsculo até que a noite tomasse forma e invadisse todo o céu o fazendo extremamente vazio de qualquer forma possível de vida. Perguntava-se: que palavra seria mesmo capaz de expressar toda forma de dor que estava agora experimentando? Haveria resposta alguma no mundo que o consolasse de que, supostamente, aquele era o seu destino mesmo depois de todos esses anos compartilhando sua vida com alguém até então – e agora ainda mais – desconhecido? As mãos trêmulas foram tocando o seu corpo triste e vazio – os lábios

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meio ressecados e os olhos condensados intensificavam ainda mais todos aqueles sentimentos. Lembrara-se que na semana seguinte – será mesmo real ou fruto de qualquer delírio seu agora – na semana seguinte seria o aniversário de Ulisses. Seu estômago soava frio, era tomado por uma frieza estranhamente inexplicável enquanto o coração palpitava feroz. Cada vez mais, Cristiano percebia que a sua grandeza residia no fato dele próprio não compreender o quanto sua vida houvera sido inteiramente repleta da mais pura felicidade. Agora, no entanto, sua própria voz se calava triunfante enquanto seu rosto macio espreitava o silêncio matinal do quarto – os lençóis ainda derramados sobre a cama e o estranho peso que a ausência de Ulisses lhe causava faziam tremer ainda mais as suas mãos.

A estrada seguia indiferente – o caminho raso, repleto de poeira seca e, levantada pelo vento, quase transparente. Os galhos pesadamente carregados de folhas balançavam ziguezagueando; o sol estourava ainda mais forte diante do céu – seriam dez horas da manhã, ou quase onze? Se ele morresse, pensou, se Ulisses morresse talvez aquele peso o deixasse e Cristiano, então, pudesse continuar a viver – mas havia ainda tantas coisas por acontecer: havia ainda tantas possibilidades.

Debruçava-se diante da sua própria solidão e buscava nela a força para seguir adiante. Pensou: por mais que ele não estivesse consigo – ao seu lado tomando o café ou chegando cansado do trabalho – por mais que ele não estivesse consigo, ninguém – absolutamente ninguém – o tiraria do seu próprio coração. Ali

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dentro, Ulisses poderia viver eternamente; infinitamente guardado apenas para si. O seu coração acelerava cada vez mais – estou vivo! pensou. E era como se aquele começo de vida para Cristiano fosse, na verdade, o ingresso ao mais sombrio espaço que pudesse existir em si mesmo. Caso pudesse ainda respirar, quem sabe as coisas tomassem ainda outra forma.

Cristiano jamais ceifaria o direito de Ulisses de viver. O mundo, pensava ele, era bem mais interessante com Ulisses nele. Mas quanto a ele próprio? Que mais restaria de tudo o que se dissipou de sua própria existência? Os seus contornos leves, a sua voz adocicada que durante tanto tempo preenchera o apartamento da avó com a mais doce alegria que alguém pode irradiar – será mesmo que alguém sentiria a sua falta? Caso o seu coração deixasse, de repente, de bater e tudo no mundo para ele fosse agora o passado de um morto, absolutamente ninguém seria capaz de notar a sua ausência. As praias desertas continuariam a levantar a brisa salgada de ondas, o parque explodiria de tão verde e outras crianças atravessariam a sua estrutura metálica, como forma de abraço. O apartamento também continuaria – com as suas cortinas leves, a toalha imensa sobre a mesa e o corredor vazio com seu vizinho sempre tão curioso. Morrer seria mesmo uma grande possibilidade – cessar tudo o que restara da sua vida seria a forma mais romântica de terminar toda essa história com Ulisses; enquanto o mundo continuaria inteiramente indiferente à sua própria ausência. Cristiano há muito não pensara tanto em Deus como

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naqueles momentos em que se encontrava, sem Ulisses, completamente despido de corpo e de alma. A palavra “Deus” lhes soava agora como alguma possível explicação de como todas as coisas no Universo precisam realmente de alguma lógica – mesmo imprópria – para perdurarem ao longo da eternidade. Deus seria a grande lógica de todas as coisas – não o Deus humanizado que tantos acreditam conhecer, mas aquele em que consistia sua própria existência no mistério que somente Ele, desde o mais remoto dos tempos, é capaz de incitar.

Abriu a porta da casa, observou o jardim repleto de borboletas pequenas tocando rapidamente flor a flor com a mesma alegria daqueles que não sabem que vivem. Algumas nuvens atravessavam agora o céu imenso – o relógio marcava meio-dia – e algumas crianças passavam pela estrada pequena voltando da escola. De repente, lembrou-se de quando ainda era como uma dessas crianças e o mundo ainda não o houvera machucado de maneira tão direta. Depois foi crescendo e os anos foram se tornando cada vez mais obscuros até, finalmente, ele conhecer a verdadeira felicidade que se é possível experimentar quando se compartilha, com o outro, a sua própria vida.

Uma nuvem atravessava agora o sol. Soprava um vento frio – tal como o da própria madrugada. Certo silêncio se consolidou naquele ambiente, naquele

começo de tarde em que todas as coisas pareciam nesgas de sol. Sim, Ulisses o amava.

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Sentiu-se livre então daquela prisão que ele próprio construíra. O amor era a sua própria prisão. Incrível como qualquer pessoa no mundo acreditava que apenas o amor seria capaz de libertar o próprio ser humano sem, no entanto, perceber que quanto mais se é lançado até ele, mais se é escravizado. O sentimento de posse que se constrói, a necessidade de estar cada vez mais próximo um do outro, a sede de corpos que de repente se intensifica: escravizar-se por um sentimento ainda tão desconhecido seria mesmo a maior forma de experimentar a felicidade que somente alguns poucos são capazes de sentir? Enquanto vivia, Cristiano tomava para si aquele absurdo, depois o repugnava e ria do próprio destino que, assim como qualquer outro, fizera-o inteiramente inclinado àquela sensação já tão conhecida – desprovida de qualquer novidade. Amor e eternidade se completam mutuamente porque, para existirem, precisam escravizar toda forma humana de vida.

Agora, Cristiano não mais permitiria que o amor – ou qualquer outro sentimento – o escravizasse. A súbita impressão de que o amor era apenas uma criação humana, como qualquer outra, tomava por inteiro o seu coração, enquanto a tarde debruçava-se às duas horas.

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11. Força viva de um inferno Impossível acreditar que aquele sentimento pudesse mesmo ser real ou não uma criação fantasiosa da sua mente sempre tão fértil, pronta para agir. Enquanto mantinha a carta tão breve ainda entre os dedos era como se aquela fosse a maneira última de, ao menos, poder sentir o sabor inexplicável do toque. A tarde prosseguia indiferente, alaranjando-se no horizonte. A rua estreita continuava tranquila, completamente vazia de qualquer forma estranha de vida. Da casa, atravessou correndo o jardim, debruçou-se no cercado grande de madeira cravada na terra: as nuvens corriam tranquilas, completamente banhadas pelas cores do sol que se punha diante do céu e parecia contorcer-se em cólera. Nem mesmo uma criança corria feliz ao longo da estrada pequena de terra pisada, nem mesmo um pássaro rasgava o espaço. As plantas balançavam tranquilas, movendo os galhos frondosos com o vento frio daquele fim de tarde, os insetos corriam invisíveis ao longo dos estreitos caminhos, debaixo das folhas mortas. De repente, no entanto, um gato preto preparando-se para o bote: baixando a cabeça cautelosamente, parecia mesmo manter a vítima distraída com o bailar da sua

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cauda em riste. Pensou: sim, sim. Tudo o que ele lhe houvera dito ressoava ainda na sua cabeça. A sensação estranha de perda que aquela situação lhe obrigava suportar era mesmo formada por um peso incalculável de tristeza. O vento frio da tarde que caía, o céu alaranjado, a estrada estreita de terra e o gato que se preparava cauteloso: tudo agora existia sem mais haver Ulisses em sua vida. Ao longo da rua, próximo à sua casa, morava um velho sozinho que estreitava a sua calçada abrindo o portão. Nunca se casou o coitado e, agora, estava obrigado a viver na mais pura solidão que se é possível imaginar. Se ele, quem sabe, houvesse tido, ao menos, uma namorada, existiria no mínimo a lembrança daquilo que não ficou. Os passos tranquilos de Ulisses, no entanto, insistiam ainda em atravessar lentamente a estrada – fazendo suas marcas no tapete enorme de poeira que se misturava ao barulho almofadado dos sapatos batendo contra o chão. Aqueles mesmos passos que, outrora, costumavam trazê-lo para os braços de Cristiano, aqueles mesmos passos – tão jovens – que desde o começo prometeram ser para sempre dele, no entanto, não mais atravessariam aqueles caminhos. Cristiano houvera sido feliz. Mesmo diante das enormes adversidades que cada vez mais se solidificavam agora à sua volta, Cristiano tinha de verdade conseguido construir um passado intensamente vivido: todas aquelas manhãs ensolaradas, as noites intermináveis em que, juntos, observavam atentos o mar, os corpos despidos um sobre o outro. O apartamento vazio existia, bem como as flores sobre a mesa. Existiam também as

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árvores em volta da casa e o vento escuro que as açoitava durante a madrugada. Existia o relógio pregado à parede que contava contava contava, existiam todas as pessoas, todos os vizinhos. A cidade que se encolhera para anoitecer também existia e o velho sentado à beira do caminho, sobre a calçada. Existia a solidão daqueles que amam – que, pensava Cristiano, era a dor maior que alguém poderia carregar ao longo da vida. Curioso como a sua intenção houvera sido tão precisa.

Todas essas coisas precisariam mesmo de um sentido qualquer. A cidade pequena em que vinha a passeio desde os tempos mais remotos de vida – a sua tenra infância ao longo das enormes plantações de laranja e os olhos d’água imensos. Esta era a vida. O vizinho lhe acenava tranquilo e só. Seria mesmo possível que todas as coisas há pouco vividas com Ulisses pudessem acabar assim de repente? Qual o sentido de justiça acompanhava todos aqueles acontecimentos? Era mesmo possível que Ulisses batesse novamente à sua porta implorando-lhes perdão, dizendo que ordenou melhor as ideias e aquela não era a decisão mais sensata? Uma liberdade indescritível tomava conta do seu corpo por inteiro: a liberdade daqueles que estão sujeitos à mais dura solidão de pássaro selvagem lhe acalmava agora todo o espírito. Havia ainda a vida a ser vivida intensamente – acabou o amor, mas a vida – superior – teimava continuar pulsando.

O mundo todo beirava agora à sua frente e o desafiava em êxtase. A vida tranquila naquela cidade quase insignificante ou o

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turbilhão imenso da capital que mais parecia um motor incansável de amor e ódio em si mesma? Desde que recebera o bilhete de Ulisses, ele parecia quase desacreditar em toda a humanidade – mas havia ainda muito que viver ao longo da pequena estrada que era a sua vida: havia ainda o amor, a esperança e a própria solidão. A esperança de que chegariam dias melhores, de que a vida não lhe seria assim completamente intolerável, pensava Cristiano.

Os dias seguiriam calmos e vazios. A possibilidade da vida tranquila naquela cidade lhes aquietava o espírito. Mesmo todos aqueles instantes que cada vez lhes acenavam estranhos diante da ausência de Ulisses não ficariam para sempre, como acreditava Cristiano naquele momento. Encarar a vida de frente, extrair o que dela houver melhor e depois lançar-se ao abismo grande da morte – mesmo ainda em vida. Eis o caminho.

O vento arrastava uma pequena folha que parecia explodir de verde perdida naquele cenário agora cinza. Cristiano tomou-a com as mãos abertas, acariciou-a com a ponta dos dedos e lançou-a ao longo do caminho agora infindável.

Um ou outro transeunte seguia pela estrada, puxando a mão do filho com pressa, o céu escurecia e os primeiros pontos brilhantes começavam a aparecer. Cristiano ainda imóvel diante da estrada perguntava-se estarrecido: seria ele mesmo que pertencia à cidade ou a cidade o pertencia completamente? Permaneceu em silêncio completo, pois não tinha mesmo nada a falar; não tinha absolutamente palavra alguma que o fizesse

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transmitir a dor imensa que assolava agora todo o seu coração. O silêncio sempre fora a sua maior forma de expressão.

Qualquer possibilidade de ser feliz deixava agora de existir para ele: não havia força alguma no mundo que fosse capaz de aliviar a sua dor – não havia criatura humana que conseguisse substituir a tranquilidade que só os traços de Ulisses carregavam com tanta naturalidade. No entanto, diriam os outros, havia tantos na cidade grande que deixariam, sim, suas vidas para compartilhar, ao lado de Cristiano, aquela sua maneira tão própria de existir; diriam ainda: você é tão jovem, garoto, que nem mesmo compreende a corrente natural da vida e a forma de acontecer que algumas coisas possuem. Depois, pedir-lhe-iam que tivesse calma, que não levasse assim este assunto tão a sério, pois o tempo logo se encarregaria de corrigir aquela situação toda. Sempre há algo possível de se falar em qualquer situação da vida, pensava Cristiano; as pessoas teriam sempre argumentos que ao menos tentariam fazer Cristiano esquecer a dor imensa que acompanharia o seu coração para sempre. Lembrou-se, subitamente, da figura da avó sempre tão preocupada em relação às escolhas que ele houvera feito até ali, depois a mãe que certamente o apoiaria em qualquer decisão sua – qualquer decisão, no entanto, que não o machucasse; e, por fim, a tia que jamais compreenderia o porquê de Ulisses tê-lo abandonado daquela forma tão desumana. Há coisas, pensava Cristiano, que não têm uma explicação completamente coerente à mente humana – há coisas que estão acima de nossa própria

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compreensão e o que podemos fazer somente é aceitar a ferida que estará aberta para sempre em nossos corações; silenciosamente aceitar carregar o peso que certa ausência é capaz de causar, aceitar que há, sim, a possibilidade de se viver completamente sozinho no mundo e essa é uma das maneiras mais cruéis de se levar a vida porque somente um coração inteiramente seco de amor conseguiria se adaptar a essa forma de vida. O dia começará de novo e a coisa mais incrível é que para todos eles o dia logo amanhecerá – para Cristiano e também para Ulisses – e depois haverá o café da manhã repousado sobre a mesa silenciosa, o vento fresco de todas as manhãs que seguirão depois desta: sua vida jamais seria a mesma agora com o peso da ausência de Ulisses; Cristiano jamais poderia aceitar o fato de que outra pessoa – em qualquer lugar do mundo – àquela hora estaria, talvez, compartilhando a sua vida com Ulisses, levando-o para passear e cuidando da sua saúde quando ele, por acaso, adoecesse: aquela que era a tarefa que Cristiano desempenhava tão bem. Veio-lhes uma palpitação feroz em seu coração, seguido de um suor frio e uma pequena arritmia nas mãos. Voltou quieto para a casa completamente assombrada pelo fantasma ausente de Ulisses – os objetos que ele tocou, o lugar preferido em que costumava assistir à TV no sofá, os lençóis e as roupas que guardavam ainda aquele cheiro de vida tão próprio – e logo cessaria, perdendo-se através do tempo que seria o senhor de todas as coisas naquele momento. Uma lágrima quente, úmida e solitária escorria pelo rosto de

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Cristiano, depois a revolta lhes tomando todo o espírito, a vontade de não mais ser ele mesmo, ou – por que não? – dar cabo também à vida de Ulisses para que todo aquele tormento que era a sua própria vida pudesse enfim cessar. Imaginou um plano absurdo, depois sentiu o pescoço quente de Ulisses contra as suas mãos, o sorriso na face de Cristiano enquanto Ulisses padecia já sem vida, depois de uma luta feroz – os olhos repletos de sangue. Perfeitamente absurdo, pensou, no entanto, Cristiano. Mas aquilo talvez ligasse a sua vida à de Ulisses para sempre, e logo o seu nome seria citado em uma conversa qualquer como aquele que matou o seu amante unicamente por amor e pela incapacidade de suportar o peso que a ausência dele causou em sua vida.

Aquele pensamento absurdo, agora, parecia finalmente ter lançado voo da sua cabeça. Enquanto pensava na morte como solução para que sua dor se amenizasse, ela poderia, no entanto, ser o início de uma ausência maior, pois nada o garantiria que eles seguiriam juntos mesmo em condições tão próximas.

A vida, no entanto, transbordava agora através de toda a sua face, a vida grande em abundância – ainda que a ausência de si mesmo o tomasse por completo. Como se entre duas pedras duras, frias e mortas nascesse qualquer forma estranha de vida – era essa a condição a que Cristiano se entregava: seu corpo seguia a mesma estrutura morta das pedras frias perdidas dentro de qualquer floresta escura. De repente, uma luz clareava todo o espaço vazio de floresta... Cristiano não tinha certeza, mas

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aquela talvez fosse a luz de felicidade essencial a todo coração humano. Seu coração – que mais parecia a mesma pedra fria, úmida, recebia aquele raio de luz que aos poucos tomava todo o ambiente como um sol nascendo diante do horizonte, tomava todo o ambiente e, finalmente, toda a floresta era inundada pela claridade repleta e quente que apenas a felicidade – ainda que em seu estado mais bruto – é capaz de refletir. Cristiano não era mais dono dos seus próprios pensamentos, bem sabia ele, e, por isso, mesmo a ausência de Ulisses não mais o machucaria: quando a dor é muito intensa, ela ultrapassa a nossa própria capacidade de sentir dor. Ulisses jamais estaria completamente ausente de sua vida: a presença estranha de Ulisses acompanharia para sempre todas as horas de Cristiano – mesmo quando este houvesse superado tudo o que fora vivido. Essa, talvez, seja a dor maior dos abandonados: eles jamais se recuperam. Um coração ferido, bem sabia Cristiano, nunca retoma o seu estado natural, por mais que todas as dores estejam plenamente cicatrizadas, há ainda uma infinidade de horas futuras a serem enfrentadas a partir da mais estranha ausência de alguém que amamos. Esta é a maior herança que podemos carregar em nosso espírito: o peso de uma ausência é a maior prova de que tudo aquilo vivido, por mais sofrido, foi verdadeiramente real.

O que ressoava em seu coração era o mais bruto grito de dor. Como seriam todas as histórias de heróis se esses não ultrapassassem as mais duras batalhas para, enfim, atingirem o

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pleno descanso que somente algumas poucas almas são capazes de usufruir? Certa força, no entanto, brotara do seu peito e de sua própria alma. Certa força inexplicável era a maior coisa que um coração ferido como o de Cristiano poderia transbordar: aquela sensação – aquela vontade infinita de sobreviver ao que lhe ocorreu – só poderia mesmo ter surgido das profundezas mais escuras do limbo. A rua completamente vazia de qualquer forma de vida, Cristiano ainda de pé, imóvel, experimentando os minutos iniciais de sua própria liberdade – agora, ele finalmente poderia ser exatamente quem era, sem a preocupação constante de atender também o que Ulisses buscava em alguém. A força viva que lhe surgia, agora mais intensa que antes, empurrava-o para frente como um tripé. Aquela força viva, surgida diretamente das chamas mais caudalosas do inferno, seria a matéria-prima da sua própria existência a partir de então. Cristiano percebeu que logo a madrugada chegaria, tomaria todo aquele ambiente – toda sua casa, os corredores escuros, as ruas e avenidas – tomaria todo aquele ambiente e, em seguida, cessaria através da mais pura incompreensão que é a nossa própria existência. Mesmo essa repetição contínua e infinita de dias, noites e madrugadas, mesmo a repetição de todas as horas que voltavam sempre ao seu estado original, a vida, por mais que a busquemos, jamais será a mesma. A vida nunca a é. Todo o movimento contínuo do tempo é a sua própria recriação. Poderei mesmo romper toda a sua ausência do meu próprio espírito e, assim, retomar o caminho da verdadeira liberdade? –

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liberdade esta que palavra alguma no mundo é capaz de retratar com o mínimo de propriedade. Os meus próximos passos, resignados e vazios, serão também capazes de suportar o peso do meu próprio corpo? Terei a capacidade de ser a minha própria fonte de energia e, assim, encontrar, no meu mais profundo interior, toda a felicidade necessária à minha mínima existência? Não sou capaz de tomar a dimensão daquilo que me tornei e, por isso, preciso, ao menos, me tratar com a menor complacência. Eu vos suplico que caiam sobre mim todas as dores, pois até mesmo o mais intenso uivo de dor é ainda melhor que a completa falta de sentimentos que tem assolado o meu coração. Até mesmo a morte será incapaz de me livrar desta terrível batalha que tenho travado comigo mesmo e, então, completamente despido daquilo que verdadeiramente sou, poderei caminhar rumo a um mundo novo.