Rapadura: uma arte que atravessa os tempos. · realidade, originou-se da raspagem das camadas ......

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35 Bahia Agríc., v.8, n. 2, nov. 2008 SOCIOECONOMIA Rapadura: uma arte que atravessa os tempos. Fonte de renda para a agricultura familiar de Senhor do Bonfim, Bahia José Dionísio Borges de Macedo* Da cana-de-açúcar nada se perde A cana-de-açúcar ( Saccarum officinarum L.), originária da Ásia, in- troduzida no Brasil pelos colonizadores é uma planta que apresenta elevada importância econômica, sendo utilizada desde a mais simples ração animal, até a mais nobre elaboração de sacarose. Da cana não se perde nada, dela se obtém o caldo, a cachaça, a rapadura, o açúcar, combustível, a ração, e o adubo (cober- tura morta), dentre outros. Em Senhor do Bonfim, na Bahia, cida- de localizada no Território de Identidade Piemonte Norte de Itapicuru, distante 374 km da capital, a cana-de-açúcar é utilizada para produção do “caldo de cana”, ração animal e rapadura. A rapadu- ra é um produto sólido obtido pela con- centração a quente do caldo de cana, de formato geralmente retangular, pesando cada bloco cerca de 1000g. Nutricional- mente é uma excelente fonte de energia e sais minerais (cálcio, fósforo, potássio, magnésio e ferro), consumida de diversas maneiras. Na região é consumida basica- mente de forma in natura, mas é muito usada na fabricação de doces e como substituto do açúcar cristal ou refinado (PINTO, 1990). A fabricação de rapadura teve seu início nas Ilhas Canárias, no século XVI, e foi exportada para toda a América es- panhola no século XVII. A rapadura, na realidade, originou-se da raspagem das camadas (crostas) de açúcar que ficavam presas às paredes dos tachos utilizados para fabricação de açúcar. No Brasil, os engenhos de rapadura existem desde o século XVII, ou antes (GOUVÊA, 2006). Em Senhor do Bonfim, a fabricação de rapadura tem sido uma das fontes de renda para alguns pequenos agricultores, principalmente do Mulungu e Barroca do *Engenheiro Agrônomo, Mestre em Agronomia – UFBA, Professor de Cooperativismo e Extensão Rural da Escola Agrotécnica Federal de Senhor do Bonfim; e-mail: [email protected] - Fotos do autor. Foto: Manuela Cavadas

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35Bahia Agríc., v.8, n. 2, nov. 2008

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Rapadura: uma arte que atravessa os tempos.

Fonte de renda para a agricultura familiar de Senhor do Bonfi m, Bahia

José Dionísio Borges de Macedo*

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A cana-de-açúcar (Saccarum officinarum L.), originária da Ásia, in-troduzida no Brasil pelos colonizadores é uma planta que apresenta elevada importância econômica, sendo utilizada desde a mais simples ração animal, até a mais nobre elaboração de sacarose. Da cana não se perde nada, dela se obtém o caldo, a cachaça, a rapadura, o açúcar, combustível, a ração, e o adubo (cober-tura morta), dentre outros.

Em Senhor do Bonfi m, na Bahia, cida-de localizada no Território de Identidade Piemonte Norte de Itapicuru, distante

374 km da capital, a cana-de-açúcar é utilizada para produção do “caldo de cana”, ração animal e rapadura. A rapadu-ra é um produto sólido obtido pela con-centração a quente do caldo de cana, de formato geralmente retangular, pesando cada bloco cerca de 1000g. Nutricional-mente é uma excelente fonte de energia e sais minerais (cálcio, fósforo, potássio, magnésio e ferro), consumida de diversas maneiras. Na região é consumida basica-mente de forma in natura, mas é muito usada na fabricação de doces e como substituto do açúcar cristal ou refi nado (PINTO, 1990).

A fabricação de rapadura teve seu início nas Ilhas Canárias, no século XVI, e foi exportada para toda a América es-panhola no século XVII. A rapadura, na realidade, originou-se da raspagem das camadas (crostas) de açúcar que fi cavam presas às paredes dos tachos utilizados para fabricação de açúcar. No Brasil, os engenhos de rapadura existem desde o século XVII, ou antes (GOUVÊA, 2006).

Em Senhor do Bonfi m, a fabricação de rapadura tem sido uma das fontes de renda para alguns pequenos agricultores, principalmente do Mulungu e Barroca do

*Engenheiro Agrônomo, Mestre em Agronomia – UFBA, Professor de Cooperativismo e Extensão Rural da Escola Agrotécnica Federal de Senhor do Bonfi m; e-mail: [email protected] Fotos do autor.

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Faleiro, comunidades que se destacam nesta atividade. Para se chegar ao local de produção viajamos pela zona rural, su-bindo e descendo estradas, cortando ria-chos e vegetações diversifi cadas. Alguns engenhos de cana-de-açúcar, puxados por bois, atravessam os tempos, pas-sando de geração a geração, sem quase nenhuma tecnologia científi ca, onde o senso comum resiste aos avanços tecno-lógicos. Assuntos como boas práticas de fabricação, grau brix, não fazem parte do vocabulário dos produtores rurais.

A produção de rapadura ocorre du-rante todo o ano, sendo que em perío-dos mais secos (menos chuvas) o rendi-mento da cana para rapadura é melhor, comenta um dos produtores. Todo o conhecimento sobre a produção foi ad-quirido pelos familiares mais velhos. Na atividade trabalha toda a família, desde crianças até adultos. Os mais jovens car-regam cana para as moendas ou puxam os bois e os mais velhos moem a cana ou fi cam à frente do forno, na concentração do caldo.

A produção de rapadura se inicia com o corte da cana no campo, depois esta é transportada em lombo de animais (jumentos) até o local do engenho. Cada carrego que o animal faz é chamado de carga e, nesta operação, são levados de 80 a 100 pedaços, em média, de cana, equivalente a uma média de 40 a 50 ca-nas. Os produtores trabalham com 12 a 14 cargas por dia, visando a produzir, em média, 100 rapaduras. Este trabalho é ini-ciado num dia, para no outro bem cedo começar o processamento de fabricação da rapadura. Após iniciado, o trabalho só para após processar todo o caldo das canas, terminando toda a operação por volta das 18h.

Os engenhos do Mulungu e Barro-ca do Faleiro são constituídos de uma moenda acionada por tração animal, um forno a lenha de cinco bocas, cinco tachos de cobre, uma gamela grande de

madeira, bancadas e formas de madeira, conchas e espátulas. Todos os materiais foram confeccionados de forma rústica e artesanal (Figuras 1, 2 e 3).

Figura 1 - Bois e moendas

Figura 2 - Forno a lenha

Figura 3 - Gamela e espátulas

No processo de fabricação de ra-padura participam de quatro a cinco pessoas, de forma ininterrupta, fazendo apenas rodízio de função nos momentos de refeição, período em que fazem um rápido repouso. No engenho, ‘moedor’ é aquele que fi ca responsável para passar a cana pelas moendas, sua atividade co-meça juntamente com o ‘tangedor’, pes-soa encarregada de tocar os bois, fazen-do girar as moendas (Figura 4). O caldo (garapa) extraído da moagem cai numa calha e através de uma tubulação chega ao tanque de recepção, com capacidade para mais de 300 litros. O caldo (garapa), antes de cair neste tanque, é fi ltrado por meio de um saco de aninhagem, usado somente para este fi m.

O caldo (garapa) é retirado do tanque e levado para o forno, que já está devida-mente aquecido com a queima de lenha. O caldo é colocado no segundo tacho (2) da seqüência de cinco, onde o ‘ponteiro’, pessoa responsável pelo cozimento do caldo até o ponto de rapadura, fi ca reti-rando as impurezas na forma de espuma, quando vai aquecendo e coloca em bal-des plásticos para depois jogar fora. Esse processo é feito até se perceber que o caldo está totalmente limpo. Daí o caldo é colocado aos poucos no tacho 1, onde vai sendo aquecido e perdendo a umida-de, daí, é jogado nos tachos 3, 4 e 5, de forma cadenciada, ao tempo que o caldo vai fi cando cada vez mais concentrado. Não existe um tempo para permanência em cada tacho, a regra é visual. Do tacho 5, o caldo já bem concentrado é transfe-rido para a gamela de madeira (Figuras 5, 6, 7, 8 e 9).

Figura 4 - Moedor

Figura 5 - Colocação do caldo no tacho 2

Figura 6 - Retirada das impurezas no tacho 2

OS MATERIAIS DO ENGENHO

O CORTE E O TRANSPORTE DA CANA

A LIMPEZA E CONCENTRAÇÃO DO CALDO

A MOAGEM

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Figura 7 - Visão geral do forno

Figura 8 - Transferência do caldo nos tachos

Figura 12 - Retirando a rapadura pronta da forma

Figura 13 - Banhando a cana com caldo concentrado

Figura 14 - Batendo e puxando o caldo concentrado

O RESFRIAMENTO E A MEXEDURA

O caldo concentrado despejado na gamela passa agora por um processo de mexedura ou batedura, realizada pelo mesmo ‘ponteiro’. Neste momento, outra pessoa o substitui, temporariamente, no comando dos tachos. Durante a mexe-dura, o material perde calor, iniciando o resfriamento. A massa é batida até fi car com um aspecto brilhante, agora já mais concentrada e menos quente. O ponto ideal é determinado pelo ‘ponteiro’, pois quem não vivencia esta atividade não consegue determinar o ponto ideal com facilidade (Figuras 10 e 11). No momento certo o ‘ponteiro’ despeja o caldo con-centrado nas formas de madeira

O ENFORMAMENTO DA RAPADURA

As fôrmas tradicionais têm capacida-de para sete rapaduras e meia, confeccio-nadas especialmente para este fi m. São facilmente montáveis e desmontáveis. A massa é colocada nas fôrmas e per-manece o tempo sufi ciente até ocorrer o endurecimento (Figura 12). O formato tradicional das rapaduras produzidas na comunidade é retangular, com peso mé-dio de 1000g, mas foi constatado fôrmas em forma de coração.

A “BATIDA”

Além da rapadura tradicional os pro-dutores também produzem a “batida”, uma rapadura branco-amarelo claro, pro-duzida com a mesma matéria-prima, o caldo concentrado, só que esse é batido, puxado e esticado com as mãos até fi car bem claro, daí, é só colocar nas formas para resfriar e solidifi car totalmente. Esse processo é iniciado com a colocação do caldo concentrado, que está sendo bati-do na gamela, na superfície de uma cana selecionada e raspada para tal fi m (Figu-ras 13 e 14). Figura 10 - Caldo concentrado jogado na gamela

Figura 11 - Batendo e esfriando o caldo concentrado na gamela

Figura 9 - Caldo concentrado no tacho 5

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O ARMAZENAMENTO E TRANSPORTE

Depois de resfriadas, as rapaduras e ‘batidas’ são armazenadas nas bancadas de madeira até terminarem todo o pro-cessamento do caldo. Em seguida são colocadas nos caixotes de couro de bo-vinos (confecção caseira) e são transpor-tadas pelos jumentos até as residências (Figura 15). No dia seguinte, bem cedo, a produção é levada para a feira livre do município, no centro da cidade, para co-mercialização.

A COMERCIALIZAÇÃO

A comercialização é feita na feira livre do município, nas sextas-feiras e sábados. O preço de cada rapadura é de R$ 3,00, mas também os produtores vendem meia rapadura (R$ 1,50), atendendo a pedidos dos consumidores. As rapaduras são expostas na bancada das barracas, sem nenhuma proteção contra os conta-minantes do meio (poeira, insetos, mãos sujas...), e são manipuladas sem nenhuma medida de higiene (Figura 16). Os consu-midores também não fazem exigência.

Pessoas de todas as classes conso-mem rapadura, entretanto, o consumo per capita é baixo, considerando outros doces vendidos em supermercados. A ra-padura é comprada, quase exclusivamen-te, para consumo in natura, porém, às vezes, é comprada para compor receitas

de cocadas, doces, xaropes e como subs-tituto do açúcar refi nado.

Toda a produção é artesanal, não existindo nenhum controle de produ-ção; os produtores não sabem quais são os custos de produção, a quantidade de matéria-prima por quilo de rapadura pro-duzida, nem sabem se a atividade é lucra-tiva ou não. Vendem cada rapadura por R$ 3,00 (três reais), mas não sabem qual o custo, nem o lucro que recebem por unidade. Eles comentam que não conse-guem sobreviver da rapadura, precisam cultivar e vender outros produtos (prin-cipalmente frutas) para complementar a renda familiar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ações voltadas para implementar a produção devem ser empreendidas nas comunidades. Pequenas transformações pontuais, vinculadas ao planejamento do Município, Estado e Brasil devem ser in-centivadas na busca da melhoria da agri-cultura familiar e justiça social. A comu-nidade do Mulungu e Barroca do Faleiro devem ser capacitadas e apoiadas nas di-versas técnicas de cultivo, bioquímica, di-versifi cação de produtos, gerenciamento de produção, comercialização, marketing, turismo, desenvolvimento sustentável e comércio solidário.

Sabemos que outras regiões do Brasil produzem rapadura de forma industrial, com altas produções e rendimentos, ge-

rando lucros signifi cativos e movimen-tando a economia de muitas cidades. Em nossa região a exploração é mantida por amor e tradição, e a cada dia vem se re-duzindo, devido à restrição de consumi-dores, principalmente nas gerações mais novas, pois as guloseimas artifi ciais são mais atrativas e difundidas.

A incrementação da rapadura na me-renda escolar seria uma boa alternativa para o aumento do consumo deste pro-duto, elevando a produção, ajudando na manutenção dos engenhos, atualmente ameaçados de extinção, e formando con-sumidores mais conscientes e voltados para a valorização de suas raízes históri-co-cultural e social. Os engenhos devem ser explorados como pontos turísticos de nossa cidade, pois além de aproveitar a fa-bricação artesanal de rapadura com o uso de engenhos movidos a energia dos bois, os visitantes podem se deleitar nas bele-zas naturais do local como a vegetação, os riachos, os pássaros, as pessoas com seus costumes e o ar puro da natureza.

Melhorias na produção, na renda fa-miliar e na qualidade de vida das pessoas, sem perder o brilho e o espírito bucólico da região do Mulungu e Barroca do Falei-ro é uma conquista que todos bonfi nen-ses devem buscar, mantendo viva a arte da fabricação de rapadura, a história e a biodiversidade de Senhor do Bonfi m.

REFERÊNCIASGOUVÊA H., Rapadura se qualifi ca como o mais famo-so doce nordestino. Disponível: <http://www.paraiba.pb.gov.br/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=7399 >

PINTO G. L. Fabricação de rapadura e açúcar batido. Informe Técnico, ano 11, n.65, Viçosa: Conselho de Extensão, Universidade Federal de Viçosa, 1990.

Figura 15 - Produção transportada por jumento

Figura 16 - Rapadura exposta à venda na feira livre