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como empresas sólidas e com uma estrutura de gover- nança corporativa sofisticada puderam cometer erro tão grave que as levou à situação de quase falência. O conceito de superconfiança pode mostrar como a especulação afetou a tomada de decisão dos gestores: quanto mais ganhavam especulando com derivativos, mais as empresas apostavam nessa estratégia, num processo de retroalimentação semelhante ao dos apos- tadores em cassinos. É difícil sair de uma estratégia quando se está ganhando. O conceito explica muitas das decisões financeiras erradas tomadas por CEOs, CFOs e outros altos executivos em diversos cenários econômicos. O modelo desenvolvido por Kahneman vai muito além desse conceito e mostra que pensar “rápido e devagar”, como sugere o títu- lo, envolve duas formas padrão de tomar decisões. Entender esse pro- cesso é uma das grandes contribui- ções do livro, pois os modelos de finanças comportamentais depen- dem de situações em que as pes- soas não agem de forma racional. Contudo, existe um limite para a aplicação desses conceitos: como destaca o próprio autor, conhecer os processos decisórios não é garantia de evitar os erros associados aos modelos de tomada de decisão. O livro dá várias sugestões de como fugir das armadilhas do nos- so próprio processo cognitivo envie- sado. Um dos efeitos analisados é o da predisposição, no qual a primeira opinião dada numa discussão acaba levando todos os participantes a uma rápida convergência de opiniões. Para evitar isso, Kahneman sugere que todos os participantes escrevam suas ideias sobre a pauta, antes da reunião, para impedir que o primeiro a falar acabe levando o grupo a convergir para sua opinião. Não se trata, portanto, de um livro com regras simples de autoajuda ou três a quatro itens para aju- dar os gestores. É uma obra sofisticada, para quem quer entender mais profundamente como processa- mos a informação e tomamos decisões, mas escrita de forma concisa e de fácil compreensão. Poucos pensadores conseguem nos fazer mudar a forma de ver o mundo – Kahneman é certamente um deles. O que se faz depois de chegar ao topo? Que objetivo resta a um pensador que ganha o prêmio Nobel? Para o psicólogo Daniel Kahneman, ganhar o Nobel de Economia – na verdade, não existe um Nobel em economia propriamente dito, mas sim um prêmio equivalente, concedido pelo Banco Central da Suécia desde 1969 – seria surpreendente, não fosse o fato de ele (e seu principal coautor, Amos Tversky, falecido em 1996) ter conseguido penetrar na mente do homo economicus para mostrar como estamos lon- ge da racionalidade prevista nos modelos econômicos tradicionais. O resultado principal foi a criação da Prospect Theory, que cria regras de decisão diferentes dos modelos ortodoxos de economia e finanças. O objetivo principal de Rápido e Devagar: duas formas de pensar é analisar o processo de tomada de decisão e as variáveis que influen- ciam nossa forma de pensar. Nesse livro, Kahneman revela uma das mais raras habilidades do mundo acadêmico: a de juntar conceitos sofisticados num arcabouço com- preensível para o leitor refinado, mas não especialista. Para empresários e gesto- res, poucas habilidades são mais importantes do que tomar decisões de forma correta. Muitas vezes, achamos que o processo segue uma fórmula simples: pegamos as informações relevantes, as pro- cessamos e definimos o melhor curso de ação. Kanehman mostra que vários preconceitos afetam o processo decisório – no fundo, somos influenciados por diversos efeitos sobre nosso processo cognitivo. A principal qualidade do livro é combinar profun- didade, lucidez e aplicabilidade. Embora apresente conceitos profundos, o autor consegue trazer exemplos práticos para uso do leitor no seu dia a dia. Um dos temas explorados por Kahneman (e Tversky) é como a superconfiança se forma no processo de tomada de decisão. O conceito ajuda a explicar parte dos erros cometidos num dos mais emblemáticos episódios da crise financeira – o das perdas com derivativos por empresas não financeiras. Corporações, que deveriam usar derivativos para se proteger da variação cambial, estabeleceram posições muito acima dos limites de exposição que caracterizavam proteção e, efetivamente, especularam com esses instrumentos. É difícil entender POR RODRIGO ZEIDAN “Rápido e Devagar: duas formas de pensar” Daniel Kahneman, Editora Objetiva, 2012 RODRIGO ZEIDAN é professor de Economia e Finanças da Fundação Dom Cabral e professor afiliado da Nottingham University Business School China. 100 DOM

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como empresas sólidas e com uma estrutura de gover-nança corporativa sofisticada puderam cometer erro tão grave que as levou à situação de quase falência.

O conceito de superconfiança pode mostrar como a especulação afetou a tomada de decisão dos gestores: quanto mais ganhavam especulando com derivativos, mais as empresas apostavam nessa estratégia, num processo de retroalimentação semelhante ao dos apos-tadores em cassinos. É difícil sair de uma estratégia quando se está ganhando. O conceito explica muitas das decisões financeiras erradas tomadas por CeOs, CFOs e outros altos executivos em diversos cenários econômicos.

O modelo desenvolvido por Kahneman vai muito além desse conceito e mostra que pensar “rápido

e devagar”, como sugere o títu-lo, envolve duas formas padrão de tomar decisões. entender esse pro-cesso é uma das grandes contribui-ções do livro, pois os modelos de finanças comportamentais depen-dem de situações em que as pes-soas não agem de forma racional. Contudo, existe um limite para a aplicação desses conceitos: como destaca o próprio autor, conhecer os processos decisórios não é garantia de evitar os erros associados aos modelos de tomada de decisão.

O livro dá várias sugestões de como fugir das armadilhas do nos-so próprio processo cognitivo envie-sado. Um dos efeitos analisados é

o da predisposição, no qual a primeira opinião dada numa discussão acaba levando todos os participantes a uma rápida convergência de opiniões. Para evitar isso, Kahneman sugere que todos os participantes escrevam suas ideias sobre a pauta, antes da reunião, para impedir que o primeiro a falar acabe levando o grupo a convergir para sua opinião.

não se trata, portanto, de um livro com regras simples de autoajuda ou três a quatro itens para aju-dar os gestores. É uma obra sofisticada, para quem quer entender mais profundamente como processa-mos a informação e tomamos decisões, mas escrita de forma concisa e de fácil compreensão. Poucos pensadores conseguem nos fazer mudar a forma de ver o mundo – Kahneman é certamente um deles.

O que se faz depois de chegar ao topo? Que objetivo resta a um pensador que ganha o prêmio nobel? Para o psicólogo Daniel Kahneman, ganhar o nobel de economia – na verdade, não existe um nobel em economia propriamente dito, mas sim um prêmio equivalente, concedido pelo Banco Central da Suécia desde 1969 – seria surpreendente, não fosse o fato de ele (e seu principal coautor, Amos Tversky, falecido em 1996) ter conseguido penetrar na mente do homo economicus para mostrar como estamos lon-ge da racionalidade prevista nos modelos econômicos tradicionais. O resultado principal foi a criação da Prospect Theory, que cria regras de decisão diferentes dos modelos ortodoxos de economia e finanças.

O objetivo principal de Rápido e Devagar: duas formas de pensar é analisar o processo de tomada de decisão e as variáveis que influen-ciam nossa forma de pensar. nesse livro, Kahneman revela uma das mais raras habilidades do mundo acadêmico: a de juntar conceitos sofisticados num arcabouço com-preensível para o leitor refinado, mas não especialista.

Para empresários e gesto-res, poucas habilidades são mais importantes do que tomar decisões de forma correta. Muitas vezes, achamos que o processo segue uma fórmula simples: pegamos as informações relevantes, as pro-cessamos e definimos o melhor curso de ação. Kanehman mostra que vários preconceitos afetam o processo decisório – no fundo, somos influenciados por diversos efeitos sobre nosso processo cognitivo.

A principal qualidade do livro é combinar profun-didade, lucidez e aplicabilidade. embora apresente conceitos profundos, o autor consegue trazer exemplos práticos para uso do leitor no seu dia a dia. Um dos temas explorados por Kahneman (e Tversky) é como a superconfiança se forma no processo de tomada de decisão. O conceito ajuda a explicar parte dos erros cometidos num dos mais emblemáticos episódios da crise financeira – o das perdas com derivativos por empresas não financeiras. Corporações, que deveriam usar derivativos para se proteger da variação cambial, estabeleceram posições muito acima dos limites de exposição que caracterizavam proteção e, efetivamente, especularam com esses instrumentos. É difícil entender P

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“ Rápido e Devagar: duas formas de pensar” Daniel Kahneman, Editora Objetiva, 2012

RodRigo Zeidan é professor de economia e Finanças da Fundação Dom Cabral e professor afiliado da nottingham University Business School China.

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leitura

tas observações que parecem exigir explicações causais, mas que não são explicáveis. na verdade, muitos fatos do mundo se devem ao acaso, inclusi-ve acidentes de amostragem. explicações causais para eventos casuais são, inevitavelmente, erradas. É muito grande nossa disposição para acreditar que muito do que vemos na vida é aleatório.

Daniel Kahneman conta que já ouviu várias pessoas dizerem que sabiam – “bem antes dela acontecer” –, que a crise financeira de 2008 era inevitável. Como pessoas inteligentes e bem infor-madas, muito interessadas no futuro da economia, não acreditavam que uma catástrofe fosse eminen-te, o autor conclui que não era possível saber da crise. nesse contexto, existe perversidade no uso da palavra “saber” – “eu sabia, bem antes dela acontecer, que a crise financeira de 2008 era ine-vitável”. essa linguagem leva a crer que é possível conhecer mais sobre o mundo do que realmente conseguimos. Kahneman demonstra que isso aju-da a perpetuar uma ilusão perniciosa.

Outra lição do livro para o mundo acadêmico é que, frequentemente, histórias de como as empre-sas prosperam e perdem a vigor atraem os leitores, porque elas oferecem o que a mente humana necessita – uma mensagem simples de triunfo e fracasso, que identifica causas claras e ignora o poder determinante da sorte e a inevitabilidade do fenômeno de regressão à média. essas histórias induzem e mantêm uma ilusão de compreensão. Assim, transmitem lições de pouco valor durável, para leitores ansiosos por acreditarem nelas.

Ao final da leitura, Kahneman nos faz pensar que ainda há muito a fazer para melhorar o proces-so de tomada de decisão. Um exemplo, dos muitos citados no livro, é a ausência de um treinamento sistemático que nos torne capazes de conduzir reuniões eficientes – atividade que ocupa grande parte do tempo dos executivos nas organizações.

Segundo o autor, a simples prática de fazer com que os participantes escrevam um breve resu-mo das suas posições, antes de discutir qualquer questão, pode ajudar bastante. esse procedimento aproveita mais a diversidade de opiniões e conhe-cimentos dentro do grupo.

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um livro sobre a tomada de decisões é, com certeza, relevante para executivos e o público em geral. O livro de Kahneman é genial e ajuda a explicar nossos comportamentos na vida, nos rela-cionamentos românticos e na educação dos nossos filhos. A primeira lição que podemos tirar do livro é que os erros de previsão são inevitáveis, pois o mundo é imprevisível. A segunda é que uma gran-de certeza não é indicadora de precisão – a baixa confiança talvez forneça mais informações. Mas há outras lições ainda mais surpreendentes.

Kahneman mostra que quando tomamos uma decisão, geralmente nos baseamos na história que conseguimos construir a partir das informações dispo-níveis. O importante para uma boa história é a consis-tência da informação e não o quanto ela é completa. na verdade, segundo o autor, quando sabemos pouco é mais fácil encaixar tudo numa narrativa coerente.

A confiança que depositamos em nossas crenças depende, em grande parte, da qualidade da história que conseguimos contar sobre o que vemos, mesmo quando enxergamos pouco. Muitas vezes, não admitimos a possibilidade de que fal-tam evidências críticas para nosso julgamento. Lidamos com as informações limitadas de que dis-pomos como se elas fossem tudo o que há para se saber. Se for uma boa história, acreditamos nela. Paradoxalmente, é mais fácil construir uma histó-ria coerente quando sabemos pouco e há menos peças a serem encaixadas no quebra-cabeça. nossa convicção reconfortante de que o mundo faz sentido se baseia num alicerce firme – a quase ilimitada capacidade de negar nossa ignorância.

A quantidade de evidências e sua qualidade não contam muito na nossa tomada de decisão, pois mesmo uma evidência banal pode construir uma história muito boa. As histórias mais coerentes não são, necessariamente, as mais prováveis. Mas elas são plausíveis e as noções de coerência, plausibili-dade e probabilidade são facilmente confundidas.

Prestamos mais atenção ao conteúdo das mensagens do que às informações sobre sua con-fiabilidade. Assim, temos uma visão do mundo que nos cerca mais simples e coerente do que os dados poderiam justificar. Tirar conclusões apressadas é mais seguro no mundo da nossa imaginação do que na realidade. As estatísticas produzem mui- Michel FleuRiet é professor associado da Fundação Dom Cabral

e da Universidade Paris-Dauphine.

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