Ratos - Gordon Reece

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Livro Ratos

Transcript of Ratos - Gordon Reece

  • Copyright 2010 Gordon Reece

    TTULO ORIGINALMice

    PREPARAOElisa Nogueira

    REVISOFatima Amendoeira MacielUmberto Figueiredo Pinto

    REVISO DE EPUBJuliana Pitanga

    GERAO DE EPUBSimplssimo

    E-ISBN978-85-8057-139-4

    Edio digital: 2013

    Todos os direitos desta edio reservados

  • EDITORA INTRNSECA LTDA.Rua Marqus de So Vicente, 99, 3 andar22451-041 GveaRio de Janeiro RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

  • Para Joanna

  • IMINHA ME E EU vivamos em um chala cerca de meia hora da cidade.

    No foi fcil encontrar uma casaque satisfizesse todas as nossas exigncias:no campo, sem vizinhos, trs quartos,jardins na frente e atrs. Umapropriedade que fosse antiga (elaprecisava ter personalidade), mas queao mesmo tempo tivesse todas ascomodidades um sistema modernode aquecimento central era essencial,pois detestvamos sentir frio. Deveriaser silenciosa. Deveria oferecerprivacidade. Anal, ramos ratos. No

  • procurvamos um lar. Procurvamosum lugar onde pudssemos nosesconder.

    Visitamos um grande nmero deimveis com o corretor, mas, quandopodamos ver o telhado de uma casavizinha por entre as rvores ou ouvir obarulho do trnsito a distncia,trocvamos um olhar sutil quedescartava aquela possibilidade.Seguamos com a visita, claro,escutando pacientemente enquanto obvio era explicado: Esse o quartoprincipal; esse outro quarto; esse obanheiro. Acreditvamos que seria rudeinterromper a visita quando o corretornos levara to longe da cidade, e aschances de minha me se impor diante

  • do convencido jovem com cabeloscheios de gel e um telefone celular queno parava de tocar ( J vimos o suciente,obrigada, Darren. No estamos interessadas. )eram as mesmas de ir at a lua. Ratosnunca so mal-educados. Ratos nuncaso assertivos. E, assim, passamos muitossbados visitando casas nas quais notnhamos qualquer interesse.

    Finalmente, porm, fomos levadasao Chal Madressilva.

    No era a casa mais bonita quetnhamos visitado com uma fachadade tijolinhos marrons, janelas pequenas,telhas de ardsia cinza e chamins commanchas de fuligem, a residncia tinhamais jeito de cidade que de campo.Mas era perfeitamente afastada. Cercada

  • por todos os lados por hectares de terra,o vizinho mais prximo cava a quaseum quilmetro. S era possvel chegarat o chal por uma estrada tortuosa eestreita, que permitia a passagem deapenas um carro por vez e serpenteavaat o enorme jardim. Com curvasfechadas e margeado por uma vegetaoalta que obstrua a viso, o caminhomais parecia um labirinto que umaestrada pblica. Pela primeira vez, nofoi difcil acreditar em Darren quandoele disse que poucos motoristas seaventuravam por ali, temendo carpresos atrs das lentas mquinasagrcolas. A estrada comprida e ladeadapor rvores que vencemos para chegar casa, com seus buracos e ondulaes,

  • apenas aumentava a impresso de que oChal Madressilva cava longe demaisda rodovia principal para que as durasrealidades do mundo nos encontrassem.

    Era tambm maravilhosamentesilencioso. Quando samos do 4x4 deDarren em um dia mido do incio dejaneiro, o silncio foi a primeira coisaque notei. Estava ali quando os pssarosnas rvores acima de ns pararam degorjear e Darren cessoumomentaneamente seu incansveldiscurso de vendas (Adoro essa casa. verdade! Eu me mudaria para c amanh, sepudesse); estava ali, o som maismaravilhoso que existe: a total ausnciade som.

    Os proprietrios, Sr. e Sra. Jenkins,

  • eram um casal de idosos. Eles nosreceberam porta, com seus cabelosgrisalhos e bochechas vermelhas,segurando suas canecas de chencostadas aos grossos casacos de l erindo sem que ningum houvesse ditonada particularmente engraado. O Sr.Jenkins explicou que eles voltariam amorar na cidade em decorrncia dasade da Sra. Jenkins coraofraco, como disse ele , pois noqueriam estar ali, no meio do mato,se algo errado acontecesse. Estavammuito tristes por precisarem partir,segundo ele armou, e nos garantiramque passaram ali trinta e cinco anosmaravilhosos. Sim, trinta e cinco anosmaravilhosos, repetiu a Sra. Jenkins,

  • como uma mulher acostumada a serpouco mais que um obediente eco domarido.

    Eles nos acompanharam na tpica edesconfortvel visita a uma nova casa:gente demais tentando se espremer paracaber nos corredores estreitos e noscmodos, alm da confuso diante detodas as portas (primeiro voc; no,primeiro voc). Enquanto passvamos deum cmodo a outro, eu sentia o olhardo Sr. Jenkins voltar a mim repetidasvezes, tentando entender como umatmida garota de classe mdia poderiater aquelas cicatrizes horrveis no rosto.Fiquei aliviada quando eles nos levarampela cozinha at o jardim dos fundos,pois pude me manter um pouco mais

  • para trs e evitar aqueles curiosos olhosazuis.

    O Sr. Jenkins era um excelentejardineiro e estava determinado agarantir que soubssemos disso.Caminhamos atrs dele pelo jardimenquanto ele exibia as rvores frutferas,a horta e os dois celeiros, que eram osmais limpos e organizados que eu jhavia visto cada ferramenta estavaem seu gancho, e at mesmo as luvas dejardinagem tinham seus prprios pregos,marcados com os nomes Jerry e Sue. Elenos mostrou o adubo fedido queproduzia, exclamando vaidoso: Aquiest: meu orgulho e minha alegria!, enos levou at a leira de ciprestes queplantou quando eles chegaram ali. As

  • rvores tinham mais de dez metros dealtura e, enquanto ele falava sobre abeleza dos troncos, olhei atentamenteatravs da vasta folhagem. Alm dela,havia somente a terra marrom dasfazendas vizinhas, estendendo-se poruma grande distncia.

    O Sr. Jenkins era especialmentevaidoso de seu jardim da frente. Oamplo gramado, perfeitamente aparado,era cercado por diversas espcies deplantas e arbustos que ainda mostravamcores vivas aqui e ali, apesar de serinverno.

    importante ter plantas queorescem no clima frio e muitassempre-vivas disse ele minha me. Caso contrrio, perde-se toda a cor

  • durante o inverno.Mame, tentando mudar de

    assunto, disse no entender muito sobrejardinagem, mas o Sr. Jenkins viu ocomentrio como uma oportunidadepara reparar essa falha, e deu incio auma longa palestra sobre os diferentestipos de solo.

    Esse disse ele um soloarenoso. um pouco seco, um poucofaminto. Precisa de muito adubo,fertilizante, turfa

    Afastei-me, incapaz de continuarescutando-o tagarelar sem parar.

    Folhas fertilizante articialextrato de pedra calcria.

    Pensei t-lo ouvido dizer sangue

  • seco em determinado momento, masdecidi que ouvira mal.

    Continuei caminhando, enquanto avoz irritante se tornava um fracomurmrio atrs de mim, at que meutrajeto foi bloqueado por um canteirode rosas grande e oval no centro dogramado. As ores haviam sidoarrancadas sem delicadeza, e as roseiraspareciam erguer seus caules amputadospara o cu em protesto. O canteirotinha aspecto de abandonado. Boa parteda terra estava remexida, e aquilo melembrou uma cova recm-aberta.

    Observando os outros arbustos eplantas no jardim, percebi que no sabiao nome de quase nada. Se eu quisessemesmo ser uma escritora, certamente

  • precisaria resolver aquilo. Escritoressempre sabem os nomes das ores e dasrvores; isso faz com que paream maisconveis, mais oniscientes. Decidi quea primeira coisa que faria quando nosmudssemos (pelo olhar sonhador norosto de mame, soube que aquela serianossa nova casa) seria aprender os nomesde todas as ores e rvores do jardim seus nomes comuns e em latim.

    Quando voltei para perto demame, o Sr. Jenkins no pde maiscontrolar sua curiosidade:

    E o que aconteceu com voc,minha querida? perguntou ele,indicando, com um movimento vagodas mos, minhas cicatrizes.

    Mame instintivamente me puxou

  • para perto dela e respondeu por mim: Shelley sofreu um acidente. Um

    acidente na escola.

  • 2MINHA ME COMPROU o ChalMadressilva com o dinheiro querecebeu aps o divrcio. Uma mixaria.Meu pai um advogado de famlia,acredite se quiser trocou minha mee eu, h um ano e meio, por suasecretria, uma mulher cominacreditveis trinta anos a menos, jeitode boneca sexy e decote sempreprofundo. (Ela era s dez anos maisvelha que eu! E eu ainda deveria v-lacomo minha nova me?) Os aspectosdo divrcio relativos s nanas e minha custdia se arrastaram por quaseum ano. Meu pai disputava com minha

  • me como se ela sempre tivesse sido suapior inimiga, e no sua esposa pordezoito anos, e tentou tirar tudo que elapossua inclusive eu.

    Mame engoliu muitas coisas ela abriu mo de seu direito a uma partedos rendimentos de meu pai e de umapenso, e at devolveu alguns dospresentes que ele lhe dera durante ocasamento, como ele exigiu topetulantemente , mas se recusou a seseparar de mim. O juiz declarou que,por ser uma garota de catorze anosexcepcionalmente inteligente, eutinha capacidade de decidir sozinha comquem preferia morar. Como eu desejavadesesperadamente viver com minhame, o pedido de guarda de papai foi

  • nalmente recusado. Quando elepercebeu que no poderia punir minhame pelos anos de dedicao afastando-me dela, mudou-se para a Espanha comZoe. Apesar de, aparentemente, meamar tanto a ponto de exigir que eumorasse com ele, meu pai partiu semsequer dizer adeus e eu nunca mais tivenotcias.

    TODA A PAPELADA PARA A COMPRA dacasa foi resolvida com uma rapidezincomum, e nos mudamos para o ChalMadressilva em menos de um ms, nonal de janeiro. Era um daqueles

  • estranhos dias de inverno no hemisfrionorte, em que o cu ca cheio denuvens escuras e carregadas em ummomento e, no outro, o sol brilharmemente, como se a primaverachegasse mais cedo, apenas para serafastada novamente por mais nuvensmacabras, que trazem um vento terrvele gotas de chuva gelada.

    Os homens que zeram amudana, mascando chiclete e exalandoum forte odor corporal, caminhavampara dentro e para fora da casa combotas cheias de lama, sugerindo em altoe bom som que o trabalho os deixavacom muita sede e que seriam capazesde matar por uma xcara de ch.Minha me, obedientemente, levou para

  • eles xcaras de ch com leite, em umabandeja, e adicionou trs ou quatrotorres de acar em cada uma,conforme instruram, e ento eles sesentaram na calada, bebendo efumando, recostados nas caixas quedeveriam estar carregando. Um delesviu minha me reparar num feioarranho que surgiu na lateral do pianoe explicou-se grosseiramente:

    No zemos isso, querida. Jestava assim.

    Ela voltou rapidamente para dentrode casa (ratos tm pavor de confrontos), etodos riram.

    Eles a pressionaram para quepagasse em dinheiro incluindo a meiahora que gastaram bebendo ch e

  • imitando o sotaque chique dela e,nalmente, foram embora, deixandopontas de cigarro jogadas entre as flores.

    NO ME ARREPENDI de trocar a luxuosacasa na cidade, onde morei por quasetoda a minha vida, pelo modestoconforto do Chal Madressilva. A casana cidade deixara de ser meu lar quandoas negociaes relativas ao divrciocomearam; ento, ela se tornou apropriedade matrimonial uma peavaliosa, capaz de fazer os advogadostramarem como se fossem doishabilidosos jogadores de xadrez. Uma

  • propriedade matrimonial nunca pode serum lar feliz.

    Havia muitas lembranas ali boas e ruins. Eu no saberia dizer quaiseram mais dolorosas: meu pai fantasiadode Papai Noel quando eu tinha seteanos, entregando-me um pequenohamster de pelos dourados, que tremiaem suas mos, cuidadosamente unidasem concha; meu pai, perigosamentebbado, chutando a porta da frente, seteanos depois, porque era sua vez decar comigo no nal de semana e eume recusava a ir com ele; a festa dequinze anos de casados de meus pais,quando eles danaram de rosto colado,na sala, diante de todos os amigos aosom de Wonderful Tonight, de Eric

  • Clapton; trs anos depois, meu paiempurrando minha me com tamanhaira que fez com que ela casse no cho equebrasse um dos dedos. Tudo naquelamesma sala

    Havia outro motivo pelo qual euestava aliviada de deixar a propriedadematrimonial, uma razo que eu relutavaem admitir at para mim mesma. Era atentao de continuar amando meu pai.Apesar da forma desprezvel como elenos tratou e de meus esforos parapensar nele como a pior pessoa possvel,ainda era difcil romper o lao desangue. Em todos os lugares havialembranas de seu outro lado, dagentileza da qual ele era capaz e doquanto nos divertamos juntos. Havia a

  • casinha na rvore que ele construiu paramim quando eu tinha seis ou sete anos,as belas prateleiras que instalou em meuquarto antes do ensino mdio, e acoleo de clssicos infantisencadernados em couro que comproupara mim em Londres (foi meu paiquem me incentivou a ser umaescritora, foi ele quem plantou essasemente). Na garagem, onde elecostumava se exercitar e onde aindapodia sentir um fraco cheiro de seu suor, havia um velho alvo no qualbrincvamos de acertar dardos, rindohistericamente.

    Porm, a lembrana mais forte demeu pai talvez viesse sempre que eu meolhava no espelho e via seus olhos

  • castanhos me encararem. Nunca fui toprxima de meu pai quanto de minhame, mas, quando vivamos momentosfelizes, quando eu era pequena e ele melevantava contra os raios de sol como setentasse ver atravs de mim, essesmomentos com ele eram, de certaforma, muito melhores.

    Guardei esse segredo de minhame, claro, pois isso a deixariamagoada. Contudo, enquantopermanecemos na propriedadematrimonial, a terrvel tentao persistiue, se minha me e eu discutssemos porqualquer motivo, esse sentimentosubitamente crescia. Com a mudana,eu esperava que essa emoo invasoracomo um cavalo de Troia perdesse a

  • fora e, por m, sumissecompletamente.

    O CHAL MADRESSILVA signicou umrecomeo. Eu adorava a cozinha, comos armrios antigos, o piso terracota e amesa de pinho escovado o cmodoestava sempre quente e confortvel,independentemente de quanto o climafosse ruim; fazamos ento todas asrefeies ali. Eu adorava a maneiracomo a sala de estar se unia sala dejantar, sem uma parede para dividi-las,de forma que, mesmo em atividadesdiferentes, eu sempre sentia que minha

  • me estava por perto. Eu adorava alareira com acabamento de pedracalcria, a prateleira de carvalho polidoacima dela e os pequenos losangos dasjanelas em estilo Tudor. Eu adorava adesgastada escada de madeira, cujoquarto degrau fazia sempre um barulhoalto, no importava como pisssemos.Eu adorava meu quarto, com as vigas demadeira do teto expostas e um bancoconstrudo junto janela, onde eu podialer por horas a o aproveitando aluminosidade mais pura e mais clara quej conheci. Eu adorava abrir as cortinaspela manh e ver o recorte formadopelos campos arados em vez dasidnticas casas de tijolos vermelhos nosbairros mais caros, todas com uma BMW

  • ou uma Mercedes na frente.Principalmente, eu gostava de levar umacadeira para o jardim dos fundos, sentar-me e observar as nuvens em sua lentatransformao, parecendo cera coloridaem uma daquelas luminrias de lava.

    Fitando o cu, eu gostava deimaginar que vivia em uma poca maissimples e inocente de prefernciaantes de surgirem os seres humanos,quando a Terra era um vasto parasoverde e quando a crueldade de ferirapenas por puro prazer eracompletamente desconhecida.

  • 3MAME FOI UMA JOVEM advogadabrilhante, descoberta por uma dasmelhores rmas de advocacia deLondres enquanto ainda estava nauniversidade. Aceitou o empregoquando se formou, mas trabalhar naempresa no funcionou para ela. Minhame detestou viver em Londres, com asmultides agressivas, os metrs lotadosna hora do rush e os moradores de ruabbados com suas caras inchadas(Londres no lugar para um rato), e, apsquatro anos, decidiu mudar-se para ocampo. Ela conseguiu um emprego naEversons, a maior rma de advocacia

  • da cidade, onde conheceu meu pai, queera oito anos mais velho e scio daempresa. Aps namorarem por poucomais de seis meses, ele a pediu emcasamento.

    Sempre me perguntei, sendo elesto diferentes e dada a maneira como ocasamento terminou, por que meu paiescolheu minha me e por que ela sedeixou escolher por ele. No tenhodvidas de que ele se sentia atrado as fotos do casamento mostram comoela era linda, com traos fortes e sorrisoarrebatador. Contudo, tenho certeza deque ele tambm viu um desao emconquistar o corao daquela moatmida e diferente, graduada com louvore dona de reconhecido talento para a

  • advocacia. Talvez, aps suasexperincias em Londres (seuapartamento foi invadido, sua bolsa foiroubada em plena luz do dia), minhame quisesse algum forte como papai aseu lado para proteg-la. Talvez tenhaimaginado que a fora dele seriamagicamente transferida para ela. Outalvez tenha apenas sido conquistada porsua aparncia e seu charme: papaisempre foi galante mesmo quandocriana, eu percebia, com cimes, oefeito que seu sorriso fcil exercia sobreoutras mulheres.

    Quatro anos depois que nasci meupai insistiu para que mame largasse oemprego e casse em casa, cuidando demim em tempo integral. Disse que no

  • queria que sua lha passasse de bab embab, como se fosse um pacote; disseque no queria que sua lha voltasse daescola para uma casa vazia pois os paisestavam ocupados trabalhando; disse queo salrio dele era mais que sucientepara manter a famlia e que no havianecessidade de ambos trabalharem. Suainsistncia em nada estava relacionada(obviamente) ao fato de mame estarprestes a ser promovida a scia. Nemestava relacionada (obviamente) a ela serconsiderada uma das melhoresadvogadas da rma ou realidade deque sua mente perspicaz fazia meu paise sentir, em muitos momentos,inadequado e estpido.

    Mame fez o que ele queria,

  • obedientemente. Anal, ele sabia o queera melhor; era mais velho, era scio naempresa, era homem. Como ela poderiaresistir, ainda que quisesse? Como umrato resiste a um gato? Por isso, ela abriumo do emprego que amava e, durantecatorze anos, dedicou-se a cuidar demim e da casa cozinhar, fazercompras, lavar, passar , enquanto meupai se tornava um dos principais sciosda Eversons.

    Quando ele a abandonou, elaestava com quarenta e seis anos. Seuconhecimento jurdico estavacompletamente desatualizado abandonado como uma fruta queapodrece no p. Seu registro prossionalno era renovado havia catorze anos.

  • O nico emprego que conseguiufoi como assistente jurdica na rmade advocacia Davis, Goodridge &Blakely, em uma das ruas maisdecadentes da cidade, atrs da linha dotrem. Os scios da empresaaproveitaram sua longa ausncia domercado como desculpa para lheoferecer um salrio risvel. pegar oulargar, disseram, e, claro, ela pegou.Foi colocada em uma pequena sala, quedividia com duas secretrias, para quecasse claro que era vista como poucomais que outra secretria, e no comouma advogada qualicada, comodeveria.

    Os scios, porm, logo perceberamquanto ela era competente, e se

  • surpreenderam com a rapidez com quese inteirou de tudo o que havia perdidonaqueles anos. Blakely, um fracoadvogado da rea criminal, descarregounela um vergonhoso nmero declientes, usando-a como assistentepessoal e faz-tudo; Davis, diretor dodepartamento de danos pessoais, passavaa ela uma quantidade cada vez maior deseus processos mais problemticos, nosquais ele havia trabalhado de forma todesorganizada que mal sabia o que fazerem seguida. Ao nal do primeiro ano,mame j cuidava de alguns dos casosmais difceis da empresa e recebiamenos que as secretrias.

  • BRENDA E SALLY , as secretrias quedividiam a pequena sala com minhame, acharam que a mudana para oChal Madressilva era um erro, e nohesitavam em dizer isso.

    Shelley tem quase dezesseisanos, Elizabeth dizia Brenda. Vaiquerer encontrar os amigos na cidade, noite

    verdade continuava Sally. Ela sair para danar todos os naisde semana, se for minimamenteparecida com minha lha. E vocpassar a vida toda levando-a ebuscando-a na cidade.

    Minha me tentava manter sua

  • vida particular em particular ou tantoquanto fosse possvel sem ofenderBrenda e Sally, que contavamalegremente, sem o menor embarao, ossegredos mais ntimos de seuscasamentos.

    Mame apenas corou e murmuroualgo sobre no se importar e ter certezade que Shelley no se aproveitaria disso.A resposta foi recebida comexclamaes de protesto: Elizabeth, voc to ingnua!

    Brenda e Sally sempre diziamcoisas desse gnero. Elizabeth, voc boazinha demais! Elizabeth, por que vocaguenta isso? Elizabeth, por que no seimpe? Elas viram-na aceitar comhumildade um aumento salarial

  • verdadeiramente ofensivo, viram Davise os outros advogados da empresadespejarem seus problemas na mesa delae mal agradecerem quando eramresolvidos, viram Blakelyconstantemente pedir a ela, cincominutos antes do m do expediente,que trabalhasse at mais tarde ou queanalisasse um processo no nal desemana, porque sabia que ela era fracademais para dizer no. Raramente sepassava um dia sem que ambas lhedissessem: Elizabeth, voc to ingnua!

    Minha me no contou a elas averdade sobre mim, claro. No disseque eu no precisaria de carona at acidade para encontrar meus amigos daescola porque eu no tinha amigos na

  • escola. Nenhum. No contou que eu fuivtima de um bullying to agressivo queprecisei sair do colgio e atualmenteestudava em casa. Minha me nocontou a elas que, por orientao dapolcia, nosso novo endereo no foiinformado escola para que as garotasenvolvidas no o descobrissem.

  • 4AS GAROTAS ENVOLVIDAS . As trs eram:Teresa Watson, Emma Townley e JaneIreson.

    Eram minhas melhores amigasdesde que fomos colocadas na mesmaturma, aos nove anos. Brincvamosjuntas em todos os intervalos (de pularcorda, de bambol, de amarelinha, demame posso ir) e nos sentvamossempre juntas no refeitrio da escola,para comer nossos almoosempacotados. Frequentemente nosvisitvamos nos nais de semana edurante as longas frias escolares.

  • ramos inseparveis, como umapatotinha, um clube. E at inventamosum nome as JETS , um acrnimocom nossas iniciais.

    Analisando nosso passado, perceboque as coisas passaram a ir mal entremim e as trs muito antes de o bullyingcomear.

    Quando tnhamos onze, doze, trezeanos, ramos consideradas boasmeninas. Levvamos nossos deveres asrio comparvamos as respostas apso teste semanal de soletrao,coloramos todos os mapas como sefossem o teto da Capela Sistina e nostelefonvamos depois da aula paradiscutir as lies de casa mais difceis.Eu sempre fui a melhor da turma em

  • ingls e em artes. Emma (apelidadaPippi Potter: Pipi por causa de seuscabelos ruivos e Potter por seus culosde aros redondos) parecia ter dom paraa matemtica; Jane, a mais sria de nsquatro, tocava violoncelo e fazia parteda banda da escola e de outra orquestra,na qual estudava e se apresentava aossbados, e Teresa, com seus belos olhose cabelo louro-avermelhado, queria seratriz e adorava as aulas de teatro. Nsconversvamos durante a aula, claro,como todos os alunos, mas temamos osprofessores; nunca sonharamos emresponder-lhes e eu no me lembro denenhuma de ns metida em grandesproblemas.

    Por volta dos catorze anos, porm,

  • elas comearam a mudar. E eu, no.Emma trocou os culos por lentes

    de contato e cortou os lindos cabelosem um penteado punk raspadoacima das orelhas e com uma faixavermelha e espetada no centro. Janedesistiu da msica e parecia no seimportar com suas tarefas da escola.Comeou a pintar os cabelos de preto eas unhas tambm, para combinar. Seucorpo se desenvolveu e seus seiosaumentaram, e, quando usavamaquiagem, parecia ter mais de dezoitoanos. Jane sempre arrumava problemascom os professores, mas nada do queeles zessem nem advertncias oususpenses parecia incomod-laminimamente. Era como se ela

  • rejeitasse tudo relacionado escola evivesse como uma detenta numa priso,contando amargamente os dias at quefosse libertada.

    No entanto, foi Teresa Watsonquem mais mudou. Ela passou a medirum metro e oitenta quase que do diapara a noite. Em vez de fofa e adorvel,tornou-se magra e abatida. Seu corpocou seco, ossudo e feio; o rosto erasrio e as bochechas pareciam durascomo pedras. Teresa comeou a usarroupas que desaavam o cdigo devestimenta da escola coturnos DocMartens verdes, calas de cintura baixa,blusas curtas que deixavam mostra suabarriga comprida e branca, e um grandepiercing prateado na sobrancelha

  • esquerda , ainda que o diretor aalertasse, diversas vezes, para no ir escola vestida daquela forma. Ela deixouos cabelos crescerem e usava-osrepartidos ao meio e alisados. Conformeseu corpo ganhava essa rigidez, algosevero surgiu tambm em seus olhosverdes, duro e impiedoso. Algovagamente ameaador.

    Saber o que aconteceu depois mefaz pensar em como a aparncia e ocomportamento delas em relao a mimmudaram na mesma poca. Sempre meperguntei se existia alguma conexo.Nossa aparncia afeta nossapersonalidade? Ou nossa personalidadeque afeta nossa aparncia? A pinturacorporal para a guerra transforma um

  • ndio covarde em um guerreirocorajoso? Ou um guerreiro corajoso sepinta para mostrar sua crueldade? Umgato sempre parece um gato? Um ratosempre parece um rato?

    Independentemente da verdade, ofato que no mudei. Eu ainda meesforava nas aulas, ainda estudava paraas provas e ainda coloria meus mapas.Ainda era a primeira da turma em inglse em artes, e passei a ter as melhoresnotas tambm em histria, francs egeograa. E ainda me assustava quandoum professor gritava. Mantive openteado que usava desde os nove anos cabelos lisos at o ombro, comfranja. Cresci um pouco, mas no perdiminha forma infantil ainda tinha

  • dobras na barriga e minhas coxasroavam uma na outra enquanto euandava. No comecei a usar maquiagempara ir escola, como elas, porquemame sempre dizia que aquilo nofaria bem minha pele. Quando tinhaespinhas, eu no mexia nelas (mamedizia que, se eu as cutucasse, meu rostocaria marcado), enquanto outrasgarotas espremiam as suas com as unhaspintadas e aadas e cobriam as pequenasferidas com base. Eu no usava brincos,colares, pulseiras ou anis como elas,pois tinha alergia a tudo que no fossede ouro, e tambm no gostava muitode joias pareciam s servir paraatrapalhar e eu tinha medo de perd-las.Usava as mesmas blusas, casacos e saias

  • de sempre para ir escola, e os mesmossapatos com velas laterais (Teresa diziaque eram meus sapatos ortopdicos),enquanto as outras se tornavam cada vezmais obcecadas por roupas e pelaaparncia.

    Percebi que elas nunca maispareceram felizes ao me ver quando euas procurava no ptio da escola ou norefeitrio. Quando estvamos juntas, aatmosfera passou a ser diferente como se elas se divertissem com umapiada da qual eu no podia participar.Eu tinha a impresso de que meolhavam da cabea aos ps com umpouco de nojo, e, pela primeira vez,preocupei-me com minha aparncia,envergonhada da gordura em minha

  • cintura, marcada pela saia, de minhafranja de criana e dos cravos em meuqueixo.

    Percebendo como elas meolhavam, a expresso em seus rostos,dei-me conta da sensao na qual euno estava pronta para acreditar deque minhas melhores amigas meachavam repulsiva.

    No brincvamos mais nosintervalos, ainda que eu quisesse, porqueaquilo era uma criancice. Em vezdisso, elas queriam se esconder atrs deuma das salas de aula, onde osprofessores no pudessem nos ver, emexer em seus celulares, desprezando-me cada vez mais por eu no ter umaparelho (minha me no podia comprar

  • nem mesmo para ela, e eu certamenteno pediria para mim). Quando nomexiam em seus telefones, conversavamquase exclusivamente sobre assuntos queno me interessavam: msica pop,roupas, joias e maquiagem. E, cada vezmais, falavam sobre garotos.

    Eu era a nica que no tinhanamorado. Eu tinha catorze anos,prestes a completar quinze, mas aindano entendia realmente aquela atrao.Quase todos os garotos em minha escolaeram grosseiros e mal-educados. Elesjogavam futebol como se fossemviciados naquilo e brigavam noscorredores; xingavam incessantemente,em um esforo desesperado paraparecerem dures, e tentavam

  • envergonhar as meninas com suasinsinuaes nojentas sobre sexo. Nspassamos anos detestando os meninos emantendo distncia. Agora, Teresa,Emma e Jane tinham namorados efalavam deles o tempo todo.Conversavam sobre suas tatuagens, oscursos que eles faziam, o tuning de seuscarros e os machucados resultantes deesportes ou de brigas. Gostavam mais deconversar, porm, sobre o que fariamcom os namorados nos ns de semana a quais lmes assistiriam, em qualboate tentariam entrar, comopenteariam os cabelos, qual bolsacomprariam para combinar com a calajeans que tambm comprariam.Algumas vezes, eu percebia no ter dito

  • uma nica palavra durante toda a horado almoo.

    Hoje, analisando a situao, sei quedeveria ter me afastado delas muitotempo antes e buscado novas amizades.Deveria simplesmente ter aceitado ofato de que nos tornramos pessoasdiferentes. Mas isso no era to claronaquele momento; ainda que eusoubesse que as coisas estavam mudandoe que sentisse uma hostilidade cada vezmaior em relao a mim, no percebi oquanto aquilo era srio anal,tivramos inmeras discusses ao longodos anos, todas rapidamente esquecidas.Alm disso, era impossvel imaginar avida na escola sem elas. Eu no tinhaoutros amigos nunca precisei ter

  • outros amigos. Sempre tive Teresa,Emma e Jane. Ns ramos as melhoresamigas desde os nove anos. Ns nosamvamos como irms. Ns ramos asJETS.

    Eu no imaginava o quanto ossentimentos delas por mim se tornaramnocivos. E no imaginava o perigo quecorria.

  • 5O BULLYING COMEOU em torno demaro de meu terceiro ano do ensinomdio. Ainda vivamos na propriedadematrimonial meu pai nos abandonaramais de seis meses antes e a mudanapara o Chal Madressilva aindademoraria dez meses.

    Nunca entendi realmente o quedespertou tal comportamento. Sei quevenci um concurso de contos na escolamais ou menos nessa poca e que fuipremiada com uma pequena taa deprata em uma das reunies matinais queenvolviam todos os alunos. Sei que

  • subimos na balana na aula de educaofsica e que eu era a menina mais pesadada turma. Sei que eu estava muitochorosa naquele ms, pois a audinciasobre a custdia pedida por meu paiocorreria no dia vinte e quatro, e, aindaque o advogado de mame garantisseque no havia qualquer risco, eu estavapetricada de medo de o juizdeterminar que eu vivesse com meu paie com Zoe. Nossa antiga professora, aSrta. Briggs, que sabia sobre o divrcio,foi muito atenciosa comigo quandopercebia que eu estava chateada, nohesitava em abraar-me e levar-me sua sala, onde me animava e me ofereciauma xcara de ch de hortel. Talvezelas tivessem cimes dessa ateno,

  • talvez tivessem inveja do prmioimportante que recebi, talvez serocialmente a menina mais gorda daturma tenha feito com que eu, derepente, perdesse todo o direito de sertratada como um ser humano Nosei. No fao a menor ideia. Talvez acrueldade tenha uma lgica prpria.

    Tudo comeou lentamente, comcomentrios irnicos e depreciativosque poderiam ser vistos comobrincadeiras, mas que logo perderamqualquer vestgio de bom humor emostraram ser o que realmente eram:palavras hostis e maldosas, ditas paramachucar. Eu quei em choque. Depoisde tantos anos de amizade, o fato deminhas amigas j no gostarem de mim

  • me deixou surpreendida, desnorteada.Eu tentei me afastar, mas havia sidotransformada na diverso delas, em umanova distrao diante do tdio que era ir escola. Elas procuravam por mim nosintervalos e na hora do recreio, e,mesmo que eu tentasse me esconderdesesperadamente, sempre meencontravam. Em uma variao grotescade nossas antigas brincadeiras, elasdanavam ao meu redor, formando umaroda para que eu no escapasse, egritavam os piores insultos nos quaisconseguiam pensar, at me fazer chorar:Seu pai abandonou voc porque tinhavergonha, sua gorda idiota! a me deShelley quem coloca o absorvente nela!

    Todavia, os insultos verbais logo

  • perderam a graa. Era preciso aumentarum pouco o nvel de dio para que abrincadeira continuasse interessante.

    Elas passaram a vandalizar meuspertences. Todos os dias, quando euvoltava dos intervalos, encontrava umanova maldade, uma nova violao: todosos meus lpis de cor quebrados ao meio,um trabalho de histria que eu passarahoras preparando cortado em tirinhas,cola derramada em meu sanduche depo integral, o contedo da lixeira dasala de aula despejado em minhamochila, uma minhoca to longa quantoum cadaro de sapato esmagada dentrode meu livro de exerccios de ingls, aspalavras CARA DE PIZZA e PORCA GORDArabiscadas com caneta preta permanente

  • na parte de trs de minha rgua demadeira, os cabelos de meus duendes dasorte arrancados e seus rostos riscados,pedaos duros de coc de cachorroenfiados em meu estojo da Hello Kitty.

    Eu no podia contar aosprofessores, porque tinha certeza de queisso, a longo prazo, apenas pioraria asituao. No queria dar s minhasperseguidoras motivos para ataquesainda piores eu no entendia, naquelapoca, que a crueldade no precisa demotivos para suas atitudes. Alm disso,no conava na capacidade da escola deme proteger. Eu havia percebido comoos professores mesmo a Srta. Briggs ngiam no notar o comportamentode Teresa, Emma e Jane, ignorando os

  • palavres e as ofensas: tudo por umavida mais tranquila.

    Eu deveria ter contado minhame hoje tenho conscincia disso ,mas tive vergonha. Senti vergonha dedizer que tinha sido escolhida parareceber aquele tipo de tratamento,como se eu carregasse um estigma queme diferenciava de todos os outros. Opior era que mame conhecia aquelasmeninas: havia preparado chs para elas,dera carona para elas, e acreditava quefossem minhas melhores amigas. Eusequer considerava que ela soubesse oquanto me odiavam. E temia asperguntas que ela inevitavelmente faria:O que aconteceu? Voc fez alguma coisa queas chateou?, porque, no fundo, eu no

  • conseguia afastar a sensao de queaquilo estava acontecendo por minhaculpa, a sensao de que, de certamaneira, eu era a responsvel.

    Alm disso, contar minha me ou escola signicaria confrontar minhasperseguidoras, e eu era completamenteincapaz disso. Simplesmente no tinhaessa fora. No tinha essa personalidade.Eu era um rato, no esquea. Parecia-me mais natural no dizer nada, sofrerem silncio, manter-me quieta e esperarno ser vista, e esgueirar-me peloscantos procura de um lugar seguroonde pudesse me esconder.

    A nica pessoa a quem penseiseriamente em contar toda a histria foia meu pai. At Zoe aparecer, ele

  • sempre me protegera. Ele at tentou meendurecer, como dizia, para que eufosse capaz de me defender,incentivando-me a correr com ele e atreinar jud, e tentando compensar ousupercompensar o que considerava a minuncia de minha me. Alimenteifantasias de ver meu pai entrar em aoe vir em meu socorro, como um super-heri das histrias em quadrinhos.

    Mas eu sabia muito bem que papaino era um super-heri. Eu melembrava de como ele havia se tornadogrosseiro e arrogante. E vulgar (certavez encontrei uma revista depornograa escondida em sua pasta detrabalho). Eu tinha certeza de que Zoeo envenenava contra mim (Shelley uma

  • garotinha fraca e mimada, estragada pelame!). E por que no o faria? Ela noqueria dividir o dinheiro dele comigo. Euduvidava que meu pai zesse qualquercoisa que irritasse Zoe. Duvidava queele zesse qualquer coisa que colocasseem risco seu acesso quela bocaprovocativa e queles seios de atriz defilme porn.

    Eu tinha um nmero de telefonedele na Espanha, e quase liguei Mas aideia de Zoe atender fez meu estmagose revirar.

    Papai j no fazia parte de minhavida.

  • 6A SUBMISSO SILENCIOSA no me salvou.Com o tempo, minhas melhoresamigas, em vez de atacarem meuspertences, atacavam a mim,diretamente.

    A primeira vez foi aps um almoona escola. Jane me segurou pelos cabelosenquanto Teresa e Emma enaram umpo doce na parte da frente de minhablusa. Em seguida, elas me empurrarame me puxaram, tentando amassar opozinho, para me sujar e envergonharao mximo. Quando tentei retir-lo,Teresa me deu um forte tapa no rosto.

  • O golpe e o barulho surpreenderam atodos at mesmo a Teresa , e eupodia jurar que ela pediria desculpasquando, subitamente, sua expresso seendureceu novamente. Ela segurouminha mo e puxou meus dedos paratrs. A dor lancinante sufocou meusgritos.

    Aps esse episdio, cou fcil paraelas: a violncia fsica se tornou umhbito.

    Depois das aulas, eu escrevia emmeu dirio tudo o que elas faziam,sentada em meu quarto, com umacadeira prendendo a porta para o casode minha me tentar entrar.Atualmente, esses registros parecemestranhos, e no apenas porque aquilo

  • que aconteceu em meu dcimo sextoaniversrio meu prprio onze desetembro fez com que os ataquesanteriores parecessem bobagens. Ficochocada com a ausncia de emoes,quase como se eu descrevesse algoocorrido a outra pessoa. No mesmodirio existem pginas e mais pginas dedesabafos emocionantes sobre o divrciode meus pais, mas, assim que o bullyingcomeou, os registros se tornaram maiscurtos e reticentes; e conforme o graude violncia aumentava, eles setornavam mais resumidos, quasesimplistas um mundo de sofrimentoreduzido ao mnimo; a histria dacrucicao escrita no verso de umacaixa de fsforos.

  • MAIO: Jane me empurrou contra amureta a caminho da aula deartes, fazendo-me cair sobre osarbustos espinhentos Emma mechamou de lsbica e arrancou aspresilhas de meus cabelos levando muitos os tambmEmma acendeu seu isqueirodiante de meu rosto e ameaoume incendiar

    JUNHO: Teresa tentou me daruma rasteira. Ela no acertava eme prendeu para que eu casseparada at que ela conseguisse.Fiquei com um hematomaenorme. No posso deixar quemame veja Jane e Teresa

  • jogaram um de meus sapatos atrsdo prdio do Departamento deInformtica. Teresa me deu umchute forte na canela quandopercebeu que eu o haviarecuperado. Quase desmaieiTeresa furou minhas costas comum compasso durante a aula degeografia. Fui ao banheiro e haviasangue na parte de trs da minhacalcinha

    Reconheo esse tom sonmbulo evazio quando vejo na tev ossobreviventes de um deslizamento deterra ou as vtimas de uma exploso.Escutei um estrondo forte. Vi muita fumaa .Penso que quanto maior o trauma,

  • menos adequadas as palavras se tornam,at enfrentarmos o maior de todos ostestes, quando apenas o silncio pareceapropriado.

    Porm, naquele junho eu quaseconsegui falar. Naquele junho, quaseabandonei minha paralisia e abri ojogo

    As aulas daquele dia haviamterminado. Eu precisava ir para osensaios de auta, mas Teresa, Emma eJane no me deixaram sair da sala. Elasme encurralaram atrs das carteiras e,quando tentei correr para a porta,puxaram-me at o fundo da sala.

    Jane me deu uma gravata e,ajudada pelas outras, tentou bater minhacabea contra o beiral de metal da

  • janela. Lembro-me de, de repente,conseguir me livrar delas e correr para aporta, quando algo pesado um dosenormes livros de fsica acertouminhas costas com tanta fora quemordi a lngua.

    Naquele momento, a Srta. Briggsentrou na sala, e as meninas rapidamentese afastaram e ngiram estar ocupadascom a estante de livros. A Srta. Briggspegou os papis que tinha ido buscar eestava prestes a sair quando me viu:paralisada, tentando conter as lgrimas.

    Est tudo bem, Shelley? perguntou ela.

    E foi ento que quase contei. Foiquando a consso quase saiu em umaonda de soluos e engasgos, mas notei o

  • olhar de Teresa frio e cruel, como ode um tubaro , e perdi a coragem.

    Sim, senhorita falei. Esttudo bem, senhorita.

    PRECISEI ME ESFORAR bastante para quemame no descobrisse o que estavaacontecendo. Eu usava blusas de mangascompridas o tempo todo, a m deesconder os hematomas em meusbraos, e cachecis para camuar osarranhes no pescoo. Tinha de usarpijamas, e no mais a camisola desempre, para que ela no visse as marcasamareladas e escuras em minhas canelas

  • e coxas, como sintomas de algumadoena terrvel e desconhecida.

    Tambm passei a tomar banhoantes que minha me chegasse dotrabalho. Eu me trancava no banheirodo andar de cima e limpava as manchasem meus casacos e saias, nas partes quese sujavam quando eu era empurrada oupressionada contra uma parede imunda,e at pregava os botes que eramarrancados quando elas me puxavampela blusa. Em muitas ocasies, limpeiminha mochila com gua e sabo, pararemover qualquer imundice que elashouvessem colocado nela. Felizmente,sempre fui esquecida e distrada, por issominha me acreditava quando eu diziater perdido minha lancheira, as presilhas

  • de cabelo ou os lpis de cor.Meu maior medo era que elas me

    enviassem e-mails agressivos e minhame descobrisse o que estavaacontecendo. Apesar de raramentetrocarmos mensagens, eu sabia que elastinham meu endereo de e-mail e ficavapetricada em pensar que um diamame abriria uma mensagem repletadas piores ofensas. Por isso, eu acordavamais cedo todos os dias e olhava minhacaixa de entrada antes que ela descessedo quarto. Mas as garotas envolvidas eramespertas demais para me ofenderem pelainternet. Sabiam que um e-mail poderiaser visto por minha me e, ento,rastreado at elas, e estavam sedivertindo demais para correrem esse

  • risco.Elas quebraram o silncio virtual

    apenas uma vez. Numa manh desbado, abri uma mensagem de umremetente desconhecido, j esperandopelo pior. Era uma imagem pornogrfica um homem fazendo algo nojentocom uma mulher , to horrvel queat hoje no gosto de pensar nela. Aindaestava na tela quando minha me seaproximou, atrs de mim, perguntandose havia novas mensagens. Quase noconsegui apertar a tecla delete a tempo.(No, me, nenhuma mensagem nova.)

    Conclu que aquele e-mail foraconsequncia de um porre de BacardiBreezer em uma noite de sexta, o queas deixou bbadas demais para pensar, e

  • nunca mais aconteceu nada parecido.Contudo, apesar de meus esforos,

    minha me percebia que algo estavaerrado. Eu sentia suas antenas ligadas,tentando entrar em minha mente edescobrir o que mudara to subitamenteem mim. Se ela no estivesse toocupada naquele vero com o casoJackson uma ao envolvendo danosmorais que Davis ignoraravergonhosamente e, ento, pedira-lheque preparasse para o julgamento ,tenho certeza de que teria descoberto.

    Contei os dias at que o anoescolar terminasse e, nalmente finalmente! , as frias de verochegaram para me salvar.

  • NO FINAL DE JULHO minha me e eudeixamos a obscuridade claustrofbicad a propriedade matrimonial e samos defrias passamos duas semanas em umchal alugado em Lake District. Fomosagraciadas com um clima maravilhoso.Caminhamos pelas montanhas, alugamosbicicletas, seguimos trilhas marcadas portinta vermelha nos troncos das rvores enas rochas e nadamos nos lagos.Vagamos pelas belas cidadezinhasprximas, visitando antiqurios e nosempanturrando de pezinhos docesrecheados com geleia em casas de chto silenciosas quanto bibliotecas.

  • noitinha preparvamos comidasextravagantes e lamos durante horas.Minha me escolhia ttulos da coleode romances populares existente nochal e lia em voz alta os trechos maisengraados. Eu li Macbeth, um dos livrosexigidos para meus exames do anoseguinte, anotando metodicamente todasas palavras que no conhecia em umcaderno de exerccios que compreiespecialmente para isso. No pudeevitar imaginar os rostos de Teresa,Emma e Jane nas trs bruxas aquelastrs bruxas anormais intervinham emminha vida como as outras trs faziamna vida de Macbeth. Mas, pensava eu,que futuro essas bruxas reservavam paramim? Conforme lia, quei surpresa ao

  • descobrir que fora lady Macbeth quemarquitetara o assassinato do rei Duncan,no Macbeth, como eu pensara, epeguei-me a me perguntar,considerando o que minhas melhoresamigas haviam feito, se as mulheresseriam mesmo o sexo frgil. Seriapossvel que as mulheres na verdadefossem mais cruis que os homens?

    Em determinados momentosdaquelas frias esqueci-mecompletamente de Teresa, Emma eJane, de seus golpes e insultos e dasdores aps seus chutes; nessesmomentos, tambm me esqueci do paique me abandonou quando eu aindaprecisaria tanto dele. Enquanto minhame e eu nadvamos em um dos lagos

  • gelados, rindo, gritando e tossindo porcausa do frio, ou enquanto eu a seguiapelas trilhas das montanhas, onde vacasamedrontadas se levantavam lentamentequando nos aproximvamos, eu esqueciaos detalhes dolorosos de minha vida eera feliz.

    Setembro, porm, logo chegou.Conforme o dia de voltar s aulas seaproximava, sentia-me mais cansada,com dores de cabea e febril. Sempreque pensava na escola, meu estmagoardia acidamente. Eu no tinha fome e,na hora das refeies precisava lutarcontra a nusea que sentia e forar-me acomer o que estava em meu prato, paraque minha me no desconasse. Noconseguia me concentrar em nada. No

  • conseguia ler duas linhas.Na noite anterior ao incio das

    aulas no consegui dormir, tentando mefortalecer para o que enfrentaria. Era oano dos exames nais. Se eu me sassebem o suciente, poderia continuar naescola e me preparar para auniversidade. Eu tinha certeza de que asgarotas envolvidas no tinham qualquerinteno de permanecer na escola esumiriam aps as provas. Isso signicavaque eu precisava sobreviver a apenasum ano de aulas (mantendo-me quieta,torcendo para no ser vista e esgueirando-mepelos cantos procura de um lugar seguroonde eu pudesse me esconder) e, ento,tudo terminaria. Eu estava conante deque sobreviveria a um ano.

  • Pensei at que o bullying poderiater acabado quando eu voltasse; quetalvez as longas frias de seis semanastivessem colocado um ponto nalnaquilo, assim como uma clareira abertana oresta impede o fogo de prosseguirpela mata. Anal, elas tambm fariam osexames e, ainda que no tivesseminteresse em ir para a faculdade,precisariam de boas notas se quisessemter bons empregos. Talvez estivessempreocupadas demais com elas mesmaspara gastarem seu tempo comigo.Talvez o bullying diminusse. Talvezparasse de vez. Talvez

  • EU ESTAVA ERRADA , claro. A partir doprimeiro dia de aula o bullyingrecomeou. Parecia que elas haviamsentido falta daquela rotina e tentavamrecuperar o tempo perdido.

    Os ataques alcanaram outro nvel.Obedientemente, registrei no

    dirio os traumticos relatos curtos evazios de minha guerra secreta odirio que permanecera gloriosamentebranco ao longo do vero.

    SETEMBRO: Teresa socou meurosto no banheiro feminino. Tiveum forte sangramento no nariz,que no queria parar. Disse minha me que cara nocorredor Elas me seguraram no

  • cho, Teresa puxou minha blusae meu suti para cima e fez umvdeo com o celular. Ela disse:Suas tetas feias vo parar noYouTube Elas meempurraram contra a parede dobanheiro e se revezaram cuspindoem meu rosto

    OUTUBRO: Teresa bateu com suabolsa em minha cabea enquantoeu bebia gua no bebedouro.Fiquei com um corte profundo nocu da boca Elas me esperaramaps as aulas e me surraram.Teresa sentou-se em cima de mime soltou um pum na minha cara.Quando voltei para casa, vomitei

  • duas vezes. Consegui limpartudo antes que mame chegasse...

    O que me fez perceber que eu noconseguiria aguentar aquilo um anointeiro que eu no sobreviveriasequer ao primeiro trimestre foi umincidente no final de outubro.

    Percebi um cheiro estranho pertode minha mesa, certa manh, depois dointervalo um cheiro cido quepareceu piorar durante o dia. Aindaconseguia senti-lo ao meu redorenquanto caminhava para casa ecomecei a suspeitar de que vinha deminha bolsa de ginstica. Assim quecheguei em casa sentei-me no cho dasala e tirei tudo o que havia na bolsa

  • talvez minha toalha estivesse mida, eutivesse esquecido dentro dela uma meiasuja ou qualquer coisa parecida. Porm,minhas roupas de ginstica nocheiravam mal. Olhei dentro da bolsa,colocando a mo em todos os bolsos,mas no encontrei nada. No sabia oque era. E ainda sentia aquele cheirocido e enjoativo.

    Peguei meus tnis, para checar sealguma das solas estava suja, e algo caiuem cima de minha perna nua. Quandovi os olhos pretos cegos, o bico aberto ea trilha de veias sob a pele enrugada,gritei, histrica, e sacudi as pernasfreneticamente, at que a coisaescorregou para o cho. Encostei-meem um canto e sentei-me ali, segurando

  • os joelhos e chorandoincontrolavelmente, balanando o corpopara a frente e para trs como umamaluca. Demorou bastante at que eume acalmasse o suciente para pegar opardal morto e lev-lo lata de lixo doquintal.

    Ento, soube que elas haviamvencido; foi quando percebi que j nopoderia suportar o medo, a dor e ahumilhao.

    NUMA NOITE DE QUINTA-FEIRA, sentei-me em meu quarto e pensei em tudo damaneira mais prtica possvel. Mesmo

  • se, por milagre, eu reunisse a coragemnecessria para acus-las, ainda estavaconvencida de que minha situaoapenas pioraria; o diretor as chamaria nasala dele e elas negariam tudo. Nohavia provas (nenhum dos alunos asdelataria), por isso seria minha palavracontra a delas. Sem provas, o diretor,que era fraco e incompetente, alm deparanoico a respeito de qualquer coisaque pudesse denegrir a imagem daescola, no tomaria nenhumaprovidncia. Se eu as entregasse, elasestariam livres para me perseguir comainda mais determinao, mais obsesso.Era tarde demais para pedirtransferncia para outra escola, faltandoapenas dois trimestres para os exames

  • nais. Alm disso, mesmo que pedissetransferncia, elas sabiam onde eumorava.

    As trs garotas poderiam facilmenteme encurralar ou, pior, poderiam levarsua campanha de dio para dentro deminha casa minha casa! , o nicolugar onde eu ainda me sentia protegida.No conseguia suportar a possibilidadede que minha me encontrasse algumaobscenidade enada em nossa caixa decorreio. Qualquer coisa, qualquer coisamenos isso.

    No parecia haver meio de escaparda existncia miservel na qual eu meencontrava. Ou, alis, parecia existirapenas um.

  • PLANEJEI TUDO sentada minhaescrivaninha como se estivesse fazendoapenas mais um dever da escola. Decidique esperaria dois dias, at o sbado,quando minha me sairia para fazer ascompras da semana em umsupermercado em outra cidade. Eucostumava ir com ela, mas, dessa vez,inventaria uma dor de cabea. Depoisde pensar muito descobri a melhormaneira (usando o gancho na garagem,onde meu pai pendurava o saco depancadas, e a grossa faixa de meuroupo de banho), e arranquei umafolha de meu caderno de exerccios para

  • escrever um bilhete de despedida paraminha me.

    Porm, apesar de car mesa pormais de meia hora, as palavrassimplesmente no surgiam. Eu ainda noera capaz de contar a ela sobre obullying, nem mesmo em um bilhete queela s leria quando eu estivesse morta.No conseguia entender realmente porque no era capaz de me abrir com ela.Tudo em que pensava era que noimporta o quanto somos prximos dealgum, sempre existiro limites fronteiras que simplesmente no somoscapazes de atravessar, questes que nostocam to profundamente que nopodem ser compartilhadas. Talvez,p e n s e i , aquilo que no conseguimos

  • compartilhar com os outros seja o querealmente define quem somos.

    Eu rabiscava inconscientemente afolha de papel enquanto revirava frasesde despedida em minha mente, equando olhei para a mesa, no conseguiconter um sorriso amargo ao perceber oque eu havia desenhado. Era um rato. Eao redor de seu pescoo havia umacorda grossa.

    Eu sabia que era tmida; sabia quetinha tendncia a chorar com facilidade,a tremer e a perder a voz com qualquerreprimenda ou sinal de agresso, masforam necessrios meses de bullying atque eu nalmente compreendesse queeu era aquilo: um rato, um rato humano.E, ao mesmo tempo, percebi que aquele

  • desenho era a armao mais eloquenteque eu poderia deixar. Eu dobrei afolha, escrevi Mame e deixei-a naprimeira gaveta, onde seria facilmenteencontrada.

    E assim minha existncia teriachegado ao m, como a vida de tantosoutros ratinhos fracos antes de mim enforcada em casa, os ps descrevendocrculos cada vez menores e as mosmexendo-se em espasmos , se minhasperseguidoras no tivessem preparadosua armadilha mais cruel no diaseguinte.

    Aquele ataque perverso,ironicamente, salvou minha vida.

  • 7LEMBRO COM MUITO MENOS clareza doataque que poderia ter me matado doque da maioria dos anteriores.

    Fui ao banheiro feminino em umdos intervalos pois sentira fortes clicasmenstruais durante toda a manh. Penseiter escutado a voz de Teresa e deEmma, mas, quando sa do reservado,encontrei apenas algumas meninas maisnovas conversando perto do suporte detoalhas de papel. Lavei as mos. A guaestava fria e deixei que ela corresse umpouco, at esquentar. Eu acabara deapertar a saboneteira e tinha um pouco

  • do sabonete lquido turquesa na palmada mo quando, subitamente, fuiagarrada pelo pescoo e jogadaviolentamente para trs.

    Vi num relance o rosto corado deJane e as meninas mais novas correndodo banheiro, assustadas, enquanto eu eralanada com fora de volta aoreservado. Bati a testa na esquadria daporta e, completamente tonta, comdores na cabea e estrelas explodindodiante dos olhos, escorreguei em umpouco de papel higinico mido e ca,sentada, no cho molhado.

    Percebi Emma e Teresa seajoelhando ao meu lado e segurando-me, quase como se tentassem me ajudar.Escutei alguns cliques perto do rosto e a

  • voz de Emma dizendo: assim que seassa uma porca. Teresa e Jane caram nagargalhada. E, ento, se foram.

    Continuei sentada no cho peloque pareceu um longo tempo. Levei amo ao nariz, que comeara a sangrar, etive uma estranha sensao deformigamento no couro cabeludo.Comeava a me levantar, comdiculdade, quando uma das alunas maisnovas entrou no banheiro e me viu. Elasoltou um grito agudo, como seestivesse em um lme de terror, virou-se e correu.

    Consegui me levantar e caminheilentamente, tremendo, em direo aoespelho, para me ajeitar para a aulaseguinte. Porm, quando procurei meu

  • reexo, eu no estava ali. Havia umamenina com meu corpo e minha altura,vestindo a blusa e a saia que euescolhera pela manh, mas ela no tinharosto. No lugar de um rosto havia umabola de chamas laranja.

    Eu ainda no havia entendido ohorror reetido no espelho quando o Sr.Morrison entrou. Ele correu em minhadireo (eu vi tudo em cmera lenta),gritando como um soldado que entraem uma batalha (mas eu no conseguiaescutar), tirando o casaco ( foi quando eusoube que a garota no espelho era eu),segurando-o como um cobertor (griteipor minha me) e jogando-o sobre minhacabea em chamas (mas no saa somalgum).

  • E ento tudo ficou preto.

    ENQUANTO EU ESTAVA no hospital,mame encontrou meu dirio. Elaprocurava meu pijama azul-bebpreferido quando o viu. Quebrou ocadeado e leu todos os relatos. Assustadae horrorizada, levou o dirioimediatamente escola e mostrou-o aodiretor.

    Minha me me contou, mais tarde,que o diretor exigira que as trs garotascomparecessem sua sala, insistindo emque minha me permanecesse alienquanto ele as interrogava (posso

  • imaginar o quanto ela deve ter sofrido,to relutante em confront-las quantoeu). Aparentemente, Teresa, Emma eJane no se sentiram nada intimidadaspelas acusaes; para elas, o diretor erapouco mais que uma piada, um obesodesengonado sado de um programa detev de terceira categoria. Tambm nose intimidaram quando viram minhame. Ela disse que as trs sorriam emsilncio, sentadas, encarando-a comdesdm e ignorando todas as lembranasde sua hospitalidade e gentileza.

    O diretor leu alguns trechos maisreveladores e exigiu:

    E ento? O que tm a dizersobre isso?

    Elas tinham muito a dizer, segundo

  • minha me. Gritando ao mesmo tempo,raivosamente negaram me perseguir earmaram que sequer estavam perto dobanheiro feminino no momento doataque. Eu conseguia escutar as trsvozes se juntando em algo como ummiado: Ela s quer nos prejudicar! umamaluca esquisita! tudo mentira!

    Minha me disse que aquele foi onico momento em que falou. Doa-meimaginar como deve ter sido difcil paraela. Como, com o rosto vermelho e oslbios trmulos, ela conseguira dizer:

    Shelley no mente.Emma imediatamente respondeu: Se tudo verdade, por que ela

    nunca contou a voc?

  • E minha me se calou novamente.Inclinando-se na cadeira, em

    direo a mame, Teresa disse, com umsorrisinho que mal podia disfarar:

    Talvez Shelley tenha ido aobanheiro fumar e houve um acidentecom o isqueiro. Talvez ela tenha ido aobanheiro acender um, Sra. Rivers.

    Emma e Jane precisaram cruzar aspernas e morder os lbios para norirem abertamente diante da piadamaldosa.

    Mais tarde, naquele mesmo dia,elas foram interrogadas pela polcia.Levaram essas perguntas muito mais asrio. Cada uma foi conduzidaseparadamente a uma sala prova desom na delegacia local, onde um

  • detetive as questionou sobre o ataque.Eu conseguia v-las: as trs

    negando tudo, com medo, a vozassustada, enquanto seus pais seguravamsuas mos e as confortavam,convencidos de que suas preciosas lhaseram incapazes de algo to brbarocomo atear fogo nos cabelos de outramenina. Eu via as trs contandomentiras e mais mentiras, repetindocuidadosamente a histria quecombinaram com antecedncia,acompanhadas de seus advogados, tensoscomo aqueles palhaos de brinquedopresos em pequenas caixas, prontos parapular e fazer objeo a qualquerpergunta que considerasseminapropriada s suas vulnerveis clientes

  • adolescentes e exigindo absoluta justiapara meninas que sequer conheciam osentido dessa palavra.

    ENQUANTO ISSO, eu permanecia na alaLavanda, uma enfermaria feminina comdoze leitos em um hospital da cidade.De acordo com o mdico, tive sorte.Ele tentou explicar, mas nocompreendi muito bem. Fui salvaporque as chamas se direcionaram parao alto, envolvendo meus cabelos. Essasituao foi ajudada, de alguma forma,pela corrente de ar que entrava por umadas janelas do banheiro. Signicava que

  • o calor mais intenso cara acima deminha cabea, no em meu rosto. Almdisso, tudo indicava que o fogo durarapouco tempo, ao contrrio de minhaimpresso, explicou ele, porque quandose est em choque o tempo se arrastalentamente, como um caracol.

    Por milagre, tive apenasqueimaduras de segundo grau nopescoo, na testa, na orelha direita e namo esquerda que eu devo terlevado s chamas sem perceber e semsentir dor. Minha viso e minha audioestavam perfeitas. Nem mesmo meucabelo tinha sido completamentequeimado. Uma visita a um bomcabeleireiro, que o cortasse bem curto,e, a no ser por uma ferida vermelha na

  • nuca, seria como se o ataque nuncativesse acontecido. Fiquei comcicatrizes, claro feias manchasvermelhas e brancas na testa e nopescoo , mas o mdico garantiu queelas desapareceriam em relativamentepouco tempo.

    Fui tratada com analgsicos ediversas injees; as queimaduras foramcobertas com um creme frio comcheiro doce antes de receberem oscurativos. Eu poderia ter voltado paracasa naquela tarde, mas o mdico disseque, por ter entrado em choque edesmaiado, ele preferia me manterinternada por alguns dias, apenas comogarantia.

    Demorei muito para adormecer na

  • primeira noite, com todos os barulhosestranhos e os movimentos ao meuredor. A verdade que um hospital nodorme noite, ele apenas descansa umpouco. As enfermeiras do turno noturnoandavam de um lado a outro daenfermaria, atendendo aos pacientes queas chamavam usando as campainhas oucom sussurros roucos; doentes iam evoltavam do banheiro em seus chinelos;um novo paciente chegou, em umamaca, s trs da manh; as cortinasforam puxadas ao redor da cama de umamulher idosa no nal da ala, e meumdico apareceu rapidamente, com osolhos vermelhos e a barba por fazer,para atend-la. Mesmo que a alaestivesse completamente silenciosa, a luz

  • do corredor principal, acesa durantetoda a madrugada, tornaria difciladormecer.

    Contudo, estranhamente apesardo trauma pelo qual tinha passado e dadesconfortvel sensao congelante emmeu rosto, no pescoo e na mo , eume sentia mais feliz sob aqueles lenisbem presos do que me sentira nosltimos meses. Tudo fora descoberto.Minha me sabia. A escola sabia. Apolcia sabia. O hospital sabia. Era comose o peso enorme que eu carregavasozinha fosse erguido subitamente porum mar de mos prestativas. Agora, apreocupao seria de outras pessoas:adultos, prossionais, especialistasnaquele tipo de situao. Eu estava

  • livre, finalmente.

    SENTI-ME EXTREMAMENTE EM PAZ naatmosfera especial do hospital. Euadorava a regularidade da rotina (umaxcara de ch s trs da tarde, visitas s cinco,jantar s sete); adorava as enfermeiras emseus uniformes brancos e limpos, quesempre paravam para conversar comigo,sabendo que eu era a paciente maisjovem da ala. Adorava at o cheiro depinho do desinfetante, que penetravaem tudo, e a msica ambiente tocada tarde notas calmas e doces deoutrora, que eram estranhamente

  • reconfortantes. Eu gostava dacompanhia das outras mulheres, quebrincavam e me faziam rir com suaspiadas ousadas e palavres. Elas memimavam muito, insistindo em que eucomesse os doces e os chocolates queseus familiares lhes traziam, sem aceitarno como resposta.

    Havia muitos outros ratos na ala talvez por isso eu me sentisse to vontade. Havia Laura, na cama ao meulado, uma rata de cinquenta e um anosem quem o marido batera com um tacode beisebol porque ela queimara ojantar. Havia Beatrice, de dezoito anos,na cama em frente, cujo jeito brincalhoera sombriamente contradito pelosgrandes curativos em seus pulsos. Todas

  • ns dividamos um elo secreto, que euchamava, ironicamente, de sociedade dosratos. Eu gostava de me divertirimaginando o braso que usaramos nopeito um rato em uma ratoeira, como pescoo quebrado e nosso lemaNati ad arum escrito sobre o desenhode um pergaminho desenrolado: nascidascom o gene de vtima. Seria aquele o reallegado de minha me para mim?

    Sentada na cama, folheando umarevista ou rabiscando qualquer coisa emmeu caderno, eu me sentia relaxada eotimista em relao ao futuro. Em seudesejo sdico de me ferir, Teresa,Emma e Jane feriram a si mesmas. Elaspossivelmente seriam julgadas pelo quehaviam feito comigo poderiam at

  • acabar na priso. No mnimo, seriamexpulsas da escola. De qualquermaneira, desapareceriam de minha vidapara sempre. Eu retornaria escola etudo voltaria ao normal.

    A normalidade! A gloriosa, simplese mundana normalidade! Eu noconseguia pensar em nada maismaravilhoso.

  • 8MEU OTIMISMO COMEOU a desaparecerquando tive alta e voltei propriedadematrimonial, cercada pelas lembranasmelanclicas do casamento falido demeus pais e de minhas amizadesfracassadas.

    Minha me e eu recebemos a visitade um inspetor de polcia, quesecamente nos informou que no seriaaberto um processo contra as trsgarotas a quem eu acusara (a palavraacusara soou como se eu estivessementindo!). Simplesmente no haviaevidncias sucientes, explicou ele.

  • Nenhum aluno as vira atear fogo emmeus cabelos. Os pais das meninas maisnovas que ao menos as viramjogando-me contra a porta deixaramclaro que suas lhas no se envolveriamem um julgamento. A menos queTeresa, Emma ou Jane confessassem ocrime, no haveria base para umprocesso bem-sucedido, e eu sei que oinferno congelaria antes que issoacontecesse.

    Cerca de uma semana depoisrecebemos uma carta do diretor daescola, que minha me e eu lemosjuntas, durante o caf da manh. Elecomeava desejando melhoras rpidasem nome de todos os funcionrios ealunos (todos os alunos?) e trazia notcias

  • ruins. Aps uma investigaocompleta, escreveu ele, no foramencontradas provas que justicassem asalegaes que eu havia feito em meudirio. As trs alunas negaramveementemente realizar umacampana de perseguio (e aindaescreveu errado!) contra mim e negaramqualquer conhecimento a respeito dotriste incidente do dia vinte e trs deoutubro. O diretor da escola disse terrecebido intensas manifestaes dospais das alunas, armandoenfaticamente sua inocncia eapontando a deciso da polcia sobre noabrir um processo como prova de queno havia acusaes reais. Em face disso,o conselho escolar decidira que

  • nenhuma ao disciplinar seria tomadacontra Teresa Watson, Emma Townleye Jane Ireson.

    A carta ainda armava que a escolatinha uma das polticas de combate aobullying mais rgidas do pas e sentiaorgulho de seu trabalho exemplar napreveno de tal conduta. O diretoresperava que minha me noconsiderasse processar a escola masadvertia que, se o zesse, a instituio sedefenderia rmemente. No ltimopargrafo, escreveu:

    Estamos ansiosos pelo retorno deShelley a nosso convvio, naprimeira oportunidade. Noprecisamos lembrar a vocs,

  • claro, que esse um anoextremamente importante paraShelley, uma vez que seusexames acontecero no prximoms de junho e, assim, todos osesforos devem ser feitos paragarantir que sua ausncia das salasde aula seja to breve quantopossvel.

    Ento no apenas no haveriaprocesso criminal como tambm elasno seriam expulsas pelo que haviamfeito comigo. No sofreriam nenhumapunio por seus atos, de nenhumaespcie!

    Algumas pessoas teriam ido escola e rasgado a carta em pedacinhos

  • na frente do diretor; algumas pessoasteriam telefonado para os jornais edenunciado a escola e o medroso diretorem grandes manchetes; algumas pessoaschamariam uma equipe da emissora detev local para lmar as cicatrizes emmeu rosto e meu pescoo. Algumaspessoas teriam feito qualquer coisa paragarantir que aquelas garotas fossempunidas e que sua maldade fossedivulgada em todos os cantos do pas.

    Mas no ramos esse tipo depessoas. ramos ratos. Docilmente,agradecemos ao policial pelo tempodespendido e aceitamos que no haveriaum processo. Docilmente, aceitamos adeciso do diretor de no punir as trsgarotas. Docilmente, aceitamos,

  • submetemo-nos, calamo-nos, nodissemos nada, no fizemos nada, porquea mansa submisso tudo o que os ratosconhecem.

    Na segunda semana de novembroeu j no sentia dores ou desconforto.Nada me impedia de voltar s aulas.Exceto saber que Teresa, Emma e Janeesperavam por mim. E quando elas mepegassem sozinha mais uma vez o queaconteceria?

    Enquanto mame trabalhava, euvagava desanimada pela propriedadematrimonial. Sentava-me diante doespelho de minha penteadeira e tentava,inutilmente, ajeitar os cabelos curtos.Aquele corte no me favorecia: euparecia um garoto, minha cabea era

  • grande demais para os ombros e minhasorelhas salientes cavam mostra, algoque sempre detestei. Com um pouco deraiva, analisava minha testa e meupescoo, onde as queimaduras seestendiam como dedos marrons emminha pele plida, como uma nojentamembrana aliengena. (Por que as marcasno cavam mais claras? Ele disse queficariam mais claras!)

    E meus pensamentos comeavam avoltar ao gancho na garagem, faixa demeu roupo

    ENTO, RECEBI A MELHOR NOTCIA que

  • podia imaginar. O diretor, interpretandonosso silncio pattico como algodesaador e com medo da mpublicidade, escreveu-nos outra carta.Dessa vez com uma proposta: se minhame concordasse em no processar aescola e no falar sobre o incidente dodia vinte e trs com os meios decomunicao (incluindo jornais,televiso, rdio e internet) eu noprecisaria voltar ao colgio. Em vezdisso, a escola negociaria com asautoridades locais para que tutores medessem aulas em casa at os exames, novero os quais eu tambm poderiafazer em casa. Alm disso, elesrecomendariam veementemente bancaexaminadora que aumentasse em dez

  • por cento o peso de minhas notas jalcanadas na escola, em razo dascircunstncias difceis sob as quais eume prepararia para os exames (pelasquais, porm, a escola no seresponsabiliza)

    Minha me assinou o acordoimediatamente, enquanto eu danava egirava a seu redor, tomada de alegria, eenviou-o de volta escola. Eu estavadelirantemente feliz. No precisaria voltar escola! No precisaria enfrentar minhasperseguidoras! Tendo aulas com os tutorespor cinco horas, cinco vezes porsemana, tinha certeza de que me sairiamais do que bem nos exames. Euvoltaria escola livre das garotasenvolvidas e estudaria para a faculdade.

  • Faria novas amizades. Minha vidarecomearia

    PARA COMEMORAR minha me preparoumeu prato favorito no jantar: pato aomolho de laranja, acompanhado debatatas assadas, ervilhas e brcolis, e,como sobremesa, torta de ma comsorvete. Para minha surpresa, elacolocou uma garrafa de vinho tintosobre a mesa da cozinha, com duasgrandes taas.

    Voc sabe que estdesrespeitando a lei, me? provoquei,enquanto ela despejava o vinho em

  • minha taa e o lquido se espalhavadeliciosamente pelo recipiente. Spoderei beber legalmente daqui a doisanos. E voc advogada!

    Acho que voc merece. Elasorriu.

    Percebi quanto ela estava cansada as rugas sob seus olhos pareciam umpouco mais profundas e havia mais osbrancos em seus cabelos pretos e frisados e como aquilo fora difcil. Essa amaldio das mes, pensei, esto condenadasa sentir a dor de seus lhos como se fossesua.

    Voc tambm merece, me. Eu sorri, e brindamos.

    De qualquer forma disse ela, voc completar dezesseis anos

  • em quatro meses? Se aos dezesseisanos uma menina tem idade para secasar, ento tambm tem idade paratomar uma taa de vinho.

    NO MEIO DA REFEIO o telefone sobre obalco da copa tocou, e minha me seapressou em engolir a comida quemastigava para atend-lo. Ela fez caretasengraadas enquanto mastigava, paradaem frente ao telefone, virando a cabeapara um lado e para outro, revirando osolhos, mastigando, mastigando emastigando, mas sem conseguir engolir.Eu ria descontroladamente, sem dvida

  • inuenciada pelo vinho, que subiradiretamente para minha cabea.Finalmente, ela conseguiu atender. EraHenry Lovell, seu advogado. Ele disseque o casal interessado em comprar apropriedade matrimonial zera uma ofertaformal, e que a outra parte (ou seja, oex-marido, meu pai) havia aceitado.

    E, ento como est a procurapela casa nova? perguntou ele.

    No est disse minha me. Ainda nem comeamos!

    Bem, melhor que se apressem disse o advogado. Parece queessas pessoas esto desesperadas para semudar o mais rpido possvel.

    Bebemos toda a garrafa de vinhotinto, em uma comemorao dupla, e

  • na manh seguinte acordei com minhaprimeira ressaca. Mas nem mesmo a doraguda nas tmporas foi capaz dediminuir minha animao. Nada deescola. Nada de Teresa, Emma e Jane.Nada de humilhao. Nada de sofrer emsilncio. Nada de dor. E, alm de tudo,a propriedade matrimonial fora vendida.Finalmente sairamos daquela galeria dehorrores, daquele museu dedicado a umcasamento fracassado!

    Seis semanas depois eu estava nojardim da frente do Chal Madressilva,contemplando o aspecto fnebre docanteiro oval de roseiras.

  • 9NOSSA VIDA NA NOVA casa logo se ajustoua uma agradvel rotina.

    Tomvamos o caf da manhjuntas todos os dias, sentadas mesa depinho da cozinha. Eu preparava arefeio (com muito orgulho de arrumart u d o cuidadosamente) enquanto minhame se agitava em seu costumeiropnico matinal, passando rapidamenteuma blusa limpa, enviando e-mails deltima hora ou procurando, por todos oslados, algo que havia perdido. Tnhamosuma espcie de roteiro torradas emuma manh, cereais na manh seguinte

  • , que mantnhamos religiosamente,mesmo nos finais de semana.

    Mame saa para trabalharaproximadamente s oito e quinze, poisseu trajeto at a empresa se tornara bemmais longo. Ns sempre nosdespedamos da mesma maneira, comoum velho casal. Eu beijava seu rostoduas vezes, no corredor, dizia-lhe paradirigir com cuidado e ento andava ata porta, para acenar enquanto o velhoFord Escort atravessava lentamente ocaminho de pedras da entrada. Elasempre olhava para trs e acenava umaltima vez, com os dedos unidos, comouma marionete fazendo uma reverncia.Quando ela partia, eu lavava a loua docaf da manh e da noite anterior

  • enquanto escutava as notcias no rdio.Depois, subia at meu quarto e mevestia.

    Exatamente s dez horas meu tutorprincipal, Roger Clarke, chegava.Roger me ensinava ingls, literatura,histria, francs e geograa: as cincomatrias nas quais eu tinha maisconana de conseguir um A. Roger eeu trabalhvamos na grande mesa da salade jantar, sustentados por innitasxcaras de um ch que Roger dizia serto forte que voc poderia apoiar umacolher nele.

    Minha me, a princpio, no gostoumuito da ideia de um homem ir nossacasa me dar aulas, mas aps ter certezade que ele fora bem-recomendado e de

  • conhec-lo pessoalmente ela cedeu. Elacertamente percebeu que Roger norepresentava qualquer ameaa, porqueele tambm era um rato. Usava o brasodos ratos no peito, como mame e eu, esenti-me imediatamente ligada a ele.

    Roger tinha apenas vinte e seteanos, mas j havia perdido a maior partedos cabelos como consequncia doexcesso de estresse. Restavam somenteduas faixas acima das orelhas. Talvezpara compensar, ele cultivava umbigode louro e farto. Eraanorexicamente magro e usava culosredondos, de armao de tartaruga, queaumentavam absurdamente seus olhosverdes. Quando falava, seu pomo deado subia e descia na garganta como

  • um ovo cozido. Apesar da aparncia umtanto estranha, em pouco tempo senti-me vontade com ele e rapidamentepercebi que era um professor muitotalentoso; com suas explicaes calmas,questes que eu tinha diculdade emacompanhar na escola agora pareciambastante simples.

    Roger e eu nos demos muito bem.Ele era mais um amigo que umprofessor. Durante nossos intervalos deconcentrao, aos poucos me contousua trajetria. Ele se formara emhistria, era o primeiro da classe, eento estudou para se tornar professor.Sua ambio sempre foi lecionar seuspais foram professores e ele vira quantasatisfao e prazer eles alcanavam em

  • seu trabalho.Para Roger, no entanto, a realidade

    foi muito diferente do sonho. Ele se viuem uma escola onde poucos queriamrealmente aprender. Por causa de suaaparncia, era detestado pelos alunos,que o apelidaram de O Feto. Teveproblemas terrveis em disciplin-losdurante suas aulas. Nos cinco anos emque resistiu, foi atacado por alunos onzevezes. Seu carro era arranhado e ospneus furados com tanta frequncia queele decidiu vender o veculo e passou air e voltar da escola a p, percorrendouma distncia diria de mais de setequilmetros. No podia pegar o nibusporque tinha muito medo de encontraros alunos dentro do veculo.

  • Por m, aps um aluno acertar-lheuma cabeada na boca e quebrar um deseus dentes, Roger sofreu uma crisenervosa e foi obrigado a pedir demissopor motivos de sade. Quando estavamelhor, voltou universidade paradesenvolver uma pesquisa sobre asorigens da Primeira Guerra Mundial (umdos maiores massacres de ratos da histria).Nesse perodo teve problemasnanceiros, pois o valor que recebiacomo bolsa era muito baixo, e umamigo sugeriu que ele conversasse comas autoridades locais e se oferecessecomo tutor para estudantes doentes ouassustados demais para irem escola. Euera sua segunda aluna.

    Com Roger minha reticncia

  • inicial desapareceu, e contei a ele toda aminha histria: sobre meu pai, cuja vidasexual era mais importante que aprpria lha, e sobre as JETS e como elasme deixaram quase inconsciente eincendiaram meu cabelo.

    impressionante falei a eleum dia o fato de que eu era aluna evoc professor, e ambos fomos vtimasde bullying.

    Ele franziu a testa como se quisessemarcar uma distino por causa de nossaidade, mas ento sorriu, como sedissesse: De que adianta negar, se verdade?

    Temos muito em comum completei.

    Seus enormes olhos verdes se

  • demoraram em meu rosto. Sim, Shelley, temos muito em

    comum. uma da tarde parvamos de

    estudar e Roger entrava no carro paravoltar a seu apartamento na cidade, eno se cansava de fazer a mesma piada:

    Ainda bem que eu trouxe meunovelo de l, ou nunca encontraria ocaminho de volta civilizao!

    Ento, eu preparava algo leve parao almoo uma salada, geralmente e assistia ao noticirio na televiso.Minha me tinha tantos casos a resolverque trabalhava durante o horrio dealmoo, engolindo apressadamente umsanduche, sentada sua mesa. EnquantoBlakely, Davis e os outros scios

  • relaxavam em um bistr prximo,gabando-se e falando em voz alta, comoas pessoas importantes que pensavamser, minha me cava no escritriovazio, corrigindo ecientemente oserros deles.

    Aps o almoo, eu mergulhava emqualquer dos romances que estivesselendo, sentada janela em meu quarto,junto quela claridade gloriosa. Quandoo dia estava mais quente e naquelefevereiro houve muitos dias bonitos ,eu me sentava no jardim e lia, sempretomando cuidado para manter minhascicatrizes protegidas do sol.

    s duas e meia chegava a Sra.Harris, uma mulher forte e baixa, nafaixa dos cinquenta anos, com cabelos

  • tingidos de laranja. Eu no me dava tobem com ela quanto com Roger. Alis,eu pouco me dava com ela e noapenas porque ela me ensinavamatemtica e cincias, as matrias dasquais eu menos gostava.

    A Sra. Harris lecionava ratos comoeu havia anos e, com o tempo, suasimpatia por ns foi totalmentedestruda. Ela chegara concluso deque no ramos mais do que medrosos crianas mimadas e superprotegidasque no conseguiam encarar a realidadeda vida. Certa vez, z um comentrio arespeito de minhas cicatrizes, e ela merespondeu com escrnio:

    Cicatrizes? Cicatrizes? Vocchama isso de cicatrizes? Voc deveria ir

  • a um hospital e ver como soqueimaduras de verdade. Com umpouco de maquiagem, ningumperceberia suas cicatrizes. Esse oproblema com os jovens de hoje emdia: so fteis demais e pensam apenasneles mesmos.

    Mesmo me ressentindoamargamente de sua atitude, eu erafraca demais para me defender. Euachava que j vira muito da realidade at em excesso, na verdade. E duvidavaque a Sra. Harris tivesse visto o mesmo,ou ela seria mais compreensiva.

    A Sra. Harris partia s quatro emeia, e eu fazia os deveres do dia atque minha me chegasse, por volta dasseis e meia. Quando terminava as

  • tarefas, eu praticava auta, o porta-partituras montado ao lado do piano, deonde, enquanto ainda havia luz, eu tinhauma linda vista do jardim da frente. Seno quisesse tocar auta, eu lia mais umpouco ou pegava minhas aquarelas etintas. Como no era muito boa eminventar imagens, eu escolhia um dosgrandes livros de arte na estante da salae copiava um cavalo especialmentebonito ou uma paisagem interessante. svezes, tentava pintar um dos objetos daestante da sala de jantar a tigela demadeira com pot-pourri, o vaso de oressecas ou uma das muitas peas deporcelana ou de cristal que minha mecolecionara ao longo dos anos. Amaioria fora presente de minha av

  • mame nunca teve coragem de lhedizer que esses enfeites no eramexatamente algo de que ela gostasse.Eram totalmente kitsch um porco-espinho desenhado por Beatrix Potter,uma orista vitoriana com bochechasvermelhas, um menininho pescandocom um barbante amarrado ao dedodo p, um golnho de vidromergulhando na gua, um chal emminiatura , porm, estranhamente,quanto mais kitsch pareciam, maisapegadas a eles nos tornvamos.

    Era das noites com minha me noChal Madressilva que eu mais gostava.Quando ela chegava do trabalho, eupreparava um ch e nos sentvamos nacozinha para conversar. Adotamos um

  • costume que vimos no lme A Histriade Ns Dois, com Michelle Pfeiffer, emque os personagens de uma famlia serevezavam, durante o jantar,descrevendo os pontos altos e baixos deseu dia.

    Meus pontos altos costumavam serum elogio ou uma boa nota dada porRoger, um captulo especialmenteinteressante no romance que estivesselendo ou uma pintura particularmenteboa. Os pontos baixos eram sentir-meum pouco deprimida sobre as cicatrizes,que no sumiam, e pensar em meu paicom raiva, por ele nos ter abandonadodaquela forma. Os pontos altos demame eram resolver casos com sucessoe ser elogiada por clientes satisfeitos; os

  • baixos costumavam envolver o odiosoSr. Blakely sendo grosseiro s vezes,ele at dizia palavres ou tentando seesfregar nela na sala onde cava acopiadora.

    Minha me sempre me encorajava,insistindo que minhas cicatrizes estavamclareando, e eu tentava fazer o mesmosobre o Sr. Blakely, ainda que nohouvesse muito que eu pudesse dizeralm do bvio. Mame no podiaperder o emprego. Ela precisava dele.Ns precisvamos dele. Porm, quandoo assunto era papai, cava muito maiscomplicado. No muito abaixo deminha raiva supercial havia uma culpalatente. Os soldados gregos estavamperigosamente perto de sair da barriga

  • do cavalo de Troia e atacar os laosafetivos entre mim e minha me, e eraclara sua tenso sempre que eu omencionava. Eu morria de medo demago-la, de ignor-la, absolutamenteciente de que no tinha amigos e de queestaria perdida sem ela.

    Depois de tomarmos o ch minhame tirava a roupa de trabalho epreparvamos o jantar. Ns adorvamoscomida e culinria, e gostvamos deexperimentar receitas complexas tiradasde um de nossos muitos livros. s vezespassvamos duas horas na cozinha,picando legumes sobre a pesada tbuade mrmore que mame trouxera daItlia certa vez, enquanto as panelaschiavam e borbulhavam no fogo.

  • Aps o jantar ns nos sentvamosna sala com o aquecedor central ligadona potncia mxima e a lareira acesa,quando esfriava muito. Geralmentelamos nossos romances (apesar demame ter sempre algo do trabalho paraanalisar) e escutvamos msica clssica.Fui criada escutando msica clssica,uma das grandes paixes de minha me ela era uma pianista amadora muitocompetente , e, apesar de tentargostar de msica pop, o estilo, de certaforma, nunca criou razes em mim.Adorvamos Mozart, Chopin,Tchaikovsky e Brahms, mas nossasfavoritas eram as peras de Puccini. Semvizinhos em um raio de quilmetros,podamos aumentar o volume ao

  • mximo e nos deliciar com a belezatrgica de La Bohme ou de MadameButterfly.

    No assistamos a muitos programasna televiso, com exceo do noticirio.Parecia no haver nada alm dedocumentrios deprimentes sobre osviciados em crack de Nova York ousobre as epidemias de Aids na frica,novelas fracas com atores ruins e realityshows inacreditveis. Mas gostvamosdos lmes, principalmente das comdiasromnticas, e sempre checvamos aprogramao no jornal, procurando boasopes. Nossos filmes preferidos eram osantigos, como Mensagem pra Voc eSintonia de Amor , com Tom Hanks eMeg Ryan, os clssicos de Hugh Grant,

  • como Um Lugar Chamado Notting Hill eQuatro Casamentos e um Funeral, e coisasdesse gnero. No gostvamos doslmes modernos eles simplesmentepareciam vulgares e explicitamentesexuais, e eu me sentia envergonhada aoassisti-los com mame. Tnhamos umaqueda por George Clooney esuportvamos alegremente o machismoe as tramas incompreensveis da trilogiaOnze Homens e um Segredo apenas parav-lo. s vezes, sua aparncia ou algoque ele dizia me fazia lembrar umpouco apenas um pouco de meupai. Nunca disse isso a mame, claro,mas ocasionalmente me perguntava seela pensava o mesmo.

    Tambm adotamos o hbito de

  • beber uma caneca de chocolate quenteperto das dez da noite, e s onzegeralmente adormecamos abraadas nosof.

    Deitada com a cabea apoiada noombro de minha me, um bigode dechocolate secando em meu lbiosuperior, um romance escorregando demeus dedos sonolentos e um concertode violino de Brahms ou a sexta sinfoniade Tchaikovsky tomando o ambiente minha volta, eu me deliciava naatmosfera quente e segura da nova casa.E, s vezes, enquanto observava aschamas alaranjadas na lareira, lambendoa madeira e quebrando-a, eu pensavaem Teresa Watson e no que ela estariafazendo naquele momento danando

  • em uma boate, bebendo cerveja emalgum pub lotado e esfumaado, dandoum amasso em seu namorado no bancode trs do carro dele , e conclua: Euno trocaria minha vida pela sua, TeresaWatson, por nada no mundo . Sei que souum rato e que estou me escondendo detodos em meu ninho aconchegante,atrs dessas paredes, mas minha vida derato repleta de todas as coisas boas queexistem: arte, msica, literatura amor.

    Pode ser apenas uma vida de rato,mas uma vida boa, uma vida rica, umavida maravilhosa.

  • I0

    A PRIMAVERA CHEGOU CEDO naqueleano. Um fevereiro ameno deu lugar aum maro quente. As cerejeiras foramtomadas por botes de ores cor-de-rosa e, alguns dias depois, encontramosas macieiras cobertas por ores brancas.Planejamos assar tortas quando as frutasaparecessem, no nal do vero, e ascomeramos com grandes bolas desorvete de creme. Como prometi amim mesma, aprendi os nomes de todasas ores no jardim e, numa manh dedomingo, levei minha me em umpasseio guiado, apresentando-a a todas ashabitantes de ptalas. Terminei o passeio

  • no canteiro oval de rosas, anunciandocom um floreio:

    E, por ltimo, mas no menosimportante, a Perptua Hbrida ou Rosahybrida bifera

    Conforme os dias se tornavam maislongos, passvamos cada vez mais tempodo lado de fora. Comeamos a tomarnosso ch aps o trabalho no quintal dosfundos, acomodadas na moblia deplstico branco que mame comprarapor um preo nmo na cidade. Nosnais de semana, passvamos horasrelaxando no jardim. Tambmcortvamos a grama tarefa nada fcil,uma vez que a rea tinha mais ou menosum hectare e a grama estava maior doque jamais estivera sob o rme reinado

  • do Sr. Jenkins. Eu andava de um lado aoutro carregando cestos lotados degrama cortada, que depositava nogrande monte de compostagem no naldo terreno, lembrando-me, com umsorriso, de como o Sr. Jenkins nosapresentara seu adubo, com todo oorgulho de um pai satisfeito.

    Minha me cou bastante animadacom o canteiro de legumes e verduras,e com a ideia de preparar alimentoscolhidos do prprio quintal. Ela queriaplantar ainda mais espcies que o Sr.Jenkins e cultivar ervas, como alecrim etomilho, para temperar a comida.Como no havia espao suciente ali,ela decidiu estender a horta at osciprestes. Ento, numa manh de

  • sbado, aps uma visita cidade paracomprar ps e um rastelo, comeamos atrabalhar revolvendo a terra de umespao com o tamanho aproximado deduas camas de casal at transform-laem um grosso mingau marrom.Mergulhamos na tarefa comdeterminao, felizes por estarmosfazendo algum exerccio fsico, paravariar, mas no imaginvamos o quantoseria cansativo. Quando acordamos namanh seguinte, mal conseguamos nosmover at levantar uma chaleiracausava dor, e subir e descer a escadaera um sofrimento.

    Quando estvamos dispostas,jogvamos croquet na frente da casa ouesticvamos uma rede entre duas

  • rvores para algumas partidas debadminton. Minha me, que alta e umpouco desengonada, no era boa emesportes e, quando errava uma bola apoucos centmetros dela ou jogava-separa tentar rebater a peteca e noacertava nada alm do ar, caamos nocho, incapazes de controlar o riso.

    Era timo viver no campo e noter vizinhos por quilmetros. Podamosconversar, rir e gritar at berrar to alto quanto quisssemos, e ningumnos escutaria. Era muito diferente dapropriedade matrimonial, ondeprecisvamos nos controlar quandoestvamos no quintal, pois havia casaspor todos os lados, onde sussurrvamospara que os vizinhos cujas silhuetas

  • vamos se mover por trs dos arbustos no nos escutassem.

    noite, tocvamos duetos na sala,algo que aparentemente no fazamosdesde que meu pai partira. Tnhamosmuitas msicas para auta e piano, e,um dia, enquanto as analisava, encontreium livro de partituras chamado RussianFolk Songs, que nunca havia sido aberto.Essas msicas se tornaram nossasfavoritas e praticamos todo o livronaquele ms de maro. As notas paraauta eram to fceis de memorizarquanto de executar, mas as de pianoeram mais difceis e desaavam mameem alguns momentos. Eram o tipo decano que no sai da cabea, e sempreas assobivamos e cantarolvamos no dia

  • seguinte. Se eu cometia algum erroabsurdo, ns ramos tanto quedemorvamos meia hora atconseguirmos executar mais algumasnotas. Eu adorava esses duetos, e gostavamais do que nunca de tocar auta algo que eu abandonara e retomaraincontveis vezes.

    s vezes, eu olhava para minhame enquanto ela estava na ponta dosps, tentando tirar a peteca dos galhosde uma cerejeira, ou fazendo algumaexpresso engraada depois que euatirava a bola para longe, jardim abaixo,e sentia-me tomada de amor por ela.Com seu corpo alto e desengonado,suas mos grandes, com as quais elaparecia nunca saber o que fazer, e seus

  • cabelos escuros e frisados, que nenhumpente conseguia domar, ela pareciato to vulnervel que eu apenas corriae a abraava com toda a minha fora.

    EU SABIA QUE TNHAMOS pouco dinheiro,por isso, quando mame comeou aperguntar o que eu queria ganhar emmeu dcimo sexto aniversrio,simplesmente lhe entreguei umapequena lista de livros. E quando ela,incrdula, perguntou se era aquilomesmo o que eu realmente desejava,respondi que sim, que j tinha tudo oque poderia querer.

  • No era exatamente verdade, claro. Havia algo que eu desejava, masseria muito egosmo pedir qualquercoisa naquele momento. Minha medirigia um carro digno de estar numferro-velho e vestia terninhos quetinham mais de quinze anos. Eu sequerme lembrava da ltima vez em que elacomprara algo novo para ela. Aindaassim, sempre comamos bem, semprehavia dinheiro para roupas e sapatosnovos para mim, para um livro ou umarevista que eu quisesse, para um DVD ouuma ida ao cinema. Eu via como elapriorizava minhas necessidades, e jamaisabusaria disso.

    Mas havia algo que eu queria. Algoque queria muito tanto quanto eu

  • quisera uma auta quando era maisnova, ou at mais. Eu queria u