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31ª Edição – 2015 RAUL CASTRO BRASIL Professor - CLF ENSAIOS Análise das obras UVA 2015.2

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31ª Edição – 2015

RAUL CASTRO BRASIL

Professor - CLF

ENSAIOS

Análise das obrasUVA 2015.2

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2015

Impresso no Brasil

Raul Castro Brasil

Resumo das Obras - UVA 2015.2 – 31ª edição – Sobral: CLF, 2015

Conteúdo: Literatura Brasileira - Ensaios

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Caros alunos,

Se hoje sei Literatura, é porque estive escalando nos ombros de gigantes. Passei a amar Literatura nas beiras de um terceiro ano que me predestinava a um curso de Direito, comecei a ter professores que, quando entravam em sala, aos poucos, em doses moderadas, mostravam-me um pouco do saber literário. E foi nas salas do mesmo colégio que hoje ensino, que me apaixonei perdidamente pelas letras, porque tive professores que ensinavam com tanto amor, afinco e destreza, que aquilo me cativou, havia horas que eu não sabia o que mais me encantava, o conhecimento que detinham ou amor com que ensinavam. Eles me concediam a ponta do iceberg, e me convidavam a mergulhar e descobrir o que havia por baixo, e lá ficava a contemplar a maravilha de saberes que estavam além de uma aula. Hoje tenho a honra de estar ao lado deles em profissão. Não estou tentando aqui convencê-lo a fazer Letras, mas se quiserem tentar.... Enfim, tento a cada dia de meu magistério transbordar esse mesmo amor, dedicação e saber, foi por isso que surgiu esse material, apresento-lhe aqui uma ponta do iceberg, um pouco dos cinco livros que a tão almejada UVA nos indica, o que não os impedem de conhecê-los melhor, de estudá-los, sem ficar na loucura de qual pergunta a questão quererá saber. Desfrutar um prazer imenso que é ler na íntegra os romances românticos, naturalistas e pré-modernistas. Ninguém faz cálculos por prazer, ninguém faz equações por amar Química, mas ler um bom livro, um bom romance... Talvez tenha sido por isso que optei pelas letras, porque descobri que, nas artes, pode-se fazê-las com imenso prazer em ler, descobrir e estudar.

Raul Castro.

Apresentação

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• ROMANTISMO

I. Escrava Isaura (Bernardo Guimarães) ............................................. 10

II. Iaiá Garcia (Machado de Assis) ..................................................... 28

• MODERNISMO

III. Menino do Engenho (José Lins do Rego) ....................................... 94

IV. Cacau (Jorge Amado) .................................................................. 94

V. Olhai os Lírios do campo (Érico Veríssimo) ..................................... 94

Sumário

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Tendo a Uva indicado dois livros românticos, não podemos deixar de fazer algumas breves considerações dessa escola literária que irá revolucionar o modo de se fazer Literatura.

Grande é o número de características que marcaram o movimento romântico, características essas que, centradas sempre na valorização do eu e da liberdade, vão-se entrelaçando, umas atadas às outras, umas desencadeando outras e formando um amplo painel de traços reveladores.

Para aqui discuti-las, vamos seguir os aspectos considerados os mais significativos por Domício Proença Filho em sua análise dos estilos de época na Literatura.

1. Contraste entre os ideais divulgados e a limitação imposta pela realidade vivida. 2. Imaginação criadora. 3. Subjetivismo. 4. Evasão. 5. Senso de mistério. 6. Consciência da solidão. 7. Reformismo. 8. Sonho. 9. Fé.

10. Ilogismo. 11. Culto da natureza. 12. Retorno ao passado. 13. Gosto do pitoresco, do exótico. 14. Exagero. 15. Liberdade criadora. 16. Sentimentalismo. 17. Ânsia de glória. 18. Importância da paisagem. 19. Gosto pelas ruínas. 20. Gosto pelo noturno. 21. Idealização da mulher. 22. Função sacralizadora da arte.

Acrescentem-se a essas características os novos elementos estilísticos introduzidos na arte literária: a valorização do romance em suas muitas variantes; a liberdade no uso do ritmo e da métrica; a confusão dos gêneros, dando lugar à criação de novas formas poéticas; a renovação do teatro.

O RomantismoUVA 2015.2

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O Romantismo Brasileiro

Considera-se a obra Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, publicada em Paris em 1836, como o marco inicial do Romantismo brasileiro.

A poesia romântica brasileira passou por diferentes momentos nitidamente caracterizados. Essas diferentes vagas são apontadas pelos estudiosos, que agrupam os autores segundo as características predominantes em sua produção, dando destaque a essas tendências. Embora alguns críticos estabeleçam quatro, cinco e até seis grupos, observa-se que os aspectos apresentados em relevo podem ser assim reunidos:

1º grupo – chamado de primeira geração romântica – em que se destacam duas

tendências básicas: o misticismo (intensa religiosidade) e o indianismo. A religiosidade é marcante nos primeiros românticos, enquanto o indianismo se torna símbolo da civilização brasileira nos poemas de Gonçalves Dias. Esse espírito nacionalista fez desabrocharem também poemas cuja temática explorou o patriotismo e o saudosismo. Nomes que marcaram o período: Gonçalves de Magalhães, Araújo Porto Alegre, Gonçalves Dias.

2º grupo – a segunda geração romântica – por seu intimismo, tédio e melancolia,

abraçou o negativismo boêmio, a obsessão pela morte, o satanismo. É conhecida como geração byroniana (numa alusão ao poeta inglês Lord Byron, um de seus principais representantes) e sua postura vivencial considerada o mal do século, por se tratar não apenas de um fazer poético, mas de uma forma autodestrutiva de ser no mundo. Destaques no período: Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Junqueira Freire. Algumas das obras de Castro Alves permitem enquadrá-lo no período. Sua visão da mulher, marcada pela sensualidade, distancia-se, porém, do lirismo idealizante que caracterizou as demais produções de poesia amorosa do período.

3º grupo – a terceira geração romântica –, voltada para uma poesia de

preocupação social. Conhecida como condoreira (tinha como emblema o condor, ave que constrói seu ninho em grandes altitudes) ou hugoniana (numa referência a Vitor Hugo, escritor francês cuja obra de cunho social marcou o período), sua linguagem adquiria um tom inflamado, declamatório, grandiloquente, carregada de transposições e de figuras de linguagem. Seus principais representantes, Castro Alves e Tobias Barreto, têm sua produção associada ao movimento abolicionista e republicano, respectivamente.

O Romance Romântico

Destaque especial teve no movimento romântico a narrativa romanesca. Foi por meio dos romances que a Europa marcou seu reencontro com o mundo medieval em que repousavam as raízes das modernas nações europeias. Ali floresceram os ideais

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cavalheirescos que resgatavam na origem heroica a dignidade da pátria e se expressaram nos romances históricos. Encontram-se também as narrativas apoiadas no embate entre o Bem e o Mal, com a vitória do primeiro. No Brasil, o romance histórico se fez indianista na busca das raízes da nacionalidade (não esqueçamos que a independência há pouco alcançada legou aos intelectuais românticos o compromisso de construir a identidade nacional).

O primeiro romance bem-sucedido na história da Literatura brasileira foi A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, publicado em 1844. Seu reconhecimento se deve ao fato de ter sido a primeira narrativa centrada em personagens brasileiros, com ambiência local.

Os romances do período romântico foram construídos em torno de quatro grandes núcleos:

· os romances históricos, voltados para as relações que fizeram o Brasil colônia; · os romances indianistas, com a intenção de estabelecer nossas raízes históricas,

construiu-se em torno da idealização da figura do índio, transformado em herói nacional;

· os romances urbanos, com ênfase nas relações amorosas, foram o espaço de revelação das preocupações burguesas, sua noção de honra e o significado do dinheiro nas relações estabelecidas;

· o romance sertanista ou regionalista, voltado para o mundo rural, veio a ser a abertura para uma das temáticas mais significativas a desenvolver-se na literatura brasileira nos movimentos literários que se seguiram ao Romantismo.

Embora encontrados em muitos dos escritores do período, os romances assim caracterizados foram preocupação especial de José de Alencar, que se propôs a, através de sua obra, representar o Brasil em todas as suas facetas.

Iaiá Garcia, de Machado de Assis, enquadra-se no romance urbano, enquanto Inocência, enquadra-se no romance regionalista, mais a frente entenderemos melhor.

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RÁPIDAS ANÁLISES

Escrito em plena campanha abolicionista (1875), o livro conta as desventuras de Isaura, escrava branca e educada, de caráter nobre, vítima de um senhor devasso e cruel.

O romance A Escrava Isaura foi um grande sucesso editorial e permitiu que Bernardo Guimarães se tornasse um dos mais populares romancistas de sua época no Brasil. O autor pretende, nesta obra, fazer um libelo anti-escravagista e libertário e, talvez, por isso, o romance exceda em idealização romântica, a fim de conquistar a imaginação popular perante as situações intoleráveis do cativeiro.

O estudioso Manuel Cavalcanti Proença observa que: "Numa literatura não muito abundante em manifestação abolicionistas, é obra de muita importância, pelo modo sentimental como focalizou o problema, atingindo principalmente o público feminino, que encontrava na literatura de ficção derivativo e caminho de fuga, numa sociedade em que a mulher só saía à rua acompanhada e em dias pré-estabelecidos; o mais do tempo ficava retida em casa, sem trabalho obrigatório, bordando, cosendo e ouvindo e falando mexericos, isto é, enredos e intrigas, como se dizia no tempo e ainda se diz neste romance."

O NASCIMENTO DO ROMANCE

A publicação de romances em folhetins - os capítulos aparecendo a cada dia nos jornais - já era comum no Brasil desde a década de 1830. A maior parte destes folhetins era composta por traduções de romances de origem inglesa, como as histórias medievais de Walter Scott, ou francesa, como as aventuras dos Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas.

Emocionados, os brasileiros acompanhavam as distantes aventuras de um Ivanhoé ou de um D'Artagnan, transportando-se, em espírito, para os campos e reinos da

Análise da Obra

Bernardo Guimarães

Escrava Isausa

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Europa.Embora fizessem sucesso junto ao público, os primeiros romances brasileiros,

publicados em folhetim, não deixavam de ser considerados, pelos literatos "sérios", como "uma leitura agradável, diríamos quase um alimento de fácil digestão, proporcionado a estômagos fracos."

O romance, esse gênero literário novo e "fácil", que foi introduzido na literatura brasileira por autores como Joaquim Manuel de Macedo e Teixeira e Sousa, ganharia status de literatura "séria" com a obra de José de Alencar.

Os Romances Brasileiros

Na década de 1840 começam a aparecer alguns folhetins de autores nacionais, ambientados no Brasil. Teixeira e Sousa (1812-1861), considerado por muitos o nosso primeiro romancista, estréia em 1843 com O Filho do Pescador.

No ano seguinte, o jovem estudante de medicina, Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), surge com A Moreninha, o primeiro romance nacional "apreciável pela coerência e pela execução". Em meio à corrente açucarada dos nossos primeiros folhetinistas surge, já em 1852/53, a obra excêntrica de um jornalista carioca de vinte e um anos chamado Manuel Antônio de Almeida (1831-1861).

As suas Memórias de um Sargento de Milícias retratam de forma irônica a vida do Rio de Janeiro "no tempo do rei" Dom João VI e apresentam um contraponto cômico à seriedade por vezes excessiva e à inverossimilhança dos romances do Dr. Macedinho.

A descrição do cenário nacional

O público interessava-se, portanto, cada vez mais por um romance de aventuras românticas que apresentasse o cenário brasileiro. O grande sucesso de público de O Guarani (1857), de José de Alencar, em que as aventuras de Peri e sua amada Cecília se desenrolam em meio à exuberante natureza fluminense, estimula os escritores a se voltarem para a apresentação da ambientação tipicamente nacional em suas obras.

Na década de 70 essa tendência nacionalista haveria de se consolidar, com o surgimento das obras de Franklin Távora (1842-1888), autor de O Cabeleira (1876) e o Visconde de Taunay (1843-1899), autor de Inocência (1872). É nesse cenário literário que aparece, em 1875, um dos maiores sucessos de público do período: A Escrava Isaura, que explora uma das questões mais polêmicas da sociedade brasileira da época, a escravidão..

Foco Narrativo

O foco narrativo do livro Escrava Isaura é na terceira pessoa.

Tempo e Espaço

O autor localiza a narrativa em uma temporalidade histórica: "Era nos primeiros anos do reinado do Sr. D. Pedro II". Este parágrafo lança o leitor em uma temporalidade

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apenas familiar para os leitores da época da publicação do romance. Ele foi publicado na década de setenta do século XIX, durante o império do Sr. D. Pedro II.

No parágrafo seguinte, o leitor é enviado para um espaço banal, o espaço do município de Campos de Goitacazes. Este município foi um dos centros da economia escravagista do sudeste.

Conduzindo o leitor pelo olhar, o narrador descreve a fazenda situada à margem do rio Paraíba, a pouca distância da vila de campos. O olhar do narrador põe a arquitetura da fazenda, tendo como centro do palco a casa-grande e as senzalas, em uma paisagem brasileira que lembra, de uma outra maneira, a descrição maravilhosa da descoberta do Brasil na Carta de Pedro Vaz de Caminha. Neste Jardim das delícias senhorial, o leitor descobrirá, se tiver vontade de ver, uma versão ficcional do regime oligárquico de poder do Brasil-Nação funcionado ao lado da poética da natureza de Bernardo de Guimarães. O poder oligárquico e a poética da natureza brasileira são os dois objetos que remetem o leitor para a temporalidade histórica do romance. Escrito na campanha abolicionista (1875). O autor pretende, nesta obra, fazer uma acusação documentada anti - escravo e da liberdade. O autor explorou uma das questões mais polêmicas da sociedade brasileira da época: a escravidão.

Linguagem

O tratamento exageradamente romântico que o autor aplica neste livro faz com que tenha um caráter mais de lenda do que de realidade, ao contrário de seus outros romances, como O Ermitão de Muquém (1864), O Seminarista (1872) e O Garimpeiro(1872). Nessas obras, a descrição regionalista do ambiente físico e social proporciona mais verossimilhança à trama.

Em A Escrava Isaura, o excesso de imaginação traduz-se em "idealização descabida", como afirma Antonio Candido, que se concretiza no plano da linguagem em descrições repetitivas e mecânicas das personagens, com abuso de adjetivos redundantes. Observe-se a descrição de Isaura quando se senta ao piano no salão de baile, em Recife:

"A fisionomia, cuja expressão habitual era toda modéstia, ingenuidade e candura, animou-se de luz insólita; o busto admiravelmente cinzelado ergueu-se altaneiro e majestoso; os olhos extáticos alçavam-se cheios de esplendor e serenidade; os seios, que até ali apenas arfavam como as ondas de um lago em tranqüila noite de luar, começaram de ofegar, túrgidos e agitados, como oceano encapelado; seu colo distendeu-se alvo e esbelto como o do cisne, que se apresta a desprender os divinais gorgeios. Era o sopro da inspiração artística, que, roçando-lhe pela fronte, a transformava em sacerdotisa do belo, em intérprete inspirada das harmonias do céu."

Temática Central

A temática está ligada a essa passagem: “Demais não tive preocupação literária ao compor essas páginas. Procurei contar a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau.

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Não sei se desvirtuei esse trabalho contando meu caso com a filha do patrão. Mas isso entrou no livro naturalmente, apesar de não ter sido convidado. Um dia talvez eu volte às fazendas de cacau. Hoje tenho alguma coisa a ensinar. Se eu não voltar, Colodino voltará.”

Essa vai ser a grande diferença que o leitor vai notar nas obras regionalistas, as obras naturalistas destacavam problemas mais gerais: o preconceito, a homossexualidade, já os regionalistas, além da fuga do urbano para o rural, aplicavam seu foco literário sobre a região destacando problemas que só ali haviam para que a sociedade visse o que se passava ali.

Personagens

A construção dos personagens é simples. Eles são facilmente indentificáveis e não mudam seu comportamento nem suas características. Maniqueístas, os envolvidos na trama são bons ou maus e permanecem nessa condição no transcorrer da história.

Isaura: É a personagem central do romance. Filha da escrava Juliana e do bom feitor Miguel, Isaura é dócil, formosa, educada, letrada e repleta de dons artísticos. Escrava submissa, ela suporta o assédio de Leôncio, filho do comendador Almeida, porque acredita que só deve se entregar a um homem por amor. Veja a descrição de Isaura:

“Acha-se ali sozinha e sentada ao piano uma bela e nobre figura de moça (...) A tez é como marfim do teclado (...) O colo donoso e do mais puro lavro sustenta com graça inefável o busto maravilhoso. Os cabelos soltos e fortemente ondulados se despenham caracolando pelos ombros em espessos e luzidios rolos.”

Leôncio: O vilão da trama. Filho único do comendador Almeida, o dono da fazenda situada em Campos dos Goitacases (RJ), é uma criança difícil, que cresce e se torna um homem inescrupuloso. Casa-se com a rica Malvina, mais é incansável na perseguição a Isaura. Veja a descrição de Leôncio:

“Mau aluno e criança incorrigível, turbulento e insubordinado, andou de colégio em colégio (...) Matriculado na escola de medicina, logo no primeiro ano enjoou-se daquela disciplina, e como seus pais não sabiam contrariá-lo, foi-se para Olinda a fim de frequentar o curso jurídico. Ali, depois de ter dissipado não pequena porção da fortuna paterna na satisfação de todos os seus vícios e loucas fantasias, tomou tédio também aos estudos jurídicos.”

Álvaro: É i bom moço da história. Conhece Isaura quando esta foge com o pai para Recife. Tornam-se amigos e em pouco tempo a amizade dá lugar a um profundo amor. Por princípio, Álvaro é abolicionista e, como prova, emancipa todos os escravos que eram herança da fazenda de seus pais. Leia algumas características enumerdas pelo escritor sobre Álvaro:

“Era um desses entes privilegiados, sobre quem a natureza e a fortuna parece terem querido despejar á porfia todo o cofre de seus favores. Filho único de uma distinta e

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opulenta família (...) Era de estatura regular, esbelto, bem-feito e belo (...) Tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista.”

Miguel: Pai de Isaura. Feitor da fazenda do comendador Almeirda, coloca-se ao lado da filha e a protege da perseguição de Leôncio.

Juliana: Mãe de Isaura. Linda mulata, é a criada predileta da esposa do comendador Almeida. Morre jovem em razão dos castigos praticados pelo comendador.

Malvina: A esposa de Leôncio. Filha de um rico negociante da corte, é um formosa e elegante dama da sociedade.

Henrique: O irmão de Malvina. Estudante de medicina, tem dignidade e bom coração, mas também tenta seduzir Isaura.

Belchior: É o jardineiro da fazenda. Torto, de cabeça grande, tronco raquítico e pernas arqueadas, Belchior é apaixonado por Isaura. Tem o costume de dar flores á mulher cujo amor não é correspondido.

Comendador Almeida: Pai de Leôncio e dono da majestosa fazenda. Com idade avançada e cheio de enfermidades, ele delega a administração da fazenda ao filho.

Rosa: É uma amante de Leôncio. Linda e esbelta, passa a nutrir ódio por Isaura depois que esta vira a menina dos olhos de Leôncio.

André: É o pajem de Miguel. Atraído pela beleza de Isaura, também tece galanteios á filha do feitor, que o afasta de imediato.

Dr. Geraldo: Amigo de Álvaro. Advogado conceituoso, é o ponto de equilíbrio para Álvaro ponderar suas atitudes em relação á condição de Isaura como escrava.

Martinho: É um espião que presta serviço a Leôncio. Ganancioso, ele descobre Isaura no baile e conta a seu senhor com o objetivo de ganhar muito dinheiro.

Vejamos como Guimarães descreve sua heroína:

“A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. (.) Na fronte calma e lisa como o mármore polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e suave reflexo; di-la-íeis misteriosa lâmpada de alabastro guardando no seio diáfano o fogo celeste da inspiração.”

Leôncio é o vilão leviano, devasso e insensível que, de "criança incorrigível e insubordinada" e adolescente que sangra a carteira do pai com suas aventuras, acaba por tornar-se um homem cruel e inescrupuloso, casando-se com Malvina, linda, ingênua e rica, por ser "um meio mais suave e natural de adquirir fortuna". Persegue Isaura e se recusa a cumprir a vontade de sua mãe, já falecida, que queria dar a ela a liberdade e alguma renda para viver com dignidade.

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Álvaro é um rico herdeiro, cavalheiro nobre e de caráter impecável, que "tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista"; um jovem de idéias igualitárias, idealista e corajoso para lutar contra os valores da sociedade a que pertence. Sua conduta moral é assim descrita pelo autor:

“Original e excêntrico como um rico lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade de um quacker. Todavia, como homem de imaginação viva e coração impressionável, não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegância, e sobretudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado, certa pureza ideal, próprios das almas elevadas e dos corações bem formados.”

Apaixonado por Isaura, o grande obstáculo que Álvaro precisa vencer é o fato de ser Isaura propriedade legítima de Leôncio. Para isso, vai à corte, descobre a falência de Leôncio, adquire seus bens e desmascara o vilão. Liberta Isaura e casa-se com ela, desafiando, assim, os preconceitos da sociedade escravocrata.

Nos demais personagens o processo de construção é o mesmo. Miguel, pai de Isaura, foge do conceito tradicional do mau feitor. Quando feitor da fazenda de Leôncio, tratara bem aos escravos e amparara Juliana, mãe de Isaura, nas suas desditas com o pai de Leôncio. Pai extremoso, deseja libertar a filha do jugo da escravidão e não mede esforços para isso.

Martinho é o protótipo do ganancioso: cabeça grande, cara larga, feições grosseiras e "no fundo de seus olhos pardos e pequeninos,. reluz constantemente um raio de velhacaria". Por querer ganhar muito dinheiro entregando Isaura ao seu senhor, acaba por não ganhar nada.

Já Belchior é o símbolo da estupidez submissa e também sua descrição física se presta a demonstrar sua conduta: feio, cabeludo, atarracado e corcunda. O crítico Manuel Cavalcanti Proença aponta "o parentesco entre o disforme e grotesco (de gruta) Belchior, e o Quasímodo de O Corcunda de Notre Dame, de Víctor Hugo, romance de extraordinária voga, ainda não de todo perdida, no Brasil."

O Dr. Geraldo é um advogado conceituado, que serve como fiel da balança para Álvaro, já que procura equilibrar os arroubos do amigo, mostrando-lhe a realidade dos fatos.

Quando Álvaro, revoltado com a condição de Isaura e indignado com os horrores da escravidão, dispõe-se a unir-se a ela, mesmo sabendo que escandalizaria a sociedade, Geraldo retruca lucidamente que a fortuna de Álvaro lhe dá independência para "satisfazer os teus sonhos filantrópicos e os caprichos de tua imaginação romanesca". O que não é, na verdade, característica restrita apenas à sociedade escravocrata do século XIX.

RESUMO

Em uma bela fazenda, no município de Campos de Goitacases (RJ), morava Isaura, uma linda escrava de cor de marfim. Isaura era filha de uma bonita escrava que por não se sujeitar aos sórdidos desejos do senhor comendador Almeida (dono da casa) sofreu as mais terríveis privações. Esta escrava teve um caso com o feitor Miguel, que era um bom

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homem e não aceitou castigá-la como mandou o seu senhor, sendo Isaura fruto desse relacionamento. Isaura foi educada pela mulher do comendador, e era dotada de natural bondade e candura do coração além de saber ler, escrever, italiano, francês e piano. A mulher do comendador tinha desejo de libertar Isaura, porém não fazia para conservá-la perto e assim ter companhia.

O Sr. Almeida se aposenta, retirando-se para a corte e entrega a fazenda a seu filho Leôncio. Este era digno herdeiro de todos os maus instintos e devassidão do comendador.

Casou-se por especulação. Nutre por Isaura o mais cego e violento amor. Ele chega à fazenda com sua mulher - Malvina - e seu cunhado - Henrique. Malvina era mulher dócil e tratava Isaura muito bem. Henrique era um filho rico, estudante de medicina, e também ficou tocado pela beleza de Isaura. Morre a mãe de Leôncio sem deixar testamento que libertasse Isaura.

Henrique rapidamente percebe as intenções de Leôncio para com Isaura. Temendo que ele traia sua irmã, adverte que não vai tolerar tal ato. Henrique se oferece como amante para Isaura e daria em troca sua liberdade. O jardineiro da fazenda, um ser disforme e desprezível, também se oferece como amante. Isaura não dá atenção a essas propostas, e diz nunca casar sem amor. Leôncio é avistado por Henrique e Malvina quando fazia semelhante proposta à Isaura. Malvina sentencia: ou ela (Isaura) ou eu.

No mesmo momento da calorosa discussão, aparece o pai de Isaura com o dinheiro suficiente, uma enorme quantia de 10 contos de réis, para comprar a liberdade dela conforme havia prometido o comendador Almeida. Leôncio não aceita o dinheiro e dá desculpas.

Morre o pai de Leôncio e ele finge imensa tristeza por dias, e fica temporariamente sem brigar com a mulher. Passado certo tempo, Malvina continua a pressão para libertar Isaura. Com as desculpas e adiamentos de Leôncio, ela decide voltar para casa do seu pai. A sua saída era caminho livre para os intentos indecentes de Leôncio. Como Isaura continuava a resistir, Leôncio ameaça com torturas. Miguel, sabendo do acontecido, decide fugir com Isaura para o Norte.

Chegando a Recife, Isaura muda seu nome para Elvira e Miguel para Anselmo (para ninguém os descobrirem) passando a morarem numa chácara no bairro de Santo Antônio. Álvaro era um moço rico, filho de uma distinta e opulente família, liberal, republicano e abolicionista ao extremo.

Ele avista Isaura ao passear perto da sua chácara e a conhece, passando a visitá-la constantemente. Álvaro se utiliza de todos os meios para convencer Isaura a ir a um baile com ele. Isaura não queria ir para não enganar a sociedade e iludir o seu amante. Ela por diversas vezes tentou contar a Álvaro que se tratava de uma escrava fugida, mas não tinha coragem.

No baile, Isaura se destaca no meio de todas as mulheres devido a sua beleza e por tocar muito bem piano. Contudo, é reconhecida por Martinho - um estudante de sórdida ganância e espírito de cobiça - que havia guardado um anúncio de escravo fugido. Ele provoca um escândalo durante o baile e Isaura confessa diante de toda a sociedade se tratar de uma escrava. Álvaro, não obstante, defende Isaura das mãos imundas de

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Martinho. Martinho, sem conseguir levá-la, escreve para Leôncio informando que havia achado sua escrava.

Graças à valiosa intervenção de Álvaro, Miguel e Isaura continuam na sua chácara em Santo Antônio na espera das ações que ele havia prometido tomar. Isaura conta que fugiu para escapar do amor de um senhor cruel. Enquanto Álvaro se encontrava na chácara, Leôncio aparece para sua surpresa e exige levar Isaura. Leôncio encontrava-se munido de um mandado de prisão contra Miguel e guardas para levar sua escrava.

A aparição é seguida de forte discussão e Álvaro avança contra Leôncio. A briga é cessada com a aparição de Isaura que se entrega ao seu senhor.

Isaura volta à fazenda onde fica na mais completa reclusão. Leôncio volta para Malvina, pois iria precisar do seu dinheiro. Miguel é ludibriado na cadeia e convencido

a tentar persuadir Isaura a se casar com Belchior, o jardineiro da fazenda, em troca da liberdade sua e da filha.

Isaura aceita o sacrifício, pois estava sem forças e sem esperança. Leôncio já havia tomado todas as providências para o casamento, quando é informado que alguns cavalheiros chegaram. Pensando se tratar do vigário e do tabelião, manda eles entrarem. Fica surpreso ao ver Álvaro. Este tinha ido ao Rio de Janeiro e descobre com alguns comerciantes que Leôncio estava falido. Compra os seus créditos e fica dono de toda a dívida de Leôncio.

Álvaro fala para Leôncio que nada mais o pertence, que toda a sua fazenda incluindo os escravos passava a ser dele com a execução dos débitos. Isaura abraça Álvaro. Leôncio jura que nunca irá implorar a sua generosidade para abrandar a dívida. Ele se ausenta da sala e se mata.

Exercícios sobre o romance

01. Em poucas palavras o livro se resume em: a. Estudos sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma.b. No livro são contadas as aventuras e desventuras de uma bela escrava mestiça em

busca de sua liberdade.c. Reporta-se um episódio da História do Brasil: a luta travada entre as cidades de

Olinda e Recife, nos anos de 1710 e 1711.d. Conta a história de Macabéa, personagem protagonista, vinda de Alagoas para o

Rio de Janeiro, onde vivia com mais quatro colegas de quarto, além de trabalhar como datilógrafa.

02. O vilão leviano, devasso e insensível que, de "criança incorrigível e insubordinada" a adolescente que sangra a carteira do pai com suas aventuras, acaba por tornar-se um homem cruel e inescrupuloso era:a. Álvarob. Belchior c. Dr. Geraldod. Leôncio

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03. A protagonista e antagonista são, respectivamente:a. Isaura e Belchior b. Rosa e Álvaro c. Isaura e Miguel d. Isaura e Leôncio

04. Uma linda escrava de cor de marfim, Isaura, morava em uma magnífica fazenda, no município de Campos de Goytacazes, no estado de:a. São Paulo b. Bahia c. Rio de Janeiro d. Pará

05. Qual era o nome que Isaura atendia em seu disfarce, quando estava em Recife?a. Elvira b. Tomásia c. Rosa d. Josefa

06. Apaixonado por Isaura, o grande obstáculo que Álvaro precisa vencer é o fato de ser Isaura propriedade legítima de Leôncio. Como ele resolve isso?a. Tratara bem aos escravos e amparara Juliana, mãe de Isaura, nas suas desditas

com o pai de Leôncio.b. Não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegância, e, sobretudo as mulheres.c. Dispõe-se a unir-se com Isaura, mesmo sabendo que escandalizaria a sociedade.d. Vai à corte, descobre a falência de Leôncio, adquire seus bens e desmascara o

vilão. Liberta Isaura e casa-se com ela, desafiando, assim, os preconceitos da sociedade escravocrata.

07. A Escrava Isaura é um romance de:a. Carlos Drummond b. Machado de Assis c. Bernardo Guimarães d. Clarisse Lispector

08. O autor pretende, nesta obra, fazer uma acusação documentada:a. Discriminação social b. anti-escravo e da liberdade c. Desvio de verbas d. Problemas sociais

09. O autor explorou uma das questões mais polêmicas da sociedade brasileira da época relativas a:

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a. Drogas b. Ética e ciência c. A escravidão. d. Religião.

10 . Quem sofre um amor impossível por Isaura?a. Belchiorb. Álvaroc. Leônciod. Comendador Almeida

11. Com quem Isaura era comparada?a. Deusa Vênusb. Iracemac. Atenasd. Hera

12. Leia com atenção o trecho extraído de A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães. Assinale a alternativa INCORRETA a respeito da obra. Acha-se ali sozinha e sentada ao piano uma bela e nobre figura de moça. As linhas

do perfil desenham-se distintamente entre o ébano da caixa do piano e as bastas madeixas ainda mais negras do que ele. São tão puras e suaves essas linhas, que fascinam os olhos, enlevam a mente e paralisam toda análise. A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. (...) Os encantos da gentil cantora eram ainda realçados pela singeleza, e diremos quase pobreza, do modesto trajar. (GUIMARÃES, 2002, p. 19.)

a. O trecho ilustra a característica romântica de exaltação da mulher, por meio de descrições minuciosas que destacam a beleza física.

b. O retrato de mulher apresentado no início do livro corresponde ao projeto ideológico manifestado pelo autor de valorização da beleza e da cultura negras.

c. O trecho evidencia o caráter subjetivo do romance romântico, em que se destacam as impressões pessoais do narrador e o excesso de adjetivos.

d. O retrato de mulher apresentado no trecho representa os ideais românticos de beleza feminina, que dá ênfase à beleza frágil e contemplativa

Da questão 13 a 17, você vai usar o texto abaixo.

Texto crítico"Embora seja importante indagar das razões por que público brasileiro dos anos de

1870 avidamente leu e com entusiasmo aplaudiu "A Escrava Isaura", razões que encontram o principal motivo em onda então crescente de sentimento abolicionista – convenhamos em que muito mais importante o comportamento desse público é, para a

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crítica, a natureza desse romance.Mesmo lido com simpatia, "A Escrava Isaura" não resiste à crítica. Seu enredo

resulta em ser inverossímel, tais e tantos são os expedientes primários do Autor, usados para conduzir por determinados caminhos e para desenlace preestabelecido: em freqüentes ex-abruptos, mudam os sentimentos dos protagonistas com relação à bela e desditosa Isaura, e assim de protetores se transformam de pronto em pérfidos algozes, servindo à linha dramática premeditada pelo ficcionistas; não menos precipitada e artificialmente se engendram e desenrolam as situações ou episódios concebidos sempre com a intenção de marcar "passus" da vida "crucis" da desgraçada heroína, que, por fim, mais arrastada pelo autor que pelas forças do drama que vive, encontra no alto do seu calvário, ao invés do sacrifício final (o que teria dado ao romance verossimilhança e força), a salvação e a felicidade de extrema.

Tão primário e artificial quanto enredo que domina a obra, dando-lhe típica estrutura novelesca ou romanesca, é, não digo a concepção, mas o modo de conduzir personagens: Isaura, Malvina, Rosa, Leôncio, Álvaro, Belchior, André, o Dr. Geraldo, Martim e Miguel, se têm peculiaridades físicas e morais que os caracterizam suficientemente e os individualizam na galeria das personagens da ficção romântica, se ocupam posições bem "marcadas" no palco dos acontecimentos, decomposto em dois cenários (uma fazenda de café da Baixada Fluminense e o Recife), não chegam contudo, a receber suficiente estofo psicológico: daí a impressão que deixam, não apenas de símbolos dramáticos quase vazios, senão que também títeres (vá lá a cansada imagem) conduzidos pelo autor, para esta ou aquela ação indispensável, a seu ver, às suas principais intenções".

(Antônio Soares Amora, "O Romantismo", vol. II da A Literatura Brasileira).

13. Segundo o texto:a. "A Escrava Isaura" consagrou-se como um bom romance por causa da aceitação

que teve entre o público leitor de 1870.b. "A Escrava Isaura" não é um bom romance porque o público leitor de 1870 o leu

avidamente e o aplaudiu com entusiasmo.c. O leitor deve ter muito cuidado ao ler ou aplaudir um romance, pois poderá

consagrar uma obra medíocre.d. "A Escrava Isaura" não é um bom romance para a crítica, embora o público o haja

lido com entusiasmo, movido pelo sentimento abolicionista.

14. Antônio Soares Amora diz-nos, no texto, que:a. a crítica, ao avaliar um romance, baseia-se na natureza da obra e não

simplesmente nas reações do público leitor;b. a crítica ataca os romances que cativam a simpatia e o entusiasmo dos leitores;c. Bernardo Guimarães, ao escrever seu romance "A Escrava Isaura", não se

preocupou com a crítica e, sim, com a Abolição;d. é muito difícil a crítica avaliar romances de grande popularidade e aceitação;e. romance da natureza é para a crítica muito mais importante do que o

comportamento do público leitor.

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15. Ainda, de acordo com o texto:a. enredo inverossímel de "A Escrava Isaura" resulta de um autor primário que se

perde nos caminhos escolhidos para um fim determinado;b. os protetores de Isaura transformam-se em seus algozes, crucificando-a no final

do romance;c. os recursos empregados pelo Autor forçam um defeso preestabelecido;d. a parte mais inverossímel do romance é a que assinala os "passus" da "via crucis"

de Isaura;e. embora reconhecesse a inverossimilhança do drama, o autor via nela a salvação e

felicidade extrema da heroína.

16. De texto concluímos que:a. de tal modo os episódios de "A Escrava Isaura" são dominados pela precipitação

e artificialidade, que a ação resulta muito mais da inserção do Autor do que das forças do conflito;

b. a típica estrutura novelesca de "A Escrava Isaura" caracteriza-se pelo desenvolvimento do enredo, pela concepção das personagens e pelo desfecho;

c. em "A Escrava Isaura" o Autor vive um drama cujas forças o arrastam a um calvário onde encontra, em vez do sacrifício final, a sua felicidade;

d. a bela e desditosa Isaura muda os sentimentos dos protagonistas, levando-os ao sacrifício final, no alto do calvário;

e. para a heroína é muito mais importante encontrar a salvação e a felicidade extrema do que o sacrifício final, no alto do Calvário.

17. O texto afirma que:a. as personagens Isaura, Malvina, Rosa, Leôncio, Álvaro, Belchior, Dr. Geraldo,

Martim e Miguel são suficientemente caracterizados física, moral e psicologicamente;

b. uma falha comparável no primarismo e artificialidade do enredo é a concepção das personagens de "A Escrava Isaura';

c. as personagens títeres cansam o leitor, à medida que o Autor as conduz a esta ou àquela ação indispensável ao enredo;

d. as personagens, conduzidas de modo primário e artificial, sem profundidade psicológica, são como fantoches nas mãos do Autor;

e. sem o artificialismo das personagens, "A Escrava Isaura" teria resistido à crítica.

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DA ESCOLA LITERÁRIA

Apesar das obras de Machado de Assis em sua maioria fazerem parte do Realismo, o romance ‘’Helena’’ escrito em 1876 se encaixa na "fase romântica", quando melhor se diriam "de compromisso" ou "convencionais" do escritor. Entretanto, destaca que a genialidade do autor transcende a qualquer escola em que se possa colocar.

A obra de Machado, segundo alguns críticos, pode ser dividida em duas fases: romântica ou convencional e realista.

1ª fase: Romântica“Ressurreição” (1872)“A Mão e a Luva” (1874)“Helena” (1876)“Iaiá Garcia” (1878)

Os romances de sua primeira fase se caracterizam por uma mistura de romantismo agonizante e psicologismo incipiente. Observam-se aqui e ali perfeitas construções estilísticas, renúncia à ação aventureira e melodramática dos românticos, certa agudeza em tratar os caracteres dos personagens; mas o grave equívoco destes romances é que Machado os submete à moral e aos padrões da época.

2ª fase: Realista“Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881)“Quincas Borba” (1891)“Dom Casmurro” (1900)“Esaú e Jacó” (1908)“Memorial de Aires” (1908)

Análise da Obra

Machado de Assis

Iaiá Garcia

UVA 2015.2

Análise das Obras | UVA 2015.222

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Pode-se encontrar a verdadeira essência do Machado de Assis nesta 2ª fase. Quebra da atitude narrativa e da estrutura linear, análise psicológica, uma nova visão do mundo e o senso de humor destacam o realismo na obra do escritor.

Dessa forma ‘’Helena’’ se comporta de forma Romântica, mas, assim como ‘’Senhora’’, de José de Alencar, o livro possui características pré-realistas.

MACHADO DE ASSIS – vida e obraFonte de Pesquisa: http://www.releituras.com/machadodeassis_bio.asp

Acesso: 05 de janeiro de 2013

Joaquim Maria Machado de Assis, cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta, nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839. Filho de um operário mestiço de negro e português, Francisco José de Assis, e de D. Maria Leopoldina Machado de Assis, aquele que viria a tornar-se o maior escritor do país e um mestre da língua, perde a mãe muito cedo e é criado pela madrasta, Maria Inês, também mulata, que se dedica ao menino e o matricula na escola pública, única que frequentará o autodidata Machado de Assis.

De saúde frágil, epilético, gago, sabe-se pouco de sua infância e início da juventude. Criado no morro do Livramento, consta que ajudava a missa na igreja da Lampadosa. Com a morte do pai, em 1851, Maria Inês, à época morando em São Cristóvão, emprega-se como doceira num colégio do bairro, e Machadinho, como era chamado, torna-se vendedor de doces. No colégio tem contato com professores e alunos e é até provável que assistisse às aulas nas ocasiões em que não estava trabalhando.

Mesmo sem ter acesso a cursos regulares, empenhou-se em aprender. Consta que, em São Cristóvão, conheceu uma senhora francesa, proprietária de uma padaria, cujo forneiro lhe deu as primeiras lições de Francês. Contava, também, com a proteção da madrinha D. Maria José de Mendonça Barroso, viúva do Brigadeiro e Senador do Império Bento Barroso Pereira, proprietária da Quinta do Livramento, onde foram agregados seus pais.

Aos 16 anos, publica em 12-01-1855 seu primeiro trabalho literário, o poema "Ela", na revista Marmota Fluminense, de Francisco de Paula Brito. A Livraria Paula Brito acolhia novos talentos da época, tendo publicado o citado poema e feito de Machado de Assis seu colaborador efetivo.

Com 17 anos, consegue emprego como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, e começa a escrever durante o tempo livre. Conhece o então diretor do órgão, Manuel Antônio de Almeida, autor de Memórias de um sargento de milícias, que se torna seu protetor.

Em 1858 volta à Livraria Paula Brito, como revisor e colaborador da Marmota, e ali integra-se à sociedade lítero-humorística Petalógica, fundada por Paula Brito. Lá constrói o seu círculo de amigos, do qual faziam parte Joaquim Manoel de Macedo, Manoel Antônio de Almeida, José de Alencar e Gonçalves Dias.

Começa a publicar obras românticas e, em 1859, era revisor e colaborava com o jornal Correio Mercantil. Em 1860, a convite de Quintino Bocaiúva, passa a fazer parte da redação do jornal Diário do Rio de Janeiro. Além desse, escrevia também para a revista O

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Espelho (como crítico teatral, inicialmente), A Semana Ilustrada(onde, além do nome, usava o pseudônimo de Dr. Semana) e Jornal das Famílias.

Seu primeiro livro foi impresso em 1861, com o título Queda que as mulheres têm para os tolos, onde aparece como tradutor. No ano de 1862 era censor teatral, cargo que não rendia qualquer remuneração, mas o possibilitava a ter acesso livre aos teatros. Nessa época, passa a colaborar em O Futuro, órgão sob a direção do irmão de sua futura esposa, Faustino Xavier de Novais.

Publica seu primeiro livro de poesias em 1864, sob o título de Crisálidas.Em 1867, é nomeado ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial.Agosto de 1869 marca a data da morte de seu amigo Faustino Xavier de Novais, e,

menos de três meses depois, em 12 de novembro de 1869, casa-se com Carolina Augusta Xavier de Novais.

Nessa época, o escritor era um típico homem de letras brasileiro bem sucedido, confortavelmente amparado por um cargo público e por um casamento feliz que durou 35 anos. D. Carolina, mulher culta, apresenta Machado aos clássicos portugueses e a vários autores da língua inglesa.

Sua união foi feliz, mas sem filhos. A morte de sua esposa, em 1904, é uma sentida perda, tendo o marido dedicado à falecida o soneto Carolina, que a celebrizou.

Seu primeiro romance, Ressurreição, foi publicado em 1872. Com a nomeação para o cargo de primeiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, estabiliza-se na carreira burocrática que seria o seu principal meio de subsistência durante toda sua vida.

No O Globo de então (1874), jornal de Quintino Bocaiúva, começa a publicar em folhetins o romance A mão e a luva. Escreveu crônicas, contos, poesias e romances para as revistas O Cruzeiro, A Estação e Revista Brasileira.

Sua primeira peça teatral é encenada no Imperial Teatro Dom Pedro II em junho de 1880, escrita especialmente para a comemoração do tricentenário de Camões, em festividades programadas pelo Real Gabinete Português de Leitura.

Na Gazeta de Notícias, no período de 1881 a 1897, publica aquelas que foram consideradas suas melhores crônicas.

Em 1881, com a posse como ministro interino da Agricultura, Comércio Obras Públicas do poeta Pedro Luís Pereira de Sousa, Machado assume o cargo de oficial de gabinete.

Publica, nesse ano, um livro extremamente original , pouco convencional para o estilo da época: Memórias Póstumas de Brás Cubas -- que foi considerado, juntamente com O Mulato, de Aluísio de Azevedo, o marco do realismo na literatura brasileira.

Extraordinário contista, publica Papéis Avulsos em 1882, Histórias sem data (1884), Vária Histórias (1896), Páginas Recolhidas (1889), e Relíquias da casa velha (1906).

Torna-se diretor da Diretoria do Comércio no Ministério em que servia, no ano de 1889.

Grande amigo do escritor paraense José Veríssimo, que dirigia a Revista Brasileira,

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em sua redação promoviam reuniões os intelectuais que se identificaram com a idéia de Lúcio de Mendonça de criar uma Academia Brasileira de Letras. Machado desde o princípio apoiou a idéia e compareceu às reuniões preparatórias e, no dia 28 de janeiro de 1897, quando se instalou a Academia, foi eleito presidente da instituição, cargo que ocupou até sua morte, ocorrida no Rio de Janeiro em 29 de setembro de 1908. Sua oração fúnebre foi proferida pelo acadêmico Rui Barbosa.

É o fundador da cadeira nº. 23, e escolheu o nome de José de Alencar, seu grande amigo, para ser seu patrono.

Por sua importância, a Academia Brasileira de Letras passou a ser chamada de Casa de Machado de Assis.

Dizem os críticos que Machado era "urbano, aristocrata, cosmopolita, reservado e cínico, ignorou questões sociais como a independência do Brasil e a abolição da escravatura. Passou ao longe do nacionalismo, tendo ambientado suas histórias sempre no Rio, como se não houvesse outro lugar. ... A galeria de tipos e personagens que criou revela o autor como um mestre da observação psicológica. ... Sua obra divide-se em duas fases, uma romântica e outra parnasiano-realista, quando desenvolveu inconfundível estilo desiludido, sarcástico e amargo. O domínio da linguagem é sutil e o estilo é preciso, reticente. O humor pessimista e a complexidade do pensamento, além da desconfiança na razão (no seu sentido cartesiano e iluminista), fazem com que se afaste de seus contemporâneos."

BIBLIOGRAFIA:

Comédia:Desencantos, 1861.Tu, só tu, puro amor, 1881.

Poesia:Crisálidas, 1864.Falenas, 1870.Americanas, 1875.Poesias completas, 1901.

Romance:Ressurreição, 1872.A mão e a luva, 1874.Helena, 1876.Iaiá Garcia, 1878.Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881.Quincas Borba, 1891.Dom Casmurro, 1899.Esaú Jacó, 1904.Memorial de Aires, 1908.

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Conto:Contos Fluminenses,1870.Histórias da meia-noite, 1873.Papéis avulsos, 1882.Histórias sem data, 1884.Várias histórias, 1896.Páginas recolhidas, 1899.Relíquias de casa velha, 1906.

Teatro:Queda que as mulheres têm para os tolos, 1861Desencantos, 1861Hoje avental, amanhã luva, 1861.O caminho da porta, 1862.O protocolo, 1862.Quase ministro, 1863.Os deuses de casaca, 1865.Tu, só tu, puro amor, 1881.

Algumas obras póstumas:Crítica, 1910.Teatro coligido, 1910.Outras relíquias, 1921.Correspondência, 1932.A semana, 1914/1937.Páginas escolhidas, 1921.Novas relíquias, 1932.Crônicas, 1937.Contos Fluminenses - 2º. volume, 1937.Crítica literária, 1937.Crítica teatral, 1937.Histórias românticas, 1937.Páginas esquecidas, 1939.Casa velha, 1944.Diálogos e reflexões de um relojoeiro, 1956.Crônicas de Lélio, 1958.Conto de escola, 2002.

Antologias:Obras completas (31 volumes), 1936.Contos e crônicas, 1958.Contos esparsos, 1966.Contos: Uma Antologia (02 volumes), 1998

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Em 1975, a Comissão Machado de Assis, instituída pelo Ministério da Educação e Cultura, organizou e publicou as Edições críticas de obras de Machado de Assis, em 15 volumes.

Seus trabalhos são constantemente republicados, em diversos idiomas, tendo ocorrido a adaptação de alguns textos para o cinema e a televisão.

Elementos da Narrativa e CaracterísticasAutoria: Prof. Raul Castro

LINGUAGEM e ESTILO:

Elaborada em uma linguagem bem simples, pode-se considerar uma característica de um pré-realismo, a linguagem na obra é a mesma adotada no resto de suas obras.

O estilo de Machado de Assis assume uma originalidade despreocupada com as modas literárias dominantes de seu tempo. Mesmo suas obras iniciais — ‘’Ressurreição’’, ‘’Helena’’, ‘’Iaiá Garcia’’ — que eram pertencentes ao Romantismo (ou ao convencionalismo), possuem uma ainda tímida análise do interior das personagens e do homem diante da sociedade, que ele virá, mais amplamente, desenvolver em suas obras do Realismo. Os acadêmicos notam cinco fundamentais enquadramentos em seus textos: "elementos clássicos" (equilíbrio, concisão, contenção lírica e expressional), "resíduos românticos"(narrativas convencionais ao enredo), "aproximações realistas" (atitude crítica, objetividade, temas contemporâneos), "procedimentos impressionistas" (recriação do passado através da memória), e "antecipações modernas" (o elíptico e o alusivo engajados à um tema que permite diversas leituras e interpretações).

O estudioso Francisco Achcar traça um plano resumidamente no estilo de Machado de Assis, escrevendo:

"[...] alguns dos pontos mais importantes da prosa narrativa machadiana:Machado é o grande mestre do foco narrativo de primeira pessoa, embora

tenha exercido com mestria também o foco de terceira pessoa. Ele sabe colocar-se no lugar de um narrador hipotético e vivenciar todos os seus grandes problemas.

Ao contrário dos realistas, que eram muito dependentes de um certo esquematismo determinista (isto é: pensavam que tudo, no comportamento humano, era determinado por causas precisas), Machado não procura causas muito explícitas ou claras para a explicação das personagens e situações. Ele sabe deixar na sombra e no mistério aquilo que seria inútil explicar. Foi justamente por não tentar explicar tudo que Machado não caiu na vulgaridade de muitos realistas, como Aluísio Azevedo. Há coisas que não se explicam, coisas que só podem ter descrição discreta. Nisso, Machado de Assis foi um grande mestre.

A frase machadiana é simples, sem enfeites. Os períodos em geral são curtos, as palavras muito bem escolhidas e não há vocabulário difícil (alguma dificuldade que pode ter um leitor de hoje se deve ao fato de que certas palavras

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caíram em desuso). Mas com esses recursos limitados Machado consegue um estilo de extraordinária expressividade, com um fraseado de agilidade incomparável.

A descrição dos objetos se limita ao que neles é funcional, ou seja, àquilo que tenha que ver com a história que está sendo contada. O espaço é singelo, reduzido, e as coisas descritas parecem participar intimamente do espírito da narrativa.

Uma das maiores características da prosa de Machado de Assis é a forma contraditória de apreensão do mundo. Machado em geral apanha o fato em suas versões antagônicas, e isso lhe dá um caráter dilemático. É também uma forma superior e mais completa de ver as coisas. Machado tem os olhos voltados para as contradições do mundo.

Chamamos aparência aquilo que aparece a nossos olhos, aquilo que primeiramente surge à observação; chamamos essência aquilo que consideramos a verdade, aquilo que é encoberto pela aparência. Mas o que tomamos por essência pode não ser mais do que outra aparência. O estilo machadiano focaliza as personagens de fora para dentro, vai descascando as pessoas, aparência atrás de aparência. Por isso, Machado é considerado grande "analista da alma humana".

A linguagem machadiana faz referências constantes aos estilos de outros grandes autores do Ocidente. Na maioria dos casos, essas referências são implícitas, só podem ser percebidas por leitores familiarizados com as grandes obras da literatura. Esse é um dos motivos de se poder dizer que o estilo de Machado é um estilo "culto" (pois ele faz uso da cultura e sua compreensão aprofundada exige cultura da parte do leitor). Costuma-se chamar intertextualidade a esse diálogo que se estabelece, no texto de um escritor, com textos de outros autores, do presente ou do passado. Machado de Assis foi um grande virtuose da intertextualidade.

Em seus romances mais importantes, Machado de Assis pratica a interpolação de episódios, recordações, ou reflexões que se afastam da linha central da narrativa. Essas "intromissões" de elementos que aparentemente se desviam do tema central do livro correspondem a procedimentos chamados digressões. As digressões são, naturalmente, muito mais comuns nos romances do que nos contos, pois nestes a brevidade do texto não permite constantes retardamentos da narrativa. Nessas digressões, Machado é constantemente seduzido pelo impulso de falar sobre a própria obra que está escrevendo, isto é, faz metalinguagem, comentando os capítulos, as frases, a organização do todo. Embora também presente nos contos, esses elementos de metalinguagem são neles bem mais raros e discretos.

Uma das características mais atraentes e refinadas de Machado de Assis é sua ironia, uma ironia que, embora chegue francamente ao humor em certas situações, tem geralmente uma sutileza que só a faz perceptível a leitores de

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sensibilidade já treinada em textos de alta qualidade. Essa ironia é a arma mais corrosiva da crítica machadiana dos comportamentos, dos costumes, das estruturas sociais. Machado a desenvolveu a partir de grandes escritores ingleses que apreciava e nos quais se inspirou (sobretudo o originalíssimo Lawrence Sterne, romancista do século XVIII). Na representação dos comportamentos humanos, a ironia de Machado de Assis se associa àquilo que é classificado como o seu grande poder de analista da alma humana'."

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Estilo_de_Machado_de_Assis

FOCO NARRATIVOA narrativa é toda em 3ª pessoa, portanto é onisciente, heterodiegético, Machado

tem como característica a análise do perfil feminino, e o psicologismo, sua marca registrada; para isso precisa de um narrador que não esteja na história.

Notamos tal peculiaridade no capítulo IV quando Jorge, após seu frustrante encontro com Estela sai desatinado e começa a ponderar sobre fatos:

- Tua mãe é que tem razão – bradava uma voz interior -...- Quem tem razão és tu – dizia-lhe outra voz contrária-...Aqui notamos que o narrador é onisciente pois é capaz de expressar os sentimentos

internos e as suas reflexões ao longo da caminhada que faz.

TEMPOA narrativa é cronológica com várias quebras de linearidade

ESPAÇOTudo ocorre no Rio de Janeiro, principalmente na Rua dos Inválidos, há também

a guerra do Paraguai na qual Jorge vai para a guerra e lá serve por 4 anos.

PERSONAGENS

Iaiá GarciaEra alta, delgada, travessa; possuía os movimentos súbitos e incoerentes da

andorinha. A boca desabrochava facilmente em riso, — um riso que ainda não toldavam as dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade.

JorgeFilho de Valéria, apaixona-se por Estela, mas ao voltar da Guerra do Paraguai

encanta-se por Iaiá Garcia.

Sr. AntunesEra o escrevente e homem de confiança do marido de Valéria, ao longo de três anos

de plena subserviência consolidou sua posição em meio a bajulações e gratificações do seu amigo-patrão, infelizmente nessa mesma época a esposa morreu deixando uma filha de apenas 10 anos. O esposo de Valéria, amigo e cordial, pagou os estudos da moça e com o tempo, sendo boa e gentil, foi ganhando o coração de Valéria até se hospedar em sua casa no dia em que terminou os estudos.

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EstelaFilha de Sr. Antunes, devia toda sua educação à família de Jorge, morava na casa de

Valéria, e vai ser essa proximidade com o rapaz que desencadeará o interesse dele.Pálida era, da palidez das monjas, mas sem nenhum tom de melancolia

ascética. Tinha os olhos grandes, escuros, talhados à feição de amêndoa, por baixo de duas sobrancelhas lisas, cheias e corretas. Os olhos eram a parte mais saliente do rosto, a que dominava tudo, não obstante a harmonia das restantes feições; é que havia neles uma expressão de virilidade moral, que dava à beleza de Estela o principal característico. Uma por uma, as feições da moça eram graciosas e delicadas; mas a impressão que deixava o todo estava longe da meiguice natural do sexo. Estela, posta entre as musas, seria Melpomene. Tinha as formas; restava só que o destino fizesse correr sobre elas o gemido das paixões trágicas. Usualmente, trazia roupas pretas, cor que preferia a todas as outras. A mulher pálida, que não usa de preferência a cor preta, carece de um instinto. Estela possuía esse instinto do contraste. Nu de enfeites, o vestido punha-lhe em relevo o talhe esbelto, elevado e flexível. Nem ousava nunca trazê-lo de outro modo, sem embargo de algum dixe ou renda com que a viúva a presenteava de quando em quando; rejeitava de si toda a sorte de ornatos; nem folhos, nem brincos, nem anéis.

EuláliaTinha dezenove anos, mas cabeça de trinta, era parenta da família de Jorge e é

arranjada e sondada por Valéria para se casar com seu filho.Era uma moça sem ilusões nem vaidades, talvez sem paixões, dotada de juízo reto e

coração simples, e sobre tudo isso uma beleza sem mácula e uma elegância sem espavento.

Luís GarciaPai de Iaiá Garcia, no começo da trama possui 41 anos de idade e é assim

descrito:

Era alto e magro, um começo de calva, barba raspada, ar circunspeto. Suas maneiras eram frias, modestas e corteses; a fisionomia um pouco triste. Um observador atento podia adivinhar por trás daquela impassibilidade aparente ou contraída as ruínas de um coração desenganado.

Assim era; a experiência, que foi precoce, produzira em Luís Garcia um estado de apatia e ceticismo, com seus laivos de desdém. ... Por fora, havia só a máscara imóvel, o gesto lento e as atitudes tranquilas.

RaimundoEx-escravo fiel de Luís Garcia, possuía 50 anos, era herança de seu pai, logo após

pertencer ao Luís ele tratou logo de alforriá-lo, o escravo achando que estava sendo dispensado pensou até em rasgar, entre os dois havia uma eterna amizade.

De noite junto de seu senhor tocava marimba, cantigas alegres e felizes.

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Depois dessa amizade só o amor que tinha por Iaiá Garcia, sempre quando ela vinha aos finais de semana guardava um presentinho para a garota.

Maria das DoresA ama que a havia criado, uma pobre catarinense, para quem só havia duas

devoções capazes de levar uma alma ao céu: Nossa Senhora e a filha de Luís Garcia.Ia ela de quando em quando à casa deste, nos dias em que era certo encontrar lá a

menina, e ia de S. Cristóvão, onde morava.Não descansou enquanto não alugou um casebre em Santa Teresa, para ficar mais

perto da filha de criação.

RESUMO

O enredo se constitui de uma série de incidentes que giram sempre em torno do mesmo ponto, a realização ou a não-realização de um casamento. Todos os atos das personagens são conduzidos, de modo direto ou indireto, para a consecução ou para o impedimento desse objetivo. Assim, a ação do romance arma-se sobre a mesma sequência básica, repetida ao longo do relato com ligeiras variações, mas mantendo sistematicamente os elementos essenciais.

Como já citado, Iaiá Garcia trata do conflito social entre as classes, aproveitando como eixo o romance entre Jorge, um cavalheiro de alta sociedade e Estela, uma jovem pobre.

O romance se inicia com a apresentação de Luís Garcia, pai de Lina Garcia, chamada em seu círculo familiar de Iaiá. A personagem é convocada por Valéria para que a ajude a convencer o filho a alistar-se no exército brasileiro e participar da Guerra do Paraguai. Na descrição da personagem, ao iniciar o romance, Machado de Assis chama a atenção do leitor para certos aspectos de Luís Garcia:

No momento em que começa esta narrativa, tinha Luís Garcia quarenta e um anos. (...) Suas maneiras eram frias, modestas e corteses; a fisionomia um pouco triste. Um observador atento podia adivinhar por trás daquela impassividade aparente ou contraída as ruínas de um coração desenganado. Assim era; a experiência, que foi precoce, produzira em Luís Garcia um estado de apatia e ceticismo, com seus laivos de desdém.

Nessa primeira descrição, podemos notar que não há nada a se esconder: o narrador apresenta as principais peculiaridades da personagem. Não é um “observador atento” que é chamado à leitura, pois o próprio narrador dá ao leitor a chave para o entendimento das futuras decisões tomadas por Luís Garcia logo na primeira página do romance. A descrição, nesse caso, funciona como um objeto de desvelamento: mostra aos leitores a impossibilidade de imputar à personagem qualquer outro caráter que não seja o de um “coração desenganado”.

No romance não há nada de oculto no caráter de Luís Garcia. Tudo sobre o pai de Iaiá foi dito na primeira oportunidade pelo narrador, de modo que a atenção do leitor ficasse presa à camada mais imediata do texto: aquela dos fatos a serem narrados.

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A partir daí, pode-se dizer que a narrativa de Machado de Assis em Iaiá Garcia encontra-se a meio caminho entre o romance de feição popular e o problemático. Se por um lado há descrições que reduzem as personagens psicologicamente, mantendo a atenção do leitor voltada para a superfície mais direta da trama, por outro lado há a presença de certas sutilezas psicológicas que produzem um nível de problematicidade maior a ser enfrentado pelo leitor.

Logo após a descrição do pai, o narrador passa rapidamente para a descrição da filha:

Entretanto, das duas afeições de Luís Garcia, Raimundo era apenas a segunda; a primeira era uma filha. (...)

Contava onze anos e chamava-se Lina. O nome doméstico era Iaiá.(...) A boca desabrochava facilmente um riso, — um riso que ainda não toldavam as dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade.

Logo após a apresentação de Iaiá, temos a descrição do ambiente doméstico de seu pai. Vemos, nessa parte da narrativa, que a filha de Luís Garcia apresenta sutilezas psicológicas importantes. Observemos com cuidado:

(...) Dessa comparação extraiu a ideia do sacrifício que o pai devia ter feito para condescender com ela; ideia que a pôs triste, ainda que não por muito tempo, como sucede às tristezas pueris. A penetração madrugava, mas a dor moral fazia também irrupção naquela alma até agora isenta da jurisdição da fortuna. (ASSIS, 1975, p. 79)

Machado, nesse momento, apresenta-nos um problema: Iaiá reconhece que o pai sacrificou-se ao lhe dar um piano de presente. Porém, como as tristezas pueris não duram, logo ela delicia-se com o presente.

O que se mostra importante neste breve trecho é a presença de uma palavra-chave da narrativa de ‘’Iaiá Garcia’’. Palavra que constitui o verdadeiro palco da discussão nesta obra: a moral. Percebe-se que desde cedo (a personagem contava nessa época com onze anos de idade) Iaiá compreende a “dor moral” que o pai tem de sofrer, para que possa lhe dar educação e conforto.

O romance trata, portanto, da aprendizagem de Iaiá em um novo mundo: o mundo da tensão entre o social e o natural, mediante o jogo imposto pelo narrado acerca da moral.

O primeiro momento de tensão da narrativa ocorre já no segundo capítulo do romance. Na verdade, trata-se de uma fórmula que se repetirá em toda a trama: a realização ou não de um casamento, como já vimos.

Temos a tríade Estela – Valéria – Jorge que representa a dinâmica entre o natural e o social por meio do casamento. A convocação de Luís Garcia para interagir nessa dinâmica, sendo esse o tema do segundo capítulo do romance, não afeta o trinômio, pois, como sabemos, ele não participará diretamente da tensão. Porém, caberá a essa personagem o papel de julgar, sendo complementado pelo narrador. O diálogo entre Valéria, Luís Garcia e Jorge é recheado de julgamentos morais que levam o leitor a uma

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dubiedade: ao separar seu filho de Estela, a verdadeira motivação de Valéria é egoísta, mas, por outro lado, existem grandes vantagens sociais para o jovem rapaz.

Sob esse aspecto, basta que observemos a descrição que Machado de Assis faz de Estela:

Simples agregada ou protegida, não se julgava no direito a sonhar posição superior e independente; e dado que fosse possível obtê-la, é lícito afirmar que recusara, porque, a seus olhos seria um favor, e sua taça de gratidão estava cheia. (...)

Pois o orgulho de Estela não lhe fez somente calar o coração, infundiu-lhe a confiança moral necessária para viver tranquila no centro mesmo do perigo.

A dissimulação, característica própria do universo feminino e romanesco, é resgatada no momento em que Estela descobre seu amor por Jorge:

No meio de semelhante situação, que sentia ou pensava Estela? Estela amava-o. No instante em que descobriu esse sentimento em si mesma, pareceu-lhe que o futuro se lhe rasgava largo e luminoso; mas foi só nesse instante. Tão depressa descobriu o sentimento, como tratou de o estrangulá-lo ou dissimular, — trancá-lo ao menos no mais escuro do coração, como se fora uma vergonha ou pecado. (ASSIS, 1975, p. 97)

Sendo assim, a primeira tensão do romance é a seguinte: Jorge ama uma mulher que não é compatível com sua condição social. A mãe do rapaz se mostra contrária a essa união, mas Estela descobre que também o ama. No entanto, Estela, dominada pelo orgulho, rechaça a possibilidade de uma união, pois, em seu entendimento, entregar-se a Jorge seria assumir seu papel de agregada. Assim, a mulher passa a dissimular seus sentimentos, tornando-se superior ao amado por meio da frieza para com ele.

Apesar de Estela esconder seus sentimentos, é Valéria que domina por ser mais experiente na arte da dissimulação. Ou seja, Valéria, desde o primeiro momento, percebe que há um perigo a ser vencido: Jorge não pode casar-se com Estela:

Valéria reparou na atitude dos dois; mas como possuía a qualidade de dissimular as impressões, não alterou nem o gesto nem a voz. Os olhos é que nunca mais os deixaram. (ASSIS, 1975; p.102)

Sempre vigilante, e apesar de todos os percalços, Valéria despacha o filho para o Paraguai. Porém, antes de morrer, casa Estela com Luís Garcia, sendo este o segundo trinômio da trama: Estela – Valéria – Luís Garcia.

Aqui se configura uma pequena mudança: todos são a favor do casamento. Em primeiro lugar, Valéria vê nesta união a resposta para seus problemas; por isso, oferece o dote de casamento para Estela. Em vista desse fato, percebe-se claramente a maestria de Valéria:

Com essa ideia opressiva entrou ela na casa da viúva, cuja recepção lhe desabafou o espírito do mais espesso de suas preocupações. Valéria beijou-a, com um gesto mais maternal que protetor. Nem lhe deixou concluir a frase de agradecimento; cortou-a com uma carícia (...) dissimulação generosa, que Estela compreendeu, porque também possuía o segredo dessas delicadezas morais.

Ou seja, Estela acaba por reconhecer em Valéria alguém superior às suas forças. A orgulhosa agregada não conseguiu separar-se de sua protetora, pois, reconhecendo-lhe

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a superioridade na arte da dissimulação, não lhe sobra recursos a não ser retornar à esfera de proteção da viúva.

Logo após esse episódio, Estela e Luís Garcia discutem sobre o projeto de se unirem:

— Creio que nenhuma paixão nos cega, e se nos casarmos é por nos julgarmos friamente dignos um do outro.

— Uma paixão de sua parte, em relação à minha pessoa, seria inverossímil, confessou Luís Garcia; não lha atribuo. Pelo que me toca, era igualmente inverossímil um sentimento dessa natureza, não porque a senhora não pudesse inspirar, mas porque eu já não o poderia ter.

— Tanto melhor, concluiu Estela; estamos na mesma situação e vamos começar uma viagem com os olhos abertos e o coração tranqüilo. Parece que em geral os casamentos começam pelo amor e acabam pela estima; nós começamos pela estima; é muito mais seguro.

Do diálogo entre as personagens não deriva, por certo, um julgamento amoroso, pois se trata de um julgamento moral, que fora impulsionado pela mãe de Jorge. A mesma senhora que, para recompensar esse matrimônio, entrega o dote de Estela. A união entre o indiferente Luís Garcia e a orgulhosa viúva é uma união de características que não se confundem, mas que podem vir equilibrar a economia doméstica da casa de Iaiá Garcia. O real motivo do casamento para Luís é Iaiá, que já reconhecera Estela como uma mãe possível, mas que em sua ingenuidade não participou dos planos de Valéria.

Jorge retorna da guerra para descobrir a amada em matrimônio com seu melhor amigo, e a mãe morta. Lembremos que os dois primeiros trinômios de tensão da narrativa tiveram como motivo inspirador as próprias resoluções de Valéria. Devemos lembrar ainda que uma personagem fora dos trinômios serve de catalisador dos acontecimentos – no primeiro trinômio, temos Luís Garcia; no segundo, Iaiá. O próximo trinômio apresentará Iaiá como uma de suas peças fundamentais.

Agora temos Luís Garcia – Iaiá Garcia – Jorge. É Iaiá, centro deste trinômio, que desenvolve a dinâmica da narrativa. Aqui trata-se do casamento como salvaguarda de uma situação: Iaiá pretende casar-se com Jorge pelo amor que tem ao pai. Vejamos como se configura o problema:

(...) Luís Garcia disse algumas palavras a respeito do filho de Valéria.— Pode ser que eu me engane, concluiu o cético; mas persuado-me que é um bom

rapaz.Estela não respondeu nada; cravou os olhos numa nuvem negra, que manchava a

brancura do luar. Mas Iaiá, que chegara alguns momentos antes, ergueu os ombros com um movimento nervoso.

— Pode ser, disse ela; mas eu acho-o insuportável.E ainda:A verdadeira causa era nada menos que um sentimento de ciúme filial. Iaiá adorava

o pai sobre todas as coisas; era o principal mandamento de seu catecismo. Instigara o casamento, com o fim de lhe tornar a vida menos solitária, e porque amava Estela. O

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casamento trouxe para casa uma companheira e uma afeição; não lhe diminuiu nada do seu quinhão de filha.

Iaiá viu, entretanto, a mudança nos hábitos do pai, pouco depois de convalescido, e sobretudo desde os fins de setembro. Esse homem seco para todos, expansivo somente na família, abriria uma exceção em favor de Jorge (...)

A primeira motivação de Iaiá é separar Luís Garcia de Jorge por conta de um ciúme filial. Entretanto, o que acontece é o oposto: pouco a pouco, Jorge aproxima-se de Iaiá sem perder a admiração de Luís Garcia. Em realidade, essa admiração moral aumenta. E Iaiá ainda não tinha os planos de casamento. Até então, seu objetivo era afastar Jorge de seu pai.

No capítulo X, há a mudança na resolução de Iaiá. E, seguindo a ordem da narrativa, um fator externo desencadeia a mudança: a releitura de uma das cartas de Jorge nos tempos de guerra, releitura para o pai e leitura para Estela e Iaiá – que “lê” os olhos da madrasta.

Iaiá, mesmo com um pretendente certo, começa a aproximar-se de Jorge. Procópio Dias, o pretendente cuja moral é execrada tanto pelo narrador quanto por Jorge, precisa viajar para recuperar uma herança. O afastamento de Procópio, como anteriormente o afastamento de Jorge, configura a aproximação das personagens, que terminará no matrimônio de ambos. Procópio pede a Jorge para cuidar de Iaiá. E Iaiá inicia seu plano para conquistar o antigo amado de Estela. Como já vimos, o objetivo de Iaiá não é a disputa mas a salvaguarda de seu pai, pois ela sabia o perigo que representava Jorge em sua casa.

A filha de Luís Garcia, enfim, consegue seu objetivo. Jorge jura-lhe amor e os dois iniciam os preparativos para o casamento. Contudo, o pai de Iaiá encontra-se enfermo e acaba por falecer.

Regida pelo orgulho, Estela percebe logo que Iaiá deseja casar-se com Jorge por algum motivo além de seus próprios sentimentos. Vejamos a reação da personagem à situação em que é mera espectadora:

O procedimento da enteada, a súbita conversão às atenções de Jorge, toda aquela intimidade visível e recente, acordara no coração de Estela um sentimento, que nem aos orgulhosos poupa. Ciúme ou não, revolvera a cinza morna e achou lá dentro uma brasa. (...)

(...) O orgulho vencera uma vez; agora era o amor, que, durante anos de jugo e compressão, criara músculos e saía a combater de novo. A vitória seria uma catástrofe, porque Estela não dispunha da arte de combinar a paixão espúria com a tranquilidade doméstica; teria as lutas e as primeiras dissimulações; uma vez subjugada, iria direto ao mal.

Vemos que os ciúmes de Estela continuam relacionados a uma situação em que o orgulho é o verdadeiro motivo, pois, mesmo reconhecendo o amor de Jorge, ela pretende provar que é moralmente superior. Com a morte de Luís Garcia, no capítulo XV, Estela poderia desobrigar-se dos impedimentos morais que a colocaram na situação acima mencionada. Todavia, devemos lembrar que Estela era também mãe de Iaiá. Esse

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fato, gerado pela convivência das duas em casa do pai de Lina, poderia ser exatamente o sucesso da nova empreitada da viúva: casar os até então noivos Jorge e Iaiá.

Porém, Iaiá não desejava mais casar com o filho de Valéria. Vejamos os motivos:

Mas duas circunstâncias a induziram ao desfecho; era a primeira a revelação de Procópio Dias, confirmação de suas suspeitas; a segunda foi o espetáculo que se lhe ofereceu aos olhos, naquela noite, logo depois de se despedir do noivo. Sabendo que a madrasta estava no gabinete do pai, ali foi ter e espreitou pela fechadura; viu-a sentada com a cabeça inclinada ao chão, desfeito o penteado, mas desfeito violentamente, como se lhe metera as mãos em um momento de desespero, e caindo-lhe o cabelo em ondas amplas sobre a espádua, com a desordem da pecadora evangélica. Iaiá não a viu sem que os olhos se umedecessem.

— Que se casem! disse a moça resolutamente.

Embora ainda ame Jorge, a menina decide desfazer a promessa porque sua madrasta o ama e não há impedimento moral algum para que se faça a união. É aqui que vemos como a “puberdade moral” de Iaiá torna-a superior aos procedimentos de Estela:

Ergueu-se e procurou beijá-la. A madrasta recuou instintivamente a cabeça; era um gesto de repugnância, que a fisionomia ingênua e pura de Iaiá para logo dissipou. Em tão verdes anos, sem nenhum trato social, era lícito supor na menina tamanha dissimulação?

Sim, pois Iaiá sabia da paixão de Jorge e do amor que Estela tentava esconder. É claro que o orgulho de Estela passa a interpretar as atitudes de sua enteada como “um impulso desinteressado”. Porém, o leitor sabe que não se trata disso, mas de uma batalha, em todo o romance, de fingimentos para atingir determinados objetivos em torno do contrato social chamado casamento. Estela, perdida em meio à batalha das ilusões, ainda ama Jorge, que não mais a ama.

Entretanto, Estela não deseja casar com Jorge, pois seu orgulho a impede. Assim, após o noivo de Iaiá recorrer à futura sogra por meio de uma carta, Estela decide intervir. Vai ao encontro da jovem e inicia o mais longo diálogo do texto, resultando em um casamento por amor e o afastamento de alguém, neste caso, Estela, que deixa o Rio de Janeiro e, ao fazer isso, demonstra que a única coisa a escapar ao naufrágio das ilusões é a moral, respondendo assim a indeterminação dada pela palavra “coisa” na frase final do romance: “Era sincera a piedade da viúva. Alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões””.

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Exercícios – Sala de Aula

01. Sobre o estilo e linguagem machadiano assinale o item incorreto:a. "elementos barrocos" (dualidade, dúvida, exagero lírico. b. "resíduos românticos" (narrativas convencionais ao enredo).c. "aproximações realistas" (atitude crítica, objetividade, temas contemporâneos).d. "procedimentos impressionistas" (recriação do passado através da memória).

02. Dentro das relações que se dão dentro da obra, podemos afirmar quea. Jorge casa com Estela.b. Iaiá casa-se com Procópio Dias.c. Estela casa-se com Luís Garcia.d. Jorge casa-se com Eulália.

03. Valéria pode ser considerada uma vilã dentro da obra, poisa. impede inicialmente um romance entre Estela e Jorge.b. faz com o filho vá para a guerra do Paraguai.c. convence Estela a não casar com Jorge.d. morre sem deixar herança para Jorge.

04. O livro Iaiá pode ser considerado um romance românticoa. de tese.b. urbano.c. regionalista.d. Histórico.

05. Iaiá Garcia é apenas um epíteto, sou nome de fato seriaa. Lina.b. Helena.c. Lenita.d. Olívia

Exercícios – Para casa

Leia o texto com atenção e responda aos itens de 01 a 05:

O resto foi obra de Iaiá, obra dividida em duas partes, uma voluntária, outra inconsciente. Voluntária, porque também a menina, no silêncio laborioso de seu cérebro, construíra o projeto de os unir, e o dissera mais de uma vez a um e a outro.

Inconsciente, porque o amor que a ligava a Estela, foi a mais poderosa força que modificou o pai. Era uma afeição intensa a dessas duas criaturas; ao passo que Iaiá dava a

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Estela uma porção de ternura de filha, Estela achava no amor da menina uma antecipação dos prazeres da maternidade. Luís Garcia testemunhou esse movimento recíproco e, por assim dizer, fatal.

Se Iaiá devesse ter madrasta, onde a acharia mais completa? Discreta, moderada, superior aos seus anos, Estela tinha as condições necessárias para esse delicado papel. A primeira insinuação da viúva foi a causa primordial; mas o tempo, a convivência, a afeição das duas, a necessidade de dar segunda mãe à menina, e antes legítima que mercenária, finalmente, a certeza de que a Estela não repugnava a solução, tais foram os primeiros elementos da decisão de Luís Garcia.

Faltava só o milagre, e o milagre veio. Iaiá adoeceu um dia em casa de Valéria, e a doença, posto que não grave nem longa, deu ocasião a que Estela manifestasse de modo inequívoco toda a ternura de seu coração. Luís Garcia foi testemunha da dedicação silenciosa e contínua com que Estela tratou da doente. Esse último espetáculo desarmou-o de todo. Entre eles, o casamento não era a mesma cousa que costuma ser para outros; nada tinha das alegrias inefáveis ou das ilusões juvenis.

Era um ato simples e grave. E foi o que Estela lhe disse a ele, no dia em que trocaram reciprocamente as primeiras promessas.

— Creio que nenhuma paixão nos cega, e se nos casamos é por nos julgarmos friamente dignos um do outro.

— Uma paixão de sua parte, em relação à minha pessoa, seria inverossímil, confessou Luís Garcia; não lha atribuo.

Pelo que me toca, era igualmente inverossímil um sentimento dessa natureza, não porque a senhora o não pudesse inspirar, mas porque eu já o não poderia ter.

— Tanto melhor, concluiu Estela; estamos na mesma situação e vamos começar uma viagem com os olhos abertos e o coração tranqüilo. Parece que em geral os casamentos começam pelo amor e acabam pela estima; nós começamos pela estima; é muito mais seguro.

O casamento foi aprovado pelo Sr. Antunes, com a mesma alma de um réu sancionando a própria execução. Não somente se lhe iam embora esperanças muito menos modestas, como lhe repugnava o caráter do genro. Não cedeu sem hesitação e luta; hesitação perante a viúva, luta em relação à filha; mas cedeu, porque ele nascera para não resistir. Hábil, no entanto, em espremer algum lucro dos males inevitáveis, uma vez perdida a confiança na eficácia da recusa, aceitou o acordo, não somente com aparência cordial, mas ainda entusiasta.

ASSIS, Machado de. Ed. Fundação Biblioteca Nacional. SP. 2003, pág. 40

01. As personagens centrais do trecho sãoa. Estela e Iaiá Garcia.b. Iaiá e Luís Garcia.c. Estela e Luís Garciad. Luís Garcia e Sr. Antunes

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02. O foco central do fragmento acima concentra-sea. Na doença de Iaiá Garcia.b. Na forma como Estela cuidou de Iaiá.c. Em como surgiu o enlace matrimonial entre Estela e Luís Garcia.d. Na forma nada romântica do encontro do casal.

03. Na passagem: “O casamento foi aprovado pelo Sr. Antunes, com a mesma alma de um réu sancionando a própria execução.” Temos uma figura de linguagem chamada:a. Personificação;b. Símile;c. Metáfora;d. Eufemismo.

04. No fragmento: “— Tanto melhor, concluiu Estela; estamos na mesma situação e vamos começar uma viagem com os olhos abertos e o coração tranqüilo. Parece que em geral os casamentos começam pelo amor e acabam pela estima; nós começamos pela estima; é muito mais seguro.” Temos por parte do narrador que o texto revela:a. uma crítica à burguesia.b. uma crítica ao romantismo.c. um pessimismo por parte da personagem.d. uma visão racionalista da personagem.

05. No fragmento: “Entre eles, o casamento não era a mesma cousa que costuma ser para outros; nada tinha das alegrias inefáveis ou das ilusões juvenis.” Podemos notar que a posição de Luís Garcia em relação ao casamento é dea. alegria.b. decepção.c. mera formalidade.d. ansiedade

06. O prometido em casamento de Iaiá Garcia é:a. Jorge;b. Raimundo;c. Procópio Dias;d. Sr. Antunes.

07. Sobre Procópio Dias é correto afirmar que:a. era corretor de imóveis, mas não gostava de Jorge.b. se torna amigo de Jorge e tenta comprar a casa de sua falecida mãe.c. era especulador imobiliário e se torna amigo de Jorge.d. era noivo de Iaiá Garcia no momento que conhece Jorge.

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08. Podemos dizer que a história se passa:a. no Rio de Janeiro;b. em Porto Alegre;c. em uma fazenda;d. em uma vila.

09. O romance, quanto ao seu foco narrativo, classifica-se como:a. homodiegético;b. autodiegético;c. heterodiegético;d. de transição cambiante.

10. No final do livro Jorge passa a casar com:a. Estela;b. Iaiá Garcia;c. Eulália;d. Valéria

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Análise da Obra

José Lins do RegoMenino de Engenho

ELEMENTOS DA NARRATIVA

Foco narrativo

Narrado em 1ª pessoa por Carlos Melo (personagem), que aponta suas tensões sociais envolvidas em um ambiente de tristeza e decadência, é o primeiro livro do ciclo da cana-de-açúcar. Publicado em 1932, Menino do Engenho é a estréia em romance de José Lins do Rego e já traz os valores que o consagraram na Literatura Brasileira.

Análise da obra

Durante a década de 30 do século XX, virou moda uma produção que se preocupava em apresentar a realidade nordestina e os seus problemas, numa linguagem nova, introduzida pelos participantes da Semana de Arte Moderna de 22. José Lins do Rego seria o melhor representante dessa vertente, se certas qualidades suas não atenuassem fortemente o tom crítico esperado na época.

A intenção do autor ao elaborar a obra Menino de Engenho, era escrever a biografia de seu avô, o coronel José Paulino, que considerava uma figura das mais representativas da realidade patriarcal nordestina. Seria também a autobiografia das cenas de sua infância, que ainda estavam marcadas em sua mente. Mas o que se constata é que o biógrafo foi superado pela imaginação criadora do romancista: a realidade bruta é recriada através da criatividade do gênero nordestino.

É a história típica, natural e sem retoques de uma criança, Carlos, órfão de pai e mãe, que, aos oito anos de idade, vem viver com o avô, o maior proprietário de terras da região - coronel José Paulino.

Carlos é criado sem a repressão familiar e mesmo sem os cuidados e atenções que lhe seriam necessários diante das experiências da vida. Vê o mundo, aprende o bem e o

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mal e chega a uma provável precocidade acerca dos hábitos que lhe eram "proibidos", mas inevitáveis de serem adquiridos.

Pela ausência de orientação, toma-se viciado, corrompido, aos 12 anos de idade. Além dos problemas íntimos do menino, desorientado para a vida e para o sexo, temos a análise do mundo em que vivia, visto por Carlos, que é o narrador-personagem.

Carlos vê o avô como um verdadeiro Deus, uma figura de grandiosidade inatingível. O engenho é o mundo, um império, de onde o coronel José Paulino dirige e guia os destinos de todos. E, em conseqüência, Carlos considera-se, e é considerado pelos servos, escravos e agregados, o “coronelzinho” cujas vontades têm que ser rigorosamente realizadas.

Descreve com emoção a vida dos escravos, a senzala, o sofrimento e os castigos do “tronco”. Uma cena a ser destacada é a “enchente” do rio, vista com admiração e susto por Carlos, constituindo uma descrição de grandiosidade bíblica.

Também vêm à tona as superstições e crendices comuns entre as camadas populares, como a do “lobisomem”.

O romance tem como cenário a região limítrofe entre Pernambuco e Paraíba, o que pode ser deduzido pelas descrições da paisagem e da vida dos engenhos de açúcar.

Os bandidos e cangaceiros, comuns na região, são mostrados como única forma de reação social de um povo oprimido.

Espaço

O romance tem como cenário a região limítrofe entre Pernambuco e Paraíba, o que pode ser deduzido pelas descrições da paisagem e da vida dos engenhos de açúcar.

Os bandidos e cangaceiros, comuns na região, são mostrados como única forma de reação social de um povo oprimido.

O nome da fazenda de engenho chama-se Santa Rosa.

Contextualização

O contexto histórico deste livro é o Brasil colônia e seu regime escravocrata. A localização geográfica se dá no nordeste brasileiro, nos solos de massapê (argiloso) da zona da mata no Estado da Paraíba. As relações sociais vividas na época são o ponto alto do livro, onde a figura quase heróica do coronel mistura o poder econômico da fazenda de engenho, com o poder político de prefeito da cidade, concentrada na mesma pessoa: Coronel José Paulino. Estes fatores e muitas das características citadas no romance estão presentes na história da sociedade brasileira da época da escravidão, principalmente da região nordestina.

Personagens

Martinho Carlinhos - É o narrador do romance. Órfão aos quatro anos, tornou-se um menino melancólico, solitário e bastante introspectivo. De sexualidade exacerbada, mantém, aos doze anos, a sua primeira relação sexual, contraindo “doença-do-

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mundo” - a popular gonorréia.

Coronel Zé Paulino - É o todo-poderoso senhor de engenho - o patriarca absoluto da região. Era uma espécie de prefeito - administrava pessoalmente, dando ordens e fazendo a justiça que ditava a sua consciência de homem bom e generoso.

Tia Maria - Irmã da mãe de Carlinhos (Clarisse), torna-se para este a sua segunda mãe. Querida e estimada por todos pela sua bondade e simpatia, era chamada carinhosamente de Maria Menina.

Velha Totonha - É uma figura admirável e fabulosa. Representa bem o folclore ambulante dos contadores de histórias.

Antônio Silvino - Representa bem o cangaceiro sempre temido e respeitado pelo povo, em virtude de seu senso de justiça, tirando dos ricos e protegendo os fracos. Compõe bem a paisagem nordestina.

Tio Juca - Não chega a representar um papel de destaque no romance. Por ser filho do senhor de engenho, fazia e desfazia (sobretudo sexo com as mulatas), mas não era punido. De certa forma, representa o papel de pai de Carlinhos.

Lula de Holanda - Embora ocupe pouco espaço, o Coronel Lula é uma personagem relevante, pois representa o senhor de engenho decadente que teima em manter a fachada aristocrática.

Prima Lili – Uma das primas de Carlos, já vem muito doente, ele morre, o que lhe causa muita dor.

Clarisse – Mãe de Carlos, assassinada logo no começo da obra.

Sinhazinha - Embora não fosse a dona da casa (era cunhada do Coronel), mandava e desmandava no governo da casa-grande. Era odiada por todos por seu rigor e carranquice, e pode ser identificada com as madrastas ruins dos contos populares.

Negras - Restos do tempo de escravidão, destacam-se a negra Generosa, dona da cozinha, a vovó Galdina, que vivia entrevada numa cama.

Zefa Cajá – Negra com quem Carlos terá sua primeira relação sexual.

Enredo

O romance, narrado em primeira pessoa, apresenta uma estrutura memorialista, em quarenta capítulos. O tempo flui cronologicamente: o narrador (Carlinhos) tem quatro anos quando a narrativa começa e doze, quando termina o livro.

A mãe do narrador (Clarisse) está morta, assassinada pelo pai no quarto de dormir. “Por quê?” Ninguém sabia compreender”. O menino, apesar de pequeno, sente o impacto da morte da mãe e a solidão que esta lhe deixa. “Então comecei a chorar baixinho para os travesseiros, um choro abafado de quem tivesse medo de chorar”.

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O pai então é levado para o presídio. Era uma pessoa nervosa, um temperamento excitado, “para quem a vida só tivera o seu lado amargo”. Num momento de desequilíbrio, matara a esposa com quem sempre discutia. O narrador o recorda com saudade e ternura. O narrador lembra também, com ternura e carinho, a mãe tão precocemente ceifada pelo destino. Recorda as suas carícias, a sua bondade, a sua brandura. “Os criados amavam-na”. Era filha de senhor de engenho, mas “falava para todos com um tom de voz de quem pedisse um favor”.

Um mundo novo espera o narrador. “Três dias depois da tragédia, levaram-me para o engenho do meu avô materno. Eu ia ficar ali morando com ele”. Conduzido pelo tio Juca, que viera buscá-lo, encanta-se com tudo que vê: tudo é novidade naquele mundo novo. A imagem que sempre fizera do engenho era a “de um conto de fadas, de um reino fabuloso”. À primeira vista, a realidade ia comprovando fantasia.

No engenho, é levado para receber a bênção do avô e da preta velha Tia Galdina e ganha uma nova mãe – a tia Maria. No dia seguinte, com o mergulho nas águas frias do poço, o narrador está batizado para a nova vida que vai começar. Aos poucos, o narrador vai penetrando no mundo novo do engenho. Levam-no para ver o engenho e ele fica deslumbrado com o seu mecanismo. Tio Juca vai-lhe explicando todos os detalhes.

Os primos chegam para passar as férias na fazenda e o narrador se solta de vez “já estava senhor de minha vida nova”; passeios, banhos proibidos, brincadeiras, sol o dia todo e as recomendações de Tia Maria. Ao lado da fada boa e terna que era tia Maria, vivia no engenho uma velha de nome Sinhazinha que “tomava conta da casa do meu avô com um despotismo sem entranhas”. “Esta velha seria o tormento da minha meninice”. Todos a temiam e fugiam dela. “As negras odiavam-na. Os meus primos corriam dela como de um castigo”.

A prima Lili – A“magrinha e branca”; “parecia mais de cera, de tão pálida. Tinha a minha idade e uns olhos azuis e uns cabelos louros até o pescoço”. “Na verdade a prima Lili parecia mais um anjo do que gente”. E tal sucedeu com a pobrezinha: um dia, amanheceu vomitando preto e morreu, para desconsolo do narrador, que se afeiçoara muito a ela. Com a morte de Lili, o desvelo e os cuidados de tia Maria com o narrador se acentuam. Era tempo das primeiras letras, mas nada entra na sua cabeça, pois só pensava na liberdade nas patuscadas no mundo lá fora. Ainda recorda do flagelo das secas: as aves de arribação.

O cangaceiro Antônio Silvino faz uma visita de cortesia ao engenho Santa Rosa. Há uma grande expectativa sobretudo por parte dos meninos. O famoso cangaceiro chega e é recebido pelo senhor de engenho. A partir, entretanto, o narrador demonstra o seu desencanto: “Para mim tinha perdido um bocado de prestígio. Eu fazia outro, arrogante e impetuoso, e aquela fala bamba viera desmanchar em mim a figura de herói”. É que o mito se tornou real, descendo do seu pedestal. Organiza-se um passeio ao sítio do Seu Lucino, nas proximidades do engenho. No caminho, gente que voltava da feira com seus quilos de carne. A caravana chega ao sítio e são recebidos com a boa hospitalidade sertaneja. À tardinha, voltam todos para casa, quando os moleques começam a falar de mal-assombrados.

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O narrador leva a sua primeira surra pelas mãos da velha Sinhazinha. Ficou desolado o dia todo, e à noite, foi dormir pensando na vingança: “Queria vê-la despedaçada entre dois cavalos como a madrasta da História de Trancoso.”

A cheia do Paraíba chegou devastadora, matando gente e animais, destruindo plantações e casas. A gente do engenho refugia-se na casa do velho Amâncio, fugido da fúria das águas. A enchente tinha sido arrasadora e as águas chegaram a penetrar na casa grande. Os prejuízos eram enormes .

As primeiras letras, enfim, vieram com a bela Judite, mulher do Dr. Figueiredo. Com ela, começam a surgir os primeiros lampejos do amor. “Sonhava com ela de noite, e não gostava dos domingos porque ia ficar longe de seus beijos e abraços”.

Depois mandaram-no para uma escola onde tinha todas as regalias, em meio da miséria geral, por ser o “neto do Coronel Zé Paulino”. Paralelamente às letras, começa a iniciação sexual, apesar da pouca idade. Com Zé Guedes, moleque que o levava e buscava na escola, aprendeu “muita coisa ruim”. Com o primo Silvino e outros andou fazendo muita “porcaria” com as cabras e vacas da fazenda.

Nas visitas e incertas do Coronel José Paulino à sua propriedade, está patente todo o seu poder de senhor de engenho, de patriarca absoluto daquelas terras.

A religião no engenho se restringia aos limites do quarto de santos com suas estampas e imagens. O Coronel Zé Paulino não era um devoto, e mesmo a tia Maria, sempre preocupada com rezas e orações, não era de freqüentar igreja e comungar. Na semana santa, especialmente na Sexta-Feira da Paixão, havia um recolhimento natural em obediência à tradição.

O cabra Chico Pereira está amarrado ao tronco para receber a punição pelo malfeito: A vítima, a mulata Maria Pia, jogara-lhe a culpa, e o senhor patriarcal, inflexível, ordenara que o moleque assumisse. Convidada a jurar sobre o livro sagrado, a mulata confessa.

Uma traquinagem de criança e um ato de heroísmo – eis a síntese deste capítulo. O primo Silvino, querendo provocar um desastre, coloca uma pedra enorme na linha de trem para vê-lo tombar. O narrador imagina a cena terrível com gente morta e ferida e, num gesto heróico, atira-se diante do trem e rola a pedra dos trilhos.

Pelo engenho, corria o boato de que um lobisomem estava aparecendo na Mata do Rolo. “Diziam que ele comia fígado de menino e que tomava banho com sangue de criança de peito”. Seria José Cutia? Além do lobisomem, outros duendes da superstição popular povoaram a infância do narrador: o zumbi, as caiporas, as burras-de-padre etc.

A velha Totonha com suas histórias fabulosas encantam o narrador. Quando passava pelo engenho era uma festa. Suas histórias, sempre de reis e rainhas comoviam. Ela sabia como ninguém contar uma história. Mas “o que fazia a velha Totonha mais curiosa era a cor local que ela punha nos seus descritivos (...) Os rios e as florestas por onde andavam os seus personagens se pareciam muito com o Paraíba e a Mata do Rolo. O seu Barba Azul era um senhor de engenho de Pernambuco.

“A senzala do Santa Rosa não desaparecera com a abolição. Ela continuava pregada à casa-grande, com suas negras parindo, as boas amas-de-leite e os bons cabra do eito e as boas cabras do cifo”. Apesar de terem sido aforriados, muitos ficaram no engenho. Aí

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estava a velha Galdina, doente e alquebrada, Generosa, que mandava na cozinha da casa-grande e a demoníaca Maria Gorda.

Tal como um monarca, o senhor de engenho, sentado no seu trono, ia ouvindo as queixas e pedidos dos seus súditos.

Mais um passeio. Agora é ao engenho do Oiteiro. Saem cedo e vão de carro-de-boi. Destaca-se aqui a habilidade do carreiro Miguel Targino na condução dos bois. Por onde passa a comitiva é recebida com festejos e cortesia. Destaca-se em cada lugar a hospitalidade e gentileza do povo simples e humilde. Tia Maria, a senhora do Santa Rosa, retribui a tudo com simpatia.

A morte trágica da mãe o marcou profundamente e, apesar das brincadeiras e traquinagens com os moleques, era um menino melancólico que buscava sempre a solidão.

Contadores de histórias— os mestres de ofício dos quais o narrador se tornou amigo. É através deles que ele fica conhecendo o Capitão Quincas Vieira, irmão mais novo do Coronel Zé Paulino, que morreu brigando.

Um antigo sonho do narrador se realiza: ganhou um lindo Carneiro para montaria. Chamava-se Jasmim. Entretinha-se com ele boa parte do tempo e, com isso, os canários ganharam a liberdade. Nos seus passeios com Jasmim, na solidão do entardecer, a melancolia de sempre, “arrastava-me aos pensamentos de melancólico”.

Da história triste do Santa Fé e seu senhor decadente - O Coronel Lula de Holanda, surgiu um dos grandes romances de José Lins: Fogo Morto. O Santa Fé é um engenho em decadência, símbolo de um mundo que está prestes a ruir. Em vão, o Coronel tenta manter a fachada com seu cabriolé. Um pouco mais e o Santa Fé estará de fogo morto.

A doença tira a liberdade do narrador por um bom espaço de tempo. Era o puxado, “uma moléstia horrível que me deixava sem fôlego, com o peito chiando, como se houvesse pintos sofrendo dentro de mim”. Amargou, por causa do puxado, muitos dias de solidão e de cama.

O narrador penetra no quarto do tio Juca e na sua intimidade: “uma coleção de mulheres fluas, de postais em todas as posições da obscenidade”.

A descrição de um incêndio de largas proporções faz brotar de todos os cantos a solidariedade do sertanejo. Mais uma vez sobressai aqui a figura do avô, com sua autoridade e com seus gritos de ordem para conter o fogo que ia devastando o canavial.

Um exército de homens miseráveis e esfarrapados trabalham no eito: “estavam na limpa do partido da várzea”. “Às vezes eu ficava por lá, entretido com o bate-boca dos cabras”. Muitos desfilam pelo capítulo — uns com suas virtudes, outros com seus defeitos. Em todos, um ponto comum: a vida de servidão, a miséria, a degradação.

Após a ceia, o Coronel Zé Paulino gostava de contar seus casos de escravos a senhores de engenho, antes e depois da abolição. As ruindades do Major Ursulino com os negros sempre se destacam nas suas histórias. Gostava também de relembrar a visita de Dom Pedro ao Pilar e tinha grande orgulho de sua casta branca e nobre.

O amor desperta forte no coração do narrador que possuía então oito anos. Era Maria Clara, uma prima civilizada do Recife, que estava ali com a família para passar

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férias. A paixão é violenta: os passeios, o beijo, as lágrimas da partida. A loucura solitária e miserável do pai remete o narrador a doentes (como o Cabeção

e o doido) e a maus presságios que o deprimem. O seu puxado atormenta-o e os cuidados o aprisionam: “a minha vida ia ficando como a dos meus canários prisioneiros”. Por outro lado, a sexualidade precoce encontra na negra Luísa uma comparsa das “minhas depravações antecipadas”; “só pensava nos meus retiros lúbricos com o meu anjo mau, nas masturbações gostosas com a negra Luísa.”

O casamento da tia Maria foi digno da opulência e grandeza do senhor de Engenho do Santa Rosa. Atraiu gente de toda a redondeza e do Recife. É com tristeza que tudo é descrito pelo narrador que perde a sua segunda mãe: “E pela estrada molhada das chuvas de fim de junho, lá se fora a segunda mãe que eu perdia”. Até mesmo o Jasmim, o carneiro montaria, fora-se nessa, servindo de almoço e jantar, juntamente com outros, aos inúmeros convidados.

Você, no mês que entra, vai para o colégio”. Arranjavam-se os preparativos, e, com o casamento de tia Maria, “vivia a desejar o dia da minha partida”. Já estava grandinho (cerca de doze anos) e não sabia quase nada. Sabia ruindades, puxava demais pelo meu sexo, era um menino prodígio da porcaria.

Lá fora, a chuva caía fazendo crescer as plantações: “os pés de milho crescendo, a cana acamando na várzea, o gado gordo e as vacas parindo”.

Uma briga entre dois negros se encerra com a morte de um deles que deixou mulher e cinco filhos órfãos. Levam preso o assassino, mas a alma do morto continuou pairando pelo engenho sob a forma de assombração.

Tinha uns doze anos quando conheci uma mulher, como homem”. E, com ela, apanhou doença-do-mundo a qual ia operando nele uma transformação: o menino de calça curta ia ficando na curva do tempo e dali, precocemente, ia brotando um rapazinho de sexualidade exacerbada. “Recorriam ao colégio como a uma casa de correção”.

Enfim chega a época de o depravado menino ir para o colégio. “Uma outra vida ia começar para mim ". Tudo ia ficando para trás com o trem em movimento.

Carlinhos “levava para o colégio um corpo sacudido pelas paixões de homem feito e uma alma mais velha do que o corpo”. Era o oposto de Sérgio, em O Ateneu, que “entrava no internato de cabelos grandes e com uma alma de anjo cheirando a virgindade.”

Exercício para Sala

(FAENQUIL / VUNESP) Leia o fragmento do romance Menino de Engenho, de José Lins do Rego, e responda as questões de 01 a 03.

Meu avô me levava sempre em suas visitas de corregedor às terras de seu engenho. Ia ver de perto os seus moradores, dar uma visita de senhor nos seus campos. O velho José Paulino gostava de percorrer a sua propriedade, de andá-la canto por canto, entrar pelas suas matas, olhar as suas nascentes, saber das precisões de seu povo,

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dar os seus gritos de chefe, ouvir queixas e implantar a ordem. Andávamos muito nessas suas visitas de patriarca.

01. Sobre Menino de Engenho, é correto afirmar que:a. integra o conjunto de romances regionalistas brasileiros da primeira metade do

século XX.b. se destaca pela narrativa maravilhosa, voltada pata a investigação psicológica das

personagens.c. foi a primeira obra em prosa a se voltar para os problemas sociais do Nordeste

brasileiro.d. inicia, ao lado de Os Sertões, de Euclides da Cunha, o modernismo na prosa

brasileira.

02. A repetição do pronome possessivo - seu(s), sua(s) - ao longo do texto serve ao intuito de:a. chamar atenção para o tamanho do engenho.b. aproximar José Paulino dos habitantes do engenho.c. revelar o amor de José Paulino por sua terra.d. ressaltar a soberania do senhor de Engenho.

03. O paralelismo estabelecido entre as estruturas visitas de corregedor e visitas de patriarca chama a atenção para:a. a dupla função das visitas, que buscavam ajudar o povo e conquistar sua

admiração.b. o afeto e a bondade com que o senhor de engenho trata seu povo.c. a necessidade da presença do senhor de engenho para o estabelecimento da

ordem.d. a mistura entre as esferas pública e privada na figura do senhor de engenho.

04. (UFAM) Reproduzem-se abaixo alguns trechos do romance Menino de Engenho, de José Lins do Rego, os quais são relacionados, em seguida, a personagens da obra a que correspondem. Assinale a opção em que a correspondência NÃO está correta.a. Ninguém lhe tocava num capão de mato, que era mesmo que arrancar um

pedaço de seu corpo. Podiam roubam as mandiocas que plantava pelas chãs, mas não lhe bulissem nas matas. Ele mesmo, quando queria fazer qualquer obra, mandava comprar madeira nos outros engenhos – José Paulino.

b. Mas ele pouco se importava comigo. Eu mesmo gostava de ouvir o bate-boca imundo. Pelo caminho, o moleque continuava nas suas lições, falando de mulheres e de doenças-do-mundo – Zé Guedes.

c. Pequenina e toda engelhada, tão leve que uma ventania poderia carregá-la, andava léguas e léguas a pé, de engenho a engenho, como uma edição viva das Mil e Uma Noites – Tia Maria.

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d. Mas nós, quando o víamos passar com as suas cestas de ovos, fugíamos da estrada com medo. Diziam também que ele comia fígado de menino e que tomava banho com sangue de criança de peito – José Cutia.

Exercícios para Casa

01. Assinale a alternativa incorreta sobre o livro “Menino de Engenho”.a. Foi elaborado em 40 (quarenta) capítulos.b. Embora apresente o escravismo, retrata uma época após a Abolição da

Escravatura de 1.888.c. Foi escrito na época da escravidão.d. Apresenta grande número de regionalismo nordestino (palavras usadas no

nordeste do Brasil).

02. Pode-se afirmar que o narrador do texto Menino de Engenho é:a. Narrador- personagem, de 1ª pessoa. ( nem sempre presente) b. Narrador- personagem, ( 3ª pessoa). c. Narrador- observador ( 3ª pessoa) . d. Narrador- personagem, de 1ª pessoa. (onipresente)

03. A história do Menino de Engenho inicia-se com:a. a morte de seu pai b. a morte de sua mãec. a ida do menino para ao engenho d. a ida do menino para o colégio.

04. Tanto a viagem da cidade para o engenho como a viagem do engenho para o colégio foi feita de:a. aviãob. ônibus c. carro-de-boi d. trem

05. O engenho Santa Rosa do senhor José Paulino era na realidade:a. uma máquina de moer cana b. uma pequena fazenda c. um grande latifúndio d. um sítio

06. Na frase: “Vamos, não chore. Seja homem.” Há uma nítida demonstração de preconceito:

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a. racial b. religiosoc. contra o homossexual d. contra a mulher

07. A principal produção do engenho Santa Rosa era:a. café b. açúcar c. leite d. soja

08. “Você está um negro. Chegou tão alvo, e nem parece gente branca. Isto faz mal.” Esta fala da tia Maria pode ser considerada nos dias de hoje:a. interessante b. correta pela preocupaçãoc. normal d. preconceituosa e antiquada

09. Para os meninos e para os negros e negras da fazenda, Tia Sinhazinha era considerada:a. Fada b. Bruxa c. Mãe d. Madrinha

10. Com a morte da mãe, Carlinhos foi levado para:a. O engenho do avô, em Minas Gerais.b. O engenho do avô, no nordeste do Brasil. c. O colégio em Recifed. O engenho do avô, em São Paulo.

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Análise da Obra

Jorge AmadoCacau

“Li Cacau pela primeira vez no começo da adolescência: foi por seu intermédio que descobri então poder a literatura ser, mais que veículo de entretenimento, uma via privilegiada de descoberta do mundo; no caso, especificamente, da realidade brasileira.”

José Paulo Paes

DA ESCOLA LITERÁRIA

Introdução"Os camaradas não disseram que havia uma guerra e era necessário trazer fogo e

alimento."(Carlos Drummond de Andrade)

Recebendo como herança todas as conquistas da geração de 1922, a segunda fase do Modernismo brasileiro se estende de 1930 a 1945.

Período extremamente rico tanto em termos de produção poética quanto de prosa, reflete um conturbado momento histórico: no plano internacional, vive-se a depressão econômica, o avanço do nazifascismo e a II Guerra Mundial; no plano interno, Getúlio Vargas ascende ao poder e se consolida como ditador, no Estado Novo. Assim, a par das pesquisas estéticas, o universo temático se amplia, incorporando preocupações relativas ao destino dos homens e ao "estar-no-mundo".

Em 1945, ano do fim da guerra, das explosões atômicas, da criação da ONU e, no plano nacional, da derrubada de Getúlio Vargas, abre-se um novo período na história literária do Brasil.

Momento históricoO período que vai de 1930 a 1945 talvez tenha testemunhado as maiores

transformações ocorridas neste século. A década de 1930 começa sob o forte impacto

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Análise das Obras | UVA 2015.2 51

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da crise iniciada com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, seguida pelo colapso do sistema financeiro internacional: é a Grande Depressão, caracterizada por paralisações de fábricas, rupturas nas relações comerciais, falências bancárias, altíssimo índice de desemprego, fome e miséria generalizadas. Assim, cada país procura solucionar internamente a crise, mediante a intervenção do Estado na organização econômica. Ao mesmo tempo, a depressão leva ao agravamento das questões sociais e ao avanço dos partidos socialistas e comunistas, provocando choques ideológicos, principalmente com as burguesias nacionais, que passam a defender um Estado autoritário, pautado por um nacionalismo conservador, por um militarismo crescente e por uma postura anticomunista e antiparlamentar - ou seja, um Estado fascista. É o que ocorre na Itália de Mussolini, na Alemanha de Hitler, na Espanha de Franco e no Portugal de Salazar.

O desenvolvimento do nazifascismo e de sua vocação expansionista, o crescente militarismo e armamentismo, somados às frustrações geradas pelas derrotas na I Guerra Mundial: este é, em linhas gerais, o quadro que levaria o mundo à II Guerra Mundial ( 1939-1945) e ao horror atômico de Hiroxima e Nagasaqui (agosto de 1945).

No Brasil, 1930 marca o ponto máximo do processo revolucionário, ou seja, é o fim da República Velha, do domínio das velhas oligarquias ligadas ao café e o início do longo período em que Vargas permaneceu no poder.

A eleição de 1°- de março de 1930 para a sucessão de Washington Luís representava a disputa entre o candidato Getúlio Vargas, em nome da Aliança Liberal, que reunia Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, e o candidato oficial Júlio Prestes, paulista, que contava com o apoio das demais unidades da Federação. O resultado da eleição foi favorável a Júlio Prestes; entretanto, entre a eleição e a posse, que se daria em novembro, estoura a Revolução de 30, em 3 de outubro, ao mesmo tempo que a economia cafeeira sente os primeiros efeitos da crise econômica mundial.

A Revolução de 30, que levou Getúlio Vargas a um governo provisório, contava com o apoio da burguesia industrial, dos setores médios e dos tenentes responsáveis pelas revoltas na década de 1920 (exceção feita a Luís Carlos Prestes, que, no exílio, havia optado claramente pelo comunismo). Desenvolve-se, assim, uma política de incentivo à industrialização e à entrada de capital norte-americano, em substituição ao capital inglês.

Uma tentativa contra-revolucionária partiu de São Paulo, em 1932, como resultado da frustração dos paulistas com a Revolução de 30: a oligarquia cafeeira sentia-se prejudicada pela política econômica de Vargas; as classes médias e a burguesia temiam as agitações sociais; e, para coroar o descontentamento, Vargas havia nomeado um interventor pernambucano para São Paulo. A chamada Revolução Constitucionalista explodiu em 9 de julho, mas não logrou êxito. Se Guilherme de Almeida foi o poeta da Revolução paulista, tendo produzido vários textos ufanistas, Oswald de Andrade foi seu romancista crítico, como atesta seu livro Marco zero - a revolução melancólica.

Ainda em 32, a ideologia fascista encontra ressonância no nacionalismo exacerbado do Grupo Verde-Amarelo, liderado por Plínio Salgado, fundador da Ação Integralista Brasileira. Ao mesmo tempo crescem no Brasil as forças de esquerda. Em 1934, elas

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formam uma frente única: a ANL - Aliança Nacional Libertadora. Tornam-se freqüentes os choques entre a extrema-direita e os membros da ANL, até que o governo federal manda fechá-la, por "atividade subversiva de ordem política e social", em julho de 1935. Entretanto, na clandestinidade, a ANL tenta uma revolução, em novembro desse mesmo ano, "contra o imperialismo e o fascismo" e "por um governo popular nacional revolucionário". Os revoltosos previam uma rebelião militar imediatamente acompanhada por revoltas populares, mas o movimento não foi além de três unidades militares, logo derrotadas; milhares de pessoas foram aprisionadas, e o governo obteve um pretexto para endurecer o regime.

Getúlio Vargas, auxiliado pelos integralistas, inicia sua ditadura em 10 de novembro de 1937. O chamado Estado Novo será um longo período antidemocrático, anticomunista, baseado num nacionalismo conservador e na idolatria de um chefe único: Getúlio Vargas. Essa situação se prolongará até 29 de outubro de 1945, quando, pressionado, Getúlio renuncia.

Diante desses significativos acontecimentos, Carlos Drummond de Andrade publica, em 1945, um poema intitulado "Nosso tempo", que revela o estado de ânimo da parcela mais consciente da sociedade:

“Este é tempo de partido, tempo de homens partidos.Em vão percorremos volumes,viajamos e nos colorimos.A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.As leis não bastam. Os lírios não nascemda lei. Meu nome é tumulto, e escreve-sena pedra.( ... )”

Características – prosa

Em 1926, ocorre um congresso em Recife e nele se encontram escritores do Nordeste; estes se dispõem, aos poucos, a fazer uma prosa regional consistente e participativa. É dessas primeiras manifestações que surgirá um dos momentos mais autênticos da literatura brasileira, o Romance de 30.

A data de 1930 é marcante porque consolida a renovação do gênero romance no Brasil, ou seja, traz novos rumos à prosa. Depois de tanta arruaça intelectual dos primeiros modernistas no Sudeste do país, procura-se atingir equilíbrio e estabilidade, que, aos poucos, vai aparecendo em obras e mais obras: O quinze, de Rachel de Queiroz (1930); O país do Carnaval, de Jorge Amado (1931); Menino de engenho, de José Lins do Rego (1932); São Bernardo, de Graciliano Ramos (1934); e Capitães da areia, de Jorge Amado (1937).

Esta nova literatura em prosa será antifascista e anticapitalista, extremamente

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vigorosa e crítica. Os livros didáticos a chamam com vários nomes: "Romance de 30" (porque é o início cronológico da nova literatura); romance neo-realista (porque essas obras conseguiram renovar e modernizar o realismo/naturalismo do século 19, enriquecendo-o com preocupações psicológicas e sociais) ou romance regionalista moderno (porque escapa das metrópoles e vai ao Brasil regional, preso ainda a antinomias dos séculos anteriores).

Lembremos, inclusive, que algumas obras sociológicas fundamentais surgem nessa mesma época: Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, é de 1933, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, de 1936.

O grupo regionalista ou nordestino, organizando-se a partir das idéias de Gilberto Freyre, retomou uma tendência iniciada no Romantismo: retratar a realidade brasileira.

Apesar da escolha de uma determinada região geográfica como ponto de partida para a elaboração de seus livros, os escritores regionalistas não escreveram textos exclusivamente preocupados em mostrar as particularidades desta ou daquela região, mas obras universais, realizando uma importante análise da psicologia humana e analisando dramas humanos e sociais.

A maioria das obras regionalistas analisa a realidade social nordestina, mas há também obras que exploram a região Sul do país e a Amazônia.

Destacam-se como regionalistas:Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Jorge Amado.

Principais Características:

“A bagaceira”, de José Américo de Almeida, foi o marco inicial dessa fase, em 1928.Os romances de 30 caracterizavam-se por apresentarem uma visão crítica das

relações sociais. Os romancistas buscavam ressaltar o homem hostilizado pelo ambiente, pela terra, pela cidade, o homem devorado pelos problemas que o meio lhe impõe.

O trabalhador rural, a seca e a miséria eram temas desses romances de cunho regional e social.

Por meio de autores como Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Érico Veríssimo e tantos outros, a literatura mostra o homem como alicerce de cada uma das diversas áreas socioeconômicas do país, mas quase sempre em luta desigual com ela.

Caráter construtivo e maduro Temas regionalistas nordestinos Preocupações psicológicas e sociais, com graves denúnciasEstabilização das conquistas novasA prosa ganha notável desenvolvimento e configura nitidamente duas linhas:

neonaturalismo regionalista e social (José Américo de Almeida – “A Bagaceira”) e o romance psicológico (Érico Veríssimo, Conélio Pena, Otávio Faria, etc.)

Equilíbrio no uso do material lingüístico, em termos de normas de linguagem.

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JORGE AMADO – Vida e Obras

Nascido em Itabuna, Bahia, no dia 10 de agosto de 1912, Jorge Amado passou a infância na cidade de Ilhéus, onde presenciou a luta entre fazendeiros e exportadores de cacau, inspiração para vários de seus livros. A partir de 1930, na cidade do Rio de Janeiro, começou a estudar direito e a lançar romances. As obras eram marcadas pelo realismo socialista: se passavam nas plantações de cacau do sul da Bahia ou na cidade de Salvador e mostravam os conflitos e as injustiças sociais. 'O país do carnaval' (1932), 'Cacau' (1933), 'Suor' (1934), 'Jubiabá' (1935), 'Mar morto'(1936), 'Capitães de areia' (1937), 'Terras do sem fim' (1942), 'São Jorge dos Ilhéus' (1944) e 'Os subterrâneos da liberdade' (1952) fazem parte da leva. Nessa primeira fase, seus livros eram considerados documentários dos problemas brasileiros causados pela transição de uma sociedade agrária para industrial.

Eleito deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro em 1945, teve seu mandato cassado como os de todos os membros da mesma agremiação. Viajou então pela Europa e pela Ásia e voltou ao país em 1952. Quatro anos mais tarde, fundou o semanário 'Para todos', sendo eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1961.

A segunda fase de sua obra começou com o lançamento de 'Gabriela, cravo e canela', em 1958. Seus textos passaram a se caracterizar pelas sátiras e pelo humor. Nela ainda foram publicados sucessos como 'Dona Flor e seus dois maridos' (1966), 'Tenda dos milagres' (1969), 'Teresa Batista cansada de guerra' (1973) e 'Tieta do Agreste' (1977), entre outros. Jorge Amado escreveu ainda 'O mundo da paz' (1950), um relato de viagem, 'Bahia de todos os santos' (1945), um guia da cidade de Salvador, 'O cavaleiro da esperança' (1945), a história de Luis Carlos Prestes, e 'ABC de Castro Alves' (1941), uma biografia de Castro Alves. Aos oitenta anos de idade, em 1992, publicou 'Navegação de cabotagem', um romance autobiográfico. Vários de seus trabalhos foram adaptados para rádio, cinema e televisão e foram traduzidos para mais de trinta idiomas, o que lhe rendeu inúmeros prêmios. Em 1979, casou-se com a também escritora Zélia Gattai. O escritor publicou inúmeras obras: 25 romances; dois livros de memórias, duas biografias, duas histórias infantis e uma infinidade de outros trabalhos, entre contos, crônicas e poesias. Faleceu em Salvador no dia 6 de agosto de 2001.

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Obras:O País do Carnaval (1932)Cacau (1933)Suor (1934)Jubiabá (1935)Mar Morto (1936)Capitães da Areia (1937)A Estrada do Mar (1938)ABC de Castro Alves: louvação (1941)Brandão entre o Mar e o Amor (1941)O Cavaleiro da Esperança: Vida de Luís Carlos Prestes (1945)Terras do Sem Fim (1942)O Amor de Castro Alves: história de um poeta e sua amante (1944)São Jorge dos Ilhéus (1944)Bahia de Todos-os-Santos: guia das ruas e dos mistérios da Cidade de Salvador (1945)Seara Vermelha (1946)O Mundo da Paz (1950)Os Subterrâneos da Liberdade (1952)Gabriela, Cravo e Canela (1958)O Amor do Soldado (1958)A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água (1959)De como o Mulato Porciúncula Descarregou seu Defunto (1959)Os Velhos Marinheiros (1961)Os Pastores da Noite (1964)Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966)Tenda dos Milagres (1969)Teresa Batista Cansada da Guerra (1973)O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá: uma história de amor (1976)Tieta do Agreste (1977)Farda, Fardão, Camisola

ELEMENTOS DA NARRATIVA

Foco narrativo

A narrativa é toda em primeira pessoa, narrador-personagem, portanto o personagem principal narra e é o protagonista principal da história, pode-se dizer que é uma narrativa autodiegética. Menino de Engenho também se enquadra nessa mesma classificação, a narração em primeira pessoa é rara, o motivo do narrador estar narrando essa história é pelo fato dele ter tido educação quando criança, coisa que era também rara.

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Temática

O tempo, dando-se de forma linear e cronológica, tem seus acontecimentos não prescritos pelo narrador, chega até mesmo a omitir certas datas quando em cartas postas pelo narrador apenas coloca 193..., entretanto ao finalizar assim se despede:

“Na curva da estrada voltei-me. Honório acenava adeus com a mão enorme. Na varanda da casa-grande o vento agitava os cabelos louros de Mária.

Eu partia para a luta de coração limpo e feliz.

Pirangi – dezembro de 1932.Aracaju – fevereiro de 1933.Rio de Janeiro – junho de 1933”

A época, portanto, compreende a fase de 1931 a 1933, José Cordeiro passa em torno de dois na Fazenda da Fraternidade.

Espaço

A narrativa ocorre em diversos ambientes, mas a central ocorre na Fazenda da Fraternidade, comandada por Mané Frajelo, José Cordeiro vai trabalhar lá após ser alugado pelo Coronel, lá, passará dois anos, onde se mudará logo depois para o Rio de Janeiro com o emprego de tipógrafo.

- Fazenda da Fraternidade: Ficava a duas léguas e meia de Pirangi, é o ambiente central, compreendida uma enorme quantidade de terra que fora formada por meio das falcatruas do coronel que pouco a pouco dominava as terras dos pequenos proprietários e de muitos se tornava patrão.

“– O senhor nasceu aqui?– Não, menino. Eu vim faz trinta anos. Já fui trabalhador de mais de

cinqüenta fazendeiros... Já fui fazendeiro também. Um dia Mané Frajelo me tomou o que eu tinha. Hoje sou trabalhador de novo. Quando eu vim p'ra aqui, Itabuna era Tabocas, Pirangi nem existia. Se matava gente como macaco. Esse que tá aqui – o velho cuspia e batia no peito – já tomou três tiros...”

Outros espaços relevantes:

- São Cristóvão: Cidade onde José Cordeiro nascera, descrita como decadente, o personagem passa parte de sua vida lá, sai dela com 20 anos e vai a Ilhéus em busca de emprego nas fazendas de cacau.

“A cidade subia pelas ladeiras e parava lá em cima, bem junto ao imenso convento. Olhando do alto, via-se a fábrica, ao pé do monte pelo qual se enroscava a cidade como uma cobra de uma só cabeça e inúmeros corpos. Talvez não fosse bela a velha São Cristóvão, ex-capital do Estado, mas era pitoresca, pejada de casas coloniais, um silêncio de fim de mundo, as igrejas e os conventos

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a abafarem a alegria das quinhentas operárias que fiavam na fábrica de tecidos.”

- Cu com Bunda: Espécie de favela onde José Cordeiro vai morar com a família após a morte do pai, o que lhe aproxima mais da classe proletária.

“Saindo da fábrica atravessava-se uma “pinguela” sobre um ribeiro e chegava-se à vila “Cu com Bunda”, moradia de quase todos os operários. Um grande retângulo, no qual os fundos das casas se encontravam. Daí o nome pitoresco que lhe haviam posto.”

- Ilhéus: Cidade em que José Cordeiro desembarca em busca de emprego, mas por o cacau começar a cair, chega a passar fome, para sua sorte recebe a ajuda de um guarda noturno que lhe dá comida e morada temporária até conseguir emprego na Fazenda da Fraternidade.

- Pirangi: O maior distrito da zona de cacau, sempre descrita como um distrito agitado aonde os trabalhadores da Fazenda da Fraternidade iam com duas intenções: por o sexo em dias com as famosas mulheres de lá e participar das atrações com quermesses e cinemas (sempre no sábado, onde lá torravam o pouco saldo que acumulavam na semana). Era também a cidade que provia todos os recursos para a Fazenda Fraternidade, médicos, por exemplo, além de ser lá onde havia a Rua da Lama.

“Pirangi é uma rua única de uns dois quilômetros. “A casa de Diversões Cine Aliança” localizava-se bem no centro do arraial. Lá estavam armadas as barracas para o leilão e para a quermesse. Muita gente do povoado e das fazendas vizinhas. Árabes do comércio local trocavam língua. Meninas de Pirangi e moças da roça, os olhos baixos e os vestidos fora da moda. As faces imitando as das damas de alta sociedade, horrivelmente pintadas. A orquestra, grupo de negros, alegrava desafinadamente os assistentes. Um fotógrafo ambulante tirava retratos em quinze minutos.”

- Rua da Lama: Rua que possuía o nome justificado por ter muita lama, era onde ficava o cabaré, lá José Cordeiro reencontra o rapariga que outrora conhecera no trem na sua ida à Fazenda da Fraternidade, o personagem principal sempre ia lá para matar as suas taras sexuais.

“Além da tal rua de dois quilômetros, existia em Pirangi um beco sem saída, ao qual chamavam com razão de “Rua da Lama”. Apesar do lamaçal, as senhoras casadas temiam aquela rua de mulheres perdidas.

– A polícia devia proibir aquilo – diziam. – Ora, a polícia é a primeira.”

Aproveita a oportunidade para apresentar uma crítica severa aos coronéis (Mané Frajelo e Osório) que se aproveitavam das virgens e após usá-las desprezavam-nas sendo

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as mesmas rejeitadas pela família, inseriam-se no mundo da prostituição, como o caso de Zilda e Magnólia.

“Pobres mulheres, que choravam, rezavam e se embriagavam na Rua da Lama. Pobres operárias do sexo. Quando chegará o dia da vossa libertação?

Quantos mananciais de carinhos perdidos, quantas boas mães e boas trabalhadoras. Pobre de vós, a quem as senhoras casadas não dão direito nem ao reino do Céu. Mas os ricos não se envergonham da prostituição. Contentam-se em desprezar as infelizes. Esquecem-se de que foram eles que as lançaram ali.

Eu fico pensando no dia em que a Rua da Lama se levantar, despedaçar as imagens dos santos, tomar conta das cozinhas ricas. Nesse dia até filhos elas poderão ter.”

Temática Central

A temática está ligada a essa passagem: “Demais não tive preocupação literária ao compor essas páginas. Procurei contar a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau. Não sei se desvirtuei esse trabalho contando meu caso com a filha do patrão. Mas isso entrou no livro naturalmente, apesar de não ter sido convidado. Um dia talvez eu volte às fazendas de cacau. Hoje tenho alguma coisa a ensinar. Se eu não voltar, Colodino voltará.”

Essa vai ser a grande diferença que o leitor vai notar nas obras regionalistas, as obras naturalistas destacavam problemas mais gerais: o preconceito, a homossexualidade, já os regionalistas, além da fuga do urbano para o rural, aplicavam seu foco literário sobre a região destacando problemas que só ali haviam para que a sociedade visse o que se passava ali.

Personagens

José Cordeiro: Personagem que narra sua trajetória de vida, rapaz que tinha uma vida boa, de família boa, mas ao perder o pai ainda na infância, o tio acaba jogando-os na miséria, depois vai para Ilhéus atrás de emprego, passa fome até começar a trabalhar para o coronel, identifica-se apenas no final no livro, possui amizade com todos e vivencia bem como também sofre os maus tratos e humilhações dos seus patrões, até que um dia vai lutar pelo direito de classes no Rio de Janeiro.

Manuel Misael de Sousa Teles: Mais conhecido também como Mané Frajelo, é coronel patrão de José Cordeiro, homem velho setentão que humilhava os empregados. Temia Honório e possuía bastante dinheiro. É extremamente odiado pelos empregados e de quem um dia já empregou.

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Colodino: Empregado de Mané Frajelo, e um dos poucos que teve acesso à escola, com sua viola despertava a saudade da terra de onde partiam, noivo de Magnólia que o trai com o filho do Coronel, Osório, acaba por dar-lhe um golpe na cabeça ao vê-la com a noiva na Rua da Lama, com medo da morte, foge para o Rio de Janeiro onde lá escreve para José Cordeiro dizendo haver respostas para as perguntas que tanto tinha em relação a vida servil que levavam, é por incentivo e convite de Colodino que José Cordeiro no final da história vai ao Rio.

Honório: Negro, forte, alto e brigão é mais um dos empregados do Coronel, entretanto o único que Mané Frajelo temia, pois o mesmo era encarregado de fazer homicídios a mando dele, gostava bastante de José Cordeiro e Colodino, sempre tinha moral e era o único que mesmo devendo conseguia arrancar dinheiro do Coronel. Apesar das mortes, tinha a consciência tranquila. Analfabeto, tinha o desejo de ler, ensinou o trabalho da enxada para Cordeiro, o que o fez aproximar-se, é um dos motivos que faz José Cordeiro não querer ser patrão, os empregados fizeram um acordo de nunca querer enriquecer, não queriam se corromper como aquela classe de ricos, mas que exploravam a todos. É chamado pelo Misael para matar Colodino pelo que fizera ao seu filho, mente dizendo que errou o tiro sendo que visita o amigo na casa de Valentim, a isso José Cordeiro chama de consciência de classe.

Antônio Barriginha: Mulato alto e forte. Um dos empregados na fazenda e amigo de Colodino, Honório e José Cordeiro. Era o tropeiro da fazendo, ou seja, comandava os animais na leva do cacau produzido pela mesma.

Algemiro: Capataz da fazenda, ex-trabalhador, detém o ódio de muitos empregados, Algemiro vivia a cavalgar cobrando dos empregados mais rapidez. De todos, era o único que conseguia as coisas relativas a bens, um tipo de exemplo a não ser seguido pelos outros empregados, pois o consideravam traidor. Mané Frajelo havia comprado uma fazenda onde Algemiro cuidava e pagava com sacas de Cacau.

João Vermelho: Cuidava da loja de vendas onde os empregados só podiam comprar lá, bem como era ele o responsável pelo saldo final dos empregados, também era odiado pelos empregados.

Osório: Filho do coronel, também chamado de coronezinho, estudante de Direito na capital que chegava com amigos deixando um rastro de desvirginadas, maltratava os empregados de forma tão ignorante como o pai, ao descabaçar Magnólia leva um golpe que lhe deixa com uma enorme cicatriz.

Mária: Filha do Coronel Misael, poeta e amante da leitura, escolhe o sergipano para cuidar dos afazeres da casa, onde nas cavalgadas do dia a dias trocam discursões, ao longo de sua estadia apaixona-se por José, após a festividade de São João, passa-se um tempo onde ela aparece casada com o amigo de Osório, mesmo assim, propõe ao sergipano a possibilidade de ser patrão; José nega a oferta, pois quer cumprir com o acordo no começo da narração.

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Magnólia: Morena noiva de Colodino, mas após o incidente do balão e São João, cede aos caprichos de Osório, após ser enganada por ele e abandonada por Colodino vira prostituta na Rua da Lama, em Pirangi.

Outros personagens de menor importância:

O pai: Não tem seu nome revelado na obra, José Cordeiro tem doces lembranças do Pai, após uma síncope frente ao piano, morre, o tio aproveita-se da situação e deixa a família na miséria.

O tio: Deixa a família na miséria após alegar que o pai de José havia deixado a fábrica para ele e que só havia deixado dívidas para a família, com isso José e a família passa a morar no Cu com Bunda.

Elza: Irmã de José Cordeiro.

Sinval: Companheiro de infância de Cordeiro, trabalha com ele até ir para São Paulo lutar como o pai, algo que só posteriormente José entende do que se trata.

Roberto: Guarda noturno que lhe dá comida alegando que também já passara fome, junto com o 98 arranja emprego e junta dinheiro para a passagem de Cordeiro a Fazenda da Fraternidade.

Nilo, Valentim e Zé Luís: Outros empregados da Fazenda da Fraternidade.

D. Júlia: Mãe de Magnólia.

Antonieta, Mariazinha, Zefa: Prostitutas da Rua da Lama.

Zilda: Também prostituta aos 13 anos, descabaçada por Osório aos 11, após ser rejeitada pelo mesmo comete suicídio bebendo veneno.

RESUMO

A história, narrada pela personagem principal, José Cordeiro que por sinal não se identifica inicialmente, inicia com o diálogo dos empregados sobre a retirada das sacas de cacau do seu patrão na Fazenda da Fraternidade, localizada em Ilhéus, Antônio Barriguinha, Honório e Colodino visualizam admirados os lucros exorbitantes que ele, o chefe, terá naquele ano, o coronel, por muitas vezes assim chamado é Manuel Misael de Sousa Teles, que na boca dos empregados vira epítetos depreciativos como “Mané Miserável Rouba Tudo” e “Merda Mexida Sem Tempero”, fazem uma alusão à sua condição, onde a personagem que narra faz questão de relatar:

“Ficaram olhando. Como era grande a casa do coronel... E morava tão pouca gente ali. O coronel, a mulher, a filha e o filho, estudante, que nas férias aparecia, elegante, estúpido, tratando os trabalhadores como escravos. E olharam as suas casas, as casas onde dormiam. Estendiam-se pela estrada. Umas

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vinte casas de barro, cobertas de palha, alagadas pela chuva.– Que diferença...– A sorte é Deus quem dá.– Qual Deus... Deus também é pelos ricos...– Isso é mesmo.– Eu queria ver o Mané Frajelo dormir aqui.– Devia ser divertido.Colodino acendia um cigarro. Honório pegou da foice de podar os

cacaueiros e contou:– A roça lá detrás do rio tá assinzinha de cacau. Um safrão.– Esse ano o homem colhe umas oitenta mil.”

Nesse momento, o autor relata a total dependência dos empregados com seus patrões, dividas e mais dívidas que, mesmo ganhando relativamente bem em relação a outros trabalhadores, não conseguiam juntar dinheiro, o nome mais conhecido do Coronel Manuel M. de S. Teles é o de Mané Frajelo:

“Mané Frajelo fora um apelido posto na cidade. Pegou. Um flagelo, de fato, aquele homem gordo, de setenta anos, que falava com uma voz arrastada e vestia miseravelmente. Manuel Misael de Sousa Teles era o seu verdadeiro nome. Possuía mais de oitenta mil contos e as suas fazendas estendiam-se por todo o Município de Ilhéus.”

Em meio à narrativa, a personagem interrompe a linearidade dos fatos e no que a literatura chama de flashback e vai até a infância, talvez na tentativa de explicar como chegara àquela situação.

Logo na infância, perdera o pai apenas com cinco anos de idade, o pai é descrito como um homem bom que lhe ensinava o ABC e nunca brigava com os filhos, sempre tratava a todos com dignidade e respeito, mas com a chegada do tio, a situação mudara, seu pai oferece-lhe sociedade na fábrica que comandava na então falida e esquecida cidade de São Cristóvão. Entretanto, a morte repentina do pai muda completamente sua vida, o tio, que desde o inicio nunca lhe inspirava confiança, aparece dizendo que seu pai deixara tudo para ele e a única coisa que o mesmo havia largado seria um punhado de dívidas que ele teria que pagar.

O tio é descrito com um ser corrupto e macilento, bem como explorador, principalmente com os frades onde faziam que os empregados trabalhassem de graça na fábrica para pagarem reformas na diocese, extremamente avarento, sua riqueza é medida pela personagem pelo tamanho da barriga que crescia a cada dia que passava.

A vida de José Cordeiro também muda, de um garoto de família média e bem estruturada, passa a morar no Cu com Bunda, lugar onde os empregados se amontavam. Lá, convive com os empregados onde conhece Sinval, companheiro de vagabundagem que também trabalhava na fábrica do tio explorador, tem um espírito ousado e é conhecido pelos operários através da fama do pai que havia lutado em São Paulo pelos direitos das classes.

Diante da decadência da cidade os trabalhadores só viam duas saídas São Paulo, ou

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Ilhéus, pois tinha a fama das plantações de cacau: “São Paulo parecia à minha mãe e a Elza o fim do mundo. Por nada deixariam que eu fosse para lá. Eu comecei a falar em Ilhéus, terra do cacau e do dinheiro, para onde iam levas de emigrantes. E como Ilhéus ficava apenas a dois dias de navio de Aracaju, elas consentiram que eu me jogasse numa manhã maravilhosa de luz, na terceira classe do “Murtinho”, rumo à terra do cacau, Eldorado em que os operários falavam como da terra de Canaã.”

Mas antes de partir, José Cordeiro, aos 15 anos, trabalha na fábrica, os desentendimentos com o tio faz com ele saia, o estopim é quando o tio começa a assediar sua namorada Margarida. Personagem que não ganha relevância na narrativa. Dados os fatos, parte aos 20 anos para Ilhéus com uma boa quantidade em dinheiro e uma bagagem moderada de roupa.

Chega à Ilhéus e se hospeda na pensão de dona Coleta, mas logo sai com dívidas, pois não pode pagar o que deve, passa a procurar trabalho, mas não consegue, pois a safra do cacau ainda não começara. José Cordeiro passa fome, chega a cogitar por várias vezes roubar para saciar–se, por muitas vezes compara sua fome com ratos a roer o seu estômago, só não o faz porque conhece Roberto, policial que oferece a primeira comida do dia, um cigarro, conversam bastante e diz também que já passou fome, bastante prestativo, fala pela primeira vez de Manuel Misael, e nutri a esperança, que acaba por contagiar José Cordeiro, de que um dia vai mudar de vida, mas reclama da vida miserável e ainda faz uma crítica: “– Uma merda, uma porcaria essa vida. Às vezes eles, os ricos, me dizem: Por que você faz tanto filho, Roberto? Ora porquê... Que havia a gente de fazer senão filhos? A gente não vai a cinema, não vai a divertimento algum...”

Roberto diz também que o coronel Misael é banqueiro, homem de muitas posses. Após um almoço a convite de Roberto, Cordeiro conhece o 98, onde diz que levará Cordeiro depois do almoço ao coronel, pedir emprego para trabalhar na roça, e assim o faz, Misael o conhece e o contrata, José mente ao dizer que sabe manobrar a enxada. 98 faz menção ao fato de agora ele ser um alugado:

“O 98 virou-se para mim:– Está você alugado do Coronel.Estranhei o termo:– A gente aluga máquina, burro, tudo, mas gente não.– Pois nessas terras do Sul, gente também se aluga.O termo me humilhava. Alugado... Eu estava reduzido a muito menos que

homem...”Após arranjar o dinheiro da passagem com 98 e Roberto, parte para o Fazenda

Fraternidade, no trem, conhece um velho, uma rapariga, Vicente, bem como um cearense, na conversa destaca-se a maldade e os maus tratos dos coronéis assim como a desonestidade com relação ao pagamento, falam que o pior de todos é o Mané Frajelo, na qual comprava ou tirava dos pequenos proprietários suas terras, descem até a estação e cada um segue seu rumo.

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Cordeiro chega à fazenda e procura por Algemiro, o empregado responsável pelos serviços na fazenda. Ao chegar conhece os três mencionados no início do resumo, bem como no início da narrativa: Antônio Barriguinha, Honório e Colodino.

O capítulo que segue fala dos três e inclui também João Grilo, que gostava de bancar o matemático e adorava anedotas, o capítulo chama-se HERÓI DA TOCAIA E DO CANGAÇO faz uma alusão reverente a Honório, na qual detinha o respeito do coronel e de todos era uma espécie de protetor, o tema refere-se ao fato de que muitas mortes estavam em sua conta, devia quase novecentos mil-réis ao Misael, mas o mesmo sempre lhe arranjava dinheiro e nunca pagava mulher nenhuma, possuía a louca vontade de aprender a ler, entretanto, apenas José Cordeiro e Colodino tinham passado pela escola o que lhes davam a incumbência de ler e escrever para todos os outros, novamente a narrativa faz alusão à miséria sua e de seus empregados bem como a esperança mesmo que distante de tentar mudar essa realidade:

“Ninguém reclamava. Tudo estava certo. A gente vivia quase fora do mundo e a nossa miséria não interessava a ninguém. A gente ia vivendo por viver. Só muito de longe surgia a idéia de que um dia aquilo podia mudar. Como, não sabíamos. Nós todos não poderíamos chegar a fazendeiros. Em mil, um enriquecia. Na Fazenda Fraternidade só Algemiro conseguira alguma coisa. O coronel comprara para ele uma roca que valia uns trinta contos e que ele pagava com as safras. Como havíamos pois de sair daquela situação de miséria? Pensávamos nisso às vezes. Colodino principalmente.

Honório afirmava:– Um dia eu mato esses coronéis todos e a gente divide isso.Nós ríamos. E não sei por que a riqueza não nos tentava muito. Nós

queríamos um pouco mais de conforto para a nossa bem grande miséria. Mais animais do que homens, tínhamos um vocabulário reduzidíssimo onde os palavrões imperavam. Eu, naquele tempo, como os outros trabalhadores, nada sabia das lutas de classes. Mas adivinhávamos qualquer coisa.

E pensávamos na fórmula de Honório até que chegava o sábado e a gente ia a Pirangi.”

João Grilo traz para os amigos o encontro do Cine Aliança, onde todos vão, Honório, João Grilo, José Cordeiro, Nilo, João Vermelho, caixeiro que controlava os saldos dos empregados do Mané Frajelo e Colodino com sua noiva Magnólia, a morena mais bonita da zona.

Na narrativa, vai relatando a noitada dos amigos e companheiros bem como a briga de Colodino com o soldado por apalpar-lhe a noiva que teve até a intervenção de Honório. Depois Colodino volta à fazenda e os outros vão para um cabaré, lá chega Mariazinha com uma prostituta que o reconhece, era a prostituta que havia conhecido no trem quando veio para a fazenda de seu patrão conta sua tristeza e amargura de ter sido abandonada pelo marido e ter ido parar na prostituição para se manter. Antonieta era seu nome.

O centro que resguardava as raparigas e gerava ódios por parte das mulheres

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casadas era a Rua da Lama, beco que tem esse nome em função do lamaçal que ficava nos dias de chuva.

Lá conhecem as raparigas Zefa e Zilda, Zilda tem apenas 13 e foi descabaçada aos 11 pelo Osório, filho do Mané Frajelo, que comete suicídio ao ser renegada por ele quando o mesmo volta da capital.

Após, o narrador passa a descrever o dia a dia nas plantações de cacau, as histórias de Valentim sobre a bíblia as canções com trecho de macumba cantadas pelo Honório, onde em meio a tudo fazia filosofias sobre a vida sempre atestando novamente suas miserabilidades:

“Mas nem a morena nem a viúva apareciam. Magnólia sorria às canções, os olhos perdidos longe, assim mesmo as mãos trabalhando, o pedaço de facão partindo os cocos. Está se lembrando de Colodino, pensávamos nós. E nas nossas vidas sem amor (existe lá amor nas fazendas de cacau...) tínhamos momentos de nostalgia. O amor teria sido feito somente para os ricos? Honório dizia alto o que dizíamos para nós mesmos:

– Merda de vida.”Relata a desavença de um dos empregados Zé Luís com o capataz Algemiro, pois Zé

Luís deixara mofar trinta arrobas, expressão usada era good, e a venda cai dois mil-réis, Algemiro o despede e obriga a pagar o prejuízo subtraindo de seu saldo final e trabalhando de graça para pagar o restante, Zé Luís foge.

Esperam ansiosos (com mais temos ao invés de alegria) a vinda do patrão para o festejo de São João, cogitando em cochichos quem seria o responsável de pegar frutas, água, lenha etc, ou seja, ficaria de folga.

A seguir, o narrador relata a comida predileta dos meninos, Jaca, fala um pouco de suas tendências e comportamentos, mostra como os meninos logo cedo desenvolviam a questão sexual e eram afilhados de Mária, filha do Coronel, que no batizado realizado pelo padre dava alvoroço nos homens a curtir os decotes das madames que paqueravam com os amigos do filho do Coronel que vinham da cidade, o padre realizava a missa e depois ia contabilizar os ganhos com Mané Frajelo servido de um farto banquete. Para os empregados, a mesma cachaça e o mesmo feijão.

Conta também o relato de Amélia que trabalhava como cavalo para os filhos do patrão, certo dia se revoltou e apanhou bastante, ela vai para o colégio e lá escreve para os empregados na fazenda:

“Escola! Amélia foi para a escola. Um dia um sujeito, poeta ou qualquer coisa assim, furtou Amélia. Ela foi para a escola. Hoje escreve à gente, conta coisas. Diz que um dia, quando crescer, virá nos ensinar. Nesse dia, quando souberem essas coisas, os meninos não comerão mais jaca. Se levantarão com o toco do facão em punho... A gente não entendia bem Amélia. Mas acreditava. Um dia...

Os meninos não pensavam. Trabalhavam, comiam e dormiam. Um literato disse certa vez:

– Esses é que são felizes. Não pensam.Assim parecia a ele.”

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A família inteira vai para a fazenda e o Coronel confere o trabalho de cada, Mária escolhe o Sergipano para ficar a serviço da casa, embora o trabalho fosse menor, a humilhação era maior.

Na casa do Manuel Misael, revida as provocações da filha mimada que o leva a todo canto, a moça se interessa superficialmente pela história de vida do rapaz que nutre e expõe um ódio pelos patrões, demonstra claramente que não quer ser como Algemiro, enriquecer, assume sua condição de pobre e se dá por satisfeito.

Mária começa a dar amostras de interesse por ele que refuta suas indiretas, fica ele indignado, ao descobrir que ela é poetisa e quer descrever a fazenda, e faz de forma falsa e enganadora e ainda diz que foi dedicado a ele, para sua fúria e surpresa.

Vem a comemoração de São João, todos se preparam, tanto na casa do Coronel como entre os empregados, na casa da dona Júlia, foi aí que Colodino e Honório preparam um balão para soltar, mas Osório com mais dois rapazes e Mária chegam, eles recuam no ato, mas Osório incentiva e Mária acende a chama, os empregados sabiam que era proibido soltar balões, pois podiam comprometer a plantação de cacau, o que de fato ocorre, Mané Fragelo corre em direção aos empregados e manda todos irem controlar o fogo, sobra apenas uma planta de cacau, Honório se apresenta como culpado, mas Manuel não o despede, isso porque ele sabia muita coisa da vida do Coronel.

Osório aproveita-se da confusão e começa a apalpar Magnólia e Colodino percebe.Magnólia gosta da situação e cede aos caprichos de Osório quando vai deixar por

encomenda dele uma receita de milho. Colodino vai até João Vermelho e pede seu saldo, Magnólia adoece, Osório manda buscar remédio em Pirangi, quando Colodino chega para vê-la ela está com Osório, enfurecido, Colodino acerta o facão na cara do coronezinho que o sangra intensamente, Colodino foge a mando de Nilo para a casa de Valentim.

O Coronel manda chamar Honório para matá-lo e chega a oferecer quinhentos mil-réis, mas Honório vai até Valentim e se despede do amigo, que promete escrever do Rio de Janeiro, lugar que sempre sonhara ir.

Quando o narrador nos diz:“Esse discurso me deu a idéia de reunir algumas cartas de trabalhadores e

rameiras para publicar um dia. Depois, já no Rio de Janeiro, relendo essas cartas, pensei em escrever um livro. Assim nasceu “Cacau”. Não é um livro bonito, de fraseado, sem repetição de palavras. É verdade que eu hoje sou operário, tipógrafo, leio muito, aprendi alguma coisa. Mas, assim mesmo, o meu vocabulário continua reduzido e os meus camaradas de serviço também me chamam Sergipano, apesar de eu me chamar José Cordeiro.

Demais não tive preocupação literária ao compor essas páginas. Procurei contar a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau. Não sei se desvirtuei esse trabalho contando meu caso com a filha do patrão. Mas isso entrou no livro naturalmente, apesar de não ter sido convidado. Um dia talvez eu volte às fazendas de cacau.”

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Após, coloca algumas correspondências feitas ao longo da narrativa de pessoas para ele ou amigos.

Depois retoma a narrativa sobre a justificativa de sentir dificuldades de organizar o que escreve, pois seu conhecimento de literatura é limitado.

Mária casa com o poeta, todavia, depois de ficar embaixo de um pé de jaca, confessa seu interesse e dar-lhe a oportunidade de ser patrão, mas rejeita a ideia. No mesmo dia chega ao carta de Colodino pedindo que ele vá para o Rio, lutar pelos direitos de classes:

“No outro dia me despedi dos camaradas. O vento balançava os campos e pela primeira vez senti a beleza ambiente.

Olhei sem saudades para a casa-grande. O amor pela minha classe, pelos trabalhadores e operários, amor humano e grande, mataria o amor mesquinho pela filha do patrão. Eu pensava assim e com razão.

Na curva da estrada voltei-me. Honório acenava adeus com a mão enorme. Na varanda da casa-grande o vento agitava os cabelos louros de Mária.

Eu partia para a luta de coração limpo e feliz.”

ANÁLISE TEMÁTICA:AS REPRESENTAÇÕES DA VIOLÊNCIA NA OBRA O CACAU.

Por: Silvana Valdomiro LinharesAluna do Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade

Presbiteriana Mackenzie.

INTRODUÇÃO

O meio mais profícuo de discutir a violência presente em Cacau é, essencialmente, discuti-la do ponto de vista dos antagonismos de classe, sob a ótica do marxismo.

É da exploração de uma parte de uma sociedade pela outra, que eclodem os vários tipos de violência contra o homem e a sua dignidade. A contradição que se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais, Marx (2001, p. 41) chamou de luta de classes. Assim sendo, a luta de classes, cujos interesses devem se firmar no desenvolvimento social, não elimina o papel da violência na história e nem garante uma vitória automática de seus interesses. O sujeito da história, o seu agente são as classes sociais em luta (proletário e capitalista). Para o teórico marxista Georg Lukács (2003, p.145), “as próprias condições para que os interesses possam se afirmar são muito freqüentemente criadas por intermédio da violência mais bruta mulação primitiva do capital”. Será esse tipo de violência, gerado pelo sistema capitalista, o nosso objeto de estudo.

Jorge Amado apresenta-nos, em sua narrativa, a luta de classes entre lavradores de cacau e os coronéis do sul da Bahia, da década de 30. Entretanto, ao analisarmos as representações da violência presentes no romance Cacau, constataremos que as lutas de classe surgem de maneira atenuada, devido ao traço hereditário do patriarcalismo presente na obra. Portanto, ao contrário das ferrenhas lutas de classes ocorridas em

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séculos passados, em países extremamente industrializados, no Brasil,da época dos grandes latifundiários, a figura do coronel, fenômeno social e político, neutraliza qualquer hipótese de Revolução no campo, não porque esse “chefe político” não deixe de gerar meios de perpetuação das condições materiais, ideológicas e políticas de exploração para manter sua dominação, mas porque, nas palavras de Edgar Carone (apud SILVA, 1987, p. 173):

Socialmente, o coronel exerce uma série de funções que o fazem temido e obedecido aos agregados, ele dispensa favores: dá-lhes terras, tira-os da cadeia e ajuda-os quando doentes; em compensação exige fidelidade, serviços, permanência infinita em suas terras, participação nos grupos armados, etc. Aos familiares e amigos ele distribui empregos públicos, empresta dinheiro, obtém crédito, protege-os das autoridades policiais e jurídicas, ajuda-os a fugir dos compromissos fiscais do Estado, etc. É o “juiz” pois, obrigatoriamente, é ouvido a respeito das questões de terras e até de casos de fugas de moças solteiras. [...] é homem de fé, pois é quem anima as festas religiosas e as oficializa.

Agindo dessa maneira a figura do coronel uniformizava interesses contraditórios, escamoteava, mascarava as diferenças e impedia que a outra parte da sociedade reconhecesse o profundo antagonismo existente elas. Do ponto de vista marxista, a ideologia é indispensável à dominação da classe, ela é ilusão, abstração e inversão da realidade e, por isso, permanece sempre no plano imediato da aparência social. Assim, o grande capitalista, na imagem do coronel, tenta uniformizar interesses contraditórios, escamoteando e mascarando as diferenças, impedindo que a outra parte da sociedade reconheça o profundo antagonismo existente elas.

Apresentaremos, então, alguns aspectos da violência, em Cacau, como a redução de salários, as agressões de ordem física, a prostituição, a exploração dos filhos pelos pais proletários e a representação dos signos ideológicos.

A REDUÇÃO DOS SALÁRIOS

Quando o salário dos lavradores diminui para 3$000, em decorrência da desvalorização do cacau, a personagem Sergipano “diz” que chefia uma revolta, mas a greve não se concretiza:

O cacau começou a cair. Desvalorizou-se e o coronel andava uma fera. Despediu trabalhadores e nós, que restávamos, trabalhávamos como burros. Nos ameaçava com diminuição de salário.[...] Um dia, por fim, diminuíram os salários para 3$000. Eu chefiei a revolta. Não voltaríamos às roças.” (AMADO, 1998, p.125).

A diminuição dos salários para 3$000 aproxima as personagens da idéia de uma greve. Entretanto, a possibilidade de o coronel Misael utilizar-se dos flagelados, que fazem parte da “reserva de mão de obra”, assusta esses lavradores de cacau, que têm suas vidas condicionadas pelo regime patriarcal e que temem perder seus empregos.

Por isso, a hipótese de uma greve nem é considerada seriamente :

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– Nem pense... Chegou trezentos e tantos flagelados que trabalha por qualquer dinheiro... e a gente morre de fome. (AMADO, 1998, p.125).

Tratando literariamente em seu romance a questão sobre desvalorização do cacau, Jorge Amado remete-nos a um fato histórico realmente ocorrido. No livro Sul da Bahia: chão de cacau, encontramos o apontamento das principais causas que marcaram a crise do ciclo cacaueiro a partir da década de 30:

a) a Revolução de 1930 que provoca a superação do coronel e a transferência das lideranças política e administrativa para os profissionais liberais; b) a crise econômica mundial de 1930 que fez ruir o café e arrastou o cacau; c) o cansaço e o esgotamento do solo, após mais de um século, de 1820 a 1930, começaram a se fazer sentir em determinadas áreas; d) a falta de assistência técnica geral e particularmente na linha de preservação da terra, adubação e fertilização; e) a ausência de assistência financeira, sobretudo crédito bancário, que permitisse aperfeiçoamento nos métodos de trabalho e na renovação da lavoura; f) o sistema bancário deficiente e ultrapassado pela expansão mesma da lavoura cacaueira; g) a inflação e a flutuação de preços (ADONIAS FILHO, 1978, p. 89-90).

Já Sodré (1974, p. 63) enfatiza que, na história de nossa cultura, nos idos de 1930 – período aproximado em que se desenvolve a narrativa de Cacau – não havia uma organização, como a existente na França do final do século XIX, do proletariado no campo que garantisse, aos lavradores, algum tipo de vantagem pelo recurso à greve.

Mesmo que a Revolução de 30 tivesse acelerado o amadurecimento das relações capitalistas no Brasil, a ascensão da burguesia à classe dominante e o crescimento do proletariado nas áreas urbanas e nas áreas rurais, essas relações ocorreram de forma díspar. O autor examina essa questão sob o ângulo das desigualdades regionais:

A desigualdade de desenvolvimento entre regiões do país reflete, em parte, tal disparidade; o desenvolvimento de umas se opera em prejuízo de outras, que transferem às mais desenvolvidas a força de trabalho que as suas velhas estruturas marginalizam, enquanto se colocam como dependentes e consumidoras, semelhando colônias (SODRÉ,1974, p.63-64).

Desta forma, torna-se mesmo difícil a tarefa de imaginarmos uma greve campesina em Cacau. Entretanto, a possibilidade de o coronel Misael fazer uso da reserva de mão de obra em sua fazenda, a Fazenda Fraternidade, não foi o único meio de violência coletiva evidenciado no romance.

AS AGRESSÕES FÍSICAS DE ORDEM COLETIVA

Um outro tipo violência coletiva é destacado quando a personagem Sergipano volta ao passado para narrar o tempo em que, após a morte de seu pai, o tio usurário se faz dono completo da fábrica, deixando cunhada e sobrinhos (Elza e Sergipano), além dos operários da fábrica na miséria.

As dívidas obrigatórias feitas no armazém da fazenda é também um meio de agressão coletiva, uma espécie de escravidão e dependência, uma vez que o lavrador,

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abastecendo-se de tudo o que precisa para viver, assume dívidas, das quais dificilmente se libertará:

– São ordens. João Vermelho!– O que é?– Já fez as contas do Zé Luís?– Já.– Tem saldo?– Dezoito mil-réis.Zé Luís resignava-se:– Tá certo. Passe o quento que eu vou procurar trabalho noutra parte.– Não senhor – Algemiro – protestou–, você vai pagar o prejuízo do coronel. Dois milréis por

arroba. São trinta arrobas. Quanto é, João Vermelho?– Sessenta mil-réis.– Você vai trabalhar na roça até pagar.À noite, sem saldo, Zé Luís fugiu. Algemiro e João Vermelho foram no rasto[...] correu pela

fazenda que o haviam surrado. Também correu que foi Zé Luís quem atirou em Algemiro numa noite sem lua, no caminho de Pirangi (AMADO, 1998, p. 64).

Outro caso interessante de violência coletiva em Cacau é atribuído ao lavrador Honório, matador protegido do coronel Misael. Sua função é a de eliminar qualquer pessoa que se transforme em obstáculo para o coronel, desde fazendeiros rivais, ladrões até o mais miserável lavrador que não acertasse as contas com a despensa e tentasse fugir sem arcar com o prejuízo:

Aos doze anos Honório já matava gente com a mais certeira pontaria de dez léguas em redor. Criou-se assim. Quantos matara, não sabia. Viera depois o saneamento das roças de cacau. As mortes diminuíram, mas que esperança!, não acabaram. E ainda hoje as estradas vivem pejadas de cruzes sem nomes. É a tocaia (AMADO, 1998, p. 36).

Contra a exploração do coronel não havia uma organização dos oprimidos e, na maioria das vezes, a única opção concreta de protesto parecia ser mesmo a fuga.

A PROSTITUIÇÃO

A prostituição era para os operários franceses do século XIX, um meio de sobrevivência, uma renda complementar de que necessitavam para ajudarem no sustento da família.

Chamavam a prostituição de suas esposas e filhas de enésima hora de trabalho (MARX,1988, p. 19).

Ao contrário das mulheres francesas que se prostituíam, muitas vezes, com a conivência dos pais e esposos – e que até tornaram personagens de romance como Germinal, de Zola – as moças que Jorge Amado apresenta em Cacau, são aquelas defloradas pelos coronéis, pelos filhos de coronéis ou por homens ricos, e que depois, são expulsas de suas casas e desgraçadas vão se abrigar na rua da Lama. Lá, passavam a servir toda a empreitada de homens que trabalhava nas roças e também aos homens ricos:

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Pobres mulheres, que choravam, rezavam e se embriagavam na rua da Lama. Pobres operárias do sexo. Quando chegará o dia da vossa libertação? [...]Quantos mananciais de carinho perdidos, quantas boas mães e boas trabalhadoras. Pobre de vós a quem as senhoras casadas não dão direito nem ao reino do céu. Mas os ricos não se envergonham da prostituição. Contentam-se em desprezar as infelizes. Esquecem-se de que foram eles que as lançaram ali (AMADO, 1998, p. 57)

Pela linguagem emotiva do narrador, pelo uso da expressão pobres operárias do sexo, percebemos a face comunista de um Jorge Amado que idealizava uma sociedade onde os homens (burgueses) não vissem “a mulher como um instrumento de produção a ser explorado em comum” (MARX; ENGELS, 2001, p. 18-19).

A EXPLORAÇÃO DOS FILHOS PELOS PAIS PROLETÁRIOS

A exploração infantil era praticada pelos próprios pais proletários, uma vez que do trabalho das crianças (meninos e meninas) também advinha o sustento da família.

Do ponto de vista marxista, os laços familiares entre os proletários são brutalmente cortados pelo capital e seus filhos transformados em simples artigos de comércio e instrumentos de trabalho:

[...] A maioria deles desde os cinco anos trabalhavam na juntagem. Conservavam-se enfezados e pequenos até os dez e doze anos. De repente apareciam homens troncudos e bronzeados. Deixavam de comer terra, mas continuavam a comer jaca (AMADO, 1998,p. 70).

Os meninos que desde os cinco anos trabalhavam nas lavouras de cacau, gradativamente desenvolviam seus músculos ao mesmo tempo em que se tornavam bronzeados na lida árdua das lavouras. O trabalho pesado transformava essas crianças em adultos precocemente. Deformavam-se em decorrência da força física descomunal que empregavam no trabalho diário. Esses pequenos trabalhadores deformavam-se, adoentavam-se e muitas vezes morriam muito precocemente também, pois para o sistema capitalista não importam sexo ou idade, já que a classe trabalhadora é entendida por ele como mero instrumento de produção, paga de acordo com seu sexoe idade.

Outra questão interessante a ser destacada é a função da filha proletária no trabalho e o seu tempo de permanência na família:

O nascimento de uma filha, recebiam-no com alegria. Mais duas mãos para o trabalho. Um filho, ao contrário, consideravam-no um desastre. O filho comia, crescia e ia embora para os cafezais de S. Paulo ou para os cacauais de Ilhéus, numa ingratidão incompreensível. (AMADO, 1998, p. 12).

Do ponto de vista ideológico, há, no romance, uma imposição de que a filha permaneça um tempo maior junto de sua família, trabalhando fora e ajudando-a no sustento financeiro.

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OS SIGNOS IDEOLÓGICOS

Quando analisamos os discursos das personagens pertencentes às classes dominantes do romance, vemos que, a exemplo do que acontece nas relações sociais reais, existentes entre a classe dominante e a classe oprimida, essas personagens utilizam a língua para reforçar seu poder. Bakhtin (2002, p. 14-15) afirma que a palavra é o signo ideológico por excelência e a língua nada mais é que a expressão das relações e lutas sociais. Sendo assim, somente a dialética pode resolver a contradição aparente entre a unicidade e a pluralidade da significação.

Entretanto, a classe dominante tende a transformar o signo ideológico, que é plurivalente, em elemento monovalente. Isso porque, segundo Althusser (1979, p. 62), a classe dominante precisa gerar meios de perpetuação das condições materiais, ideológicas e políticas de exploração para manter sua dominação. Utiliza-se, para isso, dos “aparelhos repressores”, que podem ser: o exército, a administração, a polícia, os tribunais, etc. (compreendendo o Governo); e dos “aparelhos ideológicos” como: a religião, a família, a escola, a cultura, o sindicato etc. (compreendendo as Instituições).

Os discursos das personagens Dona Arlinda e Mária as caracterizam como aparelhos de repressão ideológica:

Dona Arlinda interrogava as mulheres:– Como vai seu marido?– Doente, patroa. Depois que uma cobra mordeu ele, nunca mais teve saúde. Eu até desconfio que isso é feitiço. Mas ele não tem saldo pra ir à Bahia ver o Santo Jubiabá...– Feitiço o quê... Isso é preguiça... Se vocês trabalhassem, acabavam enriquecendo.– A gente não faz questão de enriquecer, não, inhá. A gente quer apenas saúde e feijão pra comê. E se trabalha muito sim (AMADO, 1998, p. 80).

Dona Arlinda expõe um preconceito: que os lavradores são socialmente desiguais porque optam em ser preguiçosos em vez de trabalharem honestamente para enriquecerem, assim como os seus patrões.

Em relação ao discurso de Mária:

Mária, me leu o artigo para o anuário. Descrevia, muito mal, diga-se de passagem, a fazenda, as festas e a vida dos trabalhadores. Terminava mais ou menos assim:[...] e são felizes no seu trabalho honesto. Divertem-se, tocam viola, amam, estimam os patrões, que são seus pais e mestres. Adoram os patrões, que em paga tratam bem aos seus trabalhadores, tratamento de pai para filho. Talvez por isso nada valem as pregações dos doutrinadores de idéias exóticas, que aparecem pelas fazendas [...] (AMADO,1998, p. 97).

O comentário irônico do narrador Sergipano: “descrevia, muito mal, diga-se de passagem, a fazenda, as festas e a vida dos trabalhadores”, ajuda-nos a perceber que Mária expressa uma verdade contrária à da realidade social da fazenda: poucas são as alegrias dos lavradores, pois suas habitações são péssimas, as condições de trabalho são as mais aviltantes, a alimentação é quase sempre a mesma: jaca, banana, farinha e carne seca, do cacau só conhecem o nome chocolate e as relações comerciais no fornecimento

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de artigos de primeira necessidade são monopolizadas pelo despenseiro, de maneira que quem compra jamais consegue se livrar da dívida.

Os lavradores sofrem então dois tipos de servidão: a física e a comercial, e, de modo algum, nessas situações, pode haver um tratamento de pai para filho entre o coronel e o lavrador, a não ser nas encenações hipócritas dos patrões. Mãe e filha ocultam, em seus discursos, a verdadeira realidade dos lavradores, eles não são donos de seu próprio trabalho e sim instrumentos de trabalho e, por isso, provavelmente não mudarão de situação, simplesmente porque isso não depende deles e sim dos seus patrões, possuidores dos meios e das condições de trabalho.

Ainda acerca dos signos podemos dizer que são também objetos naturais e todo objeto, todo produto natural, tecnológico ou de consumo, a partir do momento em que se transforma em signo adquire um sentido que ultrapassa suas próprias particularidades.

O objeto natural ou físico, convertido em signo passa a refletir e a refratar, de certa forma, uma outra realidade sem, contudo, deixar de fazer parte da realidade material (BAKHTIN, 2002, p. 32).

No romance o fruto cacau, produto de consumo, é transformado em signo ideológico quando simboliza para os lavradores concomitantemente sustento, trabalho e também motivo de exploração e de violência para com os de sua classe:

NO SUL DA BAHIA CACAU É O ÚNICO NOME QUE SOA BEM.[...] Todo o princípio de ano os coronéis olham o horizonte e fazem as previsões sobre o tempo e sobre a safra. E vem então as empreitadas com os trabalhadores (AMADO, 1998, p. 58).

Foi numa dessas carreiras que um garoto bateu num cacaueiro e derrubou um fruto verde. O coronel, que olhava da varanda, voou em cima do menino, que ante o tamanho de seu crime parara boquiaberto. Mané Frajelo suspendeu o criminoso pela orelha. [...]Uma tábua de caixote, abandonada perto, serviu de chicote. O garoto berrava. Depois dois pontapés. [...]Colodino fechava os olhos e cerrava os punhos. Mas ficávamos todos parados, sem um gesto. Era o coronel quem batia e demais o castigado derrubara um coco de cacau. De cacau...Maldito cacau (AMADO, 1998, p. 81).

A consciência, portanto, se forma e se expressa concretamente, materialmente, através do universo dos signos. Podemos “ler” a consciência dos homens através do conjunto de signos que a expressa. Isso porque as palavras, no contexto, perdem sua neutralidade e passam a indicar aquilo que chamamos propriamente de ideologias.

Assim, o produto de consumo cacau passa a valer mais que o ser humano e o garoto, levado à condição de “criminoso”, converte-se em coisa sem valor.

Antes de finalizarmos essa breve análise sobre as representações da violência no romance Cacau, destacamos dele o fragmento adiante para discutirmos, ainda que muito sinteticamente, o senso do real e a expressão pessoal de Jorge Amado (1998, p. 123):

Este livro está sem seguimento. Mas é que ele não tem propriamente enredo e as lembranças da vida da roça eu as vou pondo no papel à proporção que me vêm à

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memória. Li uns romances antes de começar Cacau e bem vejo que este não se parece nada com eles. Vai assim mesmo. Quis contar apenas a vida da roça. Por vezes tive ímpeto de fazer panfleto e poema. Talvez nem romance tenha saído.

Percebemos que o jovem escritor baiano encontrou, através do discurso metalingüístico, uma maneira de desincorporar-se do narrador Sergipano e assumir-se como autor, para poder justificar ao leitor o anseio que teve de amalgamar em Cacau o caráter revolucionário e político dos grandes romances proletários que havia lido.

Para Antonio Cândido (1992, p.49) a obra de Jorge Amado desdobra-se segundo uma dialética da poesia e do documento, este tentando levar o autor para o romance social, o romance proletário que ele quis fazer entre nós, a primeira arrastando-o para um tratamento intemporal dos homens e das coisas.

Cacau não alcança a envergadura de um romance proletário, nem o caráter revolucionário de um romance como o Germinal de Emile Zola, em que as lutas de classe se dão na prática, de maneira efetiva e violenta, recriando ficcionalmente os embates políticos e sociais entre burgueses e proletários, da França dos anos de 1866 e 1867. Contudo, já este segundo romance do jovem Jorge Amado expressa – ainda que de maneira embrionária, e, por isso talvez ingênua, mas não menos esperançosa – a sua vontade socialista, motivadora da recriação literária de um momento histórico, e responsável, enfim, por vivificá-lo em nossas memórias.

Fonte: Cad. de Pós-Graduação em Letras São Paulo, v. 3, n. 1, p. 111-119, 2004.

EXERCÍCIOS – O CACAU

01. A personagem central da obra O Cacau de Jorge Amado corresponde a:a. José Cordeiro;b. Colodino;c. Honório;d. Algemiro.

02. A família de Cordeiro vai à miséria, poisa. o mesmo, Cordeiro, aos quinze anos arruma confusões dentro da família o que

leva à falência da fábrica;b. o pai, como não tinha habilidades para os negócios, baixa os salários dos

funcionários o que faz a fábrica quebrar.c. o pai de Cordeiro morre e o tio assume a fábrica, pois não tinha sociedade com o

pai.d. após a morte do pai, o tio assume o controle da fábrica e de todos os

funcionários, deixando-os pobres.

03. Tal fato mencionado no item anterior ocorre todo em:a. Ilhéus c. Fazenda Fraternidadeb. São Cristóvão d. Pirangi

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04. Assinale a passagem em que o autor faz uma crítica à igreja:a. “Foram casar nos Itabuna. Casaram no civil, mas quando foram p'ra igreja seu

vigário não tava.”b. “Um silêncio de fim de mundo, as igrejas e os conventos a abafarem a alegria das

quinhentas operárias que fiavam na fábrica de tecidos.”c. “Padre de verdade é o padre Sabino, lá do Itapira. Vosmicês conhece?”d. “Terminadas as cerimônias, o padre sorria para o coronel, o coronel sorria para os

presentes e iam para a mesa, enfeitada de flores, vinhos e galinhas.”

05. O fato de a obra ter a crítica à igreja se dá porque a igreja na época de José Cordeiroa. Realizava missas e cobrava para prestar serviços à sociedade;b. Era aliada dos coronéis, e alienava o povo para obedecer somente a eles;c. Não queria que os operários e fazendeiros tivessem uma morada no céu;d. Fazia missas à ida ao inferno dos infiéis que desobedecessem às ordens dos

coronéis.

06. Na literatura, a geração de 30 destacou-se por usar a literatura como arma de mostrar a realidade nua e crua da região, do local, possuindo características exceto:a. Caráter construtivo e maduro;b. Temas regionalistas nordestinos; c. Preocupações psicológicas e sociais, com graves denúncias;d. Cientificismo biológico e sexual.

07. O espaço central da narrativa é:a. Fazenda Laranjeiras;b. Fazenda São Brás;c. Pirangi;d. Fazenda da Fraternidade;

08. A narrativa da obra é:a. Heterodiegética; b. Homodiegética; c. Autodiegética;d. De focalização cambiante;

08. Pode-se perceber algo de comum entre as cinco obras indicadas pela UVA, os autores Naturalistas escreveram em ambientes que já conheciam, Aluísio Azevedo escreveu O Mulato sendo no Maranhão, pois o mesmo era de lá, depois passou nove anos no Rio, e publicou O Cortiço. Inglês de Sousa era de Óbidos, Pará e a cidade da narrativa é Silves, no Pará, Adolfo Caminha é carioca e lança o livro o Bom-Crioulo que se passa no Subúrbio do Rio de Janeiro. No Cacau não é diferente, a fazenda é localizada em Ilhéus, BA, Jorge Amado é de Itabuna, BA, chegando até a mencionar na obra.

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Entretanto, a motivação que levam os quatro a escreverem em ambientes próximos dos quais viveram se devea. À motivação documental dos naturalistas e ao patriotismo ufanista dos

regionalistas;b. À motivação laboratorial dos naturalistas e ao nacionalismo regional crítico de

Jorge Amado;c. À motivação psicológica dos realistas e ao comunismo do autor de O Cacau;d. Pelo mesmo motivo, falavam ambientes próximos a eles, pois não precisavam se

utilizar do imaginário criticando o Romantismo.

09. A temática central da obra consiste:a. No conflito amoroso de José Cordeiro por Mária, filha do Coronel;b. Nas aventuras de José Cordeiro com seus amigos fazendeiros;c. Na narração da vida e luta dos trabalhadores nas plantações de cacau.d. Na luta de José Cordeiro de obter direitos trabalhistas no Rio de Janeiro para os

trabalhadores das fazendas de cacau.

10. Leia o excerto abaixo:“Ficamos bons camaradas naquelas sombras carinhosas dos cacauais, onde o sol não penetrava. Os meus pés começavam a adquirir uma crosta grossa formada pelo mel de cacau que os banhos no ribeirão não tiram e que fazem de calçar uma botina enorme sacrifício. E fui aos poucos sabendo a história daquele preto gigantesco, de olhos mansos de cordeiro, dentes risonhos e grossas mãos de assassino. Herói da tocaia e do cangaço. Estava explicado porque, apesar de __________ dever novecentos mil-réis à despensa, o coronel não o botava para fora e ainda lhe fornecia dinheiro para as cachaçadas em Pirangi.”

A personagem referente ao texto acima, trata-se de a. Honório;b. Antônio Barriguinha;c. João Grilo;d. Algemiro.

11. O personagem da questão anterior tinha como característica exceto:a. Era analfabeto;b. Cantarolava cantigas de macumba quando trabalhava;c. Realizava mortes a mando do Coronel;d. Gostava de matemática e anedotas.

– Um idiota. Nem goza a vida. A alegria desse miserável é fazer mal aos outros. A mãe morreu pedindo esmola e o irmão vive aí cheio de feridas, vestido que nem a gente. Miserável assim nunca vi. Tem duas amantes.

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– É moço ainda ?– Nada. Velho de setenta anos... Já deve ser brocha.– E para que quer amantes?– Chuparino, quem sabe?Cuspiu de novo. Agora estávamos na ponte. Grandes canoas imóveis sobre a água.

12. O fragmento acima é um diálogo que acontece entre __________ e ____________ e estão falando de __________.a. Roberto e José Cordeiro; Manuel Misael;b. Colodino e Honório; Algemiro;c. Honório e Joé Cordeiro; Manuel Misaeld. Roberto e Honório; Manuel Misael.

13. O coronel Manuel Misael de Sousa Teles ganhava inúmeros apelidos, mas o mais conhecido eraa. Merda Mexida Sem Tempero;b. Mané Miserável Saqueia Tudo;c. Mané Frajelo;d. Miserável Metido Sacana e Safado.

14. Sobre a prostituta Zilda, moradora da Rua da Lama, assinale o item incorreto.a. Fora descabaçada pelo filho do coronel aos 11 anos;b. Era prostituta aos 13 anos de idade;c. Comete suicídio ao ser desprezada por Osório cortando-lhe os pulsos;d. Gasta todo o seu saldo em um vestido à espera da volta de Osório.

15. Cordeiro sai da fábrica do tio, poisa. Revolta-se com o mesmo ao ver a forma como são tratados os funcionários;b. Lidera uma greve com Sinval, mas o tio descobre e o expulsa;c. O tio manda-o embora, pois ficava assediando as funcionárias da fábrica.d. O tio começa a assediar a namorada de José, Margarida, ao descobrir briga com o

tio e sai da fábrica.

16. A irmã de José Cordeiro chama-se:a. Zefa;b. Mária;c. Arlindad. Elza

17. Leia a passagem a seguir:“Quando o enterro passou, pobre caixão mal pintado, Osório atravessava o povoado a cavalo.– De quem é esse enterro?

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– De Zilda.– Morreu?– Matou-se.– Que seja feliz no inferno...”

O fragmento revela ao leitor:a. O total desprezo de Osório por prostitutas;b. A forma como Osório tratava as mulheres depois que as usava;c. O repúdio por prostitutas ou pessoas que cometiam suicídio.d. O fato de mostrar-se ateu à promessa divina da salvação celestial.

18. Leia o texto e responda: “D. Arlinda interrogava as mulheres: – Como vai seu marido? – Doente, patroa. Depois que uma cobra mordeu ele, nunca mais teve saúde. Eu até desconfio que isso é feitiço. Mas ele não tem saldo pra ir à Bahia ver o Santo Jubiabá... – Feitiço o quê... Isso é preguiça... Se vocês trabalhassem acabavam enriquecendo. – A gente não faz questão de enriquecer, não, sinhá. A gente quer apenas saúde e feijão pra comê. E se trabalha muito, sim. D. Arlinda olhava as mãos pequenas de unhas vermelhas e bem chiques: – O trabalho não é tão pesado assim... A mulher olhava as mãos grandes e calosas, de unhas negras e bem sujas e sorria o sorriso mais triste deste mundo. Não chorava, porque ela, como nós, não sabia chorar. Está aprendendo a odiar.”

A passagem tem como intenção central mostrar:a. A ignorância dos patrões em não saber o quanto seus empregados trabalhavam;b. O ódio crescente dos trabalhadores pelos patrões;c. A humilhação e opressão que os trabalhadores sofriam por parte dos patrões;d. O desprezo e desinteresse que os patrões tinham pelas enfermidades dos

empregados.

19. Leia os fragmentos abaixo e responda:Texto I “E como Ilhéus ficava apenas a dois dias de navio de Aracaju, elas consentiram que eu me jogasse numa manhã maravilhosa de luz, na terceira classe do “Murtinho”, rumo à terra do cacau, Eldorado em que os operários falavam como da terra de Canaã.”

Texto II “Colodino fechava os olhos e cerrava os punhos. Mas ficávamos todos parados, sem um gesto. Era o coronel quem batia e demais o castigado, derrubara um coco de

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cacau. De cacau... Maldito cacau...”

Os dois textos relacionados contrastam-se poisa. Representa uma vertente individual de José Cordeiro, no Texto I e Colodino no

Texto II.b. Apresenta a representação ambígua do cacau na vida dos trabalhadores, no

Texto I por representar a possibilidade de emprego e sair da miséria, e de humilhação, punição e maus tratos que sofriam os trabalhadores por conta do cacau no Texto II.

c. Uma versão coerente que mostra a importância de se cuidar das safras de cacau sem deixá-lo cair no chão.

d. No texto I faz-se referencia a Ilhéus como a terra de Canaã, que gera a ideia de liberdade e fartura, mas o Texto II apresenta um cenário de prisão e ausência de fartura do cacau.

20. Moça de seio grandes, sabia falar bem, um pouco velha para seus vinte anos e tomava banho nua no ribeirão e era noiva de Colodino, trata-se portanto dea. Elza b. Magnólia c. Máriad. Júlia

21. Colodino, já no final da narrativa, acerta um facão deixando uma cicatriz no rosto de Osório, filho do Coronel, isso se deve pora. Colodino não aguentar mais as humilhações que eram feitas pelo 'coronelzinho';b. Vinga-se por ser o culpado do suicídio de Zilda, prostituta por quem tinha leve

afeição.c. Ele seduzir sua noiva Magnólia e por ela ceder aos seus caprichos;d. Por Osório ter tentado apalpar sua noiva quando estavam no cinema em Pirangi.

22. Colodino foge para o _____________ pois era lá que _____________, Honório é chamado para ______________ por _________________, mas não o faz, pois, conforme Cordeiro ele possui _____________________.a. Rio do Braço; encontraria seus parentes; matá-lo; quinhentos mil contos de réis;

consciência de classe;b. Rio de Janeiro; sempre sonhara ir; encontrá-lo; quinhentos mil contos de réis;

fidelidade à Colodino;c. Rio do Braço; lutaria pelos direitos de classe, matá-lo; cem mil contos de réis;

medo dos amigos.d. Rio de Janeiro; encontraria as respostas para suas perguntas; matá-lo; quinhentos

mil contos de réis; consciência de classe.

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23. Mária, filha do Misael, escolhe José Cordeiro para acompanhá-la nos dias que passa na fazenda, nesse períodoa. José Cordeiro aprende a ler e se apaixona por Mária;b. Ambos se interessam um pelo outro, mas Mária reside seu interesse de uma

forma fantasiosa, José Cordeiro de uma forma racional e realista;c. Mária, em meio às discussões e passeios apaixona-se por José Cordeiro, mas ele

ainda pensa em Margarida.d. Discutem sobre as relações trabalhistas na fazenda e Mária odeia cada vez mais

José Cordeiro;

24. José Cordeiro nega a proposta de Mária para se tornar patrão, entretanto o mesmo nega poisa. Se sente despreparado para assumir um cargo de tamanha importância;b. Vê o coronel e deduz não querer ser igual aos patrões;c. Vê Honório passando com a enxada e se lembra do trato feito entre eles da não

necessidade do enriquecer;d. Sente medo, pois Mária está casada e não deseja que a mesma traia seu marido.

25. A passagem: “Um grande retângulo, no qual os fundos das casas se encontravam. Daí o nome pitoresco que lhe haviam posto.” Tal fragmento refere-se a(o): a. Cu com Bundab. Pirangic. Ilhéusd. Rua da Lama

EXERCÍCIOS – REGIONALISMO

26. O Regionalismo foi uma tendência em nossa ficção que, no decorrer de sua trajetória, alternou idealização e documentação da paisagem e dos costumes do sertão com crítica social, demonstrando, principalmente na década de 30, uma postura altamente comprometida com a problemática nordestina.

Aponte o fragmento que NÃO expressa essas preocupações: a. “- Deus foi servido acabar tudo, senão ninguém me aluía de lá.Queria ficar

abraçado com o mourão da porteira, até esticar a canela. Mas minha vida não me pertencia...Quem tomava conta de minha filha? Quem carregava minha cruz?”

b. “Setembro já se acabara, com seu rude calor e sua aflita miséria; e outubro chegou, com São Francisco e sua procissão sem fim, composta quase toda de retirantes, que arrastavam as pernas descarnadas, os ventres imensos, os farrapos imundos, atrás do pálio rico do bispo, e da longa teoria de frades a entoarem em belas vozes a canção em louvor do santo:

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Cheio de amor, cheio de amor! as chagas trazes do Redentor!”

c. “E ele era tudo para mim. Amava-o intensamente sem ele saber. Via sua caminhada para a morte sentindo que todo o Santa Rosa desaparecia com ele. Uma vez até pensava em escrever uma biografia, a história simples e heróica de sua vida. Mas o que valeria para ele uma história, o seu nome no papel de imprensa? Oitenta e seis anos, a vida inteira acordando às madrugadas, dormindo com cifras na cabeça, com o preço do açúcar, com futuros de filhos, com cheias de rios, com lagartas comendo roçados. E eu o via passando pelo meu quarto sem me olhar, tossindo pelo alpendre, a bater com o cacete na calçada, como nas noites em que ia olhar o relâmpago nas cabeceiras. Seria que ele esperasse ainda por mim? Que um dia eu deixasse a rede e os livros para empurrar o seu cacete de mando?”

d. “Deu um passo para trás ou para a frente, nem sabia mais ou menos o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.

Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.

Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...

Ele se tornara homem”. e. “A princípio o capital se desviava de mim, e persegui-o sem descanso, viajando

pelo sertão, negociando com redes, gado, imagens, rosários, miudezas, ganhando aqui, perdendo ali, marchando no fiado, assinando letras, realizando operações embrulhadíssimas. Sofri sede e fome, dormi na areia dos rios secos, briguei com gente que fala aos berros e efetuei transações de armas engatilhadas”.

27. Foi com o Congresso Regionalista do Nordeste, realizado em 1926 no Recife, que se

firmou uma arte que se inscreve na Modernidade, sem perder o diálogo com os conceitos de Região e Tradição. Daí nascerem as raízes do que viria a ser o Romance Regionalista de 30. Quais características podemos reconhecer nesse romance regionalista?a. A temática urbana será predominante em quase todas as obras escritas nesse

período.b. As inovações literárias, particularmente no campo formal, trazidas pelos

modernistas de 22, serão adotadas pela Geração de 30.c. O Nordeste rural e suas várias paisagens (a do sertão, a das plantações de cana e

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de cacau) são temas perseguidos pelo Romance de 30.d. Macunaíma e Serafim Ponte-Grande são os dois romances mais importantes

escritos pela Geração de 30.e. Graciliano Ramos, Jorge Amado, Rachel de Queirós, Érico Veríssimo e Antonio

Calado são os principais nomes do Romance de 30.

28. Na década de 30, revelaram-se escritores que souberam revitalizar as conquistas estéticas e culturais da primeira fase do Modernismo, tais como os autores dea. SAGARANA e LAÇOS DE FAMÍLIA.b. MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR e CONTOS NOVOS.c. TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA e CANAÃ.d. MENINO DE ENGENHO e O QUINZE.e. PAULICÉIA DESVAIRADA e MARTIM-CERERÊ.

29. Assinale a afirmação correta sobre o Romance de 30.a. Predominou, entre os autores, uma preocupação de renovação estética seguindo

os padrões da vanguarda literária européia.b. Na obra de José Lins do Rego, predomina a narrativa curta na recriação do modo

de vida dos senhores de engenho.c. Os autores, em suas obras, tematizaram os problemas sociais com o intuito de

denunciar as agruras das populações menos favorecidas.d. O caráter regionalista dos romances deste período deve-se à reprodução fiel do

linguajar típico de cada região.e. A obra de Jorge Amado pode ser considerada uma exceção, no conjunto da

época, porque seus romances apresentam uma grande inovação na estrutura narrativa.

30. Ficou conhecido como "Geração de 30", na prosa modernista, um grupo de

escritores que refletiu a problemática político-social do Brasil da época. Não faz parte de tal geração:a. Graciliano Ramosb. José Lins do Regoc. Jorge Amadod. João Guimarães Rosae. Rachel de Queiroz

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Análise da Obra

Érico VeríssimoOlhai os Lírios do Campo

VIDA E OBRA DE ÉRICO VERÍSSIMOErico Verissimo nasceu em Cruz Alta (RS), em 17 de dezembro de 1905, e faleceu em

Porto Alegre, em 28 de novembro de 1975. Na juventude, foi bancário e sócio de uma farmácia. Em 1931, casou-se com Mafalda Halfen Von Volpe, com quem teve os filhos Clarissa e Luis Fernando. Sua estreia literária foi na Revista do Globo, com o conto ‘’Ladrões de gado’’. A partir de 1930, já radicado em Porto Alegre, tornou-se redator da revista. Depois, foi secretário do Departamento Editorial da Livraria do Globo e também conselheiro editorial, até o fim da vida.

A década de 30 marca a ascensão literária do escritor. Em 1932, publica seu primeiro livro de contos, ‘’Fantoches’’, e em 1931 o primeiro romance, ‘’Clarissa’’, inaugurando o grupo de personagens que acompanharia boa parte de sua obra. Em 1938, tem seu primeiro grande sucesso: ‘’Olhai os lírios do campo’’. O livro marca o reconhecimento de Erico no país inteiro e, em seguida, internacionalmente, com a edição de seus romances em vários países. Escreve também livros infantis, como ‘’Os três porquinhos pobres’’, O urso com música na barriga, ‘’As aventuras do avião vermelho’’ e ‘’A vida do elefante Basílio’’.

Em 1941 faz uma viagem de três meses aos Estados Unidos a convite do Departamento de Estado norte-americano. A estada resulta na obra ‘’Gato preto em campo de neve’’, primeira de uma série de livros de viagens. Em 1943, dá aulas na Universidade de Berkeley. Volta ao Brasil em 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo. Em 1953 vai mais uma vez aos Estados Unidos, como diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, secretaria da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Em 1947, Erico Verissimo começa a escrever a trilogia ‘’O tempo e o vento’’, cuja publicação só termina em 1962. Recebe vários prêmios, como o Jabuti e o Pen Club. Em 1965 publica ‘’O senhor embaixador’’, ambientado num hipotético país do Caribe que

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Análise das Obras | UVA 2015.2 83

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lembra Cuba. Em 1967 é a vez de ‘’O prisioneiro’’, parábola sobre a intervenção dos Estados Unidos no Vietnã. Em plena ditadura, lança ‘’Incidente em Antares’’ (1971), crítica ao regime militar. Em 1973 sai o primeiro volume de ‘’Solo de clarineta’’, seu livro de memórias. Morre em 1975, quando terminava o segundo volume, publicado postumamente.

OBRAS

Fantoches (1932)Clarissa (1933)Música ao Longe (1935)Caminhos Cruzados (1935)Um Lugar ao Sol (1936)Olhai os Lírios do Campo (1938)Saga (1940)Gato Preto em Campo de Neve (narrativa de viagem, 1941)O Resto é Silêncio (1943)Breve História da Literatura Brasileira (ensaio, 1944)A Volta do Gato Preto (narrativa de viagem, 1946)As Mãos de meu Filho (1948)Noite (1954)México (narrativa de viagem, 1957)O Senhor Embaixador (1965)O Prisioneiro (1967)Israel em Abril (narrativa de viagem, 1969)Um Certo Capitão Rodrigo (1970)Incidente em Antares (1971)Ana Terra (1971)Um Certo Henrique Bertaso (biografia, 1972)Solo de Clarineta (memórias, 2 volumes, 1973, 1976)O Tempo e o VentoParte I: O Continente (2 volumes, 1949)Parte II: O Retrato (2 volumes, 1951)Parte III: O Arquipélago (3 volumes, 1961-1962)

Infanto-juvenis

A vida de Joana D'Arc (1935)Meu ABC (1936)Rosa Maria no Castelo Encantado (1936)Os Três Porquinhos Pobres (1936)As Aventuras do Avião Vermelho (1936)As Aventuras de Tibicuera (1937)

Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo84

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O Urso com Música na Barriga (1938)Outra Vez os Três Porquinhos (1939)Aventuras no Mundo da Higiene (1939)A Vida do Elefante Basílio (1939)Viagem à Aurora do Mundo (1939)Gente e Bichos (1956)

Frases de Efeito

"– Então é porque tenho vivido e aprendi a ver.– Tens apenas vinte e cinco anos...– Conheci um homem que tinha sessenta e ainda não tinha aprendido a conhecer-se

a si mesmo."

"O vulto da igreja antiga: sempre uma sugestão de Deus, dentro e fora de nossos pensamentos... Por que não se revela Ele dum modo mais definido? Na forma dum milagre, por exemplo..."

"Ele sentia vontade de beijá-la. E por que não a beijava? Olívia podia repeli-lo, ficar magoada... Mas que importava. O mundo ia acabar, os homens se matavam, a vida era cruel. Um dia ambos estariam apodrecendo debaixo da terra."

"– Se Deus existe, então por que não se revelou?– Porque até Deus precisa de oportunidades."

"– Só foge da solidão quem tem medo dos próprios pensamentos, das próprias lembranças.

– Talvez...– Mas se tu soubesses como a solidão pode nos enriquecer..."

"O crânio do operário estava todo esfacelado, seu rosto absolutamente irreconhecível. (...)

– Mandem tocar de novo as máquinas – disse o gerente. – Não podemos ficar parados. Tempo é ouro.

Ouro... Por que era que os homens não se esqueciam nunca do ouro? Ouro lhe lembrava outra palavra: sangue. Tempo também era sangue. Ouro se fazia com sangue."

"– E agora?Ele encolheu os ombros.– É a pergunta que faço todos os dias a mim mesmo."

"Enfim ali estava uma criatura que se interessava por ele, que o amava de maneira profunda. Que tudo dava e nada pedia..."

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"Estive pensando na fúria cega com que os homens se atiram à caça do dinheiro. É essa a causa principal dos dramas, das injustiças, da incompreensão da nossa época. Eles esquecem o que têm de mais humano e sacrificam o que a vida lhes oferece de melhor: as relações de criatura para criatura. De que serve construir arranha-céus se não há mais almas humanas para morar neles. (...) É indispensável trabalhar, pois um mundo de criaturas passivas seria também triste e sem beleza. Precisamos, entretanto, dar um sentido humano às nossas construções. E quando o amor ao dinheiro, ao sucesso nos estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do céu’’.

“Nós somos homens, Filipe, e vivemos quase como máquinas. Essa ânsia de progredir, de acumular dinheiro, de construir, faz a gente esquecer o que tem de humano.”

“As perguntas das crianças em geral são as que nos deixam mais atrapalhados.”

“Eugênio ouviu os mexericos sem se perturbar. Limitou-se a sorrir e depois que ficou a sós não pôde deixar de se perguntar a si mesmo como lhe fora possível encarar os fatos duma maneira tão desligada, tão superior e serena? Se lhe tivessem contado aquelas infâmias em outro tempo, ele teria sentido dor física, teria ficado num estado de absoluta prostração, numa angústia que se prolongaria durante dias e dias. Os homens eram perversos – concluiu ele. Mas depois se corrigiu: – Havia homens muito perversos. Não bastariam as misérias reais da vida, aquelas de que ele tinha todos os dias dolorosas amostras na sua clínica? Algumas pessoas acham um prazer depravado em inventar misérias. Como podia uma criatura de alma limpa andar pelos caminhos da vida? Lembrou-se das palavras de Olívia numa de suas cartas. Tu uma vez comparaste a vida a um transatlântico, e te perguntaste a ti mesmo: 'Estarei fazendo uma viagem agradável?'. Mas eu te asseguro que o mais decente seria perguntar: 'Estarei sendo um bom companheiro de viagem?' Realmente, os homens em geral eram maus companheiro de viagem. Apesar da imensidão e das incertezas do mar, apesar do perigo das tempestades, do raio e da fragilidade do navio, eles ainda se obstinavam em serem inimigos uns dos outros. O sensato seria que se unissem em uma atitude de defesa e que se trocassem gentilezas a fim de que a viagem fosse mais agradável para todos.”

“Pensemos apenas nisto: não fomos consultados para vir para este mundo e não seremos consultados quando tivermos de partir. Isso dá bem a medida da nossa importância material na terra, mas deve ser um elemento de consolo e não de desespero.”

“Mas atentando mais nas pessoas e nos fatos ele chegava à conclusão de que o que via, o que podia apalpar, cheirar e ouvir não era tudo. Havia algo de indefinível para além da matéria.”

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“Ele sabia que nunca havia de chegar à Verdade. Quando muito conseguiria vislumbrar pequenas verdades.”

“Os homens viviam demasiadamente preocupados com palavras, pulavam ao redor delas e se esqueciam dos fatos. E os fatos continuavam a bater-lhes na cara.”

“O espírito de gentileza podia salvar o mundo. O que nos falta é isso: espírito de gentileza. Boas maneiras de homem para homem, de povo para povo.”

“Se naquele instante – refletiu Eugênio – caísse na Terra um habitante de Marte, havia de ficar embasbacado ao verificar que num dia tão maravilhosamente belo e macio, de sol tão dourado, os homens em sua maioria estavam metidos em escritórios, oficinas, fábricas... e se perguntasse a qualquer um deles: 'Homem, porque trabalhas com tanta fúria durante todas as horas de sol?' – ouviria esta resposta singular: 'Para ganhar a vida.' E no entanto a vida ali estava a se oferecer toda, numa gratuidade milagrosa. Os homens viviam tão ofuscados por desejos ambiciosos que nem sequer davam por ela. Nem com todas as conquistas da inteligência tinham descoberto um meio de trabalhar menos e viver mais. Agitavam-se na terra e não se conheciam uns aos outros, não se amavam como deviam. A competição os transformava em inimigos.”

ANÁLISE DA OBRA

‘’Olhai os lírios do campo’’ é um dos mais famosos de Érico Veríssimo e foi publicado em 1938 - Modernismo de Segunda Fase.

A ambientação urbana da história dá margem à abordagem dos efeitos de um capitalismo devastador sobre a vida dos personagens. O romance narra a trajetória existencial do personagem principal, Eugênio, seus contatos sociais e seus dilemas interiores. Portanto, a narrativa centra-se em seus conflitos e vicissitudes.

Nesta obra deve-se destacar o lirismo romântico da história de Eugênio, descobrindo que o dinheiro não traz felicidade, exatamente nos moldes do romance urbano de 30, de caráter socialista. Destaca-se também sua ambição traçada a partir de uma vida difícil, que alimenta-o de amargor e determinação na busca de sua afirmação material. E ainda, o grande sucesso dessa dramática história de amor, pode ser creditado à habilidade do autor de construir personalidades psicológicas complexas: ninguém é só bom nem só ruim na obra.

Para retratar essa relação problemática do homem com a sociedade, Érico Veríssimo construiu o romance ‘’Olhai os lírios do campo’’ de maneira que o personagem principal fosse mostrado em dois momentos. No primeiro momento, ele é conduzido, em seus comportamentos, pelas expectativas sociais; obedece aos valores de sua classe, é incapaz de perceber-se enquanto ser. Ele faz de tudo para ter sucesso e ser aceito: trabalha em função de uma máscara e não do próprio rosto. No segundo momento, o romancista mostra os processos de transformação de Eugênio: da condição de indivíduo coisificado,

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guiado mais pela expectativa dos outros do que por si mesmo, para a condição de indivíduo autônomo e consciente de si, sujeito de suas próprias decisões.

A narrativa, portanto, se divide em duas partes com 12 capítulos cada uma, sendo a primeira o cruzamento de dois níveis temporais: o presente e o passado. Assim, nesta narrativa de vários planos temporais, entrelaça-se uma crítica à sociedade fútil e vazia, ao acúmulo de riquezas e à consequente hipocrisia das relações sociais. A primeira parte é intensa e cheia de um interesse que jamais enfraquece. Na segunda parte, porém, esse interesse declina, e a história se dilui numa série de episódios anedóticos sem unidade emocional.

AmbienteO ambiente do romance é a cidade de Porto Alegre. As personagens vivem na

metrópole de ruas movimentadas, tráfego intenso, automóveis, telefones, cinemas e teatros; edifícios altos, gente rica, monopólios; gente pobre, sindicatos, miséria e doença. Vivem os movimentos da contradição e da crise.

Foco narrativoToda a narrativa é formalmente estruturada na terceira pessoa a partir de um ponto

de vista externo do narrador.

Personagens

Eugênio Fontes: homem profundamente pessimista, infeliz e complexado. Profissão: médico. Filho de um alfaiate pobre, Eugênio teve uma infância e adolescência cheias de dificuldades. À medida que ia crescendo, nutria um misto de vergonha e repúdio a si mesmo em decorrência da pobreza de sua família. Sua motivação era "ser alguém", adquirir posição social e não ter que passar pelas humilhações que julgava ter passado na infância. Na faculdade, conhece uma jovem, Olívia, pela qual se apaixona e nutre um relacionamento de amizade, cumplicidade e amor. Porém, devido a sua ambição, Eugenio deixa Olívia para casar-se com uma jovem rica. Passa a viver uma vida de aparências, adultérios e eternas contradições, deixando para trás seu verdadeiro amor e a filha que teve ela, Anamaria.

Olívia: grande amor de Eugênio e colega de trabalho. Olívia é mais uma das clássicas figuras femininas de Érico, que transparece doçura e compreensão frente às inquietudes dos personagens masculinos, mas que não esconde uma grande força e determinação. Assim como Eugenio, Olívia cursa a faculdade de medicina em Porto Alegre com dificuldades. A sua visão realista e compreensão do comportamento humano fazem com que ela encare seu relacionamento com Eugenio de forma honesta, entendendo as limitações que este poderia ter em virtude da ambição e das eternas contradições emocionais do médico. Olívia também pode ser encarada, de certa forma, como uma representante feminista de Erico, pois apesar de aceitar as limitações de Eugenio, ela luta em manter a carreira de médica e cria a filha Anamaria sozinha.

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Eunice: esposa de Eugênio. Rica, fútil e vazia. Filha do empresário Vicente Cintra, conquista Eugênio com sua fortuna, casando-se com ele e se tornando a oportunidade de que o médico necessitava para se destacar na sociedade.

Angelo: pai de Eugênio. O próprio Eugênio nos revela pormenores sobre seu pai e seus sentimentos para com ele:

Eugênio viu um vulto familiar surgir a uma esquina e sentiu um desfalecimento. Reconheceria aquela figura de longe, no meio de mil... Um homem magro e encurvado, mal vestido, com um pacote no braço, o pai, o pobre Ângelo. Lá vinha ele subindo a rua. Eugênio sentiu no corpo um formigamento quente de mal-estar. Desejou - com que ardor, com que desespero! - que o velho atravessasse a rua, mudasse de rumo. Seria embaraçoso, constrangedor se Ângelo o visse, parasse e lhe dirigisse a palavra. Alcibíades e Castanho ficariam sabendo que ele era filho dum pobre alfaiate que saía pela rua a entregar pessoalmente as roupas dos fregueses... Haviam de desprezá-lo mais por isso. Eugênio já antecipava o amargor da nova humilhação. Olhou para os lados, pensando numa fuga.

Inventaria um pretexto, pediria desculpas, embarafustaria pela primeira porta de loja que encontrasse. Ouvia a voz baixa e calma de Castanho... o "conceito hegeliano..." Podia entrar naquela casa de brinquedos e ficar ali escondido, esperando que Ângelo passasse... Hesitou ainda um instante e quando quis tomar uma resolução, era tarde demais. Ângelo já os defrontava. Viu o filho, olhou dele para os outros e o seu rosto se abriu num sorriso largo de surpreendida felicidade. Afastou-se servil para a beira da calçada, tirou o chapéu.

- Boa tarde, Genoca! - exclamou.O orgulho iluminava-lhe o rosto.Muito vermelho e perturbado Eugênio olhava para a frente em silêncio, como se não

o tivesse visto nem ouvido. Os outros também continuavam a caminhar, sem terem dado pelo gesto do homem.

A sensação de felicidade, entretanto, desaparecera de Eugênio. Sentia-se culpado. O que acabara de fazer era desumano, ignóbil, chegava a ser criminoso. Por que se envergonhava do pai? Não era um homem decente? Não era um homem bom? Não era, em última análise, seu pai?

Ainda havia tempo de reparar o mal que fizera. Podia voltar, tomar Ângelo pelo braço, carinhosamente, subir a rua com ele... Por que não fazia isso? "... aquele trecho do Banquete..." - dizia Castanho. Sim, beijar a mão do pai, confessar-lhe a culpa, dizer do seu remorso, pedir-lhe perdão, humilhar-se. Mas lá se ia acompanhando os outros como um autômato. Voltou a cabeça, procurando. Ângelo tinha desaparecido.

Dr. Seixas: amigo de Eugênio e médico de pobres. Único personagem que tem características humanas. Veríssimo pôs neste homem verdade: animou-o por dentro, deu-lhe reflexos, deu-lhe instintos, deu-lhe uma maneira de ser de pessoa viva. Personagem surgido “acidentalmente”, segundo o autor do romance, Dr. Seixas é um

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exemplo de personagem autônomo. É um médico pobre, grande, barbudo e de ar agressivo. Sua voz era igualmente áspera e peluda, sua fala desbocada, mas seus olhos refletiam bondade. Idealista, ele critica tanto a exploração capitalista do médico e o desprezo do sistema econômico pelo ser humano como o valor conferido ao dinheiro: Seu Eugênio, ouça o que lhe digo. O dinheiro é uma coisa nojenta. Um sujeito decente não se escraviza a ele.(p.183). Ele lutava contra essa escravidão e pela igualdade de direitos entre as pessoas, contagiando Eugênio e levando-o a uma nova concepção da profissão. O Dr. Seixas encarna duas concepções de vida que mantêm entre si relações opostas: uma utópica, confiante, e outra, pessimista. Para Dr. Seixas, sucesso era conseguir salvar a vida de alguém e aliviar a dor dos outros. Ele reconduz Eugênio, como médico, ao mundo da desigualdade e da pobreza, universo do qual ele, como profissional, sempre tentara fugir.

Anamaria: filha de Eugênio e Olívia. Ela ajuda a manter viva na lembrança de Eugênio a presença de Olívia e, ao mesmo tempo, como criança que é, sinaliza para a esperança e a confiança de que o futuro pode ser diferente. Anamaria simboliza a insistente afirmativa de Olívia de que a vida é feita de recomeços. A menina tem os olhos sérios e profundos de Olívia e, ao mesmo tempo, desconfortáveis como os do pobre Ângelo, pai de Eugênio. Sua presença retoma duas figuras diante das quais Eugênio precisa se redimir: seu pai, que foi por ele desprezado, e a própria Olívia, que ele abandonou por um casamento de conveniência. A presença da filha suscita-lhe interrogações e o obriga a tomar decisões sensatas e responsáveis para com os outros. Anamaria lhe permite uma compreensão da miséria humana e da necessidade de que o conjunto das ações dos homens seja orientado para minimizá-la.

Observação: Devemos destacar que a dedicação, o altruísmo e a nobreza de Olívia parecem inumanos. Não convencem. Pouco convincente também é a covardia de Eugênio. A cena em que o vemos a fazer a sua primeira operação, do ponto de vista da mera redação, está razoavelmente bem feita; do ponto de vista da verdade psicológica, porém, é um absurdo. Um homem de estômago fraco e que tem horror ao sangue jamais se dedicaria à cirurgia e, se se dedicasse, com o tempo acabaria por habituar-se a cortar a carne dos pacientes sem que isso lhe provocasse arrepios, náusea ou medo. Acaso não teria ele, como estudante, frequentado o necrotério e os ambulatórios da Santa Casa?

RESUMO DE ENREDO

Na primeira parte, merecem destaque a imagem inicial que o personagem faz de si mesmo e os valores que a engendram.

Em flashback, temos o tempo presente: Eugênio dentro do carro em direção ao hospital para reencontrar sua amada Eugênia, rememorando os fatos que fazem parte do seu passado, onde, junto a ele, relembramos sua infância, seus traumas, seus aprendizados com Olívia, o casamento com Eunice, a frustração, o sentimento de se ter vendido para vencer.

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Eugênio era um menino tímido e medroso. Teve uma infância pobre, era ridicularizado na escola e tinha como objetivo máximo a ascensão social, faria de tudo para um dia vencer na vida. Achava que o que tinha era feio e sem graça, das roupas até o seu próprio corpo. Não se entrosava com os demais colegas de classe e por isso devotava todo o seu tempo aos estudos. Sonhava em deixar de ser simplesmente o Genoca para ser o Dr. Eugênio Fontes.

Tinha pena do pai, o alfaiate Ângelo, com quem não conseguia se comunicar facilmente. O seu irmão, Ernesto, não esmerava-se na educação e acabou perdido na vida. Com muito esforço, Eugênio consegue cursar Medicina. Na Faculdade conhece Olívia - única mulher da turma. Na festa de formatura os dois se aproximam e fazem sonhos e confissões juntos, sobre o futuro. Tornam-se grandes amigos.

Durante a revolução de 30, após uma operação mal sucedida no hospital militar, Olívia convida Eugênio a sua casa e passam uma noite de amor. Dias depois, Olívia recebe uma proposta para trabalhar em Nova Itália, e novamente se entrega aos braços de Eugênio.

Durante um atendimento médico, Eugênio conhece Eunice Cintra - filha de um riquíssimo proprietário. Eugênio casa-se com Eunice com objetivo único de ascender socialmente. O sogro trata de arranjar um emprego de fachada ("assinar documentos") numa de suas fábricas. Eugênio começa a freqüentar a alta sociedade, mas não se sente parte dela. O seu complexo de inferioridade aumenta ao ver os contrastes desse outro mundo, de emoções contidas, de meias-palavras. Conhece pessoas como Filipe Lobo, construtor obstinado a construir o "Megatério", um arranha-céu, mas não se importava com a família. Infeliz e perturbado, Eugênio reencontra Olívia que lhe apresenta a sua filha, fruto do último encontro dos dois, Anamaria. Ao chegar no Hospital onde estava Olívia, recebe a notícias de sua morte.

Na segunda parte, destaca-se o papel desempenhado pelo entrecruzamento de vozes que afetam a imagem inicial do protagonista, conduzindo-o a uma progressiva mudança de posição perante a existência.

Aqui temos o passado. Esta segunda parte desenvolve-se de maneira mais linear, embora o passado se misture ao presente da filha. Passa-se após a morte de Olívia e é intercalada com a leitura das cartas que ela escreveu para Eugênio sem nunca ter enviado. Eugênio toma coragem e separa-se de Eunice - apesar de todos os inconvenientes sociais. Vai além, passa a ser um médico popular, com ideias de socializar a medicina. Trabalha com o Dr. Seixas, um velho médico que sempre atendeu aos pobres. A memória de Olívia, nas cartas, nas fotos ou no olhar de Anamaria, o fortalece quando pensa nas dificuldades.

O médico tornou-se na sociedade atual, aquele mediador entre a ciência, a técnica e o sentimento humanitário. Pensando primeiro em si mesmo, egoisticamente, Eugênio evolui para a solidariedade, através das colocações de Olívia, que embora morta, é um personagem presente no romance, fazendo contraponto com Eugênio.

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PARTE II

Um médico sai do quarto de número 122, pede para Irmã Isolda, telefonar para o Dr. Eugênio e avisá-lo que se trata de um caso perdido: ”ela sabe que vai morrer e quer vê-lo”. Eugênio recebe o recado como um golpe, uma sensação de remorso e a certeza que agora iria começar a pagar os seus pecados.

Mente para a sua esposa, Eunice, e pede para o motorista, Sr. Honório correr, pois se tratava de um caso urgente.

II

Durante a viagem, recorda de um episódio de sua infância. No recreio, abaixando-se para pegar uma bola, um aluno percebeu que suas calças estavam furadas. Gritou aos outros meninos e meninas que em um coro estridente, zombavam de Eugênio, enquanto que as lágrimas desciam pelo seu rosto.

O sentimento de humilhação de ser de família pobre; a professora cobrando a mensalidade atrasada; o irmão fazendo parte do coro da zombaria; seus pés gelados pelo frio que entrava da sola do sapato causavam-lhe revolta e vergonha. Em casa, observa o pai, Sr. Ângelo, homem calado e murcho, envelhecido antes dos quarenta, cara inexpressiva, olhos apagados, ar de resignação quase bovino, mais tossia que falava e quando falava, era para queixar-se da vida; porém, sem amarguras, sem raiva. Eugênio não conseguia amá-lo, afinal, ele tinha falhado na vida. Viviam fugindo de credores. Em seguida, reparava em sua mãe. Ela era bonita, sim, mais bonita que muitas mulheres ricas que ele conhecia. Dizia sempre que eles ainda haviam de ser felizes, e de viver com todo o conforto. “Ninguém foge do destino - eram as palavras de D.Alzira - eu acho que, se ele nos tem trazido tanta coisa ruim, um dia pode nos trazer coisas boas.”

Chega Florismal, amigo da família, tinha uma certa dignidade de estadista e lamenta-se de não ser advogado. Sempre perguntava a Eugênio que fora Florismal e ele respondia:

“ - Foi um dos doze pares da França.”

Falam sobre a guerra e naquela noite, Eugênio imagina que Deus, o Kaiser e o Destino eram uma e a mesma pessoa.

“Deus o dono do mundo. O Kaiser queria vencer a Europa e o Destino era o culpado de todas as coisas ruins que aconteciam no mundo.”

O automóvel corre e Eugênio revive imagens do seu passado. O pai humilhado, a mãe se sacrificando por ele. Agora, ambos mortos, e o pior, se fosse lhe dado uma oportunidade para recomeçar sua infância e adolescência, seria igual - não lograria amar os pais como eles mereciam. Pensa em Olívia. Ela o amara e ele estava cego pelo sucesso. Fez um casamento rico e hoje ele era simplesmente o marido de Eunice Cintra.

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III

Eugênio aos quinze anos achava-se feito. Deus realmente era ingrato, não lhe deu riqueza, nem beleza. Lembra-se de seu primeiro amor, Margaret, a filha do diretor do colégio e os primeiros desejos que seu corpo emanava. A mãe lavava toda a roupa branca que se usava no colégio, dessa maneira ele podia lá estudar. Pensa em ser igual ao Dr. Seixas e cuidar dos pobres futuramente.

A imagem de Mr. Tearle insiste em não sair de sua mente. Era o mais novo professor do colégio, viera dos Estados Unidos e tinha lutado na guerra. Acabou se suicidando com um tiro no peito em uma noite de tempestade.

A viagem continua. Pensa em seus três anos de casamento com Eunice e o erro que tinha cometido. Ela era atraente, mas, o que mais o atraíra foi o seu dinheiro, a maneira mais fácil de alcançar a fama. Em seguida, Olívia e Anamaria aparecem em seus pensamentos.

“Que seria da menina, caso Olívia morresse?”

IV

Eugênio volta ao seu tempo de adolescência, sua amizade com Alcebíades, um dos alunos mais ricos da escola e quando foi apresentado a Acélio Castanho, o ex-aluno, mais notável que a escola teve. Um dia quando caminhavam juntos, viu o seu pai. Tentou disfarçar, mas não havia mais tempo. Sr. Ângelo veio em sua direção, cumprimentou-o e Eugênio o ignorou, como se não o conhecesse. Naquela mesma noite, na hora do jantar não tinha coragem para encará-lo. De repente os olhos do pai buscam os de Genoca (Eugênio) como se lhe pedissem desculpas.

“Honório corre. Anamaria cresceria sem pai, sem mãe..."

V

No dia da formatura, depois do discurso do Sr. Diretor, Eugênio sai, segurando o diploma na mão, agora era ele se transformara no Dr. Eugênio Fontes. Fazia um ano que ajudava o Dr. Teixeira Torres no hospital Sagrado Coração, o pai tinha falecido um ano antes e seu irmão Ernesto, continuava a beber... Repara em Olívia, a única mulher da turma. Ela estava encostada em uma das colunas, segurando um ramalhete de rosas vermelhas. Olívia formara-se com sacrifícios; morava com um casal alemão, os Falk; trabalhava em um Laboratório de Análises Clínicas e Eugênio nunca a tinha visto vestida daquela maneira, radiante, feminina. Ele sempre a viu como um colega da turma. Olívia diz que está esperando que um cavalheiro a convide para entrar em seu automóvel. Eugênio não tem carro, mas oferece o seu braço e juntos decidem prestar uma homenagem a um monumento ali perto, o do Patriarca. Falam sobre o futuro e Eugênio mostra-se inseguro com o amanhã. Ele acreditava que o diploma faria desaparecer a sua

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sensação de inferioridade, no entanto, não tinha confiança em si e preocupava-se com a impressão dos outros.

A viagem continua. Olívia disse-lhe uma vez:

“O que tu precisas é aceitar as criaturas. A humanidade não tem culpa da maldade daqueles homens que te humilharam.”

VII

Eugênio sai do quarto da amiga, totalmente confuso. A mãe o esperava, estava aflita e queria notícias sobre a operação.”Não há de ser nada, ninguém pode com o destino.”Eugênio questiona-se como será sua amizade com Olívia agora.Tudo fora um momento de tontura...Pergunta à mãe se tivera notícias de Ernesto e lembra-se daquela noite, em que ele

apareceu novamente no jornal como desordeiro. Eugênio foi firme: “um de nós é demais nesta casa”.

Ernesto foi-se e não tiveram mais notícias dele.

“No carro, Eugênio, vê sua mãe morrendo e pedindo para ele procurar o Nestinho, que o Nestinho era bom...Agora Olívia é que morria...”

VIII

Eugênio é chamado para socorrer uma criança, a mãe estava desesperada e depois, o choro de Eugênio. Naquela noite, Olívia e Eugênio, jantaram no Edelweis, beberam, dançaram e ele, sentiu vontade de beijá-la; porém, sem malícia ou sensualidade.

Olívia diz-lhe para que nunca se esqueça de olhar para as estrelas e conta que aceitou a proposta do Dr. Bellini para organizar a maternidade do hospital, em Nova Itália.

Nesta noite, com as luzes apagadas, Eugênio se entregou a Olívia, como quem quer aliviar o sofrimento dum doente com uma injeção sedativa.

O carro deslizava pela estrada. Eugênio repara que são vinte para as oito e novamente se lembra do Mr. Tearle, que dizia que, quando alguma coisa acontece, sempre passam vinte minutos ou faltam vinte minutos. Será que Olívia morreu?

Olha para as estrelas...”Enquanto elas brilharem haverá esperança na vida.”

IX

Eugênio é chamado para atender a uma mulher que havia cortado o pulso, acidentalmente, na casa dos Cintra.

Fazia um mês que Olívia havia partido e somente uma carta viera.

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Dizia: “O Dr. Bellini é o homenzinho mais engraçado do mundo.”Após o socorro, Eugênio ao virar-se, depara-se com uma mulher muito loura, vestida

de um roupão escarlate, que manda queimar o lençol sujo de sangue e em seguida, ordena que o médico a acompanhe, oferece cigarros e trata-o como fosse um criado.

Observa Eugênio e pergunta-lhe a sua opinião sobre Freud. Acrescenta que ele era uma espécie rara de homem, pois ainda ficava atrapalhado sozinho na presença de uma mulher. Eugênio conclui que ela não passa de uma mulher rica e mimada, querendo aparentar-se moderna.

Eunice continua dizendo que é o tipo de mulher que adora provocar reações. Eugênio reage com palavras e na hora de sair, ela entrega-lhe uma nota de cinquenta

mil-réis.Faltam quarenta minutos de viagem. Pensa em Anamaria, ela herdara de Olívia uma

expressão de suave seriedade. Lembra-se das palavras frias de Eunice dizendo que não queria filhos, que eram mamíferos esfaimados que deformam o corpo.

Acélio Castanho falava em Platão; Cintra e Filipe em negócios; e Izabel, a esposa de Filipe, procurava com olhares, Eugênio.

Pensa nos telefonemas de Eunice, os seus convites, os passeios de carro, até que em uma noite, surpreendeu-se de mãos dadas com ela.

“Estaria apaixonado naquela época? Não podia negar que, ela era uma mulher atraente.”

Olívia escrevia raramente e as cartas pareciam de homem para homem, enquanto isso imaginava como seria ser genro de Vicente Cintra.

X

Olívia retorna de Nova Itália e Eugênio lhe pergunta se tinha recebido a carta. Afirma que não gostava dela, que era em sua carreira que pensava...

Olívia diz-lhe que acredita que ele há de se lembrar desta noite, daqui a muitos anos. Ele puxa-a contra o seu corpo e se entregam ao amor. No dia seguinte, Olívia parte novamente para Nova Itália.

Pede para Honório correr mais e conscientiza-se de que não se preocupava mais com Eunice e nem com as convenções sociais. Mas, que a vida deixaria de ter sentido se Olívia morresse.

XI

Era aniversário de Eugênio, 31 anos. Os amigos presentes conversando sobre o “Megatério” que Filipe estava construindo e Dora, sua filha comenta que ele, gosta mais do “Megatério” que dele. Ela amava um estudante judeu, Simão. Os pais se opunham ao namoro e os namorados sofriam. Enquanto isso, os pensamentos de Eugênio estavam fixos num anúncio de jornal: o endereço novo do consultório da Dra. Olívia.

Dez minutos para chegarem.“Olívia está fora de perigo, Deus existe?!...”

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XII

Eugênio revê o seu relacionamento com Izabel. Não tinha coragem de dizer-lhe que não a amava. Na verdade, precisava sacrificar vítimas para conter o seu sentimento de inferioridade.

Em seu emprego na fábrica do sogro, vive conflitos existenciais, mostra-se fraternal para com a secretária e para com os outros empregados na intenção de comprar-lhes a cumplicidade.

Um dia, um acidente mata um operário: Toríbio Nogueira, 37 anos, casado, cinco filhos. O Sr. Cintra incumbe Eugênio para providenciar os encaminhamentos dentro das leis trabalhistas e ironiza afirmando que ele tem jeito para essas coisas.

À noite quando todos saíram, Eugênio apanha seu chapéu e vai á procura de Olívia.Confessa-lhe que sentiu sua falta e pergunta-lhe se um dia ela o amou.Eugênio, em seguida, comenta que ela deve ter sofrido todo esse tempo, sem um

amigo, sozinha. Ela responde que ele deixou a melhor das recordações naquela última noite. Leva-o para o seu quarto e Eugênio pode ver uma criança dormindo no berço. Comovido, ele se reconheceu no bebê adormecido.

Passam pelo parque. Lembra-se que passeou com Olívia e Anamaria há poucos dias por entre aquelas árvores. Depois daquela verdade, sua vida tinha mudado: visitava a filha todos os dias e durante quinze dias, o seu convívio com Olívia foi intenso.

O carro estacionou a porta do hospital, Irmã Isolda vem recebê-lo e murmura que, Olívia morreu ao anoitecer, na santa paz do Senhor. O seu corpo estava sendo velado na capela.

PARTE IIXIII

Eugênio relê a carta que Olívia lhe escreveu, poucas horas antes de morrer. Era uma carta de despedida, deixando Anamaria aos seus cuidados e avisando que na gaveta da cômoda havia um maço de cartas que ela havia escrito de Nova Itália expressamente “para não te mandar”.

Passou pelo “Megatério”, pensou em Filipe e em sua ambição.

XIV

Eunice ofereceu um jantar a Túlio Altamira, pintor paulista e ocorre uma discussão entre Túlio e Acélio Castanho que defende que, só a castidade pode elevar o homem dos animais irracionais.

XV

Eugênio sonha que está parado em uma calçada, observando as meninas de um orfanato. Acorda desesperado, pensa em Anamaria. Agora passa a maior parte de seu

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tempo na casa dos Falk, relendo as cartas de Olívia. Fica a refletir o que estava fazendo naquele momento em que Olívia pensava nele e lhe escrevia. Talvez resfolgasse como um animal nos braços de Izabel...

“Tinha tido apenas a ilusão de viver, mas na verdade andara morto entre os homens.”

XVI

Eugênio, sempre que deixava a casa dos Falk, Anamaria perguntava por que ele não dormia ali.

Essa situação estava sufocando-o, até que não aguentando mais, resolve contar tudo a Eunice.

Eugênio chegou afirmar que foi patife em casar-se com ela, pelo dinheiro. Ela responde que aquilo não era nenhuma novidade, que, por sua vez, havia casado com ele por extravagância e pura piedade.

Eugênio deixou a casa de Eunice naquela mesma noite.

XVII

Eugênio montou seu consultório em duas salas de aluguel barato, num edifício modesto e tinha como amigo e confidente, o Dr. Seixas. Seus pacientes eram em sua maioria empregados do comércio, funcionários públicos, estudantes pobres e prostitutas.

Sr. Cintra tentou fazer-lhe um acordo, uma viagem, mas, Eugênio estava decidido. Eugênio passou a fazer as suas refeições com os Falk e fazia Anamaria dormir.

Uma noite quando relia as cartas de Olívia, o telefone tocou. Chamado urgente.

XVIII

Era Izabel. Queria saber se existia outra mulher na vida dele.Eugênio compra o jornal para procurar o anúncio que havia colocado pedindo

informações sobre o paradeiro de Ernesto. Naquele dia no consultório, atendeu três homens e duas mulheres com doenças venéreas. O sexto cliente era uma menina. O pai queria saber se a filha ainda era virgem.

À noite, voltando de um chamado urgente encontrou Dora e Simão, sentados num dos bancos da praça, bem na frente do “Megatério”. Dora conta que um professor falou contra os judeus e que Simão tinha se retirado da sala de aula. Simão não vê esperanças para o namoro entre eles. Seus filhos seriam desprezados pelos judeus e pelos cristãos.

Eugênio promete interceder, mas Simão diz que:“O Eng. Filipe Lobo só compreende as criaturas de cimento armado e aço.”

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XIX

Havia dias escuros na nova vida de Eugênio. Os jornais daquele dia anunciaram a viagem de Eunice e do pai à Europa. Chegavam versões diversas sobre o seu rompimento com Eunice: dizia-se que ele havia apanhado a mulher nos braços de Filipe, ou nos braços de Acélio Castanho, que Eugênio era impotente sexual...

XX

Uma manhã Simão foi buscar Eugênio para ir socorrer-lhe o pai, Sr. Mendel Kantermann. Depois de tirá-lo do perigo, Simão quis que ele conhecesse sua casa, sua miséria, falava que a mãe só tinha um seio em virtude da crueldade dos homens. Quis pagar-lhe a consulta e contou que mostrou toda a sua vida à Dora, para o prazer doentio de torturá-la.

Em casa o Dr. Seixas o esperava para uma intervenção cirúrgica e em seguida, diz que tinha uma supressa para ele. Era Florismal que estava internado. Conversaram sobre o passado. Florismal morre depois de uma semana.

Aquela noite, Eugênio folheou o álbum de fotografias de Olívia. Nada sabia sobre o seu passado. Havia uma foto ao lado de um rapaz e por baixo do retrato, havia um nome e duas datas: Carlos - 1921-1923. Talvez fosse o homem que primeiro a tivera nos braços.

XXI

A clientela de Eugênio aumentava cada vez mais. Uns comentavam que ele queria a medicina socializada porque tinha mentalidade de funcionário público, outros diziam que ele era comunista...Teve em suas mãos um caso impressionante. Um antigo funcionário público, trabalhador, honesto, resolve se internar num hospício, pois conclui que está louco, justamente por portar essas qualidades.

Outros casos são: um casal, onde a mulher estava quase cega de ambos os olhos. Não tinha caso de cegueira na família e começou a perder a visão aos poucos. Quando Eugênio fica a sós com a mulher pergunta-lhe quantos abortos, ela praticara: Dez, e, outro, um homem fino, da alta-sociedade, preocupado por estar fracassando na cama com suas amantes.

Numa manhã de domingo, Eugênio, foi à casa de Seixas e indaga o motivo das flores em cima da mesa da sala. Ele responde que vinham da parte do Dr. Ilya Dubov. Ele era um homem solitário, não tinha parentes, nem amigos e não queria ficar esquecido depois de morrer. Dizia à D. Quinota que estava lhe emprestando as flores, que quando morresse, ela tinha que levar todos os sábados um buquê bem bonito à sua sepultura.

XXII

Dora e Simão aparecem no consultório de Eugênio. Ela estava grávida de três meses e queriam que ele fizesse um aborto. Ele se nega a fazê-lo e diz que o melhor remédio é

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contar tudo a Filipe. Ao ligar para Filipe, a secretária diz que ele não podia atender naquele momento. Simão desafia Eugênio afirmando que tinham procurado um amigo, mas que procuraria então qualquer desconhecido, uma parteira ou um médico que faria o que ele negou-se a fazer.

Eugênio tenta impedir a saída deles, mas não quis usar de violência, acreditando que tinha tempo de avisar Filipe, para que ele interviesse. Já no escritório de Filipe, Eugênio é acusado como médico e responsável por não ter impedido à saída de Dora.

Passaram o resto da tarde à procura do casal. À noite, Seixas traz-lhe a notícia:“ A A n u n c i a t a , a q u e l a c a c h o r r a , f e z o a b o r t o . . . v e i o u m a

hemorragia...quando viu a coisa preta pediu socorro pro Rezende...O Rezende não quis ficar com a responsabilidade...Chamou o pai de Dora...Não foi possível fazer mais nada. A menina morreu ao escurecer. Simão ainda estava desaparecido.”

XXVIII

Aquele final de inverno foi escuro e triste para Eugênio. A morte de Dora, a morte de um velho cliente, Seixas vivendo atormentado pelos credores e pela bronquite crônica...

Uma noite, resolve ir ao teatro e vê Eunice, Sr. Cintra e Acélio Castanho. Ao passar pelo “Megatério” pensa em Dora e em Olívia.

Em setembro acordou com os gritos da filha, mostrando-lhe o sol. À noite conversando com Seixas diz que cada dia que passa era uma revelação para ele, que estava encontrando na vida, em carne e osso, velhos conhecidos dos livros: Fausto, Hamlet, Pigmalião.

Fausto entrou-lhe no consultório na pessoa de um homem de 68 anos, viúvo que ia se casar com uma mocinha de 18 anos e queria algo que o fizesse rejuvenescer.

Hamlet, era uma guarda-livros, comia pouco, dormia mal, não acreditava em ninguém e tinha uma ideia fixa de suicídio.

Pigmalião chamava Ramão Rosa, 50 anos, agiota, sua esposa fugira com um sargento da Brigada Militar...

Pensa nas palavras de Olívia:“Felicidade é a certeza de que nossa vida não está se passando inutilmente.

O erro é pensar que o conforto permanente, o bem-estar que nunca acaba e o gozo de todas as horas são a verdadeira felicidade.”

Eugênio pergunta se Seixas tinha notícias de Simão.“Não faria nenhuma loucura, pois o tempo cicatriza todas as feridas. Em

breve Dora desapareceria da vida de Filipe, de Isabel e de Simão, assim como a própria Olívia havia de desaparecer da sua.”

XXIV

31 de dezembro. Faltavam dez minutos para a meia-noite. Eugênio parado na janela observa o “Megatério” que seria inaugurado naquele dia. Ele só queria saber em que

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estaria Filipe pensando no momento em que o governador declarasse inaugurado o edifício.

A meia-noite, durante os cumprimentos, D. Frida deseja que Deus dê felicidades a todos e saúde a Anamaria.

Seixas apareceu à meia-noite e vinte minutos, brindaram e saíram. Seixas estava pessimista. Eugênio comenta que excelentes homens de governo dariam os médicos. Seixas retruca, dizendo que na maioria dos casos, quando os médicos sobem aos postos do governo, se esquecem de que são médicos e passam a ser apenas políticos.

Seixas olha para Eugênio e pergunta se ele vai mesmo salvar a humanidade. Eugênio responde que:

“Antigamente só pensava em mim mesmo. Vivia como cego. Foi Olívia quem me fez enxergar claro. Ela me fez ver que a felicidade não é o sucesso, o conforto. Uma simples frase me deixou pensando: Considerai os lírios do campo. Eles não fiam nem tecem e, no entanto nem Salomão em toda a sua glória se cobriu como um deles.”

Eugênio continuava a falar que existiam duas espécies de crueldade: a crueldade que se comete por cegueira, por incompreensão, e a crueldade que se comete por prazer. Por isso que ele acreditava que havia um grande trabalho para médicos e professores. È uma questão de reeducação.

“Uma revolução pode mudar um sistema de governo, mas não conseguirá melhorar a natureza do homem, dizia Seixas. O ódio é masculino, o amor é feminino, completava.

Hoje quando a Quinota me abraçou à meia-noite chorou, a coitada. Tem sido companheira de primeira. Há trinta anos numa noite como esta fiz lá promessas ...Mudar de vida, ganhar dinheiro, comprar uma casa, um carro. Tudo continuou como antes.”

No fim do verão, Eugênio recebeu a notícia que, Eunice e Acélio iam embarcar para o Uruguai, onde se casariam sob contrato. Abriu o jornal na coluna de pequenos anúncios, onde pedira notícias de Ernesto. Havia de encontrá-lo, custasse o que custasse. Continuou a folhear o jornal e lê que Dr. Filipe estava empenhado em nova realização. Dobrou o jornal, pensando em Dora.

Naquele momento refletiu como pode um dia tão maravilhoso como aquele, os homens estarem a trabalhar. Com certeza esses homens lhe responderiam que, era para ganhar a vida. E, no entanto, a vida estava ali a se oferecer toda, numa gratuidade milagrosa. Pediu para D. Frida arrumar Anamaria; pois, iriam dar um passeio. Quando a filha se apresentou pronta, Eugênio reviu nela, a Olívia da noite da formatura.

Eugênio sentia-se em paz e feliz. De repente fica sério. Estava pensando na menina que atendera a noite passada. Era magra, suja, triste, mal vestida e mal alimentada. Existiam na cidade, no Estado e no país milhares de crianças nas mesmas condições. Não bastava que ele se sentisse feliz, que tivesse Anamaria ao seu lado, alegre, bem vestida...

“Era preciso pensar nos outros e fazer alguma coisa em favor deles. Por que não começar algum trabalho em benefício das crianças abandonadas? Seixas com certeza o ajudaria.”

Amava as crianças e os moços. Achava que os adultos e os velhos estavam perdidos.

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“- Mas ninguém está perdido“ - falou Olívia em seu espírito. Ele havia esquecido o som da voz dela. No entanto sabia que Olívia estava viva e que ela marcara uma entrevista à sombra das árvores do parque, enquanto Anamaria atirasse migalhas para os marrecos.

E de mãos dadas, pai e filha saíram para o sol.”

Exercícios para sala

01. Podemos dizer que a obra de Veríssimo Olhai os lírios do campo classifica-se como:a. Regionalista romântica;b. Regionalista de 30;c. Crítico sociald. De tese

02. O dueto central que alimenta a trama circunda em:a. Eugênio e Olíviab. Eugênio e Eunicec. Angelo e Euniced. Olívia e Felipe

03. Amor de Eugênio e colega de trabalho. ... é mais uma das clássicas figuras femininas de Érico, que transparece doçura e compreensão frente às inquietudes dos personagens masculinos, mas que não esconde uma grande força e determinação. A passagem se refere a:a. Eunice;b. Olíviac. Anamariad. Amélia

04. Em relação a Eugênio e incorreto afirmar:a. profundamente pessimista, infeliz e complexado.b. filho de um alfaiate pobrec. dua motivação era "ser alguém", adquirir posição social e não ter que passar

pelas humilhações que julgava ter passado na infância.d. profissão: enfermeiro

05. Olívia na obra:a. Assim como Eugenio, Olívia cursa a faculdade de medicina em Porto Alegre com

facilidades.b. Olívia é mais uma das clássicas figuras femininas de Érico, que transparece doçura

e compreensão frente às inquietudes dos personagens masculinos, mas que

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esconde uma grande força e determinação.c. Grande amor de Eugênio e colega de trabalho.d. luta em manter a carreira de médica e cria a filha Anamaria com a ajuda de

Eugênio

Exercícios para Casa

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA BRASILEIRA TEXTO I EVOLUÇÃO

Apertaram-se as mãos. A última vez que Eugênio vira Filipe fora poucos dias após o seu rompimento com Eunice. Filipe o procurara para tentar uma reconciliação.

- Aonde vais? - Ia indo para o consultório. - Os doentes que esperem. Se fosse em Esparta eles seriam jogados desfiladeiro

abaixo. Vem comigo, vamos subir ao último andar do “Megatério”. Já estiveste lá? Não? Pois vais ver um espetáculo formidável.

.............................................................................................................................- Não é um colosso? – perguntou Filipe. Operários passavam com carrinhos de mão cheios de argamassa, despejavam-nos

sobre uma rede de finas vigas de ferro, que pareciam os nervos simétricos daquele monstro.

.............................................................................................................................Um avião decolava do rio, alçava-se na direção das montanhas. - Olha aquele avião, pensa neste arranha-céu, naqueles outros grandes edifícios e

em tudo mais que o homem construiu aqui e em outras partes do mundo. – Apertou com mais força o braço do amigo.

– Se todos pensassem como tu, a terra seria ainda nua e desolada. - Mas é preciso um pouco de tudo para fazer um mundo... – retrucou Eugênio,

lembrando-se duma sentença muito do gosto do velho professor do “Columbia College”.

- Sim. Queres dizer que é preciso haver médicos e construtores, advogados e sapateiros, alfaiates e poetas. Concordo. Mas eu falo é na maneira de sentir a vi da. Tu te lembras daquele dia em que te procurei para te fazer ver a loucura que tinhas cometido? – Eugênio sacudiu a cabeça afirmativamente. – Quis abrir-te os olhos. És moço, tens vida como o diabo pela frente, podias fazer coisas formidáveis com o dinheiro de Cintra. Só um fraco é que se importa com o que o povo pode dizer. Que é o povo? O povo é aquilo.

Mostrou lá embaixo vultos miúdos e escuros que se agitavam nas ruas e calçadas. .............................................................................................................................- Olha, menino – prosseguiu Filipe. – Não há nada mais humano do que querer gozar

a vida. O mundo é dos ativos, dos que acordam cedo e dos que têm audácia de dar os

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grandes golpes. Vocês sentimentais vivem falando em humanidade e no entanto não são humanos. (...).

- Só há uma verdade – continuou Filipe. – O forte engole o fraco e para o fraco só há uma esperança: a de fazer-se forte e entrar na competição.

Texto adaptado de VERÍSSIMO, Érico, Olhai os lírios do campo. 53ª ed., Porto Alegre – Rio de Janeiro, Editora Globo, 1984, pp. 205-9

Glossário: Colosso – objeto de enormes dimensões. Megatério – (no texto) arranha-céu, enorme edifício de cimento armado

01. Verifica-se que Filipe se empenha em convencer Eugênio, personagem principal de Olhai os lírios do campo, a tirar proveito da riqueza de Cintra. A cena em questão e o título do romance enviam-nos a um texto universalmente famoso, o texto bíblico. A esse diálogo entre textos dá-se o nome de: a. coerência textual b. contexto c. tipologia textual d. intertextualidade

02. Com base nas categorias intertextuais da citação (forma explícita e literal de sobreposição entre textos, na qual o texto citado geralmente se apresenta entre aspas); do plágio (empréstimo não declarado, porém literal, de um texto de outro autor) e da alusão (reenvio de um enunciado, de forma menos explícita e menos literal do que nos procedimentos anteriores a outro texto) pode-se afirmar que na passagem “Se fosse em Esparta, eles seriam jogados desfiladeiro abaixo”, ocorre: a. uma citação histórica b. uma alusão histórica c. plágio de um texto histórico d. as letras a e b estão corretas

03. De acordo com o contexto situacional da cena em análise, na resposta à pergunta “Que é o povo?” feita a Eugênio por Filipe, inscreve-se que este (Filipe): a. exprime a admiração pelos trabalhadores da construção civil. b. usa certa entonação de voz, indicativa de seu apreço pelos trabalhadores em

atividade. c. revela o preconceito em relação às pessoas humildes, pertencentes a classes

sociais desprestigiadas. d. exprime a preocupação com os menos favorecidos.

04. Para a caracterização de Eugênio, protagonista do romance em estudo, está correta a seguinte proposição:

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a. jovem intelectual pequeno-burguês alienado. b. imigrante português rebelde e rejeitado pela família. c. jovem médico bem sucedido, porém infeliz. d. jovem médico de origem humilde e grande ambição.

05. Da análise do excerto de Olhai os lírios do campo aqui reproduzido, pode-se afirmar:a. a narração dos fatos é feita em 3ª pessoa; o narrador é onisciente por possuir uma

visão privilegiada dos personagens e acontecimentos . b. a narração dos fatos é feita em 3ª pessoa; o narrador não é onisciente, pois sua

visão dos personagens e acontecimentos é limitada. c. a narração dos fatos é feita por Eugênio, personagem do romance. d. a narração dos fatos é feita em 1ª pessoa; o narrador é personagem secundário

no romance

06. Com base na leitura integral do romance, é correto afirmar que a personagem Eunice, referida no 1º parágrafo do texto, corresponde à:a. mãe de Eugênio b. amante de Eugênio c. esposa de Filipe d. irmã de Eugênio e. esposa de Eugênio

07. "Tu te lembras daquele dia em que te procurei para te fazer ver a loucura que tinhas cometido?"No período acima reproduzido, a utilização da 2ª pessoa do singular é marca de linguagem típica do gaúcho, cuja fala sofreu a influência do português lusitano dos imigrantes açorianos. Transpondo o período em análise para uma variedade de fala urbana, em nível coloquial, da maioria das regiões brasileiras, tem-se:a. Você se lembra daquele dia em que o procurei para fazê-lo ver a loucura que tinha

cometido? b. Tu lembra daquele dia em que te procurei para fazer-te ver a loucura que tinha

cometido? c. Você se lembra daquele dia em que o procurei para fazer-lhe ver a loucura que

tinha cometido? d. Tu te lembras daquele dia em que lhe procurei para lhe fazer ver a loucura que

tinhas cometido? e. Você lembra daquele dia em que lhe procurei para lhe fazer ver a loucura que

tinha cometido?

08. Verifica-se o emprego da partícula “se” com indicação de reciprocidade na passagem: a. “Um avião decolava do rio, alçava-se na direção das montanhas.”

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b. “Mostrou lá embaixo vultos miúdos e escuros que se agitavam nas ruas e calçadas.”

c. “Apertaram-se as mãos.” d. “Só um fraco é que se importa com o que o povo pode dizer.” e. “...para o fraco só há uma esperança: a de fazer-se forte...”

09. De acordo com a norma culta, substituindo-se o verbo haver em “...é preciso haver médicos e construtores,...” pelas estruturas: I. É preciso existirem médicos e construtores. II. É preciso existir médicos e construtores. III. É preciso ter médicos e construtores.

Está(ao) correta(s) apenas:a. Ib. IIc. IIId. Ie. II e III

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