RAV v Saint Paul City

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RAV vs SAINT PAUL CITY RAV vs Saint Paul City, 505 EUA 377 (1992), foi um caso da Suprema Corte dos EUA envolvendo o discurso do ódio face à cláusula de liberdade de expressão da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da America do Norte. Um tribunal unânime da Suprema Corte do EUA derrubou a St. Paul-Minnesota’s Bias-motived Crime Ordinance * (‘Lei local’ do Crime de Preconceito-motivado de São Paulo-Minesota), e, ao fazer isso, anulou a condenação de um adolescente, referido em documentos judiciais apenas como RAV, pela queima de uma cruz no gramado da casa de uma família afro- estadunidense . 1. Fatos e fundamentos processuais Nas primeiras horas da manhã de 21 de junho de 1990, o peticionário e vários outros adolescentes supostamente teriam montado toscamente uma cruz juntando pernas quebradas de cadeiras. 1 A cruz foi erguida e queimada no jardim da frente da residência de uma família afro- estadunidense que vivia do outro lado da rua da casa onde o requerente estava hospedado. 1 O peticionário, que era juvenil na época, foi acusado de dois crimes, um dos quais uma violação da ‘Lei local’ do Crime de Preconceito-motivado de São Paulo-Minesota, 1 que prevê: “Quem coloca em propriedade pública ou privada, um símbolo, objeto, denominação, caracterização ou grafite, incluindo, mas não limitado à, suástica nazista ou queima de uma cruz, que alguém sabe ou tem motivos suficientes para saber desperta raiva, alarme ou ressentimento em outros com base em raça, cor, credo, religião ou sexo, comete conduta desordeira e será culpado de um delito.” O peticionário moveu um recurso contra a acusação * Ordinance, na jurisprudência estadunidense, referencia as leis estabelecidas pela autoridade municipal ou outra autoridade local. Estas leis são executadas localmente como reforço jurídico às leis estatais e federais. Sua extensão semântica inclui leis locais, decretos-lei e portaria municipais. Por falta de um equivalente com a mesma extensão semântica na jurisprudência brasileira, usarei o termo ‘lei local’. 1 505 U.S. 379 (1992)

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RAV vs SAINT PAUL CITY

RAV vs Saint Paul City, 505 EUA 377 (1992), foi um caso da Suprema Corte dos EUA envolvendo o discurso do ódio face à cláusula de liberdade de expressão da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da America do Norte. Um tribunal unânime da Suprema Corte do EUA derrubou a St. Paul-Minnesota’s Bias-motived Crime Ordinance * (‘Lei local’ do Crime de Preconceito-motivado de São Paulo-Minesota), e, ao fazer isso, anulou a condenação de um adolescente, referido em documentos judiciais apenas como RAV, pela queima de uma cruz no gramado da casa de uma família afro-estadunidense.

1. Fatos e fundamentos processuais

Nas primeiras horas da manhã de 21 de junho de 1990, o peticionário e vários outros adolescentes supostamente teriam montado toscamente uma cruz juntando pernas quebradas de cadeiras.1 A cruz foi erguida e queimada no jardim da frente da residência de uma família afro-estadunidense que vivia do outro lado da rua da casa onde o requerente estava hospedado.1 O peticionário, que era juvenil na época, foi acusado de dois crimes, um dos quais uma violação da ‘Lei local’ do Crime de Preconceito-motivado de São Paulo-Minesota,1 que prevê:

“Quem coloca em propriedade pública ou privada, um símbolo, objeto, denominação, caracterização ou grafite, incluindo, mas não limitado à, suástica nazista ou queima de uma cruz, que alguém sabe ou tem motivos suficientes para saber desperta raiva, alarme ou ressentimento em outros com base em raça, cor, credo, religião ou sexo, comete conduta desordeira e será culpado de um delito.”

O peticionário moveu um recurso contra a acusação sob a ‘Lei local’ do Crime de Preconceito-motivado sustentando ser ela substancialmente “excedentemente extensa” (overbroad**) e inadmissível sua matéria jurídica com base na Primeira Emenda e, portanto, inválida em face dela.2 A corte a quo concedeu a moção, mas a Suprema Corte de Minesota revertendo esta decisão, indeferiu o pedido fundamentando-se no fato de o Tribunal de Minnesota haver interpretado, em casos anteriores, a frase "desperta alarme, raiva ou ressentimento em outros" limitando o alcance da lei à conduta correspondente à palavras agressivas conforme a decisão Chaplinsky vs. New Hampshire. 3 O Tribunal de Minnesota também concluiu que a lei não se fundava em conteúdo inadmissível porque "a ‘lei’ (ordinance) é um meio pouco adaptado para realizar o interesse convincente governamental na proteção da

*Ordinance, na jurisprudência estadunidense, referencia as leis estabelecidas pela autoridade municipal ou outra autoridade local. Estas leis são executadas localmente como reforço jurídico às leis estatais e federais. Sua extensão semântica inclui leis locais, decretos-lei e portaria municipais. Por falta de um equivalente com a mesma extensão semântica na jurisprudência brasileira, usarei o termo ‘lei local’.1 505 U.S. 379 (1992)** Na jurisprudência estadunidense a Overbreadth Doctrine relaciona-se com a Void for Vagueness Doctrine. Esta sustenta-se no argumento que a lei não pode ser executada se é tão vaga ou confusa que o cidadão-médio pode não reconhecer o que está sendo proibido ou quais penalidades resultam da violação da lei. Assim conforme aquela, a lei é inconstitucional não só por ser vaga mas também extensa se ela cobre atividades que são protegidas pela Lista Federal de Direitos ou os direitos listados nas constituições dos estados federados.2 505 U.S. at 3803 505 U.S. at 380-381

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comunidade contra o preconceito motivado ameaçante à segurança e à ordem públicas."4 O peticionário recorreu à Suprema Corte dos EUA que concedeu o certiorari***.5

2. Decisão

O ‘Associado da Justiça’ * *** Antonin Scalia pronunciou o parecer da maioria do tribunal, apoiado pelo ‘Chefe de Justiça’ William Rehnquist, e pelos juizes Anthony Kennedy, David Souter e Clarence Thomas. O associado da justiça Byron White escreveu um parecer concordando com a sentença, no que foi seguido integralmente pelos associados da justiça Harry Blackmun e Sandra Day O'Connor e parcialmente pelo juiz John Paul Stevens. O juiz Blackmun escreveu um parecer favorável no julgamento. O juiz Stevens escreveu um parecer concordando com o julgamento, no que foi acompanhado em parte pelos juizes White e Blackmun.

3. A decisão da maioria

A Corte Suprema começou com uma recitação do fundo relevante factual e processual, observando várias vezes que a conduta em questão poderia ter sido processada em diferentes estatutos do Estado de Minnesota.6 Quanto à interpretação da portaria, a Corte Suprema reconheceu que ela foi vinculada pela construção dada pelo Supremo Tribunal Minesota. 7 Portanto, o Tribunal da Suprema Corte aceitou a conclusão do tribunal de Minesota que a lei local atingiu apenas as expressões que constituem "palavras de luta", na acepção da formulação Chaplinsky .

O peticionário argumentou que a formulação Chaplinsky deveria ser restringida, de modo que a lei local seria invalidada como "substancialmente excedentemente extensa".7(vide n.**) O Tribunal recusou-se a considerar tal argumento. De qualquer modo, proferiu que mesmo se toda a expressão sob o escopo da lei local fosse proscrita como "palavras de luta", a portaria seria prima facie inconstitucional na medida em que proibia um discurso permitido somente na base dos temas abordados no discurso.7

O Tribunal estabeleceu a sua análise substantiva com uma revisão das cláusulas jurisprudenciais dos princípios da liberdade de expressão, começando com a regra geral de que a Primeira Emenda impede o governo de proscrever o discurso,8 ou até mesmo conduta expressiva,9 por causa da desaprovação do idéias expressas.10 O Tribunal observou que, embora regulamentos baseados em conteúdo discursivo serem supostamente inválidos, a sociedade tem permitido restrições sobre o conteúdo do

4 In re Welfare of R.A.V., 464 N.W.2d 507, 510 (Minn. 1991)*** Certiorari em common law é um tipo de writ (um escrito formal ordenatício emitido por corpo com

jurisdição administrativa ou judicial) que busca a revisão judicial. 5 501 U.S. 1204 (1991)**** ‘Associate justice’ é o título próprio dos membros da Suprema Corte dos Estados Unidos e, obliquamente, de algumas das supremas cortes de estados federados, que não o ‘chief justice’ dos Estados Unidos – a denominação do ‘cabeça’ do sistema da corte federal estadunidense (o braço judicial do governo federal estadunidense) e o juiz-chefe da Suprema Corte.6 505 U.S. at 379-380, N.17 505 U.S. at 3818 Cantwell v. Connecticut, 310 U.S. 296 (1940)9 Texas v. Johnson, 491 U.S. 397 (1989)10 505 U.S. at 382

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discurso em algumas áreas limitadas, que são "de valor social de menor importância como um passo para a verdade que qualquer benefício que pode ser derivado a partir deles é claramente superável pelo interesse social quanto à moralidade".11

A Corte, então, esclareceu a linguagem de casos anteriores referentes à liberdade de expressão, incluindo as cláusulas de Roth contra os Estados Unidos, Beauharnais vs Ilinois e Chaplinsky, procedimento que sugeriu que certas categorias de expressão "não estão dentro da área de expressão constitucionalmente protegidas", advertindo que tais declarações "devem ser tomadas em seu contexto".12 O que esta linguagem significava, o Tribunal pronunicou, era que certas áreas do discurso "podem, de forma consistente com a Primeira Emenda, ser regulamentadas por causa de seu conteúdo constitucionalmente proscritível (obscenidade, difamação, etc.) – não que elas são categorias de discurso totalmente invisíveis à Constituição, assim podem consistir em veículos para a discriminação de conteúdo".13 Assim, como uma das primeiras de uma série de ilustrações que Scalia usaria através de todo o posicionamento, o governo pode "proibir difamação, mas não pode fazer a discriminação de conteúdo adicional de proscrever libelo apenas crítico do governo".14

O Tribunal reconheceu que, enquanto uma instância particular de discurso pode ser proscrita com base em um aspecto relevante, a Constituição pode proibir proscrever-lo na base de um outro caráter distintivo. 15 Assim, enquanto a queima de uma bandeira em violação a uma lei local contra incêndios florestais poderia ser punida, queimar uma bandeira em violação a um lei local contra a desonra da bandeira não é punível.15 Além disso, outras razoáveis restrições de "tempo, lugar, ou modo" seriam sustentáveis, mas somente se elas fossem "justificadas sem referência ao conteúdo do discurso regulado". 16 17

O Tribunal reconheceu dois princípios finais de jurisprudência da liberdade de expressão. Primeiro, quando "toda a base para a discriminação de conteúdo consiste inteiramente da absoluta razão de toda a classe de expressão ser proscritível, nenhum perigo significativo de idéia de um ponto de vista de discriminação existe. " Como exemplos, Scalia escreveu,

Um Estado pode optar por proibir apenas aquela obscenidade que é a mais patentemente ofensiva em sua lascívia – ou seja, aquela que envolve a maioria das exposições lascivas de atividade sexual. Mas não pode proibir, por exemplo, apenas obscenidade que inclui mensagens políticas ofensivas. E, o Governo Federal pode criminalizar apenas as ameaças de violência que são dirigidas contra o presidente, uma vez que as razões pelas quais as ameaças de violência estão fora da Primeira Emenda (que protege indivíduos do medo da violência, a partir da perturbação que gera medo, e da possibilidade que a ameaça de violência ocorrerá) têm força especial quando aplicada à pessoa do presidente. 18

Em segundo lugar, a Corte escreveu que uma base válida para tratamento diferente de acordo com uma subclasse de conteúdo definido de discurso proscritível é que a subclasse "passa a ser associada a determinados" efeitos secundários "do discurso, de

11 505 U.S. at 382-383, citing Chaplinsky v. New Hampshire12 505 U.S. at 38313 505 U.S. at 383-384, ênfase no original.14 505 U.S. at 384 (1940), ênfase no original.15 505 U.S. at 38516 Ward v. Rock Against Racism, 491 U.S. 781 (1989)17 505 U.S. at 38618 505 U.S. at 388, citações internas omitidas e ênfase no original.

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modo que" a regulação é “justificada sem referência ao conteúdo do ... discurso"19

Como exemplo, o Tribunal escreveu que um estado federado poderia permitir todos os espetáculos obscenos vivos, exceto os que envolvem menores de idade. 20

Na aplicação destes princípios à Lei local do Crime de Preconceito-motivado de São Paulo, o Tribunal concluiu que ela era prima facie inconstitucional. Scalia explicou a fundamentação, ad littera,

Embora a frase na lei "desperta alarme, raiva ou ressentimento em outros", tem sido limitada pela construção da Suprema Corte de Minesota para alcançar apenas os símbolos ou exposições que correspondem à "palavras de luta", os restantes, os termos não modificados deixam claro que o lei local aplica-se apenas à "palavras de luta" que insultam ou provocam violência "com base em raça, cor, credo, religião ou sexo". Exposições que contenham insultos abusivos, não importa o quão cruel ou grave, são permitidas a menos que eles sejam dirigidos a um dos temas desfavorecidos especificados. Aqueles que desejam usar "palavras de luta" em conexão com outras idéias – para expressar hostilidade, por exemplo, com base na afiliação política, associação a sindicato ou homossexualidade - não são cobertos. A Primeira Emenda não permite à cidade de St. Paul impor proibições especiais sobre os oradores que expressam opiniões sobre temas desfavorecidos. 21

"O Tribunal passou a explicar que, além de constituir uma restrição de

conteúdo fundamentalmente não permitida, a Lei Local constitui um ponto de vista baseado na discriminação, pronunciando:21

Como explicado anteriormente, ver supra, em 386, a razão pela qual as palavras agressivas são categoricamente excluídas da proteção da Primeira Emenda não é que o seu conteúdo comunica qualquer idéia particular, mas que o seu conteúdo encarna um modo particularmente intolerável (e socialmente desnecessário) de expressar qualquer idéia que o orador deseja transmitir. St. Paul não selecionou um modo especialmente ofensivo de expressão – não tem, por exemplo, selecionado para a proibição apenas as palavras de luta que comunicam idéias de modo ameaçador (em oposição a uma mera idéia obnóxia). Pelo contrário, tem proscrito palavras de luta que de maneira geral comunicam mensagens de gênero, racial ou intolerância religiosa. Seletividade destes tipos cria a possibilidade de que a cidade pretenda impor desvantagens à expressão de idéias particulares. Essa possibilidade seria por si só suficiente para tornar a lei local supostamente inválida, mas os comentários e concessões de St. Paul, neste caso, elevam a possibilidade à certeza.

" "Exposições que contenham algumas palavras, como insultos raciais, serão

proibidas para proponentes de todos os pontos de vista, considerando que as palavras de luta que "per se não invocam raça, cor, credo, religião, sexo ou – calúnias sobre a mãe de uma pessoa, por exemplo – que aparentemente seriam ad libitum utilizáveis nos cartazes daqueles que argumentam em favor da cor, raça, etc., tolerância e igualdade, mas não poderiam ser usadas por adversários dos palestrantes".21 O Tribunal concluiu que "St. Paul não tem essa autoridade para licenciar um lado de um debate para combater livremente, exigindo o outro a seguir as regras do Marquês de Queensberry".21

O Tribunal concluiu por escrito "Que não haja engano sobre a nossa crença de que a queima de uma cruz no jardim da frente de alguém é condenável. Mas St. Paul

19 505 U.S. at 389, cotejar Renton v. Playtime Theatres, Inc., 475 U.S. 41 (1986) (ênfase no original). Note-se a cláusula ‘material’ do princípio de isonomia em sua derivação dedutiva (demonstração) na qualidade de instância do princípio de eqüidade de Aristóteles.20 505 U.S. at 38921 505 U.S. at 391

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tem os meios suficientes à sua disposição para evitar esse tipo de comportamento, sem colocar a Primeira Emenda no fogo cruzado".22

22 505 U.S. at 396. Note-se que a decisão da Suprema Corte dos EUA funda-se tacitamente no princípio do maior dano imediato. A primeira Emenda e, por conseguinte, os limites estatais na intromissão na reserva de liberdade do cidadão (relembre-se o modelo individualista de Teoria de Estado) estariam comprometidas. Males mediatos poderiam ser tratados se e quando ocorressem.