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RAYMUNDO NINA RODRIGUES E AS TEMPORALIDADES DO IMPRESSO: PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE JORNAIS E REVISTAS A PARTIR DO OLHAR DE UM MÉDICO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA JOELMA TITO DA SILVA 1. Prelúdio O trabalho que ora realizamos constitui um desdobramento do estudo desenvolvido na tese “Nina Rodrigues: os náufragos do tempo e a esfinge do futuro”, cujo mote principal são as camadas temporais que se entrecruzam e se separam na barafunda de experiências sobre o presente, passado e futuro, num esforço de entender como o tempo foi mobilizado de diversas maneiras nas construções de um médico-cientista obcecado pelo futuro, no embate com a duração lenta atribuída ao Outro (Fabian: 2013), entendendo o presente como lugar da ação (Koselleck: 2006; 2014). Especialmente a partir dos anos de 1930, este posicionamento de Nina Rodrigues foi definido pelos seus leitores como pessimista, uma categoria temporal correspondente ao desencantamento produzido pela certeza de que o vir-à-ser estaria marcado pela decadência motivada pela mestiçagem. Embora não seja o objetivo do presente artigo enfrentar, de forma mais intensa, a questão acima, deve-se enfatizar que a problemática das experiências temporais perpassará toda a construção do texto, cujo objetivo é analisar a relação entre a circulação de impressos e o tempo a partir das considerações de Raymundo Nina Rodrigues sobre a imprensa brasileira na Primeira República. “Um dos mais racistas de nossos pensadores racistas”, como afirmou a antropóloga Mariza Correa (2010), Nina Rodrigues interessou-se profundamente pelos jornais e revistas: dedicou-se à atividade editorial, especialmente nos primeiros anos de carreira como lente da Faculdade de Medicina da Bahia, escreveu artigos, traduziu pesquisas internacionais no âmbito da imprensa médica brasileira, publicou estudos em anais europeus de Medicina Legal e Antropologia Criminal e foi, também, um consumidor dessas produções externas. Quanto às folhas de ampla divulgação, era leitor frequente de jornais diários como o Correio de Notícias, A Bahia, O Diário da Bahia e o Jornal de Notícias, razão pela empregou Trabalho apresentado ao XXIX Simpósio Nacional de História Contra os Preconceitos: história e democracia, realizado na Universidade de Brasília, de 24 a 28 de julho de 2017. Doutora em História Social pela Universidade Federal do Ceará e servidora do Instituto Federal do Rio Grande do Norte.

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RAYMUNDO NINA RODRIGUES E AS TEMPORALIDADES DO IMPRESSO:

PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE JORNAIS E REVISTAS A PARTIR DO OLHAR

DE UM MÉDICO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA

JOELMA TITO DA SILVA

1. Prelúdio

O trabalho que ora realizamos constitui um desdobramento do estudo desenvolvido na

tese “Nina Rodrigues: os náufragos do tempo e a esfinge do futuro”, cujo mote principal são as

camadas temporais que se entrecruzam e se separam na barafunda de experiências sobre o

presente, passado e futuro, num esforço de entender como o tempo foi mobilizado de diversas

maneiras nas construções de um médico-cientista obcecado pelo futuro, no embate com a

duração lenta atribuída ao Outro (Fabian: 2013), entendendo o presente como lugar da ação

(Koselleck: 2006; 2014). Especialmente a partir dos anos de 1930, este posicionamento de Nina

Rodrigues foi definido pelos seus leitores como pessimista, uma categoria temporal

correspondente ao desencantamento produzido pela certeza de que o vir-à-ser estaria marcado

pela decadência motivada pela mestiçagem.

Embora não seja o objetivo do presente artigo enfrentar, de forma mais intensa, a

questão acima, deve-se enfatizar que a problemática das experiências temporais perpassará toda

a construção do texto, cujo objetivo é analisar a relação entre a circulação de impressos e o

tempo a partir das considerações de Raymundo Nina Rodrigues sobre a imprensa brasileira na

Primeira República. “Um dos mais racistas de nossos pensadores racistas”, como afirmou a

antropóloga Mariza Correa (2010), Nina Rodrigues interessou-se profundamente pelos jornais

e revistas: dedicou-se à atividade editorial, especialmente nos primeiros anos de carreira como

lente da Faculdade de Medicina da Bahia, escreveu artigos, traduziu pesquisas internacionais

no âmbito da imprensa médica brasileira, publicou estudos em anais europeus de Medicina

Legal e Antropologia Criminal e foi, também, um consumidor dessas produções externas.

Quanto às folhas de ampla divulgação, era leitor frequente de jornais diários como o

Correio de Notícias, A Bahia, O Diário da Bahia e o Jornal de Notícias, razão pela empregou

Trabalho apresentado ao XXIX Simpósio Nacional de História – Contra os Preconceitos: história e democracia,

realizado na Universidade de Brasília, de 24 a 28 de julho de 2017. Doutora em História Social pela Universidade Federal do Ceará e servidora do Instituto Federal do Rio Grande

do Norte.

fragmentos de textos jornalísticos como fontes de pesquisa e fez usos particulares desses meios

a fim de divulgar o consultório, onde atendia pacientes com moléstias cardíacas, tornar públicas

polêmicas travadas com seus pares e divulgar fatos pertinentes a sua prática de professor e

médico. No escopo deste artigo sugerimos que o “dr. Nina”, tal como era conhecido na

Faculdade..., analisava questões acerca da imprensa estruturando-as com durações semelhantes

ao do diagnóstico, de forma a identificar o corpo sadio ou o corpo doente, o agente intimo

responsável pela gênese da doença e seus ritmos de evolução.

Sendo assim, trabalhamos com a hipótese de que, ao pensar os impressos na sua relação

com a sociedade brasileira, Nina Rodrigues o fez a partir de uma experiência de temporalidade

fundada na lógica do diagnóstico médico: se, por um lado, periódicos (como Gazeta Médica da

Bahia) comportavam a maravilha da disseminação do conhecimento, mas definhavam, pois no

Brasil não haveria uma classe médica efetivamente ligada em redes; por outro lado, jornais

como o Jacobino (Rio de Janeiro), de caráter profundamente político, representariam o perigo

da difusão de ideias consideradas patológicas e radicais, acelerando o processo de (de)formação

de indivíduos degenerados e socialmente segregados. Havendo, segundo essa chave de leitura,

um descompasso entre a modernidade dos impressos, carregados de aceleração, e o ritmo lento

e doentio da sociedade brasileira. As hierarquias temporais, expressas através de hierarquias

raciais e espaciais explicariam, para Nina Rodrigues, as razões da minguada produção e

circulação do jornalismo médico e, por outro, lado identificariam as causas dos perigos da

proliferação de jornais políticos, quando estes atingiam leitores não ideais, egressos do mundo

dos não-leitores.

2. A imprensa especializada: o tempo acelerado dos textos

Editar jornais, assinar e ler periódicos, publicar artigos e produzir textos que se

movimentavam sinuosamente por diferentes publicações constituíam atividades integrantes da

vida do denominado “homem de ciência”, entendido como masculino, ativo e reflexivo. A partir

dessa relação com os impressos a carreira científica e professoral estava em processo constante

de configuração e reconfiguração. Em notas, memórias e artigos, os letrados demarcavam

posições, reforçando sua autopromoção e criando espaços para a intervenção social. Assim, o

caráter durável dos textos em sua materialidade e a temporalidade parcelada e regular de suas

publicações serviam a elaboração permanente da imagem e do lugar ocupado pelos ditos

homens de saber.

Pois bem, se é verdade que nos primeiros anos de República houve um refluxo na

atividade de divulgação científica, relacionadas ao semelhante declínio no cenário internacional

(MASSARINI & MOREIRA, 2002: 52), não deixava de haver setores que militavam pela

imprensa profissional. Nesse sentido, como médico e professor, Nina Rodrigues mergulhava

no mundo das palavras escritas e das letras impressas exercendo funções editoriais e produzindo

textos científicos, que fazia circular por diferentes jornais. Entre 1891 e 1893, atuou como editor

da Gazeta Médica da Bahia (GMB) e esteve ativamente envolvido com as atividades da

imprensa e das sociedades profissionais. Talvez por essa razão, a maioria de seus estudos tenha

sido publicada nos números do periódico baiano durante os primeiros anos de sua carreira.

Entre 1888 e 1893, Nina Rodrigues apresentou ao público especializado vinte e cinco

textos, dos quais dezenove foram impressos na GMB. Além disso, dois artigos editados na GMB

figuraram, também, em O Brazil Médico, são eles: Os mestiços Brasileiros (1890) e A

Organização do Serviço Sanitário no Brasil (1891); há ainda a publicação do opúsculo

Fragmentos de patologia intertropical que saiu pela Lythographia Tourinho de Salvador em

1892 e reúne os artigos publicados na GMB sobre o beribéri, problemas que afetam o sistema

nervoso (1890) e os aneurismas ocorridos nas veias cardíacas (1891).

A velha Gazeta instalada no Norte da República representava um espaço de

sociabilidade para os médicos vinculados à Faculdade de Medicina da Bahia e à Santa Casa de

Misericórdia do Estado. Nina Rodrigues ocupou lugar de destaque como editor-chefe do

periódico por dois anos. Nesse momento, envolveu-se diretamente nas ações pela manutenção

da imprensa especializada e em prol do funcionamento da Sociedade Médica da Bahia, assunto

que o ocupava nos editoriais e nas notas publicadas na GMB. No editorial comemorativo do 23º

aniversário do periódico, Nina Rodrigues enfatizava a função da imprensa como mecanismo de

circulação, tradução e resenha de trabalhos estrangeiros:

Na sua qualidade embora de revista mensal, a Gazeta mantem o desejo de trazer o

público medico em dia com o movimento scientifico estrangeiro, não só pela

transcripção integral dos trabalhos mais notáveis, como pela resenha itelligente dos

trabalhos de suas associações e imprensa médica (GMB, 1891: 4).

A imprensa e as associações médicas nacionais e internacionais deveriam figurar numa

publicação, cujo objetivo declarado era de atuar diretamente na discussão sobre o ensino

ofertado nas escolas médicas brasileiras e tratar das atividades clínicas. Pela natureza acadêmica

que assumia, a GMB possuía público restrito e especializado, composto por clínicos,

farmacêuticos, professores e estudantes de medicina e farmacologia. Assumia como princípio

básico a atualização de seus leitores acerca da produção científica no Brasil e em várias partes

do mundo. Além disso, Nina Rodrigues afirmava que um periódico de tal gênero deveria atuar

para romper com o isolamento que, segundo o redator, marcava a produção científica no país

de modo a produzir uma “larga difusão d’esses conhecimentos”. Porém, Nina Rodrigues

mostra-se duvidoso quanto à efetiva articulação da imprensa médica baiana no sentido de inserir

seus profissionais nas redes amplas das comunidades científicas.

Com o objetivo de resolver tal questão, o redator anunciou a abertura de uma nova

sessão nas páginas do periódico, cuja finalidade seria a produção análises bibliográficas de

estudos nacionais publicados em brochuras e na imprensa brasileira.

Tendo sido criada por uma associação de facultativos em julho de 1866, composta

por Virgílio Damásio, Silva Lima e Pacífico Pereira, a GMB era descrita na Memória do Estado

de 1893 como uma “antiga e conceituada publicação scientífica”, de periodicidade mensal,

editada por fascículos, contendo entre 60 e 64 páginas com uma tiragem de 500 exemplares por

número, semelhante ao montante verificado na publicação da Revista do Ensino Primário. Isso

demonstra o alcance restrito dessas revistas apresentadas enquanto “científicas e literárias”,

deliberadamente direcionadas para um leitor interessado em assuntos acadêmicos. Se no

primeiro caso a promoção da ciência médica se transforma em justificativa para a publicação

do periódico para um público especializado, no segundo, o objetivo era promover as discussões

pedagógicas, circulando no meio do professorado.

Com base nos dados apresentados na Memória Histórica do Estado da Bahia de 1893

de Francisco Vicente Viana e José Carlos Ferreira, publicada por ordem de Joaquim Manoel

Rodrigues de Lima, então governador do Estado, podemos visualizar o lugar ocupado pela

Gazeta entre os jornais de maior circulação de S. Salvador, conforme o quadro abaixo:

Tabela 1 – Circulação dos jornais em Salvador (1892)

Jornal Periodicidade Tiragem

Jornal de Notícias Diária 6.000

Diário da Bahia Diária 4.000

Correio de Noticias Diária 4.000

Diário de Notícias Diária -

Leituras Religiosas Semanal 4.000

Estado da Bahia - 1.000

Monitor Catholico Semanal 1.000

Gazeta Médica da Bahia Mensal 500

Revista do Ensino Primário Mensal 500

Echo da Mocidade – Grêmio Literário e Científico Quinzenal -

A Verdade – Igreja Baptista Mensal - Fonte: VIANNA & FERREIRA, 1903.

Esse quadro constitui uma representação parcial dos periódicos que circulavam naquele

ano na capital Baiana. Mesmo os escritores da Memória reconheceram ser uma atividade longa

enumerar as “muitas outras publicações hebdomadárias”. As folhas editadas e impressas em S.

Salvador circulavam por outras localidades do Estado, convivendo com publicações locais. A

dimensão apresentada pela potencial difusão dessas folhas pode ser avaliada pelo comentário

feito na Memória acerca do Diário de Notícias, fundado em 1875 e apontado como “o primeiro

jornal noticioso, imparcial, completamente neutro nas luctas partidárias que se publicou em

todo o Brazil; bem como foi o primeiro que iniciou o serviço telegraphico diário, de todas das

partes do mundo civilisado”. Em 1892 o Correio Geral contabilizava o volume de maços de

jornais em na capital baiana em 312.122 recebidos e 304.658 expedidos (VIANNA &

FERREIRA, 1903: 400-1).

A Sociedade Médica da Bahia criava estratégias afim de fazer circular a circulação sua

Gazeta de tiragem mensal. Em 1893 a redação da GMB divulgou a tabela de valores

estabelecida para as diferentes modalidades de assinaturas semestrais e anuais, expondo as

estratégias de seus produtores para atrair diferentes perfis de leitores. Estudantes e clínicos da

capital e de outras localidades e estudantes formavam o público geral da revista. Aqueles que

moravam fora de S. Salvador e desejassem receber os fascículos deveriam enviar a quantia de

6 mil reis, para a assinatura semestral, ou 12 mil réis, referentes à anuidade adiantada, em

correspondência registrada ou em vale postal pelo Correio, endereçada ao redator-gerente que

entre 1891 e 1893, era Nina Rodrigues.

Sem o acréscimo do valor referente às postagens, o custo da assinatura do periódico era

menor para os moradores da capital, ficando para eles fixado em 5 mil ou 10 mil réis, a depender

do período que pretendiam receber o jornal. Facilitava-se a aquisição do periódico para os

estudantes de medicina e áreas afins. Para os acadêmicos a taxa era abatida em mil réis por

semestre. Ao trabalhar com a Literatura médica, a publicação possuía um caráter pedagógico e

prestava-se ao consumo não apenas dos profissionais clínicos e professores, mas, igualmente,

dos alunos dos cursos de medicina e farmacologia.

Além de criar condições de difusão no Brasil via serviço postal, a Gazeta projetava-se

ao consumo internacional e contava com os serviços de H. Mahler, agente de vendas em Paris,

na Rua Richer, n. 23. O envio de exemplares deste e de outros jornais para o além-mar e o

recebimento de publicações internacionais competia ao escaler da Guarda-moria da alfândega

que, não raro, atrasava a distribuição das correspondências (GMB, 1891: 278).

Sobre o serviço de impressão, a GMB foi produzida até meados da década de 1890 pela

Litho-Typographia de João Gonçalves Tourinho responsável por diversas publicações que

circulavam na cidade. O estabelecimento de Tourinho produzia material impresso para grupos

profissionais e privados, que laçavam almanaques, livros científicos, publicações religiosas,

jornalísticas, diários de viagem etc. Como também para os órgãos político-administrativos da

Província e, posteriormente, do Estado da Bahia. Entre o material oficial reunido e impresso

nesta Litho-Typographia estão os documentos produzidos pela Assembleia Legislativa da

Bahia e os arquivos de instituições públicas como a Santa Casa de Misericórdia.

3. A patologia da Gazeta Médica da Bahia

No período em que assumiu as funções de redator-chefe, Nina Rodrigues assumia como

missão fundamental da imprensa especializada aproximar a “classe médica” nacional pelas

páginas da Gazeta. Segundo ele:

Não é uma nova phase toda a actividade que se prepara assim para a Gazeta Medica

condemnada ainda ao isolamento que tem vivido; é ao contrário a esperança de que a

classe medica brazileira tenha reformado finalmente, como já era tempo, os seus

antigos hábitos de retrahimento e de indifferença e esteja preparada para receber e

apoiar os esforços dos que têm trabalhado sempre pelos seus creditos e pelos creditos

de suas tradicções (Idem).

Há aqui o diagnóstico do médico sobre a patologia que, acreditava, acometia as páginas

impressas na velha gazeta. O problema estava localizado no estado de “isolamento” no qual se

encontrava a Sociedade Médica da Bahia, responsável pela edição e publicação do periódico

desde 1888. Isolamento científico e descaso, neste duplo Nina Rodrigues julgava encontrar a

origem das dificuldades enfrentadas pela imprensa médica no Brasil, particularmente na Bahia,

para cumprir sua função pedagógica e fazer circular o conhecimento científico:

Por entre as ovações ruidosas e deslumbrantes com que as constantes mutações

políticas que tudo esterilisam n’este paiz celebram o triumpho e as ephemeras glórias

de um dia, d’aqueles que no dia seguinte serão condenados ao esquecimento pelo

desfavor da última encenação, a Gazeta Médica, obscura e impassível, prossegue sua

missão superior de doutrinar toda a classe social, e de plantar os gémens de uma

organização científica, fecunda e duradoura. Não desllumbram ofuscantes

scintillações com que, por momentos, se libram no espaço esses meteoros de nova

espécie, mas não a commove igualmente d’elles o celer e fatal ocaso (Idem: 2).

Diante do “fatal ocaso”, o conhecimento científico adormece no horizonte como a noite.

Nina Rodrigues emprega tal metáfora para demonstrar que a atividade de produção do

conhecimento, entre elas a produção de jornais especializados como a GMB, existia no país às

duras penas e estava condicionada a atividade de alguns estudiosos, sem compor, portanto, uma

comunidade científica nacional. A crítica de Nina Rodrigues não se concentrava, apenas no

nível da produção dos jornais, mas, também na sua leitura:

A Gazeta Médica da Bahia, resumindo toda a história da nossa literatura médica no

quarto de século de sua existência, está destinada a dar ás futuras gerações o extranho

espectaculo de uma collectanea de trabalhos médicos nacionaes, accumulados pela

boa vontade de muito pouco, quase que sem conhecimento de muitos contemporâneos

a quem a grave incumbência uma assimilação parasitária dos trabalhos estrangeiros

distrahiu sempre do estudo do que nos pertence, assim como das preocupações de uma

constituição regular de boas escolas médicas futuras (Idem).

Atuando ativamente na GMB até 1893 não é estranho que a produção científica de Nina

Rodrigues passasse, sobretudo, por este periódico, conforme afirmamos anteriormente.

Todavia, além da GMB o médico participou da concepção e formatação de outros jornais

acadêmicos. Deste modo, em 1891 foi relacionado como integrante da comissão editora da

Revista dos Cursos da Faculdade em 1891, ao lado de Pacifico Pereira, Almeida Couto, Jose

Olympio e Deocleciano Ramos. Esse grupo redigiu os regulamentos da revista, cuja publicação

enfrentava dificuldades, uma vez que a diretoria da Faculdade afirmava não dispor de verbas

para financiar o empreendimento, como ocorrera anteriormente com a “Revista dos Cursos

Práticos” (Idem:92). Nina Rodrigues se valeu, mais uma vez, do noticiário da GMB para

lamentar os revezes enfrentados pelo projeto de publicação da Revista dos Cursos. Nesse

mesmo protesto, direcionou suas queixas para a situação de debilidade enfrentada pela

Sociedade Médica na Bahia e os problemas sofridos pela imprensa médica de forma geral:

É uma missão penosa a da imprensa médica n’este paiz sempre que procura despertar

o verdadeiro interesse pelo espírito de associação scientifica.

Parece que a Sociedade Medica da Bahia vai ter a sorte das outras sociedades medicas

que a precederam n’esta cidade.

Quase abandonada nos últimos tempos, pois que só a frequentavam já a meza e um

ou outro membro, por fim já por mais dous mezes que não se reúne mais. É que

qualquer obstáculo por mais insignificante que fosse e que bastaria o simples acordo

dos sócios para resolver deveria servir de pretexto a uma dissolução que tem como

verdadeira causa a conspiração da nossa indolência como uma indiferença e abandono

inconfessáveis. [...] Fechem-se, a sociedades scientíficas, suprima-se a imprensa

médica, desprezem-se os frutos da observação clínica, e não mereçam atenção os

estudos práticos; mas tenhamos consciência do nosso atrazo e a coragem precisa de

confessal-a, sujeitando-nos sem protestos que nada significam, à severidade do juízo

com que somos tratados de vez em quando (Idem).

A Sociedade Medica da Bahia não possuía patrimônio e se sustentava com recursos

parcos, advindos da contribuição mensal de seus membros efetivos no valor de mil réis. Nos

anos de 1890, a Sociedade contava com 50 sócios e 6 correspondentes, não possuía biblioteca

própria, e serviam-se de livros e revistas doados por seus integrantes (VIANNA & FERREIRA,

Op.cit.396). Entre janeiro de 1890 e dezembro de 1893, a GMB registrou a entrada de 33

publicações compostas, sobretudo, por teses defendidas nas Faculdades da Bahia e do Rio de

Janeiro, periódicos uruguaios e argentinos. Além de livros franceses. Embora as sessões

bibliográficas e as notas de recebimento de publicações demonstrem a pouca regularidade das

doações de materiais para o acervo da GMB, esses pequenos noticiários expõem as redes de

contato estabelecidas entre a Sociedade Médica Baiana e outras sociedades profissionais

formadas, especialmente, na capital federal e na França.

Se no futuro a esperança se debatia com o desalento, no presente vivia-se a certeza do

desprezo das instituições e da maioria dos profissionais pelas atividades científicas e seus

instrumentos de divulgação. O tema da “indiferença” dos médicos e das autoridades públicas

em relação aos trabalhos médicos brasileiros aparece em grande parte dos comentários

editoriais de Nina Rodrigues. Como exemplo podemos citar o elogio do médico ao

empreendimento do Dr. Carlos Costa, bibliotecário da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro

e pertencente à Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, responsável pela

publicação do Annuario Médico Brazileiro em 1891, um catálogo de dados bibliográficos sobre

a produção brasileira levantados nos anos de 1889 e 1890. Além de organizar o Annuario,

Carlos Costa publicou, em 1893 um catálogo sistemático em dois volumes, no qual classificou

por tema as 9.117 obras alocados pertencentes àquele estabelecimento de ensino no ano

anterior. Em 1895, esses dados foram complementados e a quantidade de publicações

catalogadas ultrapassou os 10 mil volumes (COSTA, 1893 & 1895). Para Nina Rodrigues o

trabalho do Dr. Carlos Costa na organização de acervos e divulgação dos trabalhos produzidos

pelos médicos brasileiros constituía mais um trabalho solitário, realizado pelo esforço

individual de um profissional. Mais uma vez, a temática da apatia da classe medica brasileira é

recolocada por Nina Rodrigues com o objetivo de enfatizar a dispersão dos médicos pelos vários

recantos do país e a formação de núcleos de atuação independentes, cuja comunicação interna

se estabelece de maneira precária, dificultando a disseminação e circulação dos trabalhos

produzidos pelas experimentações e observações de estudiosos brasileiros.

Em julho de 1893, a Gazeta noticiava o afastamento de Nina Rodrigues das funções de

gerente do periódico, em seu lugar assumiu Braz do Amaral. A nota não apresenta informações

precisas sobre os motivos do desligamento, resumindo-se apenas a sublinhar que o “illustrado

colega” havia comunicado à redação impossibilidade de permanecer no cargo.

4. O Jacobino e os leitores perigosos na Primeira República: o caso de Marcelino Bispo

Raymundo Nina Rodrigues – leitor de Cesare Lombroso, Alexandre Lacassagne e

Gabriel Tarde – publicou em 1899, na Revista Brasileira, um texto intitulado “O regicida

Marcellino Bispo”, no qual analisou os crimes contra líderes políticos arquitetados através da

confabulação entre dois indivíduos, do uso de jornais e da exacerbação das crenças místicas.

Nesse estudo procurava demonstrar suas hipóteses acerca da natureza epidêmica da loucura

coletiva que tem como embrião a associação entre duas pessoas, baseando-se nas discussões

sobre as patologias da multidão travadas em fins do século XIX.

O caso utilizado como mote para o estudo foi o atentado articulado contra Prudente de

Morais que culminou com a morte de um Marechal e tornou “desgraçadamente” famoso o

alagoano Marcellino Bispo de Mello, assaz leitor do jornal O Jacobino1. Nina Rodrigues

estabeleceu como problemática central de sua argumentação o alcance do poder de sugestão

oferecido pela imprensa e por líderes carismáticos sobre indivíduos diagnosticados, por ele, como

naturalmente propensos a desenvolver hábitos criminosos. O parecer do médico não estava

desligado dos amplos dilemas sobre a sociedade brasileira vividos em fins do século XIX.

A agitação política e uma concepção autoritária de nação caracterizaram os anos iniciais

da República, materializada na disputa pelo poder entre diferentes projetos políticos. Depois

dos primeiros presidentes militares, a chefia da nação foi assumida pelo paulista Prudente de

Morais, membro do Partido Republicano Federal, eleito com o apoio dos cafeicultores. O

primeiro governo civil que chegava ao poder depois de instalada a república viveu momentos

conturbados e teve que lidar com os ataques oriundos de diferentes grupos. De forma concreta,

sofria oposição dos “restauradores” monarquistas, para os quais a instabilidade

1 O atentado à Prudente de Morais ocorreu no dia 05 de novembro de 1897 e vitimou o Ministro de Guerra Carlos

Machado Bitencourt. Nos autos do processo foram interrogados líderes civis e militares suspeitos de participação

no ato, entre eles estava o vice-presidente da República, Manoel Vitorino.

experimentada pelo executivo poderia resultar na retomada do poder por militares. Enquanto

isso, os chamados “jacobinos” desconfiavam do governo e acreditavam que sua fragilidade

pudesse criar um ambiente propício para a atuação e vitória dos restauradores.

A ênfase no sucesso final da operação militar contra os moradores de Canudos (1897)

ajudaria a desmobilizar as movimentações desses grupos, conferindo legitimidade ao governo

de Prudente de Morais. O atentado sofrido pelo presidente ofereceu as condições favoráveis

para o fortalecimento do governo, possibilitando, inclusive, o decreto do estado de sitio no dia

12 de novembro (COSTA, 1999: 396-7; GONES, 2008: 290).

Nesse ambiente de disputa entre projetos de nação, Nina Rodrigues estudou o caso de

regicídio, sempre buscando mostrar-se distante de qualquer móvel político, o seu parecer

pretendia-se unicamente médico. Diante dessa constatação, pretendemos sugerir, neste pequeno

ensaio, que se o fato político serviu de mote para o escrutínio médico, objetivando diagnosticar

as causas concorrentes para o evento, no fundo, mal disfarçava as visões de mundo do cientista,

claramente inclinado a reafirmar posicionamento político contrário às ações dos jacobinos,

considerados radicais, e a legitimar a demarcação de diferenças profundas entre sujeitos

civilizados, capazes de ação refletida e de apropriação ativa da leitura, e existências primitivas,

incultas, caracterizadas pela passividade, cujo ingresso no mundo das letras ocorria de forma

inautêntica e perigosa. Pessoas, enfim, incapazes de ascender à cidadania e movidos pela

paixão. Eis o caso do alagoano, de origem indígena, antigo aluno da Escola Militar e anspeçada do

Exército, que tinha o improvável hábito de ler jornais e escrever poesias.

No diagnóstico acerca do estado de saúde mental do agressor, Nina Rodrigues

apresentava o homem responsável pelo atentado à Prudente de Morais como um jovem de 22

anos, cujo ato, cometido em pleno ritual de celebração da República vitoriosa diante dos

alegados últimos redutos da monarquia, fora arquitetado pela influência de um “violento

propagandista”. Sugestionado, Bispo converteu-se “no mais inconsciente instrumento do

crime”.

O caso de Marcellino Bispo transformava-se em objeto de curiosidade médica e conferia

a seus atos indício inequívoco de comportamento patológico, comum a um “degenerado

inferior” que funcionou como massa de manobra para os planos golpistas do meticuloso

Deocleciano Martyr, um Florianista radical, ex-integrante do Batalhão Tiradentes, presidente

do Clube dos Jacobinos e do Partido Jacobino, publicava suas ideias em um pequeno jornal,

alcunhado de O Jacobino, do qual foi criador e exercia a função de redator-chefe.

O impresso colocava em circulação as propostas e as bandeiras de luta de um grupo

radical de composição diversa, cuja maioria dos participantes era oriunda dos setores militares,

embora contasse com o apoio de intelectuais e políticos ligados às oligarquias estaduais (Idem:

97).

Para Nina Rodrigues, a leitura de O Jacobino alimentou o fanatismo inerente de Bispo

em torno dos projetos políticos de setores do Exército, crentes na existência de uma missão dos

militares para a nação, qualificada pelo médico como “falsa ou exagerada”. Posicionando-se

contra os “jacobinos”, Nina Rodrigues concluía que as proposições desse grupo político, de

atuação efetiva no Rio de Janeiro, foram passivamente incorporadas pelo “degenerado

hereditário”, mestiço de índios do antigo aldeamento Urucu, situado em Alagoas”. A descrição

dos médicos da polícia designados para avaliarem Bispo na prisão diferia ligeiramente daquela

oferecida por Nina Rodrigues. Para estes, o prisioneiro era um homem de: “estatura mediana,

pardo, quase branco, de dentes alvíssimos e musculatura vigorosa” (GAZETA DA TARDE,

1897: p.1). O sujeito “quase branco” descrito no relato médico-policial era de ascendência

indígena, herança ressaltada por Nina Rodrigues para provar, de forma causal, a predisposição

de Bispo à sugestão.

Além disso, em análise das fotografias e gravuras nas quais aparecia o assassino suicida,

o médico apontava um indício de que fora Bispo, essencialmente, um degenerado: a

proeminência de sua mandíbula. Segundo o universo de análise de Nina Rodrigues, um dos

estigmas físicos indicadores da predisposição criminosa ou mórbida. O impulso classificatório

lançava Nina Rodrigues ao esquema elaborado por E. Régis para definir as características dos

“regicidas” típicos, através da regularidade de comportamentos patológicos e estigmas

degenerados condicionantes da ação criminosa e violenta. Estaria, então, Bispo encaixado nesta

categoria por critérios de idade e por laços hereditários. A natureza psíquica degenerada se

expressaria, dessa forma, pelos seguintes elementos:

Desequilíbrio mental: Bispo seria, antes de tudo, um fraco;

Instabilidade doentia: Sempre em fuga, deixou a casa em Muricy/AL aos 15 anos e não

se fixava em trabalhos e lugares. Chegou ao Rio de Janeiro em 1896, um ano antes do

crime;

Misticismo exacerbado e disposição para executar o atentado, cujo epílogo fora o

suicídio do assassino.

Nina Rodrigues considerava Marcellino Bispo um degenerado nato, predisposto à

exaltação mística e que, em “sua preferência pela carreira militar” localizava-se o “germen da

orientação para o fanatismo pelo exército e pelo marechal Floriano”. Era, enfim, um sujeito

passivo à sugestão jornalística com “tendências sonhadoras e poéticas” (NINA RODRIGUES,

1939: 178). O leitor – diagnosticado pelo crivo do médico como degenerado – seria portador

de uma personalidade passiva e súcuba. Bispo foi descrito, dessa forma, enquanto

femininamente predisposto a constituir-se em “prisioneiro moral do primeiro aventureiro”. Nas

palavras de Nina Rodrigues, Bispo possuía:

Inteligência acanhada, instrução rudimentar, affectividade mórbida que lhe abria o

coração a todas as suggestões em que entrasse uma solicitação de aparência generosa

aos seus ideais confusos de grandeza pátria, facilmente convertido pelo ambiente em

um fanático do marechal Floriano, e possuindo toda a violência agressiva de um

degenerado e hereditário, estava ele admiravelmente talhado para se constituir

prisioneiro moral do primeiros aventureiro de habilidade e sem escrúpulos, que delle

quizesse fazer um instrumento perigoso explorando essas tendências sentimentais

(Idem: 168).

Nina Rodrigues julgava que, enquanto Bispo agia como um súcubo criminoso de

comportamento mental passivo, frágil, ascendente e facilmente manipulável, propenso ao

fanatismo, Deocleciano Martyr, também classificado como criminoso e degenerado, ocupava

posição de íncubo. Teria personalidade dominante e era a representação do sujeito patológico

ativo, de personalidade masculina e destituída de escrúpulos, conhecedor das artimanhas da

manipulação. O médico o adjetivava como “inteligente” e “astuto”, concluindo que Martyr teria

aproveitado habilmente a conturbada fase política que agitava o “espírito público” para fazer

valer seus ideais exaltados e sua convicção sobre o papel dos militares na salvação pública.

Nessa chave de leitura, ele seria capaz de mobilizar esperanças, explorar o entusiasmo da

“mocidade das escolas civis e militares”, de animar os degenerados como Marcellino Bispo.

Diocleciano Martyr teria, enfim, pleiteado “a chefia dos sentimentos florianistas, fazendo tudo

para desvirtual-os, convertendo-os numa seita intolerante” e utilizado o jornal por ele editado

como instrumento político para arregimentar adeptos à sua causa (Idem:167-8).

O Jacobino disseminaria ideias consideradas perigosas a um público manipulável,

composto por jovens exaltados e homens degenerados que, por ventura soubessem ler. O hábito

da leitura de jornais foi destacado pelos policiais responsáveis pelo interrogatório de Bispo na

cadeia. Frequentando o mundo da leitura fluída dos jornais, o preso se dizia inocente e revelava,

segundo a polícia, “alguma inteligência, rebatendo com argumentos certas objecções que fazem

as suas negativas” (GAZETA DA TARDE, 1897: 1).

Bispo aparece em Nina Rodrigues como um receptor facilmente seduzível por ideias

sentimentais transformadas em texto panfletário. Leitores perigosos, seduzíveis por estímulos

vários, de cérebros acanhados, de mentes débeis, de compreensão inautêntica, indivíduos sem

qualidade que, uma vez colocados frente à multiplicidade de excitações textuais e imagéticas,

representavam um perigo para as elites tradicionais e para a paternal crítica social, angustiadas

diante da proliferação de leitores que reconfiguravam o texto de formas inéditas. Para Jacques

Rancière esse debate foi fortemente articulado no final do século XIX com o objetivo de

identificar a natureza da recepção e apropriação de textos no contexto de proliferação dos

leitores não ideais de origem, de corpo, enfim, de lugar totalmente opostos à representação de

uma elite letrada (RANCIÈRE, 2010: 50). Marcelino Bispo nos aparece aqui como uma dessas

ameaças.

O perigo da leitura patológica e desvairada através dos romances fora ressaltada pelo

médico Pedro Napoleão Chernoviz (PINHEIRO FILHO, 2014: 98). Tal como os leitores

perigosos entravam em contato com os romances que se espalhavam pelos folhetins em

periódicos, o Marcellino descrito por Nina Rodrigues encontrara estímulo na leitura dos jornais,

e os lia como uma figura deformada, vinda do mundo dos não leitores, passivo, ingênuo,

manipulável pelas letras redondas, incapaz de ação refletida.

Para Nina Rodrigues, a presença estimulante do mundo das letras diferia o caso de

Marcellino Bispo daquela ocorrida com a disseminação epidêmica do delírio nas multidões,

como teria ocorrido em Canudos, no qual os líderes carismáticos e vesânicos sugestionam

séquitos de fanáticos iletrados em peregrinações, jejuns, formavam sociedades com Leis

particulares etc. No âmbito dos crimes políticos, a disseminação de ideias peregrinava com as

páginas impressas, com a escrita, com a letra, influenciando leitores atavicamente delirantes.

Sobre a produção e o consumo das páginas impressas no jornal carioca, Nina Rodrigues não

tergiversava e concluía: “Pois bem, O Jacobino de Deocleciano Martyr tinha seu público, todo

indicado pela grande lei da segregação social: era escrito para os Marcellinos Bispos”. A

predisposição física hereditária estava associada, assim, às questões propriamente sociais a

colocar na obscuridade uma massa de pessoas segregadas. Nestas condições, não fora difícil

para o redator chefe do jornal, radical opositor ao governo civil de Prudente de Morais,

mobilizar um público conhecido e segregado, navegando através do mundo das palavras

comuns e sentimentais, de forma a adaptar a linguagem de seu jornal para falar às mentes frágeis

por meio de palavras de ordem e termos vulgares.

Nina Rodrigues propunha que a crença nas afirmações impressas e nas “letras redondas”

implicava na existência de um público/leitor natural e socialmente passivo, manipulável de tal

forma a absorver as ideias marcadas nas páginas intencionalmente projetadas pelo redator.

Nesta interpretação, o consumidor do texto possui como referências anteriores apenas sua

existência crédula nas forças sobrenaturais, utilizada como campo aberto para a nova veneração.

A declaração atribuída à Bispo na prisão ao ser interrogado, na qual afirmava ser a sua religião

a “ do Marechal Floriano”, servia para confirmar esta assertiva e reforçava, ainda mais, nos

meios políticos a figura heroica de Prudente de Morais.

5. Considerações finais:

Escolhemos, para fins desse artigo, dois momentos em que Nina Rodrigues posiciona-

se de forma mais direta em relação à imprensa brasileira. No primeiro, tratamos dos primeiros

anos de docência na Faculdade de Medicina da Bahia, quando exerceu função de editor-chefe

da Gazeta Medica da Bahia e utilizou os editoriais do periódico para tecer críticas à imprensa

especializada. No segundo analisamos o artigo de 1899 acerca do regicida Marcelino Bispo,

leitor frequente do jornal O Jacobino. Dos dois lados são identificadas patologias que, segundo

a concepção de Nina Rodrigues, dizem sobre o descompasso temporal do Brasil em relação a

nações vistas como civilizadas. Se por um lado, denunciava a pequena produção da apática

classe médica, transformando os jornais especializados em coletânea de pesquisas estrangeiras,

(posição que não o singularizava na Primeira República), por outro, havia a atividade da

imprensa política poderia encontrar-se com leitores perigosos e atávicos. Assim, o texto

científico passa a servir a um projeto político autoritário, a partir da qual colocava-se em

suspeição as razões mobilizadoras da ação política de indivíduos socialmente segregados,

legíveis a penas a partir da linguagem policialesca e do escrutínio da medicina legal. Nas duas

situações subjaz a questão do tempo. Nina Rodrigues parte de uma temporalidade repartida e

hierarquizada entre a aceleração do tempo moderno (o ideal) e o compasso lento do Brasil “real”

que, segundo o médico, estava repartido entre diferenças raciais, sociais e regionais, não

chegando a constituir-se enquanto povo.

6. Referências e fontes

COSTA, Carlos. Annuário Médico Brazileiro. Rio de Janeiro: H. Lombaerts & Comp., 1893.

______. Annuário Médico Brazileiro. Rio de Janeiro: Typ. e Lith. de Carlos Shimidt, 1895.

COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo:

Fundação Editora da Unesp, 1999.

GONES, Amanda Muzzi. Monarquistas restauradores e jacobinos: ativismo político. Revista

Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 21, n. 42, p. 290, jul-dez. 2008.

GAZETA DA TARDE. Rio de Janeiro, ano XVIII, n.15, p.1, nov/1897.

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MASSARINI, Luisa, MOREIRA, Ildeu de Castro; BRITO, Fátima (Orgs.). Ciência e público:

os caminhos da divulgação científica no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Ciência – Centro

Cultural de Ciência e Tecnologia da UFRJ. Fórum de Ciência e Cultura, 2002.

NINA RODRIGUES, Raymundo. As collectividades anormaes. Rio de Janeiro: Civilização

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PINHEIRO FILHO, José Humberto Carneiro. Um lugar para o tempo dos letrados: leituras,

leitores e a Biblioteca Provincial do Ceará na segunda metade do século XIX. (Dissertação).

Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2014.

RANCIÈRE, Jacques. El espectador emancipado. Buenos Aires: Manantial, 2010.

VIANNA, Francisco Vicente; FEREIRA, José Carlos. Memória sobre o Estado da Bahia.

Salvador: Diário da Bahia, 1903.