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(RE) AFIRMAÇÕES E (RE) DESCOBERTAS: A NATUREZA DA CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO INTEGRAL NOS CENTROS INTEGRADOS DE EDUCAÇÃO PÚBLICA (CIEPS) Danielle Portilho Muffareg Bosco Faculdade Cenecista da Ilha do Governador (FACIG) Resumo: Este ensaio apresenta um recorte de nossa dissertação de mestrado, cujo fragmento examina a análise histórica realizada e pautada em uma ancoragem documental nos arquivos que registraram grande parte da memória e do legado deixado pelos CIEPs e pela proposta de educação (integral em tempo integral) ali empreendida, a fim de pinçar elementos e indicadores que nos permitisse identificar a natureza da concepção de educação integral proposta pelo Programa Especial de Educação no Estado do Rio de Janeiro. O nosso objetivo foi revisitar e redescobrir elementos político-ideológicos que direcionaram as concepções que embasaram a prática educativa do Programa com vistas a espelhar experiências empreendidas nesse projeto, buscando compreender sua proposta educacional. Nessa direção, elegemos dois documentos historicamente significativos para facilitar a busca pelas respostas às questões propostas e propusemos, metodologicamente, analisar o conteúdo desses documentos em função do contexto histórico-político em que foram elaborados. Wallerstein (2002) foi nossa referência para clarificar o entendimento sobre os três sistemas político-ideológicos que tricotomizaram o mundo nos últimos três séculos: o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo. Nossos resultados indicaram que a proposta pedagógica e concepção de educação integral dos CIEPs transitaram em pilares liberais e socialistas, criando, por vezes, antíteses que levaram à construção de sínteses, ora conflitando-se, ora articulando discursos e ações, constituindo, assim, o fundamento da concepção de educação integral do projeto. Palavras-chave: CIEP; educação integral; horário integral. INTRODUÇÃO Desde a inauguração dos primeiros Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), no Estado do Rio de Janeiro, no ano de 1985, muito se escreveu e debateu sobre diferentes aspectos do Programa Especial de Educação (PEE) que os implementou. Desenvolvido na vigência dos governos do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e representado pela figura do então Governador Leonel Brizola, este Programa, apesar das inúmeras críticas recebidas, constituiu-se como marco no cenário educacional fluminense e, ainda hoje, observamos tentativas de implantação de escolas semelhantes ao que propunha Darcy Ribeiro, seu idealizador. Os CIEPs são escolas públicas que foram construídas, no estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de abrigar uma proposta de educação integral em tempo integral. Eles foram implantados sob a forma de Programas Especiais de Educação (PEE), sendo o primeiro Programa instalado de 1983 a 1986 e o Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 03652

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(RE) AFIRMAÇÕES E (RE) DESCOBERTAS: A NATUREZA DA

CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO INTEGRAL NOS CENTROS INTEGRADOS

DE EDUCAÇÃO PÚBLICA (CIEPS)

Danielle Portilho Muffareg Bosco

Faculdade Cenecista da Ilha do Governador (FACIG)

Resumo: Este ensaio apresenta um recorte de nossa dissertação de mestrado, cujo

fragmento examina a análise histórica realizada e pautada em uma ancoragem documental

nos arquivos que registraram grande parte da memória e do legado deixado pelos CIEPs

e pela proposta de educação (integral em tempo integral) ali empreendida, a fim de pinçar

elementos e indicadores que nos permitisse identificar a natureza da concepção de

educação integral proposta pelo Programa Especial de Educação no Estado do Rio de

Janeiro. O nosso objetivo foi revisitar e redescobrir elementos político-ideológicos que

direcionaram as concepções que embasaram a prática educativa do Programa com vistas

a espelhar experiências empreendidas nesse projeto, buscando compreender sua proposta

educacional. Nessa direção, elegemos dois documentos historicamente significativos para

facilitar a busca pelas respostas às questões propostas e propusemos, metodologicamente,

analisar o conteúdo desses documentos em função do contexto histórico-político em que

foram elaborados. Wallerstein (2002) foi nossa referência para clarificar o entendimento

sobre os três sistemas político-ideológicos que tricotomizaram o mundo nos últimos três

séculos: o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo. Nossos resultados indicaram

que a proposta pedagógica e concepção de educação integral dos CIEPs transitaram em

pilares liberais e socialistas, criando, por vezes, antíteses que levaram à construção de

sínteses, ora conflitando-se, ora articulando discursos e ações, constituindo, assim, o

fundamento da concepção de educação integral do projeto.

Palavras-chave: CIEP; educação integral; horário integral.

INTRODUÇÃO

Desde a inauguração dos primeiros Centros Integrados de Educação Pública

(CIEPs), no Estado do Rio de Janeiro, no ano de 1985, muito se escreveu e debateu sobre

diferentes aspectos do Programa Especial de Educação (PEE) que os implementou.

Desenvolvido na vigência dos governos do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e

representado pela figura do então Governador Leonel Brizola, este Programa, apesar das

inúmeras críticas recebidas, constituiu-se como marco no cenário educacional fluminense

e, ainda hoje, observamos tentativas de implantação de escolas semelhantes ao que

propunha Darcy Ribeiro, seu idealizador. Os CIEPs são escolas públicas que foram

construídas, no estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de abrigar uma proposta de

educação integral em tempo integral. Eles foram implantados sob a forma de Programas

Especiais de Educação (PEE), sendo o primeiro Programa instalado de 1983 a 1986 e o

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segundo Programa, entre os anos de 1991 a 1994. Atualmente, a arquitetura marcante e

imponente dos CIEPS permanece no cenário fluminense, contudo, a proposta educativa

inicial completamente esvaziada. Recorrendo as reflexões de Cavaliere (2009), que

contrapõe os conceitos ‘Aluno em Tempo Integral’ versus a ‘Escola de Tempo Integral’,

nos certificamos do esvaziamento da proposta dos CIEPS e suas colocações nos permitem

inferir que este projeto é uma evidencia clássica do conceito de ‘escola de tempo integral’

quando afirma que:

“...o esvaziamento da escola em detrimento de outras agências

educativas teve uma evidência material reveladora de um tipo de

direção política que pretende transferir para fora dela as tarefas

inovadoras e enriquecedoras dos processos educativos.(grifos

nossos)” (Cavaliere, 2009: 10)

O PEE compreendeu mais do que a construção dos previstos 500 CIEPs.

Segundo Arantes (1998), ele era composto por metas muito específicas, que pretendiam

conjugar forças que serviriam de base para uma revolução social, de modo a promover a

emancipação de classes populares, a partir do exercício pleno da cidadania e por meio da

viabilidade de uma educação ampliada, dentro de um horário integral.

O objetivo deste ensaio é, portanto, apresentar os resultados e discutir as

concepções de educação integral sob um prisma político-ideológico, visando trazer este

debate para a educação brasileira na atualidade, quando políticas públicas municipais,

estaduais e federais vêm adensando, modificando e praticando o tema educação integral

e tempo integral. Nesse sentido, foram determinantes os estudos de Wallerstein (2002) e

em suas definições sobre os três sistemas político-ideológicos que tricotomizaram o

mundo, no período de 1789 a 1989: o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo. Nas

reflexões daquele autor, as ideologias elencadas compuseram uma trilogia que conduziu

e encaminhou a história do homem moderno, travando constantes lutas entre si. Nesse

sentido, diz-nos Wallerstein (2002):

O devir histórico dos tempos modernos é bem conhecido, no que

diz respeito à história das ideias ou à filosofia política. Ele pode

ser definido sucintamente da seguinte maneira: ao longo do

século XIX surgiram três grandes ideologias políticas, o

conservadorismo, o liberalismo e o socialismo. Desde então, elas

(adotando aparências sempre diferentes) têm estado

constantemente em luta entre si (p.81).

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Este autor afirma, não apenas uma vez, que as três ideologias se fundiram ao

longo do tempo, ocasionando combinações e causando, por vezes, certa confusão. Por

isso foi importante considerarmos a dinâmica de aproximação e afastamento no tocante

aos ideários constitutivos das três ideologias configurando, por um lado, alianças, e

acirrando, por outro, diferenças. Estas relações dialéticas, que são apontadas por

Wallerstein, abriram possibilidades para identificar, em nossas análises, combinações de

resultados quanto à natureza da concepção de educação integral do I PEE, já que permitiu

o estabelecimento de associações mais ricas e menos estanques no campo teórico, sem

rotular ou caricaturar a proposta de educação integral do IPEE, como esta ou aquela

doutrina político-ideológica.

Para analisar o material selecionado, elegemos a estratégia metodológica da

análise de conteúdo. O locus da análise de conteúdo reside na mensagem que, de acordo

com delineamento amplo de teorias da comunicação possui, como principais elementos,

emissor, receptor, condições de emissão, frequência de emissão, simbologias para

expressar mensagens e, inclusive, silêncios. Nessa direção metodológica, analisamos a

publicação Escola Viva, Viva a Escola, nº 1 que contém um apanhado das denominadas

Teses de Mendes, que representaram um marco no movimento educacional do estado do

Rio de Janeiro à época. Em um segundo momento, elegemos o Livro dos CIEPs como

documento de análise final, buscando também perceber, tanto nos discursos articulados,

bem como nas ações e práticas propostas, indícios e pistas que nos levassem a detectar a

natureza do conceito de educação integral proposto no I PEE.

Procurando evidenciar as várias faces em que a ‘educação integral’ se move e

como esse movimento se traduz em práticas significativas na educação em jornada

ampliada, iniciamos nossas reflexões com uma pergunta: em que bases político-

filosóficas podemos alicerçar as práticas de ‘educação integral em tempo integral’ dos

CIEPs?

1. EDUCAÇÃO INTEGRAL EM TRÊS ATOS: MANIFESTAÇÕES POLÍTICO-

IDEOLÓGICAS E MODERNIDADE

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A partir de referencial da política, articulamos manifestações e desdobramentos

da concepção de educação integral, na tentativa de apreender esse conceito na história do

pensamento educacional do Ocidente. Nossa busca, nesta seção, é pelas aproximações

que podemos estabelecer entre as três grandes vertentes político-ideológicas da

Modernidade – o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo – e a concepção de

Educação Integral, visando apreender a perspectiva que melhor se adequa às elaborações

teóricas que construíram o I PEE e, por conseguinte, o modelo de educação integral em

tempo integral dos CIEPs.

Em nossos estudos, guiados pelas terminologias e acepções definidas por

Wallerstein (2002), entendemos que o movimento revolucionário francês, em especial,

no âmbito educacional, delineou duas vertentes: uma focada na utopia da regeneração

social, calcada em ideais de liberdade e legitimados por um Estado consensual que, em

termos de educação, procurava garantir uma educação para a manutenção do status quo e

outra, pautada na Revolução, advinda da convenção jacobina, pautada no conflito, na

radicalização e constante busca da transformação social e humana por meio da instrução

(Portilho, 2006; Boto, 1996). Estas duas perspectivas opunham-se à terceira vertente do

pensamento político ideológico do Estado monarca – conservadorismo – e

representariam, no futuro, o nascedouro das duas vertentes político-ideológicas que

vieram a se consolidar, mais claramente, no século XIX. Estas duas grandes vertentes que

afloraram contra o Estado absolutista e que se definiram ao longo da história como duas

posições político-ideológicas contrastantes foram o liberalismo e o socialismo,

deflagrando a tripartição do pensamento político-ideológico do mundo ocidental

moderno: conservadorismo, liberalismo e socialismo. Como a educação integral foi

representada nestas ideologias no cenário brasileiro?

Enfocando primeiramente a visão conservadora, e a título de exemplo, podemos

apresentar os interesses médico-higienistas, jurídico-policiais e religiosos, manifestados

no final do século XIX e início do século XX, bem como os do movimento integralista,

na década de 30. Moysés Kuhlmann Junior (1991) que, em sua tese de doutorado, realizou

uma revisão histórica sobre as instituições pré-escolares e o caráter assistencial a elas

conferido entre os anos de 1899 a 1922, identificou três movimentos interessados nas

entidades de atendimento integral a crianças que visavam, entre outros interesses, garantir

o controle e a conservação político-social das classes por meio de matrizes educacionais.

Os principais interesses na educação integral como mecanismo de controle e conservação

político-ideológica apresentados pelo autor foram, assim, o interesse médico-higienista,

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a influência jurídico-policial e o interesse religioso. O pensamento conservador transfere-

se, assim, para a educação integral, por meio da busca pela formação integral da criança,

dentro do pensamento entusiasta e conservador em que são apresentadas atividades de

aquisição científica; educação dos sentidos; educação moral e cívica; educação física e

escotismo como atividades essenciais à constituição de um ensino primário com

qualidade.

Concomitantemente, esse ensino apresenta, como fundamento, um sentimento

nacionalista que, eclodindo no léxico empregado, nos evidencia o espírito de restauração

de seus propósitos. Neste bojo, damos destaque para o movimento integralista, na década

de 30, que fez uso da educação integral como elemento ideológico. Nesse sentido, afirma

Cavalari (1999) que “a ideia de educação integral para o homem integral era uma

constante do discurso integralista” (p.46), entendendo essa educação como o “conjunto

do homem físico, do homem intelectual, do homem cívico e do homem espiritual” (Aires,

in Cavalari, 1999, p.47).

No bojo do pensamento socialista, encontramos tendências diversas - tanto os

ideais comunistas, quanto os anarquistas refletem sobre educação e enfatizam o que

compreendem por uma formação completa. No entanto, detendo-nos especificamente no

pensamento/ação anarquista, podemos dizer que a proposta mais ampla de uma sociedade

fraterna e igualitária assume uma postura bastante firme a respeito da educação nesse

contexto. Para este pensamento, conhecimento é poder e gera, ambiguamente, dominação

para quem não o detém e liberdade para os que a ele tem acesso (Bakunin, 1979, p. 34-

35). Na concretização de seu protótipo de sociedade ideal, defende o ensino integral como

um aliado na busca da liberdade pelas massas oprimidas, na injusta e desigual sociedade

de classes, através do que denomina ensino total: uma educação científica ou teórica,

compreendendo também o ensino industrial ou prático. (Bakunin, 1979:44). Sua ideia é

a de democratizar conhecimentos científicos e culturais que se restringem a uma parcela

da sociedade de classes. No Brasil do início do século XX, tivemos experiências de

educação libertária cujos moldes se inspiravam na construção desse homem completo.

Citamos como exemplos a criação de duas Escolas Modernas – à semelhança das Escolas

Modernas de Ferrer Y Guardia, na Espanha – em São Paulo, bem como a constituição,

ainda que por um curto espaço de tempo, da Universidade Popular, no Rio de Janeiro.

Quanto à perspectiva liberal em relação à educação integral, observamos sua

manifestação consubstanciada nas bases do desenvolvimento do pensamento educacional

brasileiro, também no início do século XX. Cavaliere (2003) já apontara que a principal

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representação desta corrente foi apresentada no movimento da Escola Nova, tendo em

Anísio Teixeira o principal expoente dessa concepção e de sua implementação. O

pensamento de Anísio é direcionado por dois vieses: necessidade de democratização do

ensino público e ampliação das funções da escola para a sociedade contemporânea

emergente. Anísio é ainda definido como um entusiasta da ampliação do tempo -

quantidade – associado às atividades de trabalho, de estudo, de recreação e de arte no

espaço formal da escola, ou seja, de uma gama de práticas educativas que consubstanciam

o que denominamos como educação integral, mesmo não utilizando esse termo

específico.

É sua a ideia de implantação de uma instituição escolar constituída por Escolas-

Classe e por uma Escola-Parque. Este Centro, construído em bairro popular da cidade de

Salvador, na Bahia – o Centro Educacional Carneiro Ribeiro -, nas palavras do autor,

seria uma escola com “programa completo de leitura, aritmética, e escrita, e mais

ciências físicas e sociais, e mais artes industriais, desenho, música, dança e educação

física (...) que eduque, forme hábitos, forme atitudes, cultive aspirações” (Teixeira, 1968,

p.141). Mas era também uma escola de dia completo ou, como denominamos hoje, em

tempo integral.

Para Anísio, uma formação completa dependia, também, de um tempo ampliado

na escola. Esta fórmula, entretanto, não é consensual. Em outras palavras, nem sempre a

uma ampliação da jornada escolar corresponde uma educação mais completa, o que não

significa que não devamos perseguir esta meta. Afinal, acreditamos, é muito mais

significativo conceber, com um tempo ampliado/integral, atividades integradoras, que se

consubstanciem em uma formação completa para o aluno, do que fazê-lo em um tempo

reduzido/parcial. Como já preconizava Anísio, provavelmente essa redução não

redundará em qualidade.

Diante dos vários caminhos pelos quais se pode entender a educação integral,

fomos guiados pelo viés das representações político-ideológicas e em uma tentativa de

introduzir nossa segunda seção, cabe-nos questionar: qual concepção de educação

integral constituiu as bases político-ideológicas dos CIEPs? Como esta natureza se

evidenciou nas práticas propostas para o Programa no que tange a aplicação do conceito

de educação integral?

2. DADOS, NÚMEROS E DEDUÇÕES

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Com vistas a averiguar a natureza do discurso político-ideológico contido nas

expressões inscritas nos documentos que balisaram e transcreveram a proposta política e

educacional dos CIEPS, definimos pelo menos duas grandes categorias a priori às

análises, Pensamento Liberal e Pensamento Socialista, que serão aprofundadas e/ ou

desmembradas à medida que novos trechos e elementos se apresentem durante as análises.

Mas porque fixar o olhar apenas nestas duas grandes categorias que representam as duas

ideologias, já que, na seção anterior, trabalhamos a tríade ideológica representadas pelo

conservadorismo, liberalismo e socialismo?

Em função dos direcionamentos teóricos que nos auxiliaram no resgate histórico

e conceitual acerca das bases da educação integral dos CIEPs, inferimos, durante as

reflexões realizadas em nossa revisão bibliográfica, que a proposta de educação integral

evidenciada pelo I PEE não apresentou contornos, seja pela sua natureza, seja pelas

práticas empreendidas, que caracterizariam a ideologia de cunho mais conservador. A

partir desta constatação, apresentamos os resultados da análise de dados de ambos os

documentos e composição dos índices. O trabalho que originou este artigo explicitou oito

subcategorias emergentes na medida em que avançamos no exame dos documentos,

dentre elas focaremos duas especificamente: 1 D e 2 D.

Ref. Categoria Ref. Categoria

1 Pensamento Liberal

2 Pensamento Socialista

Subcategorias Subcategorias

1A

Valorização do indivíduo

(individualismo) 2A Valorização do coletivo

(coletivismo)

1B

Educação/ Escola

Salvacionista (Ênfase da

Reforma Social) 2B

Educação/ Escola política

(Ênfase na Revolução Social)

1C

Educação como princípio para

liberdade, progresso individual

e harmonização social 2C

Educação como princípio da

liberdade coletiva e veículo de

emancipação de classes

1D

Horário/ educação integral

para qualidade da escola e

progresso do indivíduo

2D

Horário/ educação integral

para libertação do indivíduo

dos mecanismos de classe

Tabela 1 – Categorias e subcategorias de análise

Quanto as subcategorias elencadas para exposição neste ensaio, Horário/

educação integral para qualidade da escola e progresso do indivíduo versus Horário/

educação integral para libertação do indivíduo dos mecanismos de classe, encontramos

significativas referências que apontam a(s) natureza(s) da concepção de educação e tempo

integral empregados no I PEE.

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Os primeiros trechos que destacamos estão presentes no Livro dos CIEPS

referem-se a primeira subcategoria Horário/ educação integral para qualidade da escola

e progresso do indivíduo:

Um fator importante do nosso baixo rendimento escolar reside na

exigüidade do tempo de atendimento que damos à criança A

criança das classes abonadas que têm em casa quem estude com

ela, algumas horas extras, enfrenta galhardamente esse regime

escolar em que quase não se dá aulas. Ele só penaliza, de fato, a

criança pobre oriunda de meios atrasados, porque ela só conta

com a escola para aprender alguma coisa. (Ribeiro, 1986. Livro

dos CIEPS, p.13)

Rebaixando a qualidade do ensino a níveis intoleráveis e

restringindo a jornada escolar de todos os alunos a poucas horas.

(Ribeiro, 1986. Livro dos CIEPS, p.20)

O absurdo maior, porém, é a jornada de duas e meia ou três horas

de aula, que efetivamente se dá às crianças desde que foi adotado

o terceiro turno diário. (...) Em todo o mundo se considera que

cinco horas de atenção direta e contínua ao aluno por eu professor

é a jornada mínima indispensável. Como as crianças das classes

mais favorecidas têm em casa quem estude com elas algumas

horas extras, enfrentam sem problemas esse regime. Ele só

prejudica, de fato, a criança pobre – que só conta com a escola

para lhe ensinar. (Ribeiro, 1986. Livro dos CIEPS, p.33)

No Brasil, antes da criação dos CIEPS, nunca se fez uma escola

popular de dia completo. Em lugar disso, adotou-se o

desdobramento do regime escolar em vários turnos (...) Essa

deformação do sistema de ensino, com o tempo, tirou as

qualidades já escassas da antiga escola pública. (Ribeiro, 1986.

Livro dos CIEPS, p.41)

O CIEP é fundamentalmente uma boa escola de 1° grau,

funcionando em regime de dia completo. (...) Cada CIEP, durante

um período de 8 horas diárias (inclusive horário de almoço),

ministra aos alunos currículo de 1° grau, com aulas e sessões de

Estudo Dirigido, além de oferecer atividades como esportes,

participação em eventos culturais, numa ação integrada que

objetiva elevar o rendimento global de cada aluno (Ribeiro, 1986.

Livro dos CIEPS, p.42)

Nestes trechos, foi necessário analisar duas evidências. A primeira caracterizada

pela forte presença do foco dado ao tempo integral e a segunda, pela correlação existente

entre tempo/ educação integral com qualidade do ensino e promoção do progresso e

desenvolvimento do indivíduo. Nos quatro primeiros trechos, observamos a relação

marcante do fator tempo integral com qualidade de ensino. Esta manifestação é tão

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presente, que foi possível encontrar o mesmo fragmento da primeira citação mais de uma

vez, no Livro Preto, bem como em partes destacadas nas Teses de Mendes:

“O fator crucial do baixo rendimento escolar reside na exigüidade

do tempo de atendimento dado às crianças. (Ribeiro, 1986. Livro

dos CIEPS, p.33)

“O fator crucial do nosso baixo rendimento escolar reside também

na exigüidade do tempo de atendimento que damos às crianças.

(Bloco I, tese 8, p.10)”

Curiosa, também, foi outra relação presente, de modo mais emblemático, no

terceiro trecho destacado, que marca a associação entre criança pobre e tempo integral.

Esta associação também marcou o Programa, e foi alvo de inúmeras críticas, criando, por

vezes, rótulos e estigmas que marcaram negativamente a concepção de horário integral,

prejudicando, de certa forma, o elo entre educação ampliada e qualidade.

Já no último trecho observamos, de maneira mais evidente, a relação educação

integral e qualidade de ensino. Nesta fala, além da associação tempo integral e bom

ensino, está marcada a intenção em registrar, também, qualidade de ensino com

oferecimento de atividades educativas e culturais que, possivelmente, nos leva a inferir

que existe a presença da concepção de educação integral associada à melhoria da

qualidade escolar, bem como a melhoria do desempenho global dos alunos.

Uma percepção geral observada nos documentos foi a intenção em utilizar o

espaço e o horário escolar pelo maior tempo possível e com mais programas e projetos

que sejam possíveis, caracterizando o CIEP, de certa forma, como uma Escola 24hs e

multifuncional, dada a intensa atividade e tempo empregados (relação tempo e educação

integral).

A subcategoria 2D horário/educação integral para libertação do indivíduo dos

mecanismos de classe também se apresenta nos Livros dos CIEPS, mesmo que de forma

pouco emblemática. Encontramos no fragmento da fala do idealizador da arquitetura dos

CIEPS, Oscar Niemeyer, indícios que nos levariam, a partir de uma interpretação, a uma

referência sobre esta subcategoria:

O mais importante nesse programa de escolas que o governador

Brizola criou é, sem duvida, o sentido social, o desejo de levar as

classes mais pobres, às crianças tão esquecidas deste país, o apoio

indispensável, instruindo-as, ocupando-as, dando-lhes a

possibilidade de uma participação futura nos problemas da vida

brasileira. (Ribeiro, 1986. Livro dos CIEPS, p.110)

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Ainda que nos pareça dúbia, a afirmação do arquiteto acerca da função da escola

de horário integral e do tipo de educação integral ali ministrada, podemos interpretar as

expressões “ocupando-as” e “participação futura nos problemas da vida brasileira” como

possível associação da concepção de tempo integral com a emancipação política e social

das crianças de classes menos favorecidas. A grande preocupação no relato e

oferecimento de atividades diversificadas, como por exemplo, estudo dirigido,

informática para crianças, circuito de TV, recreação, animação cultural, salas de leitura,

biblioteca, esportes, atividades de higiene e saúde evidenciam a forte presença de uma

concepção de educação integral. O que não é evidente é a relação que estas atividades

diversificadas e educativas mantêm com uma concepção mais emancipatória dessa

educação.

Essas subcategorias se confrontaram uma com a outra, criando, por vezes,

antíteses que nos levam à construção de sínteses mais ricas. Vale destacar, ainda como

explicação metodológica, que optamos por uma análise simultânea dos documentos para

enfocar, de maneira mais aprofundada, o volume de dados e indicadores que evidenciam

a subcategoria elegida, aqui, para apresentação. Com base na análise quantitativa dos

temas, chegamos aos seguintes indicadores:

Ref. Categoria Ocorrências

Temas

% Ref. Categoria Ocorrências

Temas

%

1 Pensamento Liberal 104 83% 2 Pensamento

Socialista 21 17%

Subcategorias Subcategorias

1A Valorização do

indivíduo

(individualismo)

25 24% 2A Valorização do

coletivo (coletivismo) 07 33%

1B Educação/ Escola

Salvacionista (Ênfase da

Reforma Social)

39 38% 2B Educação/ Escola

política (Ênfase na

Revolução Social)

10 48%

1C Educação como

princípio para liberdade,

progresso individual e

harmonização social

15 14% 2C Educação como

princípio da liberdade

coletiva e veículo de

emancipação de

classes

03 14%

1D Horário/ educação

integral para

qualidade da escola e

progresso do individuo

25 24% 2D Horário/ educação

integral para

libertação do

indivíduo dos

mecanismos de classe

01 5%

Tabela 2: Resultados compilados – Teses de Mendes e Livro Preto

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pudemos verificar, a partir dos dados e índices obtidos, como também das

análises e interpretações derivadas, que o pensamento socialista marca presença pouco

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significativa na concepção de horário/ educação integral dos CIEPs. Outras subcategorias

não explicitadas nesse recorte, contudo, apresentaram indicadores mais expressivos,

como a concepção da escola como mecanismo de revolução social, característica do

pensamento socialista. Entre outras evidências que demarcam a presença da ideologia

socialista, em outras subcatergorias não apresentadas nesse recorte, podemos dizer que

esta visão manifesta-se nos documentos encontrados, quando critica e condena, por vezes,

o caráter elitista e opressor da escola brasileira, enfatizando a clientela proletária e popular

como alvo dos discursos e ações educacionais do Programa, com vistas a promover a

mobilização da consciência nacional.

Contudo, também podemos dizer que o pensamento liberal se manifesta mais

vezes em escala quantitativa, mais especificamente, nas atribuições da escola que preza

componentes democráticos em seus fundamentos e ações, bem como na concepção de

educação/horário integral proposto pelo projeto.

Nesse sentido, nos mantivemos atentos ao discurso que exprime certa dubiedade

de sentidos sobre as ideias que fundamentaram a concepção politico-ideológica do

Programa, caracterizando-as ora como um discurso liberal, ora como um discurso

socialista, ora como uma combinação de ambas as visões. Por outro lado, não podemos

deixar de relembrar a fala categórica presente no Livro dos CIEPS sobre o

posicionamento ideológico do PDT, como justificativa para o alto investimento no campo

educacional:

A escolha da educação como a prioridade fundamental responde,

essencialmente, à ideologia socialista-democrática do Partido

Democrático Trabalhista de Leonel Brizola. Essa ideologia é que,

contrariando uma prática antiqüíssima de descaso em matéria de

Instrução Pública, nos deu a coragem de abrir os olhos para ver e

medir a gravidade do problema educacional brasileiro. (grifos

nossos) (Ribeiro, 1986. Livro dos CIEPS, p. 16).

Estas evidências de pensamentos socialista e liberal, que ora se encontram, ora

se conflitam, ora se articulam em outras possíveis alianças ideológicas, a nosso ver, nos

levam a indagar se elas, porventura, não poderiam constituir-se como o fundamento da

concepção de educação integral proposta pelo Programa dos CIEPs. Do ponto de vista

dialético, ele não é puramente liberal; ele também não é fundamentalmente socialista.

Nesse sentido, podemos afirmar que ele unifica e conforma estas visões de mundo.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 303662

Page 12: (RE) AFIRMAÇÕES E (RE) DESCOBERTAS: A NATUREZA DA ... RE) AFIRMAÇÕES E (RE... · Atualmente, a arquitetura marcante e imponente dos CIEPS permanece no cenário fluminense, contudo,

TABELAS

Tabela 1 – Categorias e subcategorias de análise

Tabela 2: Resultados compilados – Teses de Mendes e Livro Preto

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DOCUMENTAIS

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CAVALIERE, A.M. (2002). “Escola de Tempo Integral: uma Idéia Forte, uma

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KHULMMAN JUNIOR, M. Educação pré-escolar no Brasil (1899-1922): exposições e

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WALLERSTEIN, E. Após o Liberalismo. Em Busca da Reconstrução do Mundo.

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