REAFIRMAÇÃO DA ESPERANÇA Da Vontade em Le Volontaire et l ...

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    REAFIRMAO DA ESPERANADa Vontade em Le Volontaire et

    lInvolontaire de P. Ricoeur

    Maria Alice Fontes Aleixo

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    FICHA TCNICA

    Ttulo: Reafirmao da EsperanaDa Vontade em Le Volontaire et lInvolontaire de P. RicoeurAutor: Maria Alice Fontes AleixoColeco: Teses LUSOSOFIA: PRESSDireco: Jos Rosa & Artur MoroDesign da Capa: Antnio Rodrigues TomComposio & Paginao: Jos Rosa & Filomena MatosUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2010

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    REAFIRMAO DA ESPERANADa Vontade em Le Volontaire et

    lInvolontaire de P. Ricoeur

    Covilh,2010

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    ndice

    Agradecimentos 7Evoluo, de Antero de Quental 8INTRODUO 9Ia PARTE DECIDIR-SE 42

    1. O projecto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 432. A motivao e o involuntrio corporal . . . . . . . . . . . 483. A hesitao e a escolha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 564. Determinao e indeterminao da liberdade . . . . . . . 61

    IIa PARTE AGIR 651. O pragma e o corpo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 672. O dualismo do entendimento . . . . . . . . . . . . . . . . 703. A espontaneidade corporal . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

    3.1. O saber-fazer pr-formado . . . . . . . . . . . . . 743.2. A emoo-surpresa . . . . . . . . . . . . . . . . . 753.3. A emoo como amor e averso . . . . . . . . . . 773.4. A emoo da alegria e da tristeza . . . . . . . . . 783.5. O desejo como emoo . . . . . . . . . . . . . . . 803.6. A emoo-choque . . . . . . . . . . . . . . . . . 813.7. O hbito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82

    4. O mover e o esforo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85IIIa PARTE CONSENTIR 90

    1. O involuntrio na primeira pessoa . . . . . . . . . . . . . 911.1. O carcter . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 911.2. O inconsciente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 971.3. A situao vital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

    2. Reflexo e liberdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

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    3. A meditao do No . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1223.1. O suicdio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1223.2. A revolta: o homem absurdo . . . . . . . . . . . . 125

    4. A meditao do Sim: o consentimento . . . . . . . . . . . 1344.1. O consentimento imperfeito . . . . . . . . . . . . 1404.2. O consentimento hiperblico . . . . . . . . . . . . 1414.3. O consentimento escatolgico . . . . . . . . . . . 145

    CONCLUSO 150BIBLIOGRAFIA 162

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    AgradecimentosA meu pai, Manuel Aleixo, que me educou na crena no poder davontade. Quero aqui honrar a sua memria.

    A todos aqueles cujas experincias de vida me ensinam todos osdias que a vontade tambm pacincia. Inclino-me perante a grandezada sua esperana.

    Ao professor Doutor Jos Maria da Silva Rosa, orientador da mes-tranda, pela sua imensa disponibilidade e benevolncia que excederamlargamente o mero dever.

    A todo o corpo docente de Filosofia, da Universidade da Beira In-terior, pelo apoio prestado ao longo dos trs anos de licenciatura e dosdois anos de mestrado.

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    Evoluo,de Antero de Quental

    EVOLUO

    Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,Tronco ou ramo na incgnita floresta...Onda, espumei, quebrando-me na arestaDo granito, antiqussimo inimigo...

    Rugi, fera talvez, buscando abrigoNa caverna que ensombra urze e giesta;Ou, monstro primitivo, ergui a testaNo limoso paul, glauco pascigo...

    Hoje sou homem e na sombra enormeVejo, a meus ps, a escada multiforme,Que desce, em espirais, na imensidade...

    Interrogo o infinito e s vezes choro...Mas, estendendo as mos no vcuo, adoroE aspiro unicamente liberdade.

    Antero de Quental, Sonetos

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    INTRODUOMisteriosa, controversa, fascinante, autnoma ou condicionada, aten-ta aos valores ou indiferente, a vontade tem merecido desde sempre aateno da filosofia, mas tambm a sua desconfiana. A vontade tem aparticularidade de se dar como constitutiva da estrutura da subjectivi-dade, ao mesmo tempo que possui o poder extraordinrio de se elevaracima dessa mesma subjectividade que a contm e que a sua condiode possibilidade. Ela afirma-se livremente na aceitao ou rejeio dassuas prprias inclinaes. Mas vai mais longe ainda, pelo poder dedeciso que lhe prprio e que lhe permite antecipar o futuro. Nestesentido, podemos dizer que a vontade o rgo para o futuro tal como amemria o rgo do passado. A reflexo que exero sobre mim mes-ma revela-me como possuindo esse estranho poder que me permite pro-jectar um futuro mesmo fora de qualquer previso. O grande problemaque enfrenta qualquer anlise da vontade resulta do facto de ela nopode ser apreendida em si mesma, mas sim apenas atravs dos efeitosvisveis que constituem os seus actos. Isto coloca a questo de saber atque ponto a observao do acto nos autoriza a concluir pela existnciade uma faculdade especfica independente dos outros poderes do es-prito. Haver alguma coisa a que possamos com propriedade chamar aessncia da vontade? E ser a vontade verdadeiramente livre ou estartotalmente limitada pela necessidade natural?

    A evoluo da problematizao do conceito de vontade no se dnuma linha de continuidade filosfica que arranque dos primrdios dafilosofia grega at chegar ao entendimento que dele possumos na ac-tualidade. A verdade que os gregos nem possuem um termo que

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    possa corresponder com exactido ao termo latino voluntas que est naorigem etimolgica da palavra vontade.

    Existem trs factores inibitrios dessa problematizao: a ausnciada noo de subjectividade, um conceito de liberdade que no corres-ponde quele que a modernidade nos legou e a concepo cclica dotempo. A vontade, tal como entendida na modernidade, s comeaa ser tematizada na sequncia da experincia crist, a par dos outrosdois conceitos de que inseparvel, o conceito de liberdade e o con-ceito de subjectividade. A questo da auto-determinao subjectivano constitua uma questo de relevo para os gregos. Para tomarem assuas decises recorriam ao auxlio dos orculos ou leitura de fen-menos exteriores e naturais onde procuravam uma confirmao paraos projectos que se propunham. Quanto liberdade, esta era qual-quer coisa de concreto, determinada pelo nascimento ou adquirida pelocarcter e pela filosofia, e no uma questo metafsica ou cosmolgica.A liberdade, para os gregos, era um estado objectivo do corpo, sig-nificava essencialmente liberdade de movimento e de expresso, e poressa razo localizava-se no Eu-posso e no no Eu-quero. Finalmente,como observa Hannah Arendt, na viso grega da temporalidade comomovimento cclico, no h lugar para o futuro como tempo verdadeiro.

    Tem alguma importncia notar que esta curiosa lacu-na na filosofia grega (. . . ) est em completo acordo como conceito de tempo da antiguidade, a qual identificava atemporalidade com os movimentos circulares dos corposcelestes e com a no menos cclica natureza da vida naTerra: a constantemente repetida mudana do dia para anoite, do Vero para o Inverno, a constante renovao dasespcies animais atravs do nascimento e da morte.1

    Contudo, encontramos na filosofia grega uma pr-problematizaodo conceito levada a cabo por Aristteles atravs da anlise do acto

    1 Hannah ARENDT, A Vida do Esprito, Volume II, Querer, Instituto PIAGET,Lisboa, s. d., pp. 22-23.

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    voluntrio e involuntrio. Aristteles distingue entre o necessrio, que aquilo que porque tem que ser, e o contingente, que o que maspoderia no ter sido, ou o que no mas poderia ter sido. Ora noexiste nada mais contingente que a aco humana.

    Nem todo o bem poder suscitar movimento, em vir-tude de ser apenas o bem prtico a poder faz-lo e, porqueassim , o bem prtico ser aquele bem capaz tanto de seraquilo que como de ser aquilo que no .2

    Quando analisa o princpio motor, Aristteles considera que exis-tem dois princpios relativos ao movimento local, o desejo e o inte-lecto, os quais em ltima anlise se reduzem ao objecto que dese-jado, porque o intelecto, que est sempre certo, no se pode moversem o apetite. Em contrapartida, este, que tanto pode estar certo co-mo errado, pode mover-se fora do intelecto. No h pois lugar parauma qualquer faculdade ou poder que anteceda a aco. A aco re-sponde directamente ao desejo ou ao intelecto. A nica excepo a es-ta contingncia da aco dos homens situa-se, segundo Aristteles, nosprodutos da indstria humana que tm uma espcie de pr-existnciapotencial uma vez que no so fabricados a partir do nada, mas sim apartir de uma matria pr-existente. Compreendemos ento que se tu-do o que real actualizao de uma potencialidade no h lugar parauma conceptualizao da vontade tal como a modernidade a entendeporque o futuro apenas uma consequncia do passado.

    Mas Aristteles no se impede de reflectir sobre a qualidade dosactos e constri uma teoria da prudncia (phronsis) que lana as basespara os desenvolvimentos ulteriores da filosofia sobre a vontade. As-sim, num contexto pragmtico, e tendo como horizonte uma tica davirtude, Aristteles, na tica a Nicmaco, Livro III, analisa a acohumana na dupla vertente do voluntrio e do involuntrio ao mesmotempo que teoriza sobre a deliberao e preferncia na escolha dos

    2 ARISTTELES, De Anima, 433 a 10.

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    meios para alcanar o fim proposto pela aco. Segundo Aristteles,uma aco involuntria quando realizada sob coaco ou por ig-norncia. No primeiro caso estamos perante um tipo de aco cujoprincpio motivador lhe extrnseco, ou seja, o agente apenas umexecutante passivo. Nesta situao, o agente sob coaco desrespon-sabilizado. Aristteles considera ainda a existncia de aces mistas,isto , aces em que o agente opta voluntariamente, contra vontade,por uma determinada aco porque, aps uma avaliao dos factoresem jogo, tal procedimento revela ser o mais adequado nessa conjunturaespecfica. Neste caso a aco ser objecto de censura ou louvor con-soante os resultados prticos da mesma se venham a revelar nefastosou benficos.

    Aces deste gnero so, pois, voluntrias, mesmoque resultem da fora das circunstncias. Ainda assim, po-dem, por outro lado, ser consideradas involuntrias, por-que, noutras circunstncias, ningum teria decidido lev-las prtica.3

    Quanto s aces realizadas por ignorncia Aristteles distinguesubtilmente entre o agir na ignorncia e o agir por ignorncia. A acolevada a cabo na ignorncia involuntria sempre que o agente, aotomar conscincia daquilo que fez, se arrepende, e no-voluntriaquando no haja lugar a arrependimento. Quanto ao agir por ignorn-cia, este refere-se s aces efectuadas no desconhecimento de algu-mas das circunstncias necessrias sua execuo. O involuntrio porignorncia no desresponsabiliza o agente porque embora oferea operdo exige arrependimento.

    Involuntrio no se diz, ento, de um agente que igno-ra as suas verdadeiras convenincias, porque a ignornciaa respeito da deciso no o princpio da qualidade invol-untria, mas antes o princpio da maldade; tambm no o

    3 ARISTTELES, tica a Nicmaco, Livro III, 1110 a 15.

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    a ignorncia em geral (por causa dela somos repreendi-dos), mas apenas a ignorncia do particular e do concreto,isto , das circunstncias concretas e particulares decisi-vas para a aco. Nestes casos, h compaixo e perdo,porque quem age ignorando alguma das circunstncias par-ticulares e concretas da aco f-lo involuntariamente.4

    A aco voluntria, por seu turno, aquela cujo princpio resideno agente que est ciente das circunstncias particulares e concretas daaco. Por esta razo as crianas e os animais no agem voluntaria-mente. O louvor e censura, que so critrios de imputao moral, s seaplicam s aces voluntrias, enquanto o carcter involuntrio de umaaco feita por coaco vale como critrio de desresponsabilizao.

    notvel que, numa perspectiva propriamente tica, Aristtelestenha elaborado definies to precisas e subtis sobre o carcter vo-luntrio ou no voluntrio da aco. No chegamos contudo a es-tar em presena de um conceito unificado da vontade porque, emboraAristteles considere a deciso como um acto voluntrio que decorrede uma escolha preferencial, e no de um desejo ou de uma afeco oude uma opinio, exclui da deliberao que a precede a reflexo sobreos fins.

    Ns deliberamos sobre aquelas coisas que nos dizem res-peito e que dependem de ns, a saber sobre as aces quepodem ser praticadas por ns. (. . . ) Deliberamos, assim,no sobre os fins, mas sobre os meios de os atingirmos.5

    Esta perspectiva redutora e limitativa do poder da vontade na me-dida em que s os meios parecem depender do nosso poder de escolha.O mdico que j mdico no questiona esse facto e delibera sim-plesmente sobre os meios mais adequados para o cumprimento da suaprofisso. Mas o que que explica que o mdico seja mdico e no

    4 ARISTTELES, tica a Nicmaco, Livro III, 1110 b 30-1111 a 1.5 ARISTTELES, tica a Nicmaco, Livro III, 1112 a 30-1112 b 15.

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    engenheiro ou outra coisa qualquer? No ter havido uma primeira es-colha? O prprio Aristteles ter tido conscincia dessa lacuna, na me-dida em que, no Livro VI, complexifica um pouco o esquema meio-fimdo Livro III, quando, ao fazer a anlise da phronsis, enquanto condutado homem sbio, introduz nesta a deliberao.

    Parece ser sensato aquele que tem o poder de deliberarcorrectamente acerca das coisas que so boas e vantajosaspara si prprio, no de um modo particular, (. . . ), mas detodas aquelas qualidades que dizem respeito ao viver bemem geral. (. . . ) So sensatos aqueles que so capazes decalcular de modo correcto a forma de chegarem a obterum certo objectivo final srio, fim este que no se encontraentre os produtos de qualquer percia.6

    Por outro lado, alm da restrio da deliberao aos meios, h ain-da que levar em conta a limitao da prpria escolha enquanto escolha.Segundo Arendt, na obra j citada, a palavra grega que mais se apro-xima do vocbulo vontade pro-airesis, que em rigor significa a escol-ha entre duas possibilidades. Assim circunscrito, o poder de escolherno pode contemplar a vontade como iniciativa, como poder inventivo.

    A filosofia estica avana bastante na radicalizao da ideia de von-tade que assume uma figura fundamental e decisiva da vida moral. Paraos esticos, o mundo, que engloba o cu e a terra, assim como todos osseres vivos que nele se encontram, incluindo o homem e os deuses, elemesmo uma divindade. Na medida em que o mundo o prprio Deus, asabedoria ser viver em harmonia com a ordem natural do mundo. Essaharmonia obtm-se atravs da aceitao do Destino que no tem comos esticos o sentido trgico que encontramos nos gregos anteriores. ODestino do estoicismo uma realidade natural, uma disposio do todoque jamais poder ser transgredida.

    6 ARISTTELES, tica a Nicmaco, Livro VI, 1140 a 25-30.

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    No queiras que as coisas que sucedem sejam sempre tua vontade, mas, se queres acertar, quere-as como elasvierem.7

    Assim, o bem supremo o til, ou seja, o que est conforme aosentido do destino. A virtude e o bem supremo confundem-se, so umae a mesma coisa. A virtude una, pois que uma perfeio em comumcom o todo. Ento, o homem sbio aquele que tem o poder de agirsobre as coisas que esto em seu poder, que aceita aquelas que noesto, e que sabe discernir entre umas e outras.

    Das coisas que h no mundo, umas esto em nossa moe outras no. Em nossa mo est a opinio, a suspeita, oapetite, o aborrecimento, o desejo e, numa palavra, todasas obras que so nossas.8

    Isto significa que, ao mesmo tempo que introduz a ideia de umaautonomia que permite ao homem agir sobre as suas representaes edisposies interiores, a filosofia estica nega a possibilidade de mudaralgo no mundo ao advogar a aceitao do destino. O mais alto grau daliberdade paradoxalmente estar activamente passivo.

    A liberdade uma coisa no somente muito bela, masmuito razovel, e no h nada de mais absurdo nem demais desrazovel do que desejar temerariamente, e quererque as coisas aconteam como ns as pensmos. (. . . ) Aliberdade consiste em querer que as coisas aconteam nocomo te agrada, mas como elas acontecem.9

    7 EPICTETO, Manual , Ed. Agostinho da Silva, Lisboa, 1941, p.5.8 Ibidem.9 EPICTETO, Maximes et Penses, Ed. Henri Gautier, Paris, 1895, 122, p.23: La

    libert est une chose non seulement trs belle, mais trs raisonnable, et il ny a rien deplus absurde ni de plus draisonnable que de dsirer tmrairement, et de vouloir queles choses arrivent comme nous les avons penses. (...) La libert consiste vouloirque les choses arrivent non comme il te plat, mais comme elles arrivent.

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    Mas como poderemos conciliar a liberdade na especificidade de ca-da individualidade com a necessidade global que supostamente a con-tm? O consentimento estico, enquanto absoro do homem pelo to-do, anula a possibilidade da valorizao da parte e consequentemente impeditivo da emergncia da subjectividade. Para os esticos, o homemno o centro do ser; sim um ser entre o conjunto dos seres que con-stituem o mundo. Parece legtimo perguntar, como fez Nietzsche, se ohomem pela sua prpria condio no deveria distanciar-se da ordemnatural ao invs de se diluir no todo.

    Quereis viver de acordo com a natureza. nobres es-ticos, que falsas palavras! (...) como podereis viver deacordo com essa indiferena? Viver no precisamenteum querer-ser-diferente dessa natureza? Viver no consisteem querer avaliar, preferir, em ser injusto, limitado, dife-rente? Friederich NIETZSCHE, Para Alm de Bem e Mal,Guimares Editores, Lisboa, 2004, 9, p.21.

    No h pois qualquer possibilidade de compatibilizar a subjectivi-dade com o estoicismo. De facto, os conceitos de subjectividade ede liberdade da modernidade iro entrar na filosofia pela mediaoteolgica, atravs do cristianismo. Por isso, na medida em que to-da a problematizao sobre a vontade e sobre a liberdade tem a suaorigem histrica na teologia, dizemos que existe nesta matria umacerta descontinuidade no pensamento filosfico.10

    Os conceitos de subjectividade e de liberdade no emergiram noseio da reflexo filosfica; a filosofia adoptou-os como seus, mas foi ateologia que os enunciou pela primeira vez. Em contrapartida, o cris-tianismo que assim penetra na filosofia deixar-se- impregnar por suavez da influncia estica.

    O cristianismo introduz a valorizao do homem enquanto tal, namedida em que este objecto do amor de Deus que lhe concede a mais

    10 Cf. Hannah Arendt, A Vida do Esprito, Volume II, Querer, p.25.

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    alta liberdade, o poder de dizer sim ou no. Agostinho de Hipona re-toma o tema estico da primazia da vontade, mas afirmando-a livre, ouseja, como poder de se afastar de Deus, institui o direito subjectivi-dade.

    De facto o que que reside mais na vontade do que aprpria vontade? (. . . ) A nossa vontade, em suma, noseria nossa a no ser que estivesse em nosso poder. Mas,precisamente porque est em nosso poder, ela est livrepara ns. De facto, no temos em nosso poder aquilo queno est livre para ns; e o que temos em nosso poder nopode no o estar.11

    O direito subjectividade, ou seja, o direito liberdade subjecti-va, marca a grande diferena entre a antiguidade e a modernidade enesse sentido podemos dizer que Santo Agostinho encarna esse pon-to fundamental de viragem do mundo grego para o mundo moderno.Empenhado em desmistificar a argumentao maniquesta sobre o mal,Agostinho defende que o mal no mais que o mal fazer, estabele-cendo assim uma relao indissocivel entre a aco, ou seja, entre opoder fazer da vontade, e o poder fazer-mal da mesma vontade. Lem-bremos que os maniqueus ao sustentarem a tese da substancialidade domal ilibavam o agir individual. Se o mal uma substncia que existeem mim, quando ajo mal no sou eu que o fao, mas sim o prprio malque se manifesta atravs de mim. Mas, ao opor tese gnstica das duasnaturezas, uma boa e outra m, o conceito de vontade como um poderlivre da conscincia, Agostinho pe simultaneamente a descoberto asua ambivalncia, infinita porque imagem de Deus pela liberdadeque lhe prpria, e finita porque simplesmente humana. Por isso avontade aparece frequentemente dividida, uma parte dela opondo-se aoutra parte.

    11 AGOSTINHO, Dilogo sobre o Livre Arbtrio, INCM, Lisboa, 2001, I, 12, 26;III, 3, 8.

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    O esprito manda no corpo, e logo obedecido: o espri-to manda em si mesmo, e encontra resistncia. O espritomanda que a mo se mova, e a facilidade tanta que acusto se distingue a ordem da sua execuo: e o esprito esprito, e a mo, corpo. O esprito manda que o espritoqueira, e, no sendo outra coisa, todavia no obedece.(...)Quando eu deliberava pr-me de imediato ao servio doSenhor meu Deus, tal como j h muito decidira, era euquem queria, era eu quem no queria; era eu. Nem queriaplenamente, nem plenamente no queria. E por isso lutavacomigo mesmo e derrotava-me a mim prprio, e a prpriaderrota acontecia realmente contra a minha vontade, e to-davia no mostrava a natureza de uma mente alheia, mas osofrimento da minha mente.12

    Sempre voluntarista, porque sempre sentidamente anti-gnstico, A-gostinho experimenta o conflito contraditrio de uma vontade que noltimo momento balana e age contrariamente a si mesma. assimque, tendo partido de uma posio anti-gnose, Agostinho acabar eleprprio por assumir uma posio de quase gnose, na leitura de PaulRicoeur, em Le Conflit des Interprtations.13

    Tendo sofrido o repetido fraquejar de uma vontade que se quer boamas que no o consegue ser, Agostinho levado a admitir a possibi-lidade da existncia de uma vontade de natureza, anterior nossa von-tade. Essa vontade de natureza responsvel pelo pecado original quese transmite pelo nascimento desde Ado. esse pecado que, merecen-do castigo, justifica o sofrimento dos inocentes. Por isso Ricoeur insisteno carcter quase gnstico da doutrina do pecado original que, emboratenha nascido no combate contra a gnose e insista na responsabilidadedo homem, medida que vai racionalizando a reprovao divina torna-

    12 AGOSTINHO, Confisses, Livro VIII, INCM, Lisboa, 2004, IX, 21, X, 22.13 Cf Le pch originel: tude de signification, in Le Conflit des

    Interprtations. Essais dHermeneutique, Seuil, Paris, 1969, pp. 265-282.

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    se a base de sustentao de uma mitologia dogmtica semelhante gnose.

    Pelo facto de se apresentar dividida, com Agostinho, a vontade ain-da no alcana a sua plena autonomia o que se compreende dado ocontexto teolgico em que Agostinho se movimenta. O seu objectivo,a sua preocupao suprema tentar compreender porque existe o male o pecado, esclarecer o que que justifica que a vontade criada porDeus possa querer contra Ele.

    Foi notvel a contribuio dos pensadores medievais para o apro-fundamento e desenvolvimento do conceito da vontade na sua cami-nhada para a modernidade. No podendo aqui dar conta do pensamentode todos na especificidade prpria de cada um e nos traos que possuemem comum, queremos no entanto referir um em particular, Duns Esco-to. Assumindo a responsabilidade da possvel injustia para com osexcludos, escolhemos Duns Escoto pela originalidade e vanguardismoda sua viso que se nos afigura de grande actualidade.

    Assim, ressaltamos no seu pensamento a preferncia ontolgica doexistente particular sobre o universal e do contingente sobre o necess-rio. Estes dois postulados, ou, mais escolasticamente, estas duas pre-missas, que em Duns Escoto se articulam com a tese que defende o pri-mado da vontade sobre a inteligncia, parecem ser de facto condiesde possibilidade para uma teoria da subjectividade e para uma filosofiada liberdade.

    Alm do conhecimento por abstraco que conduz ao universal,Escoto concebe o conhecimento intuitivo pelo qual a nossa intelign-cia apreende o ser existente na sua singularidade e na sua individu-alidade. Por seu lado, o objecto do conhecimento abstracto o serenquanto ser, ou seja, o ser actualmente indeterminado mas ulterior-mente determinvel. A noo de ser nica e tem o mesmo sentidoindependentemente das realidades a que se aplica.

    A vontade quer e a inteligncia conhece mas a vontade que co-manda os actos da inteligncia. Ainda que para querer uma coisa sejapreciso conhec-la primeiro, esse conhecimento em relao vontade

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    no mais que uma causa acidental. Estamos pois perante uma con-cepo da vontade de cariz voluntarista que privilegia o poder do actosobre a motivao e respectiva deliberao.

    Claro que pode ser difcil para a vontade recusar o que a intelign-cia lhe prope mas no impossvel porque a vontade caracteriza-sepor ser um poder de resistncia face aos desejos e face aos ditames darazo, ou seja, um poder de resistncia motivao. Isto possvelporque, enquanto o intelecto finito e limitado, a vontade permite aohomem transcender a sua finitude. Assim, excepto no que diz respeitoao conceito de ser na totalidade que unvoco, a indiferena da von-tade absoluta porque ela o poder dos contrrios, isto , o poder dedizer sim ou no ao mesmo objecto, tal como refere Hannah Arendtcomentando Escoto:

    Um objecto apresentado ao desejo pode unicamente atrairou repelir, e um resultado apresentado ao intelecto podeapenas ser afirmado ou negado. Mas a qualidade bsica danossa vontade que podemos querer ou recusar o objectoapresentado pela razo ou pelo desejo.14

    Escoto defende ainda [antecipando Descartes em quatro sculos]que a vontade pode auto-suspender-se, escolhendo directamente a in-diferena, o que constitui um importante testemunho da liberdadehumana, da capacidade do esprito para evitar toda a determinaocoerciva vinda do exterior.15

    Deus o nico ser necessrio, a causa primeira que no sendo li-mitada por nada infinita. Deus cria se quer e s cria porque quer, oque significa que a nica causa pela qual Deus quis as coisas a suavontade. A criao ento um acto contingente, pois que Deus, damesma maneira que criou, podia no ter criado ou podia mesmo tercriado de forma diferente.

    14 Hannah ARENDT, A Vida do Esprito, Volume II, Querer, p.142.15 Idem, p.143.

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    No chamo contingente aquilo que no necessrio ouque no existiu sempre, mas o que pode ser oposto ao que feito, quando este se faz. por isso que no digo queuma coisa contingente, mas que uma coisa causadacontingentemente.16

    Assim, a contingncia em Escoto deixa de ser entendida como ooposto ao modo de ser necessrio para passar a ser um modo posi-tivo de ser que a categoria do possvel. Como observa Jos SilvaRosa, em comunicao apresentada ao Colquio Internacional sobreo pensamento de Duns Escoto realizado na Faculdade de Letras daUniversidade do Porto:

    A contingncia no se ope necessidade; emerge antesno horizonte do ser possvel. Assim, ela entendida comoaquilo que, ao acontecer, poderia no acontecer ou entoacontecer de modo diferente. pois a categoria da possi-bilidade que por essa via vem para o centro (e com ela asnoes de novidade, alteridade e diferena).17

    Para Escoto, a vontade quando faz qualquer coisa f-lo porque ela uma potncia activa. Diz-nos ele que, pela vontade, o homem fazcoisas no mundo graas ao sentimento de poder-fazer que acompanhatodo o acto de querer.

    H um eu-posso inerente a cada eu-quero, e este eu-possoimpe ao eu-quero limitaes que no so alheias prpriaactividade de querer.18

    16 Duns ESCOTO, Ordinatio I, dist. 2 p.I,q. 1-2, p. I, n. 86; Ed. VatII, p.178:Ad secundum dico quod non voco hic contingens quodcumque non-necessarium velnon-sempiternum, sed cujus oppositum posset fieri quanto illud fit. Ideo dixit aliquidcontingenter causatur et non aliquid est contingens. (De Primo principio, IV, n.6).

    17 Jos ROSA, Da metafsica da contingncia existentia como liberdade em JooDuns Escoto, in Itinerarium, LV (2009), p.497 (no prelo).

    18 Hannah ARENDT, A Vida do Esprito, Volume II, Querer, p.154.

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    pela obra que a vontade se [re]actualiza, tal como a actividadeda luz pode subsistir e manter a sua constncia interior porque per-manentemenete renovada a partir da sua fonte.19 Isto significa que sna aco que a liberdade se pode concretizar e realizar.

    Se os medievais se movimentavam em contexto teolgico, Descar-tes, por sua vez, abordar a vontade numa perspectiva epistemolgica.Para o juzo concorrem o entendimento e a vontade e deste encontroque podem nascer os erros na medida em que a vontade, sendo seme-lhana de Deus, infinita, enquanto o entendimento limitado, emborainfalvel sempre que esteja em presena de ideias claras e distintas.

    S no que toca vontade que sinto ser, em mim, togrande, que no concebo a ideia de nenhuma outra [fa-culdade] mais ampla e mais extensa: de modo que prin-cipalmente por ela que sei que trago em mim a imagem esemelhana de Deus. (. . . )De onde nascem ento os meuserros? Apenas de que sendo a vontade muito mais am-pla e abrangente que o entendimento, no a contenho nosmesmos limites, mas estendo-a tambm a coisas que nocompreendo, e a vontade, indiferente a elas, facilmente seextravia, tomando o mal por bem ou o falso por verdadeiro isto, de resto, que faz no s com que me engane, mastambm com que peque.20

    Descartes considera, de uma maneira geral, a evidncia como razosuficiente da determinao voluntria, admitindo mesmo que, sempreque a vontade esteja em presena de uma ideia distinta e clara, difi-cilmente poder no a aceitar. Mas esta vocao da vontade para aclareza do entendimento, ao invs de representar uma diminuio daliberdade, constitui muito pelo contrrio, a sua mais elevada forma. Aliberdade no indiferena, porque esta s se d quando a vontade,

    19 Ibidem.20 Ren DESCARTES, Meditaes Metafsicas, Rs, Porto, 2003, IV Meditao

    9, 1.

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    no devidamente esclarecida pelo entendimento acerca da percepodo verdadeiro ou do bem, escolhe indiferentemente.

    Pois para ser livre no necessrio que eu seja indiferentea escolher um ou outro de dois contrrios; em vez disso,quanto mais me inclinar para um, (. . . ) tanto mais livre-mente escolho. (. . . ) No pude impedir-me de julgar queuma coisa que eu concebia to claramente era verdadeira:e no que fosse obrigado a isso por alguma causa exterior,mas apenas porque, a uma grande clareza no meu entendi-mento, se seguiu uma grande inclinao na minha vontade;e assim fui levado a acreditar nisso com mais liberdade doque indiferena.21

    Poder isto significar que face evidncia do conhecimento a von-tade no pode deixar de se inclinar? Descartes, semelhana de DunsEscoto, sustenta que no. A vontade pode sempre dar-se positivamentecomo escolha para alm de qualquer evidncia, se entender que o devefazer como forma de afirmao da liberdade que lhe assiste.

    Quando uma razo muito evidente nos empurra para umlado, ainda que, moralmente falando, ns no possamos demaneira nenhuma ir em sentido contrrio, absolutamentefalando, poderamos ir. Com efeito, -nos sempre possvelrefrear-nos de seguir um bem claramente conhecido ou deadmitir uma verdade evidente, desde que achemos que um bem afirmar com isso o nosso livre arbtrio.22

    21 Ren DESCARTES, Meditaes Metafsicas, IV Meditao 9,11.22 Ren DESCARTES, Lettre au Pre Mesland, 9 fvrier 1645, in Oeuvres

    et Lettres, textes prsents par Andr Bridoux, Gallimard, Paris, 1953, p.1177 :Lorsquune raison trs vidente nous porte dun ct, bien que, moralement par-lant, nous ne puissions gure aller loppos, absolument parlant, nanmoins, nousle pourrions. En effet, il nous est toujours possible de nous retenir de poursuivre unbien clairement connu ou dadmettre une vrit vidente, pourvu que nous pensionsque cest un bien daffirmer par l notre libre arbitre.

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    Assim, a vontade, dotada do poder de afirmar ou negar, tanto podecorroborar a lgica da deliberao como rejeit-la, da mesma maneiraque se assiste a capacidade de obedecer ou desobedecer s normasmorais. Ela o poder absolutamente positivo da liberdade isenta dequaisquer constrangimentos. Vontade e liberdade coincidem. Indife-rente em si mesma, mas receptiva aos motivos, a liberdade umaevidncia interior, apesar da compreenso sobre a conciliao entre aliberdade e a predestinao divina estar para l do nosso entendimento.

    Mas ainda que talvez haja muita gente, que quando con-sidera a preordenao de Deus, no possa compreender co-mo que a nossa liberdade pode subsistir e estar de acordocom ela, no h todavia ningum que, olhando-se apenas asi mesmo, no sinta e no experimente que a vontade e aliberdade no so seno uma mesma coisa, ou melhor queno h qualquer diferena entre o que voluntrio e o que livre.23

    Quando Descartes aplica a dvida universal metdica e hiperblica,est ele prprio a actualizar a liberdade que permite ao homem desligar-se totalmente da natureza e afirmar-se como conscincia que se atestana sua independncia absoluta, como voluntas dubitandi. A dvida correlativa da liberdade. Como faz notar Ferdinand Alqui, situadano tempo, no Discurso, a dvida voluntria na origem da investi-gao, enquanto deciso que rejeita tudo o que at a estava dado comoconhecido, e voluntria no fim da Meditao Primeira, quando d

    23 Ren DESCARTES, Troisimes Objections, rponse lobjection XII sur laquatrime Mditation, in Oeuvres et Lettres, textes presents par Andr Bridoux,Gallimard, Paris, 1953, p.416 : Mais encore que peut-tre il y en ait plusieurs qui,lorsquils considrent la prordination de Dieu, ne peuvent pas comprendre commentnotre libert peut subsister et saccorder avec elle, il ny a nanmoins personne qui,se regardant seulement soi-mme, ne ressente et nexprimente que la volont et lalibert ne sont quune mme chose, ou plutt quil ny a point de diffrence entre cequi est volontaire et ce qui est libre.

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    lugar hiptese do gnio maligno. pelo facto de ser livre que a von-tade pode suspender o nosso juzo e negar o que apenas duvidoso.24

    Grande parte das questes que se colocam anlise cartesiana derivamda recorrente identificao entre vontade livre e liberdade cosmolgicacom a consequente confuso entre motivo e causa. Como conciliar aideia da possibilidade da existncia da vontade como um poder estru-turalmente indiferente com a ideia da sua inclinao para este ou paraaquele motivo? Afirmar a vontade como uma evidncia interior noparece ser suficiente, na medida em que o sentimento do livre arbtriopermanece subjectivo enquanto que toda a aco por ser feita no mun-do est sujeita lei da causalidade natural. Uma conciliao possvelentre a vontade e a natureza seria reduzir a liberdade da vontade ca-pacidade de escolha entre os objectos ou as realidades presentes nomundo. Mas, em tal hiptese, a vontade no seria muito mais que umaespcie de prudncia, destituda do poder inventivo que lhe assiste napossibilidade de criar o novo.

    O esforo de Kant vai no sentido de demonstrar que a vontade, nos livre da necessidade natural, como ainda autnoma no sentidoem que d a si mesma as suas prprias leis, as quais devero ser v-lidas para todos os seres racionais. Isto significa que devem perder asubjectividade a fim de se converterem em princpios objectivos.

    Assim, segundo Kant, a liberdade no mundo fenomenal no podeser estabelecida porque tal suporia que uma srie de causas e efeitospudesse comear absolutamente. O entendimento que lida com a expe-rincia segundo a intuio espcio-temporal s conhece o condicionadono podendo em circunstncia alguma aceder a uma causa primeira.Todavia, a razo inconformada sente necessidade de conceber a tota-lidade do mundo unificada sob um princpio incondicionado e assimque a liberdade pressuposta como uma ideia transcendental pura. nasequncia deste raciocnio que Kant admite a existncia de dois tipos decausalidade, a saber, a causalidade segundo a natureza e a causalidadesegundo a liberdade.

    24 Cf. Ferdinand ALQUI, A Filosofia de Descartes, Presena, Lisboa, 1993, p.65.

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    A primeira [espcie de causalidade] , no mundo sensv-el, a ligao de um estado com o precedente, em que umse segue ao outro segundo uma regra. (. . . ) Como, porm,desse modo, no se pode obter a totalidade absoluta dascondies na relao causal, a razo cria a ideia de umaespontaneidade que poderia comear a agir por si mesma,sem que uma outra causa tivesse devido preced-la (. . . ) Aliberdade , neste sentido, uma ideia transcendental puraque, em primeiro lugar, nada contm extrado da experin-cia e cujo objecto, em segundo lugar, no pode ser dado demaneira determinada em nenhuma experincia.25

    Ento, como no pode ser provada nem negada, a liberdade assimconceptualizada converte-se numa antinomia da razo, uma vez quenas antinomias podemos sustentar simultaneamente duas teses sem queseja possvel concluir racionalmente por uma.

    A antinomia da razo pura colocar diante dos olhos osprincpios transcendentais de uma pretensa cosmologia pu-ra (racional), no para a considerar vlida e dela se apro-priar, mas, como j indica a expresso de conflito da razo,para a revelar na sua aparncia deslumbrante, mas falsa,como uma ideia que no se pode conciliar com os fen-menos.26

    Podemos negar a possibilidade de conhecer a liberdade mas temosque a postular se quisermos que o mundo tenha um sentido. Bas-ta que a razo especulativa pense a possibilidade de uma causalidadeno incompatvel com a causalidade natural para que a razo se sin-ta apaziguada no seu desejo de totalidade. Kant afasta assim a ideia

    25 Immanuel KANT, Crtica da Razo Pura, Dialctica Transcendental, LivroSegundo, Cap. II, Nona Seco, III, B561, FCG, Lisboa, 2001, p.463.

    26 Immanuel KANT, Crtica da Razo Pura, Dialctica Transcendental, LivroSegundo, Primeira seco, B435, p. 380.

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    de liberdade como derivao de um sentimento interior que, enquan-to vivncia de uma subjectividade incarnada, no pode revelar umacausalidade no sensvel. a ideia transcendental da liberdade, en-quanto possibilidade de comear por si uma ordem causal, que funda-mentar o conceito prtico da mesma como condio para toda a acoverdadeiramente livre no mundo. Afinal o mundo na sua totalidadeno apenas a natureza mas tambm tudo aquilo que resulta da acohumana.

    A liberdade no sentido prtico a independncia do ar-btrio frente coaco dos impulsos da sensibilidade. Naverdade, um arbtrio sensvel, na medida em que pato-logicamente afectado pelos mbiles da sensibilidade. (. . . )O arbtrio humano , sem dvida, um arbitrium sensitivum(. . . ) mas um arbitrium liberum porque a sensibilidadeno torna necessria a sua aco e o homem possui a ca-pacidade de determinar-se por si, independentemente dacoaco dos impulsos sensveis.27

    Mas esta uma concepo de liberdade negativa. O conceito positi-vo de liberdade ser fornecido pela razo prtica atravs do imperativocategrico ou lei moral. Por isso a lei moral a ratio cognoscendi daliberdade e a liberdade a ratio essendi da lei moral.

    Existe uma dualidade na natureza humana derivada do facto da suaparticipao do mundo sensvel e do mundo inteligvel. Assim se afaculdade de desejo for accionada pelas representaes de objectos sen-sveis dizemos que a matria o princpio determinante, e nesta situa-o a regra da vontade sujeita a uma condio emprica pode ser vlidamas nunca universalmente. Mas sempre que for determinada pela re-presentao de uma forma pura est a dar-se na sua verso superior devontade boa, sob a gide da lei moral. A legislao universal da moral dada pelo imperativo categrico.

    27 Immanuel KANT, Crtica da Razo Pura, Dialctica Transcendental, LivroSegundo, Cap. II, Nona Seco, III, B 562.

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    De uma lei, quando se eliminou toda a matria, isto , ca-da objecto da vontade (como princpio determinante), na-da mais resta do que a simples forma de uma legislaouniversal.28

    S a conformidade da mxima da aco (a sua formulao sub-jectiva), legalidade pura prtica (o facto de obrigar toda a vontaderacional), que pode ser objecto do imperativo categrico e nunca oseu contedo. A forma de uma lei universal seja qual for o seu con-tedo. Assim, o imperativo categrico exige que a mxima da acose possa ter a si mesma por objecto como lei universal e que contenhasimultaneamente em si a sua prpria validade para todo o ser racional.

    S pode ser objecto de respeito e portanto mandamen-to aquilo que est ligado minha vontade somente comoprincpio e nunca como efeito, no aquilo que serve min-ha inclinao mas o que a domina ou que, pelo menos, aexclui do clculo // na escolha, quer dizer a simples leipor si mesma. Ora se uma aco realizada por dever deveeliminar totalmente a influncia da inclinao e com elatodo o objecto da vontade, nada mais resta vontade quea possa determinar do que a lei objectivamente, e, subjec-tivamente, o puro respeito por esta lei prtica, e por con-seguinte a mxima que manda obedecer a essa lei, mesmocom prejuzo de todas as minhas inclinaes.29

    O conceito de liberdade em Kant aparece ento intimamente li-gado moralidade e racionalidade. O imperativo categrico pos-svel graas pressuposio da liberdade transcendental que, enquantocausalidade da vontade, determina a sua autonomia. a liberdade que

    28 Immanuel KANT, Crtica da Razo Prtica, Lisboa, Ed.70, 1994, LivroPrimeiro, Captulo I, 4, Teorema III, p.38.

    29 Immanuel KANT, Fundamentao da Metafsica dos Costumes, PrimeiraSeco, Ed. 70, Lisboa, p.31.

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    permite ao homem, como ser racional, participar do mundo inteligvel,isto , do mundo moral. Mas o imperativo categrico no s se deduzda liberdade como tambm se auto-justifica enquanto facto da razo.

    Lembrarei apenas que a liberdade certamente a ratioessendi da lei moral, mas que a lei moral constitui a ratiocognoscendi da liberdade. Com efeito, se a lei moral nofosse antes nitidamente pensada na nossa razo, nunca nosconsideraramos autorizados a admitir algo como a liber-dade. Mas, se no houvesse nenhuma liberdade, de modoalgum se encontraria em ns a lei moral.30

    A grande questo que se coloca anlise kantiana sobre a von-tade diz respeito excluso total da sensibilidade da esfera da autode-terminao. Kant parece dissociar irremediavelmente a vontade e odesejo. Embora se conceda facilmente que os mbiles afectivos nodeterminem necessariamente a vontade, sob pena da ideia de autono-mia perder todo o sentido, parece todavia incompreensvel o processode deciso sem o contributo do sensvel. A explicao de Kant, almde confundir motivo e causa, na medida em que toda a sua argumen-tao se apoia na associao da ideia de espontaneidade com a ideia deliberdade enquanto conceito da filosofia prtica, parece estabelecer umfosso intransponvel entre a vida afectiva e a motivao voluntria.

    A vontade kantiana encerrada sobre si mesma, na irredutibilidadeformal da abstraco que lhe prpria, ainda no constitui, segundoHegel, a verdade da vontade, porque a verdade s se alcana na unioda forma com o contedo. O conceito verdadeiro, ou seja, a Ideia, o nico que possui realidade porque ele prprio a assume para si aodar-se uma forma concreta.

    A forma a razo como conhecimento conceptual e ocontedo a razo como essncia substancial da realidade

    30 Immanuel KANT, Crtica da Razo Prtica, Ed. 70, Lisboa, Prefcio, p.12.

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    moral e tambm natural. A identidade consciente do con-tedo e forma a Ideia filosfica.31

    Por isso, uma coisa o formal que em si e outra coisa o realque para si. A vontade que livre s em si, possui apenas realidadeconceptual. S depois de se apropriar conscientemente de si mesma que alcana a sua verdade tornando-se vontade para si.

    assim que a vontade s em si, ou para ns, livre ou,noutros termos, s no seu conceito vontade. a partirdo momento em que se toma a si mesma por objecto, quepassa a ser para si o que em si.32

    Podemos alegar que Kant tambm defende que a vontade livre a que se toma a si mesma por objecto, mas a interpretao kantianad-se em contexto ideal. O sentido de Hegel outro. preciso quea liberdade saia do patamar da abstraco e se torne a realidade domundo.

    Na obra Princpios da Filosofia do Direito, Hegel desenvolve umateoria generalizada sobre a dialctica da vontade nas suas determi-naes sucessivas, desde o primeiro momento em que se d como sim-ples pulso at ao momento final em que se assume como vontadeefectiva e concreta na figura superior do Estado racional.

    essncia da vontade pertence a indeterminao pura, o puro pen-samento de si mesmo, a infinitude ilimitada da abstraco sobre todoo contedo. Mas este modo da vontade, enquanto abstraco de todaa determinao, no indeterminado em si mesmo, na medida em queessa abstraco a sua prpria determinao ontolgica.

    O primeiro elemento (indeterminao) (. . . ) uma vez que abstraco de toda a determinao, no ele mesmo in-determinado pois o seu ser abstracto e unilateral constitui

    31 Friedrich HEGEL, Princpios da Filosofia do Direito, Guimares Editores,Lisboa, 1990, Prefcio, p.16.

    32 Friedrich HEGEL, Princpios da Filosofia do Direito, 10, p.36

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    a sua especfica determinao, a sua insuficincia, a suafinitude.33

    Este modo da vontade, em que ela foge de todo o contedo e que oentendimento representa para si como liberdade, no mais que liber-dade negativa ou liberdade do vazio. aqui que reside o perigo, porquea vontade que no se d um contedo e apenas se afirma como acordoformal consigo, como liberdade do vazio, insuficiente para prescrevera aco pois est sujeita ao erro.

    Pode ela (liberdade do vazio) manifestar-se como umafigura real, e torna-se uma paixo. (. . . ) Caso se voltepara a aco, teremos, tanto em poltica como em religio,o fanatismo de destruio de toda a ordem social existente(. . . ) o aniquilamento de tudo o que se apresente comoorganizao.34

    Mas vontade pertence tambm a possibilidade de sair deste mo-mento puramente indeterminado dando-se um contedo e um objecto.Este momento tambm ele mesmo negatividade, enquanto aboliodo primeiro. A vontade s real quando realiza a sntese destes doiselementos, isto , quando efectivamente se d uma determinao quelhe permita realizar-se como particularizao reflectida.

    Toda a conscincia se concebe como um universal co-mo possibilidade de se abstrair de todo o contedo ecomo um particular que tem um certo objecto, um certocontedo, um certo fim. No entanto, estes dois momentosso apenas abstraces; o que concreto e verdadeiro soo universal que tem no particular o seu oposto, mas numparticular que, graas reflexo que em si mesmo faz, est

    33 Friedrich HEGEL, Princpios da Filosofia do Direito, 5, p.32.34 HEGEL, Princpios da Filosofia do Direito, 5, p.31.

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    em concordncia com o universal. A respectiva unidade a individualidade.35

    Mas, at alcanar o momento supremo em que se torna livre parasi, a vontade passa por patamares intermdios como seja o realizar-seatravs de projectos e da mediao dos meios adequados aos fins que seprope, numa palavra, atravs da deciso. Assim, no primeiro momen-to de determinao do conceito, o querer, suprimindo a indeterminao,irrompe como vontade de um indivduo em particular, no seio da massainforme de instintos e tendncias que constituem as primeiras determi-naes da vontade imediata e natural. A vontade subjectiva afirma-seento como deciso e a sua liberdade constitui o livre arbtrio. Nestecaso a vontade finita porque, embora formalmente infinita, encontra-se motivada pelas suas determinaes naturais e pela realidade exterior,porque no pode querer seno o que lhe imediatamente dado.

    A representao mais vulgar que da liberdade se faz, ado livre arbtrio, meio-termo que a reflexo introduz entre avontade simplesmente determinada pelos instintos naturaise a vontade livre em si e para si.36

    Mas, esta vontade finita ou livre arbtrio, que aprecia e mede osinstintos e escolhe entre eles, aspira libertar-se do determinismo na-tural imediato procurando de alguma forma racionalizar o seu quer-er. Encontramos aqui o sujeito moral kantiano que quer livremente aliberdade, mas no quer nada em particular. Este momento, alm deser fundamental para libertar a vontade da exterioridade, tem o mrito,segundo Hegel, de indiciar a verdadeira natureza universal e portantoracional do contedo imediato da vontade natural.

    Com o nome da purificao dos instintos, representa-seem geral a necessidade de os libertar da sua forma de de-terminismo natural imediato, da subjectividade e da con-tingncia do seu contedo, para os referir essncia que

    35 HEGEL, Princpios da Filosofia do Direito, 7, p.34.36 HEGEL, Princpios da Filosofia do Direito, 14, p.39.

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    lhes substancial. O que h de verdade nesta aspiraoimprecisa, que os instintos devem reconhecer-se como osistema racional de determinao voluntria.37

    Segue-se daqui que, para haver liberdade verdadeira, necessrioque o contedo da vontade finita seja elevado ao universal. Os dadosde conscincia que o homem descobre em si, como sejam o instinto dasexualidade, de sobrevivncia ou de sociabilidade, devero ser apreen-didos conceptualmente enquanto formas universais pela vontade refle-xiva. Nesta apreenso a imediatidade da natureza e a particularidadeso ultrapassadas e a vontade, que o universal indeterminado em si,ao dar-se um contedo tambm ele universal passa a ser livre para si.

    Aplicada aos instintos, a reflexo traz-lhes a forma dageneralidade representando-os, medindo-os, comparando-os uns com os outros, mas tambm com as suas condiese suas consequncias e ainda com a satisfao total de-les (felicidade). Assim os purifica exteriormente da suaferocidade e barbrie.38

    Para Hegel, ento, uma vontade indeterminada, abstracta, umavontade vazia. Assim concebida, a vontade, ao dar-se como acto ab-solutamente puro, independente de qualquer motivao, uma vontadecega. preciso que a vontade se d como o poder que escolhe entreas suas determinaes, no as negando mas antes reconhecendo nelas asua necessidade universal e substancial. A vontade livre no pela suaindeterminao, mas sim pela particularizao da escolha. A esta luzser a escolha, enquanto aco moral e reflectida, que me torna sujeitode imputao moral.

    * * *37 HEGEL, Princpios da Filosofia do Direito, 19, p.41.38 HEGEL, Princpios da Filosofia do Direito, 20, p.42.

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    Este apontamento introdutrio sobre a evoluo do sentido do con-ceito de vontade, embora sumrio, importante para nos situarmos nombito da questo que propomos reflexo. At Hegel, a filosofia pen-sou a vontade sempre num horizonte de referncia ao Absoluto porqueessa foi a referncia que a filosofia foi beber ao cristianismo. A ideia daliberdade e da vontade nasce com uno divina. Descartes, que levadoa derivar Deus da necessidade de suportar ontologicamente a existn-cia solipsista do cogito, pensa a vontade como infinita considerando-aa mais divina das faculdades. Kant, no se comprometendo especulati-vamente com a ideia de Deus, que em seu entender uma antinomia darazo, acaba por desembocar na admisso da existncia de Deus comoum postulado da razo pura prtica. Assim, a posse do bem sobera-no, ou seja, a fuso da felicidade (desejo) e da virtude (vontade moral)exige uma harmonia entre a natureza e a vontade Ora este horizonteimplica a pressuposio de um bem soberano primordial, Deus, cu-ja causalidade sobre a natureza seja conforme moralidade.39 ComHegel, a razo universal kantiana adquire um estatuto assumidamentedivino. Ela o prprio Esprito, o Ser, o Absoluto que para se realizarsai de si e nega-se para depois voltar a si. Por isso a vontade individuallivre s possvel quando a conscincia, reconhecendo na necessidadesubstancial e universal o prprio ser, se coloca ao servio dessa neces-sidade. assim que cada individuo se torna um momento da cadeiaque o Todo.

    Vimos que o conceito de liberdade referido aco humana foisendo gradualmento absorvido pelo conceito de vontade de tal formaque um no pensvel sem o outro. Contudo, sabemos que existe nohomem um fundo de natureza invencvel que advm do prprio factobruto da sua existncia e que constitui por si um limite ao exerccioda vontade. Todavia, essa aparente contradio entre a liberdade e anatureza, que o homem sente como sofrimento e o entendimento pen-sa como um dualismo intransponvel, era ultrapassado na referncia

    39 Cf. Immanuel KANT, Crtica da Razo Prtica, Livro II, Captulo II, pp 143-144.

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    Transcendncia que na sua infinitude unificaria o que assim se apresen-ta dividido. A questo que a ps-modernidade nos coloca a de sabercomo pensar o homem, a vida e o mundo fora da referncia ao Abso-luto. Hoje assume-se que no h verdade, mas sim verdades e Deus definitivamente uma questo da f. a mesma razo que matou Deusque busca desesperadamente um princpio unificador que possa col-matar a nossa profunda nostalgia de absoluto. Onde, como e partir dequ, poderemos restabelecer a unidade que o pensamento clama comocondio para a sua prpria realizao? O drama humano gira sempre volta dessa fome endmica de unidade. Se o pensamento conseguisseunificar o seu conhecimento do mundo com o prprio mundo e assimencontrasse um sentido possvel para a vida, bastar-se-ia a si mesmo.

    Se o homem reconhecesse que o universo tambm podeamar e sofrer, reconciliar-se-ia com ele. Se o pensamentodescobrisse, em espelhos cambiantes, fenmenos, relaeseternas que pudessem resumi-los e resumir-se a si prpriasnum princpio nico, poder-se-ia falar de uma felicidadedo esprito, ao p da qual o mito dos bem-aventurados noseria mais do que uma ridcula falsificao.40

    Uma das poucas certezas a que podemos aceder certeza danossa existncia, dada entre um nascimento contingente e uma mortenecessria. Sobre um tal pano de fundo e sem sada para uma Trans-cendncia que unifique e reconcilie o homem com a sua condio, deque forma poderemos pensar a liberdade? Afastada a ideia de um Deuscriador haver razes para colocarmos a questo metafsica da liber-dade em si? Vivemos com a convico de que pensamos e agimos co-mo sendo positivamente livres, mas a reflexo sobre a nossa existnciacomo facto bruto consciencializa-nos da aparente inutilidade da nossavida face morte, que de repente emerge como a nica realidade. Apartir deste facto, podemos extrair dois juzos aparentemente contra-

    40 CAMUS, O Mito de Ssifo, Livros do Brasil, Lisboa, 2007, p.28.

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    ditrios. Um interroga-se sobre a possibilidade de uma vontade ver-dadeiramente livre face dependncia relativamente necessidade. Ooutro, dado que se morre e Deus no existe, diz-nos que tudo permiti-do, uma vez que todas as experincias so equivalentes. A necessidadenega a vontade e a vontade nega a necessidade. Resta saber se existe al-guma frmula que nos permita desatar esta espcie de n grdio ondea oposio maniquesta entre a natureza e a liberdade nos parece teraprisionado.

    sobre esta questo que queremos reflectir. Uma vez que esta-mos fora de qualquer referncia Transcendncia teremos que circuns-crever a vontade num quadro estritamente humano. Assim, iremosver at onde nos pode levar a anlise fenomenolgica da vontade. Afenomenologia, representando o regresso s prprias coisas e qui-lo que elas nos revelam, parece constituir, partida, o mtodo maisadequado para uma abordagem da vontade pautada pela ausncia dequalquer pressuposio. Tal como faz notar Jean Greisch, ao prefaciarRicoeur, em Finitude et Culpabilit,

    boa ou m a vontade antes de tudo a vontade um ac-to constitutivo da conscincia humana, enquanto ela in-tencional, conscincia de qualquer coisa. Da a necessi-dade de descrever to rigorosamente quanto possvel, asestruturas e manifestaes essenciais do voluntrio e doinvoluntrio.41

    Como j referimos, a vontade no pode ser analisada fenomeno-logicamente em si mesma mas apenas atravs dos seus actos. poisao acto voluntrio que nos dirigimos na expectativa de alcanarmos a

    41 Jean GREISCH, Prefcio, in Philosophie de la volont, Finitude et Culpabilit,de Paul Ricoeur, ditions Points, Paris, 2009, p.7: Quelle soit bonne au mauvaise,la volont est dabord la volont un acte constitutif da la conscience humaine en tantquelle est intentionnelle, conscience de quelque chose. Do la ncessit de dcrire,aussi rigoureusement que possible, les structures et manifestations essentielles duvolontaire et de linvolontaire.

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    compreenso das suas estruturas fundamentais, na radicalidade da suaimanncia, isto , anteriormente a qualquer considerao de ordem detica e fora de qualquer referncia ao Absoluto.

    Vamos seguir de perto o pensamento de Paul Ricoeur na obra LeVolontaire et lInvolontaire que constitui a Primeira Parte da trilogiaprojectada sob o nome de Philosophie de la Volont. A, Ricoeur pro-cede a um exaustivo e meticuloso estudo das estruturas do acto vo-luntrio. Decidir, agir e consentir aparecero como os trs momentosconstitutivos do acto voluntrio. Ricoeur coloca em suspenso a Faltaporque, sendo acidental, no constitutiva da vontade e consequente-mente no cabe numa descrio das essncias; a falta ser objecto deuma emprica da vontade que dar corpo Segunda Parte da trilo-gia. Por outro lado, na medida em que a falta s falta por relao Transcendncia, posto que perante Deus que o homem a experimenta,torna-se tambm necessrio suspender a Transcendncia.

    A sua anlise, embora respeitando a neutralidade prpria da feno-menologia, orientada pelo ideal de unidade da pessoa humana. esteideal que constitui a inteno propriamente filosfica que est implcitano estudo descritivo. assim que a reciprocidade do voluntrio e doinvoluntrio, revelada pela descrio, aparece como uma proposta demediao prtica entre a liberdade e a natureza. A conscincia pen-sa a liberdade e a natureza como duas realidades diferentes e inconci-liveis. Isto acontece porque, por um lado, a conscincia tem o poder dese separar reflexivamente e, por outro lado, nesse mesmo movimento,a conscincia reenvia o corpo para o mundo objectivo. A anlise des-critiva do acto voluntrio, tal como levada a cabo por Ricoeur, mostrar-nos- como a vontade realiza praticamente a sntese entre o seu poderlivre e o seu fundo de natureza dado pelo involuntrio corporal.

    Mas a unidade entre o querer e o mover que a descrio ir desve-lando no de forma alguma pacfica. Desde logo porque est sempreno limite de ser quebrada pelo esforo. Alm disso, existem factoresincontornveis que fornecem uma contrapartida de necessidade a todaa moo voluntria.

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    Aquilo que se passa que toda a aco que eu inauguro, enquantoexerccio livre da vontade, tem como contraponto um fundo de naturezainvencvel que constituda pelas formas mais subtis de necessidade,que so o meu carcter, o meu inconsciente e o prprio facto de exis-tir. O meu carcter, que no seno a minha maneira de ser prpria,determina a parcialidade dos meus motivos e da minha aco. O meuinconsciente representa o fundo brumoso da minha histria pessoal einfluencia inegavelmente todo o meu comportamento. E finalmente, oprprio facto de estar viva, graas a um nascimento que se deu fora domeu querer, condio e limite da prpria conscincia.

    So estes limites, naquilo que possuem de invencvel e de fatidica-mente necessrio, que colocam a conscincia no caminho da recusa dasua condio. A negao pode assumir diferentes aspectos, tais comosuicdio, evaso ou revolta, mas sempre por causa do meu corpo edos seus limites que ela se instaura. Enquanto o suicdio e a evasoconstituem as fugas da conscincia condio fctica da sua existn-cia, a revolta afirma-se dentro dessa condio, no a aceitando mas simafrontando-a.

    A negao constitui-se assim como a primeira resposta da reflexoao facto bruto de existir. Por se sentir negada no seu voto de totalidade,transparncia e auto-posio, ao No da condio a liberdade ripostacom o No da recusa.42 Aquilo que a reflexo sobre a condio hu-mana pensa primeiramente a recusa, porque s a negao compatv-el com o dualismo do entendimento. A negao representa a coernciada conscincia reflexiva consigo mesma, por oposio sua naturezaencarnada e ao mundo como necessidade.

    Assim, e sem perder de vista o fio condutor do pensamento deRicoeur, faremos um desvio, por nossa conta e risco, no sentido dealargarmos um pouco mais a nossa reflexo sobre a recusa. Nestesentido, e porque nos pareceu interessante focar um caso particular derecusa, iremos recorrer a Camus.

    42 Cf. Paul RICOEUR, Philosophie de la volont I, Le volontaire et linvolontaire,p.435.

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    Camus permitir-nos- aprofundar o sentido da revolta com a suatese sobre o absurdo. Para Camus, a revolta nasce do sentimento doabsurdo que o homem experiencia quando se apercebe do no sentidoda existncia. Face morte, todas as coisas so equivalentes e por essarazo no interessa escolher, mas sim viver apaixonadamente o maiornmero possvel de experincias.

    sobre a recusa que o consentimento da liberdade com a sua condi-o dever ser reconquistado, ainda que dolorosamente e nunca total-mente. A tristeza do finito43, em particular o sofrimento, ser sempreum obstculo intransponvel nessa espcie de via sacra que constituio caminho do consentimento. por essa razo que o consentimen-to s pode ser alcanado pela transcenso da descrio pura por umametafsica da criao.

    Assim, o ideal filosfico de unidade da pessoa que orientou a anli-se fenomenolgica permanece uma ideia-limite, uma ideia reguladorano sentido kantiano. Mas essa ideia em vazio, que a unidade entrea vontade e o corpo prprio, entre a liberdade e a natureza, enquantoprincpio unificador, pertence por direito a uma teoria da subjectivi-dade. Em contrapartida, a sua concretizao efectiva atravs do con-sentimento pertence j a uma potica da esperana que faz apelo Transcendncia.

    So vrios os autores sobre os quais Ricoeur exerce a sua reflexocrtica, com destaque para Husserl, Descartes, Kant, e Gabriel Marcel.A meditao da obra de Marcel a quem Ricoeur dedica o livro est naorigem das anlises a desenvolvidas.44 De resto, o ttulo do Segun-do Captulo da Terceira Parte, Da Recusa ao Consentimento, evocamesmo a obra de Marcel intitulada Da Recusa Invocao. Assim,dada a proximidade de pensamento existente entre ambos, citaremospor vezes Marcel a favor de Ricoeur.

    43 Ricoeur designa como tristeza do finito a tristeza que o homem transporta nofundo de si mesmo e que aparece associada a todas as experincias que comportamuma qualquer forma de negao.

    44 Cf. Paul RICOEUR, Philosophie de la volont I, Le volontaire et linvolontaire,p.18.

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    O nosso trabalho apresenta-se estruturado em trs partes. Na Pri-meira Parte analisamos o primeiro aspecto da vontade que a descriorevela, a deciso. Na deciso, o momento reflexivo, decidir-se, d-se a partir de uma inteno direccionada para um projecto. Mas essemovimento para contm ele mesmo um momento receptivo que se dno acolhimento da motivao: eu decido-me a fazer algo porque. . .

    Na Segunda Parte, a descrio fenomenolgica mostrar que o agir,atravs do corpo, coloca o projecto no mundo, preenchendo assim ainteno vazia da deciso. No agir a reflexo surge com o esforo,sempre que a aco se confronta com algum tipo de obstculo, seja aonvel do corpo prprio seja ao nvel das coisas.

    Na Terceira Parte, trataremos o terceiro momento do acto volun-trio: consentir. Assim analisamos os trs aspectos do involuntrioque a descrio no contemplou e que dizem respeito ao involuntrioconsiderado na perspectiva de uma subjectividade especfica: o carc-ter, o inconsciente e o facto de existir. Estes aspectos so extremamenteproblemticos dado o seu cariz necessrio, uma vez que eu no os possomudar.

    O consentimento, como terceiro ciclo do involuntrio, representa aligao assumida pela vontade entre o poder da liberdade e a paixo danecessidade. Mas como o consentimento nunca totalmente alcana-do, o momento reflexivo da conscincia relativamente sua condioconstitui-se como recusa: a conscincia quer-se a si mesma total, trans-parente e como acto puro. Assim analisaremos duas formas de recusa,o suicdio e a revolta.

    sobre a recusa que o consentimento ser reconquistado. O desviopelo consentimento estico e pelo consentimento rfico permitir-nos- apreender o verdadeiro sentido da subjectividade pela reconciliaocom o mundo. O estoicismo e o orfismo, no constituindo um con-sentimento pleno, so contudo uma porta de abertura para esse con-sentimento. Assim, viso do mundo como hostililidade, prpria danegao, estas doutrinas opem uma viso exaltada e amorosa do mun-do. assim que a conscincia intui que no o centro do Ser, mas

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    que apenas um ser entre os seres. Descobrindo-se criatura o homemdescobre, no mesmo movimento, o mundo como cifra do Criador. Estesalto para a Transcendncia pertence j a uma potica da esperanaque transcende a descrio pura. assim que a liberdade faz o seucaminho desde a recusa at ao consentimento. Negadora, descobre-senegada e humilhada para, finalmente, poder assumir os seus limites epoder considerar a reconciliao.

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    Ia PARTE

    DECIDIR-SE

    Pela deciso eu designo em vazio uma aco futura que est em meupoder, o que significa que a deciso constitui um acto da conscinciaque se d como objecto intencional uma determinada coisa a ser feitapor mim. Essa coisa o projecto e ser a partir dele que poderemosdesvendar as estruturas do decidir, como sejam o seu carcter futuroe categrico. Assim, a dimenso futura do projecto revela a possibili-dade de criar o novo que prpria da vontade, enquanto a enunciaocategrica estabelece a diferena entre a deciso e outros actos inten-cionais que designam tambm em vazio, como a ordem ou o desejo. ainda o projecto que contm a referncia mais primitiva ao agente, namedida em que o eu est a implicado num modo pr-reflexivo.

    Por outro lado, o juzo de reflexo sobre a aco prpria, isto , so-bre o decidir-se, mostra-nos a dinmica da deciso: o surgimento doprojecto e a sua motivao. A motivao revelar que o corpo prprioconstitui a mais primitiva e radical fonte valores para uma vontade quedecide. O projecto, que surge como escolha, representa simultanea-mente a paragem da deliberao e a irrupo do novo. Ele , no ape-nas, o corolrio da ponderao da conscincia sobre os valores, mastambm, o acto da vontade que se afirma por si. O processo delib-erativo que antecede toda a escolha d-se como uma dialctica entrea receptividade da ateno aos valores, que considera ou no este ou

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    aquele motivo, e o poder dessa mesma ateno para se imobilizar quan-do quer. a mesma indeterminao da liberdade que est na base dadeciso segundo valores e na determinao de si por si.

    Compreender o acto voluntrio tambm compreender as suas es-truturas involuntrias, que s so apreensveis pela mediao volun-tria. Por essa razo, a nossa anlise parte sempre do acto voluntrioque a unidade que traz em si o mltiplo involuntrio. Este no seapresentando em pessoa d-se por intermdio da aco voluntria.

    Assim, ao colocar a tnica da deciso no seu carcter intencional eprojectivo, Ricoeur elimina qualquer remisso da necessidade involun-tria para o campo do determinismo.

    1. O projecto

    Enquanto objecto intencional da conscincia decisora, o projecto revelao impulso da vontade para o futuro. A prpria raiz etimolgica dapalavra, o verbo latino projicere, que significa lanar para a frente,transmite esse sentido.

    Mas este movimento da conscincia para o futuro no se esgotacom a deciso, porque o futuro representa o apelo irresistvel a querespondem todos os meus poderes, os meus anseios, os meus receios eas minhas angstias. O futuro contm o imprio da minha liberdade ea esperana da minha felicidade, mas tambm o espectro da desgraae a necessidade da minha morte e por essa razo o futuro desejado etemido. Esta ambivalncia do futuro leva Ricoeur a ler a orientao daconscincia para o futuro, no tanto como um impulso mas sim comoa condio mesma desse impulso. O facto da conscincia se projectarpara o futuro, que tanto condio do impulso quanto condio doreceio, indicia que o futuro constitutivo da subjectividade.

    O futuro do projecto, inventado por mim, um futuro visado emvazio, esttico, sem antes nem depois, reversvel e descontnuo. O fu-turo, na medida em que no est dado, representa o palco possvel para

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    as possibilidades do meu agir. Em contrapartida, no desejo, na ordemou no receio, que, tal como a deciso, constituem tipos de juzos prti-cos, o futuro, no sendo criado por mim, s pode ser encontrado. Se,pelo projecto, eu ajo sobre o futuro determinando-me segundo a minhaliberdade, em contrapartida, pela ordem, pelo desejo ou pelo receio, eusubmeto-me contingncia do futuro.

    Mas l, nesse futuro por mim inventado, at onde poder ir a in-fluncia da minha vontade? Terei poder para criar a partir do nada oudeverei condescender com as circunstncias que esto fora das minhascompetncias? que o futuro tambm pode ser visado pela conscin-cia terica atravs da previso, e o meu projecto no pode ignorar essefuturo que a previso pe a descoberto. Assim, entre o futuro da de-ciso e o futuro da previso deve ser estabelecida uma dialctica. Porum lado, no posso ter a arrogncia de pretender lanar o meu projec-to sem levar em conta determinados factores que so incontornveis eque a previso me revela. Mas, por outro lado, a previso s vivel namedida em que supe um futuro que a torne possvel, porque, de fac-to, nada garante conscincia terica que haja um futuro onde as leisanteriormente estabelecidas se concretizem em novas relaes: comoposso estar certa de que haver amanh? por essa razo que tantoa previso como a deciso s so possveis pelo facto de o futuro serconstitutivo da conscincia.

    A pr-viso supe um futuro do mundo que a torne pos-svel; ou, o que vem dar ao mesmo, ela supe que a cons-cincia se coloque frente de si mesma, que ela esteja forade si desta maneira original que consiste em ser para umfuturo, em ter um futuro.45

    45 Paul RICOEUR, Philosophie de la volont I, Le volontaire et linvolontaire,p.49: La pr-vision suppose un futur du monde que la rend possible; ou ce que re-vient au mme elle suppose que la conscience se porte en avant d elle-mme, quellesoit hors de soi de cette faon original qui consiste tre pour un avenir, avoir unavenir.

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    Mas, neste jogo entre o futuro da previso e o futuro do projecto,de que forma se articulam os possveis da conscincia prtica com ospossveis da conscincia terica? E como que tais possveis esto emmeu poder?

    Como para a conscincia terica o possvel sempre logicamenteposterior ao real, a previso do acontecer de uma coisa, que pode sercerto, provvel ou possvel, consoante o grau de possibilidade que ocaracteriza, exige o conhecimento prvio das suas condies de possi-bilidade. Este o nico sentido de possvel admitido pela conscinciaterica. Mas a sequncia lgica que procede do real para o possvel quebrada pelo projecto que, elaborado pela vontade humana, abre nomundo possveis anteriores a todo o real. Na obra A Condio Hu-mana, Hannah Arendt analisa esta capacidade que o homem possui decriar o novo atravs da aco.

    da natureza do incio que se comece algo novo, algo queno pode ser previsto a partir de coisa alguma que tenhaocorrido antes. (. . . ) O facto de o homem ser capaz de agirsignifica que se pode esperar dele o inesperado, que ele capaz de realizar o infinitamente improvvel.46

    pelo facto de possuir uma vontade que o homem tem a nostalgiade poder criar a partir do nada. Feuerbach considera o dogma de f dacriao ex-nihilo como o ponto mais alto na afirmao da divindade davontade, no da vontade da razo, mas da vontade da imaginao, davontade como poder de que existe por si mesmo antes de tudo. Para ohomem, a criao a partir do nada tem o sentido da nulidade do mundo;ela representa o momento culminante do possvel sobre todo o real.47

    Mas dizer que a vontade cria o novo significa apenas que umaparte do real uma realizao voluntria de possibilidades antecipadas

    46 Hannah ARENDT, A Condio Humana, Relgio dgua, Lisboa, 2001, p.226.47 Cf. Ludwig FEUERBACH, A Essncia do Cristianismo, F.C.G, Lisboa, 2008,

    p.126.

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    pelo projecto porque a vontade, estando parcialmente presa s neces-sidades corporais, no pode ser inteiramente criadora e tem que fazerconstantemente acertos entre o possvel que projecta e o possvel queprev. Esta integrao do possvel previsto no seio da aco faz-se porconsentimento. pelo consentimento que o possvel da conscinciaprtica acolhe o possvel da conscincia terica.

    Mas, entretanto, a possibilidade do projecto est intimamente li-gada ao meu sentimento de poder-fazer. o sentimento de poder corpo-ral que consigna o projecto como uma possibilidade real e no apenascomo uma simples quimera.

    No prprio seio do projecto a aco desenha-se comopoder do meu corpo; o possvel no absolutamente vazio;, se se pode dizer, uma possibilidade efectiva e no maisno ar.48

    Por essa razo o possvel completo para o acto de querer consti-tudo pelo projecto mais o poder. o poder do corpo que permite queo possvel criado pelo projecto e o possvel permitido pelo mundo sepossam articular no fazer.

    Resta-nos agora determinar de que forma que eu, que projectopossveis no mundo, sou possvel, uma vez que ao fazer qualquer coisaeu fao-me ser. Qual o meu poder-ser? Determinar qual a possibili-dade de mim mesma que o projecto contm, obriga a reflectir sobre oprprio acto intencional da deciso.

    A dificuldade que se coloca relativamente ao juzo de reflexo so-bre a aco prpria decorre do facto do eu ser simultaneamente quemprojecta e quem executa. Como que a conscincia que est colocadano projecto pode inverter o sentido do acto intencional sem prejuzopara o mesmo?

    48 Paul RICOEUR, Philosophie de la volont I, Le volontaire et linvolontaire,p.53: Au sein mme du project laction est dessine comme pouvoir de mon corps;le possible nest absolument vide; cest si lon peut dire une possibilit effective etnon plus en lair.

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    Antes de mais, preciso no esquecer que a reflexo inerente prpria conscincia: todo o acto intencional parece pressentir a figurasilenciosa do eu. Descartes observou esse facto com muita clareza esimplicidade.

    Pois to evidente que sou eu quem duvida, quem en-tende, e quem deseja, que no h necessidade de acrescen-tar nada para o explicar.49

    E Husserl, nas Meditaes Cartesianas, a propsito da explicitaoda esfera prpria do ego dizia:

    Quando, na reduo transcendental, reflicto sobre mimprprio (. . . ) apercebo-me tambm que j anteriormente,sem me ter captado, estava sempre a para mim numa in-tuio original e, de alguma maneira antecipadamente pre-sente.50

    Se todo o acto intencional contm essa presena em surdina da con-scincia a si mesma, ento a ligao entre o agente e o acto maisfundamental que a reflexo, e dever poder ser surpreendida no prprioimpulso da conscincia para o projecto. Esta relao a si, que ainda no uma reflexo explcita, constitui uma imputao pr-reflexiva do eu:o eu que projecta afirma a sua presena no projecto. A reflexo quandosurge no mais que a tematizao de uma afirmao prtica.

    Torna-se ento claro que toda a primeira implicao demim mesmo no uma relao de conhecimento, um olhar.Comporto-me activamente por relao a mim, determino-

    49 Ren DESCARTES, Medies Metafsicas, II Meditao,9.50 Edmund HUSSERL, Meditaes Cartesianas, Rs, Porto, s. d., 46.

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    me. (. . . ) A imputao pr-reflexiva de si mesmo efi-ciente e no espectacular.51

    Ento esta imputao pr-reflexiva do eu revela que, quando medecido, projecto-me a mim mesma em vazio atribuindo-me um deter-minado comportamento, o que pressupe a obedincia do corpo. Opoder do corpo como que o a priori da minha capacidade para medecidir. A minha primeira possibilidade , por isso mesmo, poder cor-poral para realizar. Mas eu sou tambm possvel como poder ulteriorde decidir. Isto significa que o meu poder-ser no est dado, porque ele de cada vez consoante o que eu fizer: eis ento o sentido da minhapossibilidade que o projecto vem revelar.

    2. A motivao e o involuntrio corporal

    Mas como que surge o projecto? Todo o projecto tem uma histriaque tambm a minha histria. Cada deciso representa o desfecho quese sucede a um processo, por vezes longo e doloroso, onde pondereie confrontei os meus motivos. Porque, efectivamente, teremos queafirm-lo, no h deciso sem motivo. Esta questo a velha questoque sempre se tem colocado possibilidade da autonomia da vontade,e que resulta em grande parte da confuso entre motivo e causa.

    Tal como j havamos referido na Introduo, um motivo no umacausa e portanto no determinante. Enquanto a causa possui o sentidoem si mesma, o motivo s toma o seu sentido completo em relao deciso que nele se apoia. O motivo s motivo porque eu o fao meu.No importa se ele afectivo ou racional, porque o seu valor s se dna reciprocidade com a vontade.

    51 Paul RICOEUR, Philosophie de la volont I, Le volontaire et linvolontaire,p.58: Il est clair alors que la toute premire implication de moi-mme nest pas unrapport de connaissance, un regard. Je me comporte activemente par rapport moi,je me dtermine. (. . . ) Limputation pr-reflexive de soi-mme est agissante et nonspectaculaire.

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    necessrio e suficiente para que uma tendncia seja ummotivo que ela se preste relao recproca das tendnciasafectivas ou racionais que inclinam a vontade e de umadeterminao de si por si que se funde sobre elas.52

    Veremos mais frente como a liberdade tem duas faces, a determi-nao de si por si como acto, e a indeterminao de considerar este ouaquele motivo, como poder. neste sentido que no h deciso semmotivo.

    Mas o valor em que o motivo se constitui para mim anterior aojuzo de valor, porque, enquanto este surge na reflexo, aquele d-seao nvel de uma avaliao pr-reflexiva que o projecto esconde. Es-ta avaliao pr-reflexiva sobre os valores anterior reflexo tica.Para Ricoeur, os valores descobrem-se emocionalmente e no racional-mente. Eles surgem conscincia que decide, num momento histri-co preciso, porque, longe de serem intemporais, possuem a marca dapoca que os viu nascer.

    Os valores no so ideias intemporais mas exigncias su-prapessoais, sublinhando por a que a sua apario est lig-ada a uma certa histria na qual eu colaboro activamentecom todo o meu poder de dedicao, em suma a uma hist-ria que eu invento.53

    O valor, no sendo exactamente um produto da histria, tem a par-ticularidade de ser descoberto medida que eu fao histria, ou seja

    52 Paul RICOEUR, Philosophie de la volont I, Le volontaire et linvolontaire,p.69: Il faut et il suffit pour quune tendance soit un motif quelle se prte au rapportrciproque des tendances affectives ou rationneles qui inclinent le vouloir et dunedetermination de soi par soi qui se fonde sur elles.

    53 Paul RICOEUR, Philosophie de la volont I, Le volontaire et linvolontaire,p.72: Les valeurs ne sont pas des ides intemporelles mais des exigences suprap-ersonnelles, soulignant par l que leur apparition est lie une certaine histoire laquelle je collabore activement de toute ma puissance de dvouement, bref unehistoire que jinvente.

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    medida que motivo os meus projectos. Max Scheller chama aos va-lores a priori emocionais e cada poca histrica desvela os que lhe soprprios: a honra feudal, a tolerncia oitocentista ou a ecologia do sc.XX so alguns exemplos.54

    Mas nem sempre o valor dos motivos se apresenta de forma ine-quvoca. Nessas circunstncias a conscincia hesita e pra para reflec-tir. A reflexo tem ento que ser chamada sempre que a inseguranasobre a validade dos meus motivos me obriga a avali-los colocando-me na perspectiva do outro. Este momento reflexivo pode ser apenasum instante da dialctica entre o impulso e a reflexo. De facto, areflexo tica que me ajuda a clarificar o debate comigo mesma e aestabelecer uma hierarquia entre os valores. Mas, se me demorar naavaliao, a conscincia desliga-se do seu impulso para a aco e a re-flexo torna-se uma especulao sem fim sobre as razes das razes,e eu mergulho na angstia dos fins ltimos. Para sair desta angstia preciso regressar simplicidade original do projecto, recuperando osvalores da avaliao pr-reflexiva. A resposta para a angstia s podeser encontrada na aco. A tica no pode desligar-se da vida sob pe-na de se tornar uma formalidade vazia. preciso que a reflexo ticasobre os valores e a prtica no deixem de fazer crculo.

    O corpo prprio figura o estrato mais radical de motivos na medidaem que fornece os valores vitais que se afirmam como os mais funda-mentais. A existncia que eu sou, enquanto conscincia incarnada, aprimeira fonte de valores. Por isso mesmo, o impulso de preservaoda vida parece impor-se at ao momento do ltimo sopro vital. Maso acesso aos valores vitais no tarefa fcil porque o corpo sempreo meu corpo e as necessidades que experimento so dadas na primeirapessoa. o sentir e no o pensar que integra o meu corpo na minhasubjectividade. Como observa Gabriel Marcel, se pensarmos o sentirna sua actualidade, ou seja, o eu sinto, parece que estamos a acrescen-tar sensao qualquer coisa que lhe estranha e qual a no podemos

    54 Cf. Max SCHELLER, tica, Tomo I, Nuevo Ensayo de fundamentation de unpersonalismo tico, Revista de Ocidente, Madrid, 1944, pp.130-131.

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    reduzir. Por essa razo, a tendncia para objectivar o corpo inevitvel. na objectivao da necessidade e do corpo que poderemos colher osdados que a conscincia no pode dar a si mesma.

    do ponto de vista daquilo que eu ousaria chamar ocorpo-sujeito, este corpo que eu sou sem poder identificar-me logicamente com ele, que a sensao se revela imedia-ta; do ponto de vista do corpo-objecto, pelo contrrio,que a sensao me aparece como uma comunicao.55

    Mas a relao da nossa anlise com a objectivao, ou seja, com ocorpo pensado pela cincia emprica, ser simplesmente uma relao dediagnstico: qualquer momento do eu pode ser a indicao de um mo-mento do corpo-objecto e qualquer momento do corpo-objecto pode in-dicar um momento do corpo-sujeito. Por isso Ricoeur defender sem-pre que necessrio coordenar a compreenso (vivncia) e a explicao(objectiva): explicar mais para compreender melhor.

    Tal ento a nossa tarefa: tentar esclarecer a experinciado involuntrio corporal no limite de uma eidtica da moti-vao e em tenso com um tratamento objectivo e empricodo corpo.56

    O apetite representa a carncia mais bsica experimentada pelo servivo na sua relao com o mundo exterior e constitui, simultaneamente,a necessidade de tomar para si tudo o que possa prover manuteno

    55 Gabriel MARCEL, Du Refus L Invocation, Gallimard, Paris, 1964, p.37:Cest du point de vue de ce que joserai appeler le corps-sujet, ce corps que je suissans pouvoir midentifiquer logiquement lui, que la sensation se rvle immdi-ate; cest du point de vue du corps-object, au contraire, que la sensation mapparatcomme une communication.

    56 Paul RICOEUR, Philosophie de la volont I, Le volontaire et linvolontaire,p.85: Telle est donc notre tche: tenter dclairer lexprience de linvolontaire cor-porel la limite dune idtique de la motivation et en tension avec un traitementobjectif et empirique du corps.

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    da vida. O apetite rene a falta de. . . e o impulso para. . . no mesmoafecto activo. A expresso negativa do apetite dada pelo instinto dedefesa que repudia e evita tudo o que possa colocar em perigo essamesma vida.

    O apetite pode constituir um motivo para a vontade, porque eu pos-so sempre optar por um motivo alternativo. Eu tenho poder para con-trariar a fome ou o desejo sexual e posso mesmo escolher a morte, emnome de um ideal que considero superior, suprimindo assim o mais rad-ical de todos os valores que a vida. Mas o apetite no exactamenteum motivo como os outros, porque constitui um valor em si mesmo.Contrariamente aos outros motivos que s o so porque a vontade osvaloriza como tais, o apetite constitui-se valor revelia da vontade. arepresentao e a imaginao que convertem o apetite num motivo paraa vontade. Uma vez feita a experincia da satisfao da necessidade,o homem aprende a reconhecer no s o apetite como o objecto que opode preencher.

    O motivo afectivo fundamental oferecido pelo corpo aoquerer a necessidade prolongada pela imaginao do seuobjecto, do seu itinerrio, do seu prazer e da sua saciedade:aquilo que designamos correntemente desejo de. . . , anseiode. . . 57

    Existem ento trs momentos no desejo: a necessidade vivida nasua duplicidade indivisa de indigncia e exigncia, a representao doobjecto afectivo que suprir essa necessidade e a antecipao imagi-nada do prazer a ser recebido pelo contacto com o objecto. A fruiodo objecto que satisfaz a necessidade traduz-se em prazer dos sentidose a imaginao desse prazer tem poder para me fazer sentir o objectoantecipadamente, an