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REAGITANDO
A QUESTÃO NEGRA
PORQUE OS GRILHÕES AINDA
NÃO FORAM PARA O MUSEU
Josenilton kaj Madragoa
Josenilton kaj Madragoa
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REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
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“Leitor, se não tens desprezo
De vir descer às senzalas,
Trocar tapetes e salas
Por um alcouce cruel,
Vem comigo, mas… cuidado…
Que o teu vestido bordado
Não fique no chão manchado,
No chão do imundo bordel.”
Castro Alves (no poema
“Tragédia no Lar")
Josenilton kaj Madragoa
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SUMÁRIO:
APRESENTAÇÃO 5 RAÇAS HUMANAS E A IDEOLOGIA DA ESCRAVIZAÇÃO NEGRA 6
BELEZA NEGRA. FORA DO CATÁLOGO DOS PADRÕES ESTÉTICOS TRADICIONAIS 16 IDEOLOGIAS SOCIOLÓGICAS SUSTENTADORAS DA TESE INFERIORIZANTE 18 AS FERIDAS PELO AZORRAGUE E PELA CHIBATA AINDA SANGRAM 25 QUEM VAI AGORA COTIZAR A DESPESA? 31 TENTANDO JUSTIFICAR A LEGITIMIDADE DA LEI DE COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES 35 A QUESTÃO NEGRA É UMA QUESTÃO DE TODOS NÓS 51
AINDA FALTA UMA MESTIÇAGEM CULTURAL 66 A QUESTÃO NEGRA É UMA QUESTÃO DE EDUCAÇÃO E DE ECONOMIA 72 AUTOESCRAVIDÃO: O PIOR JUGO 81
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APRESENTAÇÃO
Estamos todos, indivíduos, sociedades e governos, a caminho
de mudanças conscienciais no que se refere às diferenças étnicas,
culturais, religiosas e sexuais. Mas, as atitudes discriminatórias
oriundas de iniciativas individuais e de grupos retrógrados de todas
as esferas de poder ainda são uma chaga muito viva dentro de
todas as formações sociais, econômicas e políticas. E hoje
envolvem questões que vão além de fatores históricos e
ambientais. Têm a ver também com o jogo de interesses do
capitalismo apocalíptico que vivemos hodiernamente e que há de
ter um fim daqui a algum tempo.
A seguir, vamos tecer um rosário de argumentos que tentam
jatear um pouco de luz a mais sobre essa questão, especificamente
sobre a questão negra, ainda que seja apenas uma luz de fósforo
em relação aos holofotes elucidativos de autores mais gabaritados
e especializados. Tudo que lereis está mais para uma prosa
ficcional, amparada principalmente em meras hipóteses e
imaginações, do que para um texto científico, que exige pesquisa,
precisão de dados e uma linguagem acadêmica.
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RAÇAS HUMANAS
E A IDEOLOGIA DA ESCRAVIZAÇÃO NEGRA
reio ser inegável que as formações sociais não
evoluem ao mesmo tempo. Umas estão mais
adiantadas do que outras do ponto de vista filosófico,
científico, espiritual, cultural e artístico. Mas a consciência disso
nunca foi a mesma, inclusive pelas formações sociais mais
desenvolvidas de todos os continentes, do ponto de vista
intelectual.
Efetivamente, houve épocas, inclusive até o século XX, em que,
do ponto de vista de comportamentos, muitos grupos humanos
pouco se diferenciavam dos animais selvagens, praticando até o
canibalismo para sobreviver, para premiar vitórias bélicas ou para
atender a rituais religiosos zoologizados.
Muitas tribos americanas, africanas e australianas, por exemplo,
tinham práticas extremamente primitivas, rudes e bestiais. Tais
costumes faziam ser considerados seus indivíduos como seres não
humanos, próximos dos animais. Era a ótica reinante entre os
intelectuais, pensadores e filósofos europeus e árabes, até o século
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XIX. [Os brancos que eram vistos nas proximidades das
tribos negro-africanas eram particularmente alvo
preferencial das flechas. Por quê? Porque
historicamente os nativos já sabiam que os brancos não
estavam se aproximando por lá para trocar
experiências, mas, sim, para dardejá-los com flechas
psíquicas subjugadoras, para depois atacá-los de
verdade e dominar-lhes os territórios. E isso acabou
acontecendo em quase toda a África.]
Hodiernamente é inconcebível em todo o mundo a prática dos
sacrifícios torturantes e do canibalismo. As tribos sociais, mesmo
as ainda selvagens, de todos os quadrantes terrestres, humanizaram
e espiritualizaram suas culturas e seus rituais, graças, inclusive, às
miscigenações e interinfluências com outras consciências coletivas
menos animalizadas, e pelo maior tráfico de intercâmbio entre as
formações étnicas espirituais.
[Outrora, era normal se encarnar dezenas de vezes
em um só grupo étnico. Havia, pois, as raças humanas
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puras, quer do ponto de vista genético, quer do ponto
de vista memético.
A partir desse prisma, o que é raça humana?
Identidade fisioétnica combinada com identidade
culturoética.
Hodiernamente, não há mais raças puras,
principalmente no Brasil que é um país tradicionalmente
multiétnico.
Desde o início da colonização estrangeira do Brasil
pelos portugueses e pelos africanos, começou a haver
miscigenações interétnicas, que avançaram
explosivamente no século XIX. Mas sempre houve
também uma miscigenação espiritual no histórico dos
negros, dos brancos e também dos índios. Ou seja, na
África negra antiga as raças eram bipuras. Não só não
havia miscigenação com brancos fisioepidérmicos, como
também não havia transmigração de espíritos africanos
para encarnarem em outros continentes e vice-versa. A
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grande maioria encarnava e desencarnava no seu
próprio continente.
Hoje a miscigenação espiritual tem pulverizado mais
e mais os traços fortes de caráter e de cultura
baseados em origens ambientais puras. Tem havido, por
exemplo, muitos brancos multiexistenciais encarnando
na África sob epiderme negra e há muitos africanos
históricos encarnando na Europa sob epiderme branca.
Atualmente, quando muitos europeus ou americanos
excursionam ou vão morar no interior da África, estão
mesmo é regressando à terra natal. A memória afetiva
de ambientes onde se viveu antes durante centenas de
anos não se apaga logo após se encarnar em um
ambiente novo. A transmigração de almas conduz
também toda uma bagagem de impressões e de
expressões profundamente gravadas no perispírito.
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Consequentemente, é mais lógico dizer que não há
mais raças humanas, já que não há mais identidade
fisioétnica nem culturo-ética preservada sem
misturas.]
Entretanto, antes dessa maior troca de genes e psicogenes
(memes) entre as formações étnicas negras e brancas, havia, sim, a
visão de inferioridades e de superioridades raciais entre as
formações sociais humanas, que se utilizou durante séculos,
principalmente na Europa, para justificar, inclusive, a escravidão
dos negro-africanos na Idade Moderna. Foi uma ideologia
montada mais ou menos sobre o seguinte silogismo:
Premissa maior: Os negro-africanos têm hábitos selvagens
e não humanos.
Premissa menor: tu és negro-africano.
Conclusão: tu não és humano.
Foi um silogismo totalmente equivocado, mesmo porque as
culturas, as religiões, as etnias e as civilizações africanas nunca
foram homogêneas. A premissa maior é preconceitualmente
generalizante, portanto aberrantemente falha.
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Aliás, qual é a premissa maior que é perfeita no que
se refere a seres humanos? A única premissa perfeita
é esta: toda formação social, por mais homogênea que
seja na aparência, é intrinsecamente contraditória,
para impedir a formação de qualquer premissa
conceitual generalizante sobre si mesma.
Ademais, de que lado costumam se prestigiar as
verdades disseminadas socialmente? Historicamente, e
ainda hoje, a questão maior se cinge à diferença
cultural entre etnias culturalmente distintas.
É histórico que a cultura, a religião e os costumes de
quem manda é que são tidas como as verdadeiras, as
abençoadas por Deus. O mandado, consequentemente, é
visto como ignorante, atrasado, involuído e selvagem.
Na idade moderna, usava-se a arma de fogo para se
impor verdades. Hoje predominam as armas dos meios
de comunicação de massa, da união de grandes
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corporações ideológicas e dos discursos fascistas
confeitados e enfiados goela abaixo do povão, de forma
macia, porquanto aditivadas de drogas sociais
dessensibilizantes e alienantes.
E, mesmo em relação às tribos humanas animalistas, jamais
seria o caso de sua subjugação para trabalho forçado, e, sim, deixá-
las se autoevoluírem naturalmente, como ocorreu com todas as
formações sociais do mundo em épocas pretéritas.
Até o início das primeiras grandes colonizações europeias
(século XVI), a maioria das tribos e nações negro-africanas era
desconhecida do ponto de vista social. A ideia falsa (ou falseada)
que se tinha era a de que os negros africanos eram iguais em todos
os sentidos, simplesmente, porque eram homoetnicamente negros.
E eram convenientemente reunidas nos mesmos conceitos tanto
as tribos selvagens como as tribos e formações sociais evoluídas e
civilizações de toda a África Negra, inclusive a egípcia. É a velha
estratégia de misturar e confundir conceitualmente,
para justificar a subjugação coletiva.
Outra falha de visão conceitual era em relação ao próprio
conceito de “civilização”. O conceito reinante de civilização
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impulsionou a burguesia capitalista europeia a acoplar a
ideia de progresso ao domínio paternalista e colonial
sobre os povos selvagens. Estes sempre foram
ideologicamente tratados como “bons selvagens”, que
precisavam ser “educados”.
O eurocentrismo ou europeísmo influenciava todo o planeta a
reconhecer apenas na Europa os modelos ideais de cultura, de
religião e consequentemente de civilização. Era uma visão
praticamente natural no conceito dos europeus e do resto do
mundo, ao ponto até de grandes gênios e homens de notável saber
de todos os continentes terem sido influenciados por essa limitada
visão eurocêntrica, o que ainda acontece nos dias atuais.
E, assim, quase todos os povos do continente europeu, com
toda sua garbosa civilização, foram também extremamente
ignorantes e bestiais no que se refere à visão global do mundo.
Praticaram canibalismos ideológicos e estupros culturais contra os
povos de outros continentes distanciados de seus padrões de
cultura e de beleza. Praticaram genocídios, massacres, etnocídios e
civilizocídios, tudo em nome de reis, expansões territoriais, missões
civilizatórias e até em nome de Deus. E praticaram a emigração
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forçada e a escravização de negros africanos, em nome do
capitalismo exploratório.
[Na nossa hodiernidade, a maior forma de
discriminação é o descaso dos países economicamante
ricos com a sorte dos povos que vivem na sarjeta
socioeconômica do planeta. E a maior demonstração de
selvageria dos chamados povos civilizados,
principalmente os do primeiro mundo, é explorar as
riquezas do continente africano e dar as costas para os
graves problemas sociais e econômicos de seus países
pobres. Destaque-se inclusive que muitas guerras entre
nações africanas são fomentadas com armas adquiridas
dos Estados Unidos.
Qualquer enriquecimento montado a partir de
passivos ambientais, morais ou econômicos é falso e
costuma se converter em condições resgativas muito
penosas tempos adiante, quer para os indivíduos, quer
para as sociedades que se locupletam disso.]
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BELEZA NEGRA. FORA DO CATÁLOGO
DOS PADRÕES ESTÉTICOS
TRADICIONAIS
Em relação à beleza humana, houve uma ideologia reinante no
Velho Continente, de reconhecer como pessoas bonitas somente
aquelas que mais se aproximavam dos contornos faciais exigidos
pela chamada “proporção áurea”, que era um padrão geométrico
criado e utilizado por artistas e matemáticos europeus para
expressar formas tidas como suaves, harmoniosas e perfeitas.
[Segundo a “proporção áurea” para a beleza facial, a
largura da boca deve ser 1,618 maior do que a largura
do nariz. A largura do dente incisivo central deve ser
1,618 maior do que a largura do incisivo lateral. E a
largura da boca seja 1,618 maior do que a distância
entre o canto da boca e a ponta da bochecha.]
O próprio pintor renascentista Leonardo da Vinci utilizou tais
medidas para desenhar a Monalisa. Tal regra de geometria
certamente influenciou nas ideologias racistas e preconceituosas de
inferioridade dos negros africanos, já que estes em nada se
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adequavam a essas medidas artificiais, pelo menos se
considerarmos como parâmetro o rosto da famosa pintura
leonardesca.
Ainda hoje existem discutíveis padrões oficiais de
beleza, pelo menos corporalmente, nos concursos de
misses. As medidas ideais são europeizadas (as medidas
tradicionais giram em derredor de 80cm de busto,
60cm de cintura e 85cm de quadril) e sempre
desestimulam a maioria das mulheres negras a
concorrer. A única mulher negra a vencer o certame no
Brasil até hoje foi a gaúcha Deise Nunes, em 1986, mas
porque suas medidas estiveram perfeitamente de
acordo com as medidas oficiais.
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IDEOLOGIAS SOCIOLÓGICAS
SUSTENTADORAS DA TESE
INFERIORIZANTE
Para reforço ideológico, ainda reinava o entendimento,
sustentado pelas ideias de Aristóteles (retomadas pelo
Renascimento), de que o trabalho escravo seria uma espécie de
terapia ocupacional para os homens “inferiorizados pela natureza”.
Prevaleceu também o conceito de “determinismo biológico”,
defendido por Émile Durkhein (1858-1917; professor francês,
considerado um dos pais da Sociologia), segundo o qual os grupos
humanos exercem papéis sociais estanques e padronizados, em
razão, inclusive, de seus traços físicos. [Ele baseava-se no
princípio de que os fatos sociais devem ser analisados
como coisas. Ainda bem que apareceu no fim do
espetáculo escravista.]
Várias formações sociais historicamente prestigiadas na Europa
do século XIX aplaudiram o chamado Darwinismo Social
(expansão da teoria da evolução das espécies entre os animais
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levada para as sociedades humanas), para justificar sua tese de
soberania racial sobre os demais povos da Terra, particularmente
sobre os negros africanos.
Esse conceito sociodeterminista se expandiu para os seres
humanos individualmente.
O criminologista italiano Cesare Lombroso (1835-1909),
festejadíssimo por “positivistas entendidos”, pré-classificava
muitos excluídos congênitos como criminosos natos, a partir da
análise de seus traços antropométricos! Já pensou: diga-me como é sua
nuca, que eu direi qual é, ou qual vai ser o seu caráter! Fez sucesso até no
Brasil.
Já no início do século XIX, houve um precursor dessa ideia, o
médico alemão Franz Joseph Gall (1758-1828), que desenvolveu a
Frenologia, (segundo a Wikipédia, “teoria que reivindica ser capaz de
determinar o caráter, características da personalidade, e grau de criminalidade
pela forma da cabeça (lendo "caroços ou protuberâncias")”.
A própria Sociologia como ciência, nascida no século XIX, na
Europa, foi marcada por conceitos positivistas, materialistas, e,
consequentemente, frágeis e limitados acerca dos homens, suas
formações sociais, suas culturas e seus destinos. Essa espécie de
separatismo conceitual foi reforçada pela Antropologia e pela
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Etnologia, também nascidas no mesmo continente e século e com
as mesmas bases sociodivisionais hierarquizantes.
Tudo isso serviu como forma de justificar e até de aumentar a
dominação dos chamados “povos civilizados” sobre os povos
africanos, os quais, além de fisicamente, eram também
psicoideologicamente subjugados, para viabilizar a mantença do
regime.
Os escravizados eram também objetificados. Objeto ou coisa
em Direito é tudo aquilo de que se pode dispor na qualidade de
proprietário, para compra, venda, alteração da substância ou até
para destruição. Era um gancho de raciocínio para alívio da
consciência social como um todo. Considerar convencionalmente
alguém como coisa, e acomodar esse conceito no inconsciente
coletivo, foi um facilitador para a aceitação do regime de trabalho
forçado.
Os escravizados eram adrede desqualificados como seres
humanos, e acabavam aceitando a condição inferiorizada, porque
passavam a se ver mesmo como coisas. Então, era um conceito
com bons resultados comerciais e psicodominiais.
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Por falta de uma supervisão socio-humanística do mundo,
muitos homens de boa-fé, de boa índole e até de grande visão
social tiveram homens escravizados a seu dispor.
[Aqui no Brasil, é consabido que a família de Castro
Alves tinha escravos. Sabe-se, através de pesquisas
acadêmicas, que houve negros livres que tiveram e
negociaram escravos no Brasil. Alguns estudos
polêmicos apontam para o fato de que houve negros
reescravizados no próprio Quilombo dos Palmares.
Muitos escravos que negavam participar de fugas eram
assassinados, para não delatarem os fugitivos.
Em algumas fazendas escravistas a convivência da
casa grande com a senzala era relativamente
harmoniosa, considerando a relação vertical impositiva.
Muitos escravos, principalmente velhos e inválidos,
eram tratados de forma humana e quase como membros
da família senhorial. Isso funcionava, pelo menos,
enquanto cada um dos polos opostos exercia com
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habilidade seus papéis. Durava enquanto não houvesse
maiores arranhões ou qualquer ponta de ameaça para o
sistema geral nem para o sistema particular de
tratamento. Os conflitos afetivos e as crises de
relações íntimas geralmente se resolviam não com a
separação, mas, sim, com a retomada da relação
hierárquica senhorial-escrava e seus castigos
decorrentes.]
Bem, estamos aqui pegando apenas um fragmento da
relação senhorial-escrava reinante em tempos que já lá
vão na história da vida privada do Brasil Colônia e do
Brasil Império. Nesse terreno, a História constrói-se
também com histórias dedutivas e indutivas, não com
fatos reais. Havia milhares de tipos de relação social e
microssocial que não foram flagrados pelos primeiros
historiadores-testemunhas presenciais e que não foram
documentados para informar o universo livresco futuro.
Cada formação social tem sua própria história e seus
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próprios fatos ocultos, inclusive muitos deles ligados a
muitos outros fatos maiores, não somente da
macrossociedade, mas também de matrizes ocultas à
lente de qualquer observador científico e formal-
acadêmico.
Sempre foi normal os favorecidos sociais ou econômicos se
locupletarem, consciente ou inconscientemente, com as
discriminações étnicas. Entretanto, naqueles tempos já recuados
não era tão marcante o preconceito. O que prevalecia era a
discriminação estamental. A maioria das pessoas não tinha plena e
real consciência das condições objetivamente humilhantes dos
escravos, nem a maioria destes próprios.
Muitas fugas, levantes, revoltas e movimentos
pontuais marcaram o regime escravista no mundo e
particularmente no Brasil, mas sempre foram
estrategicamente abafados ou violentamente
reprimidos pelos poderes sociais dominantes.
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Grandes líderes de resistência, muitos deles
implacavelmente assassinados ou perseguidos sem
trégua, foram enterrados nos arquivos mortos da
história colonial, a exemplo de Ganga Zumba, Zumbi dos
Palmares (século XVII), Carucango, Luiza Mahim e
Zeferina (século XIX), no Brasil; Nzinga Mbandi Ngola,
rainha de Matamba e Angola (século XVII), Mackland
(guineano), no Haiti (século XVIII), e os irmãos ganeses
Lanu e Avakó, no Suriname (século XVII).
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AS FERIDAS PELO AZORRAGUE E PELA CHIBATA AINDA SANGRAM
A força cultural e religiosa africanista serviu de base de
sustentação e de amenização da própria submissão forçada de
grande parte dos negros vitimados pelo regime da chibata e seus
estresses mentais contínuos.
Com o sincretismo afrocristão-eclesial, carregado de símbolos e
imagens comparativas, a própria inteligência espiritual do povo
negro se enriqueceu e enriqueceu também a religiosidade luso-
brasileira, em que pese à histórica intolerância e perseguição
oficiais ao livre-cultismo africano por estas plagas.
Apesar do impositivo cristianismo eclesial e toda sua
dogmática vaticanista, os negros reconheceram e
passaram, de alguma forma, a se identificar também
com a mensagem pura do cristianismo crístico, que é
eterna e universal e se perpassa por entre todas as
formações ideológicas congregacionais. E grandes
parcelas da população negra brasileira, como um todo,
Josenilton kaj Madragoa
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também perceberam com mais nitidez a força espiritual
das inteligências invisíveis que influenciam e corregem
nossos destinos humanos, considerando que as culturas
religiosas africanas são essencialmente espiritual-
interativas.
Com o passar das gerações, muitos escravos nativos do Brasil já
nasceram naturalmente dentro de um ambiente de sincretismo
religioso e cultural. Não sofreram o trauma múltiplo da separação
familiar, étnica e territorial dos escravizados estrangeiros. Não
sofreram, especificamente, a longa e torturante travessia
transatlântica, nos porões dos tumbeiros ou navios negreiros. Não
foram considerados meras mercadorias, ao ponto de serem
jogados ao mar quando os capitães precisavam aliviar a carga dos
navios ameaçados de naufrágio com o peso de pedras portuguesas
que também vinham para as construções da Colônia. [E os
escolhidos para aliviar o peso eram os já fragilizados
psíquica e fisicamente pelo rigor do transporte.]
“Era um sonho dantesco... o tombadilho
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
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Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...”
Castro Alves (em “O Navio Negreiro –
Tragédia no Mar”)
Essa brasilidade difusa, cafuza e confusa lhes amenizou a
relação com os açoites, com os pelourinhos e com a própria
tortura continuada do trabalho gratuito e obrigatório. Propiciou-
lhes alguma felicidade, ainda que clandestina, ao lado da evolução
natural dos tratamentos mais humanizantes que foram recebendo
no decorrer principalmente do século XIX, inclusive do ponto de
vista legal.
Em 1831, uma lei libertou todos os cativos que tinham
vindo da África, ainda que para atender a imposição
britânica para o reconhecimento da independência brasileira.
Em 1850, surgiu a lei que aboliu o tráfico negreiro, que não
foi, contudo, eficiente para impedir o tráfico clandestino, que
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ainda perdurou por cerca de vinte e cinco anos. Em 1871, foi
promulgada a Lei do Ventre Livre. A partir de sua vigência,
todos os negro-brasileiros filhos de escravas já nasciam
automaticamente livres, ainda que tivessem de permanecer
sob a tutela dos senhores de seus pais, até os vinte e um
anos. [Por isso tal lei não teve eficácia plena, já que
dezoito anos depois de sua vigência ocorreu a Abolição
da Escravatura no país.] Logicamente, considerando que a
média de vida dos escravos era quarenta anos, tem-se que
nos anos setenta e oitenta do século XIX quase todos os
senhores de escravo eram fora da lei. Em 1885, promulgou-se
a lei do sexagenário, que libertava todos os cativos maiores
de sessenta anos, mediante polpuda indenização
governamental a seus senhores, o que para estes foi um
excelente negócio, considerando que geralmente os escravos
que conseguiam chegar a tão vetusta idade já não tinham
mais qualquer capacidade produtiva. [Em verdade, foi
também uma vitória de pirro. Veja art. 3º, § 10: “São
libertos os escravos de 60 anos de idade, completos
antes e depois da data em que entrar em execução esta
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
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Lei; ficando, porém, obrigados, a titulo de indenização
pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores
pelo espaço de três anos”.] Só vigeu três anos, já que em
1888 veio a tão esperada Lei Áurea, que foi o resultado final
de uma evolução legislativa. Foi o coroamento também de
uma evolução de consciência social e de um bombardeio de
pressões internacionais, considerando que o Brasil foi um
dos últimos países a extinguir o regime negro-escravista. [O
último foi a Mauritânia, oficialmente em 1975.] Foi
igualmente a vitória de uma sequência de revoltas pontuais e
localizadas e de movimentos abolicionistas, tanto dos
próprios escravos quanto de intelectuais e artistas negros e
brancos.
Já havia uma insatisfação crescente do povo em geral, que
andava incomodado, percebendo a incongruência de um regime
caduco em relação aos esclarecimentos e novas percepções sociais
do fim do século XIX. O povo estava se alfabetizando, ouvia
histórias e romances, lia jornais. Já surgia uma literatura romanesca
genuinamente brasileira. Havia rodas e saraus de leitura, discursos
Josenilton kaj Madragoa
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em palanques... O povo estava aprendendo a pensar criticamente.
Alguma consciência negra já ecoava na sociedade largamente
mesticizada. Enfim, a abolição era coisa de dias, o que se consolidou com a
assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, pela Princesa
Isabel, que estava regendo o império em lugar de D. Pedro II, que
estava fora. Houve a libertação do cativeiro e seus trabalhos
forçados e totalmente gratuitos.
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
31
QUEM VAI AGORA COTIZAR A DESPESA?
Hoje, os povos de todos os continentes, sejam brancos, sejam
negros, repudiam a escravocracia das gerações pregressas.
Entretanto, as sequelas etnoeconômicas resultantes ainda causam
grandes prejuízos para a maioria dos afrodescendentes, sejam para
os de epiderme negra, melanoderma ou anegrada, morena ou
amorenada ou faioderma (parda ou pardacenta).
{Esse jogo de matizes epidérmicas serve apenas para hilariar
um pouco a velha e ainda não pacificada questão acerca de quem é
mesmo negro ou branco no Brasil. E se tomarmos a lupa da
Genética, aí fica mais complicado ainda. Lembra-se daquela
pesquisa do geneticista Sérgio Pena, encomendada pela BBC
Brasil? Concluiu que o sambista Neguinho da Beija-Flor e a ginasta
Daiane dos Santos são geneticamente mais brancos do que negros.
A convenção hoje reinante é a de que negro é quem se diz
negro e de que branco é quem se diz branco. Esse é o principal
entrave ao sucesso da política de cotas, principalmente
considerando que, a rigor, a grande maioria do povo brasileiro é
Josenilton kaj Madragoa
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composta de mestiços ou faiodermas (pardos), quer do ponto de
vista epidérmico, quer do ponto de vista genético.
Sob a ótica etno-histórica, uma classificação talvez também
válida é a de que negros são os negro-africanos e de que brancos
são os branco-europeus e suas descendências disseminadas pelo
mundo. Mas, vale lembrar que nem na África existe uma única
etnia negra, nem na Europa existe uma única etnia branca. As
próprias cores das etnias não intermiscigenadas são variadas. Daí,
poderíamos ilar, também, que não existem etnias nem raças
humanas, considerando, inclusive, que todos somos originários da
África. [Segundo pesquisas, os australopitecos mais
antigos viveram no sul da África há aproximadamente
três milhões de anos.] Mas, isso aí já é uma ilação talvez muito
avançada, quem sabe para viger no transfuturo (dos anos 2060 em
diante).
Como no Brasil a predominância é a descendência miscigenada
de ambos os extremos, negro aqui passou a ser mais uma cor
conceitual e político-afirmativa do que necessariamente
epidérmica, étnica ou antropológica. [Isso para não falar da
influência genética indígena e asiática em quase todas
as regiões do país.]
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
33
Com a cada vez maior expansão da consciência negra, a maioria
dos afrodescendentes e dos mestiços negro-genéticos faz questão
de assumir sua negritude ou a negritude de sua constituição física
ou psíquica. A consciência negra é antes de tudo uma consciência
de afirmação, de superação e de felicidade.}
As próprias políticas públicas atuais de reparação se justificam
não por questões negrais em si, mas, pelo menos, por dois motivos
históricos e bem objetivos.
Em primeiro lugar, em todo o período escravista, os
escravizados, quer tenham sido negro-africanos, quer tenham sido
negro-brasileiros ou miscigenados, eram proibidos de frequentar
escolas. Mesmo depois da abolição houve leis restritivas contra
eles, inclusive uma que os impedia de se reunir. Houve leis pós-
abolição no sentido de não jogarem capoeira, de não praticarem o
Candomblé, de não votarem, de não poderem ser funcionários
públicos, de não poderem casar com pessoas brancas, de não
estudarem juntamente com os brancos etc.
“O processo educacional brasileiro fez com que brancos
tivessem muitos privilégios. Durante muitos anos depois da
abolição os negros não podiam estudar nos mesmos lugares
Josenilton kaj Madragoa
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que os brancos. Os negros e negras só podia estudar aos
finais de semana. Depois, somente à noite, onde os cursos
eram mais fracos. A educação não privilegiava os negros nem
no ensino, porque durante muitos anos a história dos negros
foi negada e manipulada.” - Marco Davi de Oliveira.
Fonte:
http://negreirosurbanos.blogspot.com/2008/05/influencia-da-
ideologia-do.html.
Em segundo lugar, ainda no tempo do cativeiro, todos eles,
inclusive os “negros de ganho” (escravos que trabalhavam na
rua a fim de conseguir dinheiro para seus senhores),
eram proibidos de acumular riquezas para uso inteiramente livre e
para legar a seus descendentes. Exceção apenas para os
poucos “negros de aluguel”, que podiam juntar dinheiro
para comprar sua própria alforria ou para contribuir
com fundos de entidades negro-protetivas, já no século
XIX.
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
35
TENTANDO JUSTIFICAR A
LEGITIMIDADE DA LEI DE COTAS
PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES
Como foi o governo português o instituidor e o governo
brasileiro o mantenedor do (agora horrendo) regime da escravidão,
é justo que o próprio governo, hoje, promova políticas reparadoras
para as vítimas indiretas do regime escravista que vivem nos dias
atuais. Que faça o papel que não fizeram os primeiros
republicanos. Afinal, os governantes, os governados, os escravistas
e os escravizados mudaram, mas o governo é o mesmo, o país é o
mesmo. E os benefícios e os prejuízos consequenciais do regime
permanecem os mesmos, até hoje, para eurodescendentes bem de
vide e para afrodescendentes pobres, respectivamente. Portanto,
temos uma responsabilidade histórica, mas também
contemporânea, e temos de acertar essas contas.
É certo que quem acaba pagando pelas políticas de reparação,
especialmente no que se refere ao sistema de cotas nas
universidades, são os vestibulandos eurodescendentes, os branco-
Josenilton kaj Madragoa
36
brasileiros e os afro-brasileiros não adotantes das cotas, sejam de
que etnia ou subetnia ou condição econômica forem.
Ocorre que todos os privilegiados históricos são herdeiros
diretos de gerações de senhores de escravo ou de homens livres da
escravidão, que eram, nos séculos passados, também livres para
estudar e livres para acumular e legar riquezas para seus
descendentes atuais. E o que os negros pobres de hoje herdaram
dos seus ancestrais? Nada de economia nem de educação formal,
porque seus ancestrais, ainda que tivessem capacidade laborativa e
intelectual, simplesmente não podiam exercer economia, nem
podiam estudar, proibições que perduraram mesmo no século XX.
A lei das cotas não deve se destinar para os afrodescendentes
pobres apenas porque estes são negros ou pardos. O espírito da lei
seja o de beneficiar objetivamente a quem de direito, que são os
trinetos e tetranetos de escravos aqui do século XXI, oriundos de
escola pública e hipossuficientes do ponto de vista econômico, por
uma questão mínima de justiça socio-histórica. E como os
escravos eram negro-africanos ou afrodescendentes
diretos ou mestiçados, então o critério utilizado pela lei
de cotas é de que o candidato ao benefício se
identifique como afrodescendente e que demonstre,
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
37
pela documentação epidérmica, que efetivamente tem
“sangue negro” na sua linhagem genealógica, além de ser
baixa-renda. O sistema não tem nada de assistencialismo
demagógico nem de preconceito positivo piegas. Tem caráter
reparador (ou difusamente indenizatório) de toda uma etnodiceia
(conjunto dos direitos de um grupo étnico ou nação –
Dic. Houaiss.) que fora usurpada pela própria iniciativa
governamental luso-brasileira, e que ainda hoje gera consequências
danosas na maior parte do corpo social do país.
Pode e até deve ser um direito renunciável. Quem, por qualquer
razão, não quiser se utilizar do benefício da cota, que exerça seu
direito de não exercer tal direito. Mas, para quem a julgar
necessária e queira se beneficiar dela, é importante que ela exista,
como embrião de uma futura legislação mais ampla e efetivamente
igualizadora das condições socioeducacionais para todos os
cidadãos, o que será percebido finalmente quando as escolas
públicas assumirem de vez seu papel de formação de mentes e de
cidadania, desde o nível fundamental. Isso talvez ainda precise de
mais algumas gerações.
Josenilton kaj Madragoa
38
{Não defendo cega nem apaixonadamente a lei de cotas. Em
princípios, todos deveriam ser iguais perante a lei,
independentemente de raça, cor etc, como dita a Constituição
Federal. Entretanto, reconheço que, a partir de um prisma de
interpretação jus-historicista, essa lei (ainda) é justificável, pelo
menos enquanto não houver uma educação de qualidade
acadêmico-ingressiva para todos, para que todos estejam
efetivamente em pé de igualdade perante as oportunidade da vida
social. A lei maior é justa. Injustos são os sistemas econômicos e
sociais, que na prática desigualam os afrodescendentes pobres
desde o maternalzinho, que, à propósito nem existe em grande
parte das escolas públicas do ensino fundamental.
Contudo, fazendo fileira com os demais movimentos sociais, os
movimentos negros, numa política de preparação mais específica,
devem lutar mais intensamente, não pela manutenção ad infinitum
dessa lei protetiva, mas principalmente para, através de cursos
paralelos de formação geral e específica, melhor instrumentalizar
as pessoas histórica e socialmente discriminadas para enfrentarem
todos os concursos que exigem grande preparo intelectual. A luta
também seja no sentido de que o próprio governo, numa política
de reparação mais ampla, melhore imediatamente as escolas
públicas, desde o ensino fundamental, para que as pessoas
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
39
hipossuficientes financeiras possam ter mais capacidade de
ultrapassar a barreira de acesso e possam frequentar as
universidades públicas em pé de igualdade com os preparados em
escolas particulares de ponta. [Tem existido uma melhoria
em algumas escolas públicas, mas só para aquelas
voltadas para curso técnicos específicos para o
mercado de trabalho, trabalhadores ou seres humanos
roboides capacitados a servir ao sistema capitalista ou
homines cientifici e homines fabri. Obviamente, com a
relação com os números e cálculos, o meio estudantil
pode se quadrificar, ou pode se circularizar. Quer
dizer: ou a máquina maquiniza o homem, ou o homem
humaniza a máquina. Depende de cada aluno e seu
histórico escolar de vida pregressa intra e pré-
encarnacional.]
A obrigação do crescimento é individual, fruto do esforço e do
mérito. É básico. Porém é obrigação do governo e da sociedade
civil oferecer as condições para esse crescimento, concorrendo em
Josenilton kaj Madragoa
40
pé de igualdade com as escolas particulares, que as oferecem muito
bem para quem pode pagar por elas. Por isso a lei de cotas é antes
de tudo um instrumento de justiça social, porque propõe uma
política não só de reparação, mas também uma política de
igualização de oportunidades socioascensionais.
{“Suspiramos pela democracia, mas nunca lhe quisemos
pagar o preço. O preço da democracia é a educação para
todos. É a educação que faz homens livres e virtuosos. E por
que não a tivemos? Porque força é insistir. Jamais fizemos da
educação o serviço fundamental da República." - Anísio
Teixeira.}
Mas, a questão de ordem agora também já passa a ser a
seguinte: o que é mesmo que se deve ensinar em sala de aula? Qual
é o pulo do gato que o povo deve aprender, para se livrar das
garras diabólicas do famigerado capitalismo democraticida?
Vamicê, camujerê, que é passante (de assuntos) e mestre da
educação, pode ensinar qual é a ginga ou a esquiva de ouro? Ou V.
Sa. serve passivamente ao sistema conscienciofágico e
desumanizante dos dinheirudos plutocratas e destruidores da
cultura nacional, da filosofia, das tradições e das artes, da liberdade
e da independência de pensar?}
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
41
A questão negra, pois, não é meramente étnica. Envolve
objetivamente aspectos de liberdade econômica, de liberdade
educacional e, agora, de liberdade de pensar, também.
Ainda nos dias atuais se veem os reflexos desse desequilíbrio de
forças nos resultados de concursos públicos. A grande maioria dos
aprovados provem de boa formação escolar e de famílias bem
estruturadas financeiramente. Já a maioria dos negros sequer
conclui o ensino médio, inclusive porque tem de trabalhar cedo
para ajudar na sobrevivência familiar.
O sistema de cotas tenta amenizar os desníveis de ascensão
social impostos pelas gerações do passado e que ainda sequelam e
vitimam os negros da atualidade. Isso para não incluir nestas
reflexões o fato de que os azorragues e as chibatas
ainda zunem nos ares da nossa contemporaneidade,
através do neoescravismo laboral, que serve ao
capitalismo lucrólatra, e através das atitudes
discriminatórias e etnopreconceituosas que ainda
contaminam toda a nação. Só não zunem com mais
contundência graças às políticas sindicais, às leis
Josenilton kaj Madragoa
42
antidiscriminatórias e às denúncias dos próprios
prejudicados. Graças também às ações cada vez mais
inclusivas dos movimentos negros que nunca baixam a
vigilância. Graças, enfim, aos próprios
afrodescendentes próximos ou remotos que
individualmente assumem suas atitudes protetivas,
autoafirmativas, superativas e libertadoras da maior
forma de escravidão dos tempos atuais: a escravidão
das consciências.
A lei das cotas serve apenas para pensar (tapar com curativo
superficial) as feridas ainda abertas pelas chibatas escravistas. De
certa forma, ela retoma a evolução legislativa negro-libertária do
século XIX, que fora interrompida com a lacunosa Lei Áurea. [Ela
teve apenas dois artigos: “Art. 1º É declarada extinta
desde a data desta Lei a escravidão no Brasil. Art. 2º
Revogam-se as disposições em contrário.”] Analogamente,
equipara-se à satisfação liminar de um direito continuado,
enquanto se espera a sentença judicial ou a lei final complementar
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
43
que vai conceder todos os direitos principais, inclusive o
indenizatório.
A atual legislação federal atinente à matéria tem usado
corretamente a expressão “reparação”, ao invés de “indenização”.
Como se trata de um prejuízo moral e material de proporções
incalculáveis, é melhor promover ações afirmativas, reparatórias e
emancipatórias, com efeitos ex nunc (a partir de agora), do que ficar
tentando contar ou reascender prejuízos originados há quase
quinhentos anos. [Indenizar é tornar indene, íntegro,
inteiro. No caso de seres humanos, quando
desindenizados, é impossível haver reindenização por
medidas externas. Porém, medidas reparatórias
externas atuais podem contribuir para a reindenização
pelas próprias vítimas herdeiras dos processos
desindenizadores e intergeracionalmente
sequelizadores do ponto de vista de educação, inclusão
social e cidadania plena.]
Facilitar, pelo menos, o ingresso dos historicamente excluídos
às cadeiras da faculdade pode ser o bom início de prestação de
Josenilton kaj Madragoa
44
contas com as dívidas desse passado mal resolvido com a própria
consciência coletiva. É uma forminha de redenção. É uma fumaça
de boa justiça, tardia, mas ainda a tempo. Espiritualmente, é um
descarrego cármico de toda a sociedade, mesmo que
simbolicamente. A memória da história continua perseguindo
estrada do tempo adiante, enquanto não se resolve questões
acumuladas no inconsciente, seja individual, seja coletivo, mesmo
que, de certa forma, correções objetivas já tenham se perpetrado
pelo corretivo das reencarnações individuais com troca de papéis.
O nosso problema maior ainda é que, mesmo com as
regulações pontuais já operadas pela justiça reencarnatória, as
lembranças dos traumas antigos (que são iguais aos próprios
traumas) perduram ou se fortalecem, enquanto os preconceitos, as
discriminações e as novas formas de escravidão substituem as
desoportunizações de crescimento ou de liberdades sociais do
passado. Grande parte dos negros de hoje continuam de certa
forma alijados nas senzalas sociais, que são as periferias sem
infraestrutura sobrevivencial digna, que são os rincões perdidos no
sertão, que são as escolas públicas desequipadas, que são as prisões
sem qualquer política de educação efetivamente moralizante,
reinclusiva e dignificadora.
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
45
{O que se aprende na faculdade não é necessariamente o que se
aprendeu antes no ensino médio, muito menos é o que se estudou para
passar no vestibular.
Não pretendo aqui fazer apologia cega ao academicismo. Tem gente
que entra na faculdade institucional sabendo pouco sobre o que deve saber
na faculdade da vida, e quando recebe o canudo, sabe menos ainda.
Mas, do ponto de vista pragmático-social, a universidade é um
mundo à parte nas vivências estudantis. É lá que são formadas mentes
pensantes, muitas destas oriundas de escolas públicas ou até de cursos
supletivos ou de aceleração. Lá incubam-se mentes não necessariamente
pensantes sobre o que se lhes é posto a pensar, mesmo porque por lá
também se perpassam ideologias contrárias à verdade sobre os problemas
do ser, do destino e da dor.
Quem faz sua universidade é cada aluno em si e seus propósitos,
suas intenções, sua visão geral de mundo já trazida na mochila para a aula
inaugural. O aluno ativo e questionador aprende com os mestres e com os
autores, mas também tem sua forma de pensar própria, a qual se amplia
com as ideias, noções e terminologias adquiridas nas aulas, nos textos e
nas discussões e nas teses infinitas, principalmente no campo das ciências
sociais.
Ao se formar numa faculdade, ou se está pronto para ser um
interventor social construtivo, ou se transforma num robo sapiens
programado para reproduzir ideologias dominantes veredas sociais afora.
Depende das tomadas de posição e das elucubrações mentais adotadas por
cada discente, logo no primeiro semestre, principalmente a partir das
Josenilton kaj Madragoa
46
disciplinas Introdução à Filosofia, Economia Brasileira e Elementos de
Sociologia.
Muitos acadêmicos que ingressaram pela lei de cotas dão-se melhor
do que não cotistas no enfrentamento do currículo, principalmente quando
levam no consciente um certo engajamento de postura crítica perante o
sistema social etnoexcludente. Depende da dedicação, do enturmamento,
da personalidade, da vontade de superação. Ele vai com propósitos além de
somente aprender. Ele vai para melhor se instrumentalizar cognitivamente
acerca das políticas ostensivas e ocultas que controlam as matrizes sociais
e para melhor se posicionar no mercado de trabalho e no mercado da vida
de relações em geral.
Aqueles alunos hipossuficientes financeiros conscientizados que
desistem, ou que são seguidamente reprovados, não é exatamente por
causa da dificuldade de entendimento, mas por causa da dificuldade de
acompanhar o ritmo como um todo, aí incluindo-se questões subsidiárias.
Se fosse primeiramente por questão cognitiva, o cotista sequer teria
passado no vestibular. Ele foi beneficiado apenas pela reserva percentual,
não pelo ingresso sem preparo no ambiente acadêmico. [É certo
também que depende do curso escolhido. Cada caso é um caso.]
Há também outra questão. A lei de cotas não é apenas um
instrumento da política de reparação, não. Serve também para garantir
uma inclusão mercadológica em níveis socioeconomicamente mais
prestigiados e confortáveis para mentes pensantes e com grandes
potenciais intelectualmente produtivos. Para os negros que querem ou têm
capacidade de desenvolver sua mão de obra mais especializada junto às
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
47
esteiras de produção intelectual, o título universitário tem sido uma
necessidade primária. No comum das relações empresarial-operária
baseadas nas aparências, um negro com o terceiro grau tem o mesmo
prestígio de um branco com o segundo grau, principalmente quando se
trata de um negro que tem o padrão biotípico africano em disputa com um
branco com padrão biotípico europeu, independentemente da origem
socioeconômica de cada um.
Nossa sociedade é racista e etnoexcludente. Nas empresas de contato
direto com clientes finais convencionalmente classificados de high society
ainda funcionam as chibatas, não para castigar, mas para afugentar e não
empregar negros, ainda quando sejam demonstradamente qualificados.
Quando não têm o terceiro grau no currículo escolar, fica mais difícil
ainda.
Essa distorção não fica mais à mostra, porque não há uma
consciência nem uma preocupação voltada para essa percepção. Existe
uma certa acomodação geral nesse apartheid manso e pacífico em terras
brasileiras, particularmente na Bahia, tanto da parte dos brancos quanto
da parte dos negros. O que existe é a prestigiação de uma cultura negra,
mas de um lado, e, depois de um hiato sificientemente largo, a prestigiação
de uma cultura branca do outro, mais confortável, mais bem
infraestruturada e climatizada. Isso se reflete também na vitrina dos
negócios empregatícios.
Josenilton kaj Madragoa
48
Todos são iguais perante as leis, inclusive perante as leis do mercado
e perante os critérios da empregabilidade. Só quem não liga para isso são
os empregadores high society.
Então, os negros pobres e em especial os negros afrobiotípicos que,
usando apenas o conhecimento como instrumento de acesso, pretendam
chegar mais para o centro dos ambientes laborais econômica e socialmente
prestigiados, precisam perseguir uma maior instrução escolar, além das
capacitações cognitiva e profissional, para concorrer em pé de igualdade
com os brancos, em especial com os brancos eurobiotípicos. A culpa da
exclusão etnossocial não é exatamente destes últimos. É do sistema como
um todo, sediado particularmente no departamento de RH das corporações
elitistas e aristocráticas caducas.
Enfim, mesmo sem ter a devida preparação para ingressar na
faculdade, é necessário um esforço maior de quem se origina de camadas
etnossociais desprestigiadas, para enfrentar e vencer o currículo
acadêmico. E, como eles também são egressos de ambientes
cognoformacionais fracos e pedagogicamente limitantes, se puderem
vencer a barreira que dá acesso à faculdade beneficiados por uma lei
reparadora de um passivo etnoeducacional histórico e que seja socialmente
equalizadora, por que não aproveitar a chance? Uma vez lá dentro, aí são
outros quinhentos. Aí é a hora de correr atrás do prejuízo e de despertar a
consciência acadêmica, a partir do empenho, da dedicação e da garra
inspirada nas lutas dos guerreiros ancestrais.}
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
49
A Constituição Federal preconiza o princípio da igualdade de
condição de acesso à educação. Por isso, já foram criadas várias
leis tendentes à pragmatização desse princípio, tais como as que
instituíram o ENEM e o PROUNI.
Entretanto, muito ainda precisa ser legislado para corrigir e
efetivamente cicatrizar de vez as chagas herdadas da maior
monstruosidade da história social de Portugal e do Brasil. E para
se plenificar essa gigante correção inclusiva, devem contribuir e se
responsabilizar, conjuntamente, o governo, a sociedade e cada
cidadão, independentemente de suas origens étnicas ou
multiétnicas e do grau de sua negralidade epidérmica.
“E vós, arcas do futuro,
Crisálidas do porvir,
Quando vosso braço ousado
Legislações construir,
Levantai um templo novo,
Porém não que esmague o povo,
Mas lhe seja o pedestal.
Que ao menino dê-se a escola,
Ao veterano — uma esmola...
A todos — luz e fanal!”
Castro Alves (no poema “O Século”)
Josenilton kaj Madragoa
50
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
51
A QUESTÃO NEGRA É UMA QUESTÃO DE TODOS NÓS
Todo esse tema sobre a questão da escravatura negra já deveria
se integrar apenas na História, para nos servir de (abo)lições
preventivas no presente e no futuro. Sabemos que o instituto da
escravidão para trabalho forçado e gratuito é tão velho quanto a
história do homem. A rigor, houve muito mais escravidão de não-
negros do que de negros. A folha corrida de todas as etnias tem
dívidas nesse sentido. Mas, no atual ciclo ascensional do Brasil,
temos de resolver mesmo é a pendência presente que nos
incomoda e aflige, que são os efeitos ainda prementes da
escravidão negra luso-brasileira.
No Brasil Colônia houve contornos únicos no mundo em
relação ao papel dos escravizados africanos que ajudaram na
povoação do território. O Brasil nasceu e cresceu juntamente com
os negros e se fortaleceu principalmente com o sangue negro.
O Brasil é um país formado por brancos, negros, índios,
asiáticos e suas infinitas miscigenações. A riqueza da nossa nação
está nessa mistura, que lhe fará crescer tanto mais quanto maior
for o equilíbrio de forças e de oportunidades entre as várias
Josenilton kaj Madragoa
52
formações étnicas, subétnicas, sociais, culturais, religiosas,
educacionais e econômicas.
A contribuição negra para a formação do povo brasileiro foi a
mais dura. Ao mesmo tempo em que eram tratados como objetos
e ao mesmo tempo em que viviam subjugados pelo império da
chibata, os negros também iam fazendo valer sua cultura, sua
ascendência moral, sua sabedoria milenar, sua religiosidade
espiritual. Ao mesmo tempo em que viviam sob coações laborais,
psíquicas, morais, religiosas e sociais, demonstravam a pujança de
sua inteligência, de sua capacidade de sobrevivência e de superação
de traumas sociais continuados, no convívio mais íntimo, no
exercício mais em close da “microfísica do poder”, pelo corpo,
pela mente, pela espiritualidade e pelas emoções.
[A instância do exercício de poder nem sempre é
territorial, hierárquica ou dominiosa. Pode ser também
circunstancial, emocional, psicológica, espiritual,
intelectual ou decorrente de outros fatores reais ou
ocultos de poder. Em seu livro “Microfísica do Poder”,
o filósofo e professor francês Michel Foucault (1926-
1984), sustenta a tese de que não existe o poder em si,
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
53
mas apenas sua prática, que não é necessariamente de
mão única, mas que empodera quem engana melhor,
quem convence e subjuga com mais eficácia, quem faz
mais pressão, quem faz mais aceleração. No teatro
inter-relacional, quem toma a iniciativa de fazer o papel
de poderoso, normalmente recebe do outro o poder que
espera. Para isso o pretenso poderoso vale-se da
arrogância ou prepotência verbal, gestual, vocal,
cognitiva ou até fisioaspectual. A materialização do
poder dá-se quando a parte “passiva” da relação
oferece ou exibe um perfil de submissão ou de
consentimento usando os mesmos instrumentos
aparentes (palavras, gestos, entonação ou timbre de
voz, além também do aspecto físico). [Lembremos que,
pela segunda lei da mecânica, de Isaac Newton, força
(ou poder) é o produto da massa pela aceleração. Não
tendo massa (sujeito ativo) ou aceleração (ação,
Josenilton kaj Madragoa
54
movimento), não há poder. Quem mais empodera o
poderoso é quem é propenso a ser empoderado
passivamente. Não é raro, contudo, o jogo de
dissimulações de ambos os polos para ver quem tira
mais proveito de suas aparências em relação ao outro.
No frigir dos ovos, não importa tanto o poder, mas, sim,
o que se tira de proveito com seu exercício ou com o
exercício do outro. Tão ou até mais importante do que o
poder é a ponderação.]
A prática negro-escravista começara no Sec. VI, pelos árabes,
mas os negros não contribuíram fundamentalmente para a
formação do povo árabe como contribuíram para a formação do
povo brasileiro.
Os negros brasileiros sempre foram sócios do Brasil como
nação, ainda que inicialmente tenham entrado pela porta de
serviço forçado e gratuito. Só que, mesmo após a abolição da
escravatura, essa categoria de sócios nunca lhes foi outorgada pela
sociedade, porque o preconceito nascido da sua antiga condição de
escravos sempre se impôs coletivamente.
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
55
{“Ser negro no Brasil é, com frequência, ser
objeto de um olhar enviesado. A chamada boa
sociedade parece considerar que há um lugar
predeterminado, lá em baixo, para os negros”.
– Milton Santos.}
Há um preconceito quase natural da “chamada boa sociedade”
em relação aos negros, ainda vigente. Esse “lá em baixo” referido
pelo grande geógrafo e professor Milton Santos é como se fosse
uma senzala inconsciencial no cérebro coletivo da elite branca
brasileira, herdada dos conceitos e preconceitos históricos, e para
onde são colocados os negros automaticamente. É um impulso
reflexo, talvez marcado por arquétipos fossilizados desde a época
do aportamento dos primeiros navios negreiros, em 1530.
Todos são iguais perante o ente abstrato chamado Lei. O
problema é que a dureza da lei não tem a mesma densidade para
todos na hora de se fazer valer, porque quem realiza a lei são os
homens detentores de poder. São estes que fazem as
discriminações, concretizam os preconceitos e patrocinam as
segregações no caso concreto, dia a dia e noite a noite, das formas
Josenilton kaj Madragoa
56
mais ostensivas ou sutis possíveis, consciente ou
inconscientemente.
Tudo bem que hoje a tônica das grandes questões sociais gira
derredor dos desnivelamentos sociais, drogas, violência urbana,
direitos humanos e outras urgências, que atingem todas as classes
sociais e etnias. Entretanto, o chato do IBGE sempre nos alerta
que a problemática da questão negra, independentemente de seus
contextos e correlações com outras questões sociais, sempre é uma
questão historicamente mal ou não resolvida. [Segundo dados
do IBGE, de 2006, dois em cada três analfabetos
brasileiros são negros ou pardos. Das pessoas com mais
de 15 anos de estudo – o que basta para se concluir o
ensino superior, 78% são brancas e apenas 3,3% são
negras(!) Isso para não citar dados alarmantes quanto a
empregabilidade e saúde] Sempre carece de um enfoque em
separado, em que pese à necessidade atual de se enfrentar qualquer
questão, seja individual, seja social, sempre sob pontos de vista
multidisciplinares. É uma equação que ainda se sustenta por si só e
admite, ou melhor, exige recortes reflexivos próprios, até ser
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
57
fechada pela matemática da justiça histórica.
{A grande e corpulenta pessoa coletiva chamada “povão”,
multiétnica, de matiz e de matriz predominantemente mestiça
(oitenta por cento dos brasileiros têm gene africano), tem
dificuldades de se adequar ao ensino formal de qualidade,
principalmente o superior, porque nunca lhe foi dada real
oportunidade para isso.
Nossos pacotes curriculares ainda são marcadamente
tradicionalistas, formalistas e "branquistas", portanto limitados,
cientificistas e antipovão.
"Na maioria das vezes, os professores não estão
preparados para lidar com as diferenças, e muitos
deles já se mostram predispostos a não esperar o
melhor resultado do estudante negro e pobre." -
Kabengele Munanga (1942), antropólogo congolês naturalizado
brasileiro, pesquisador, escritor e professor na Universidade de São
Paulo, em entrevista para uma revista étnica.
Josenilton kaj Madragoa
58
[Ele refere-se principalmente à discriminação prima
facie, ou seja, à primeira vista, àquela que tende a
marcar de logo o nível comunicativo ou contratual que
vai predominar na continuidade da relação.]
Temos a tendência de privilegiar a educação civilizatória
europeísta que ainda vige em nossos dias e se estende
sarcasticamente nos vestibulares e nos concursos e testes
admissionais do grande mercado de trabalho. Coaduna-se com os
reclames do atual capitalismo globalizado, lucrólatra, culturofágico
e anticonsciencial. Charles Darwin, do século XIX, ainda
exerce cátedra nos currículos escolares do século XXI.
Quem não se afina com o discurso oficial é tido como
analfabeto funcional ou iletrado, mesmo sendo detentor de outras
formas de saber sobrevivenciais, e é alijado das oportunidades
ascensionais dentro das camadas politicamente prestigiadas da
sociedade.
É inquestionável que o sucesso de quem quer que seja depende
muito mais de si mesmo do que de fatores externos. Porém, o
homem é, também, produto inevitável dos vários meios exteriores
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
59
e ulteriores com que interage, desde a família, a escola, o trabalho,
as ideologias reinantes e influências espirituais. E é fruto também
dos meios de comunicação (inclusive literários). Isso para não
falarmos daquela conhecida turma de amigos ou colegas e sem
nunca desprezar o mais sutilmente determinante de todos os
meios: os dados estatísticos formadores de pessoas coletivas. Os
meios étnicos, religiosos, culturais, sociais, drogais,
intelectuais e acadêmicos tendem a uniformizar
pensamentos, sentimentos e ações coletivas, com
repercussão na individualidade, automaticamente.
Por sua vez, o indivíduo tem maiores noções das
pluralidades unificadas quando se depara com
resultados de pesquisas quantitativas (em que pese às
suas diferenças para mais e para menos ou às
informações inexatas dos pesquisados, às falhas de
registro dos pesquisadores ou ao erro na análise dos
próprios resultados). A partir da visão numérica e
gráfica, o indivíduo abala, reduz ou expande seus
Josenilton kaj Madragoa
60
pensares, seus sentires e seus agires, com repercussão
na coletividade, automaticamente.
Se alguém é nascido e educado em um meio, mas quer ou
precisa, por algum motivo, interagir com outro meio, ele tem que
conhecer, no mínimo, a linguagem de acesso desse outro meio,
ainda que de forma artificial, só para entrar, como se fosse uma
linguagem-senha, isso se pretender eleger o conhecimento escolar
ou acadêmico como forma de prosperidade. O português de
concursos é uma língua praticamente morta entre os
falantes de todos os meios sociais. Serve mais como
critério reprovativo do que aprovativo nas provas
escritas em geral.
A maioria das escolas públicas abertas, que são as do povão,
não preparam seus alunos para transpor o estreito portal dos
saberes acadêmicos. Daí as escandalosas estatísticas do IBGE com
referência aos negros, que são a principal etnia das camadas sociais
menos favorecidas intelectual e economicamente. Sempre,
contudo, é necessário excetuar o talento, a
competência e o esforço individual de alguns magísteres
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
61
e administradores escolares idealistas que veem na
atividade do ensino um sacerdócio e que compensam,
até onde podem ou lhes é permitido, a deficiência dos
currículos disciplinares obrigatórios. São aqueles que,
mesmo mal pagos, mal assistidos e mal compreendidos,
não saem do ramo, nem perdem o rumo da sua missão e,
na média, conseguem artifícios para encantar seus
alunos, mesmo concorrendo com o MSN, ORKUT, MP3,
MP4, ipod e outros tecnologismos desconcentrativos do
aprendizado coletivo via giz.
E sempre, também, é necessário excetuar a garra, a
determinação e o empenho heroico de certos alunos que
vencem os bloqueios do sistema, porque vencem antes
seus próprios bloqueios, e partem e conseguem se
posicionar firmemente no campo das concorrências
sociais mais exigentes. Muitos já assumem essa
consciência autoinclusiva ainda na adolescência, e
Josenilton kaj Madragoa
62
chegam juntos na superação dos obstáculos que lhes
são impostos, ao ponto até de renunciarem ao benefício
das cotas ao disputar um lugar no ensino superior
público através do exame vestibular.
Enfim, os que, com ou sem apoio ostensivo, tomam a
iniciativa de correr atrás da própria autoinclusão social,
dão seus pulos aqui e acolá, com ou sem benefício de
cotas, e, quando se pensa que não, olhem eles lá
aparecendo também na foto, junto dos mais
favorecidos histórico-ambientais!
Especificamente, quem quiser transpor os portais da "elitista
universidade pública", vindo das camadas populares, tem que se
preparar “por fora”, romper madrugadas frente a luz de velas,
passar fichas de assuntos no ônibus, alisar cadeiras de biblioteca...
e tem de dominar o português e o português. Tem de dominar a
linguagem do seu ambiente de origem, se quiser manter seu
respiradouro linguístico natural, tem de dominar o português
padrão (o dos livros, revistas, jornais e textos midiáticos) e tem de
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
63
dominar a linguagem artificial, que é o português culto, exigido
pelo sistema agressivo e ingressivo das elites sociais e econômicas.
Os filhos destas se preparam em escolas ou cursos especialmente
montados para capacitá-los a se saírem bem nos certames. E os
filhos dos excluídos? Contam com quê?
Na atual estrutura de distribuição de oportunidades
educacionais, a rica e autêntica cultura popular não garante
qualquer colocação. Não é reconhecida pelo MEC.
Vale ressaltar, inclusive, que a cultura genuinamente
popular está agonizando frente ao bombardeio
incessante da chamada (in)cultura de massa,
destruidora de valores, emburrecedora, anestesiante,
insensibilizante, erotizante, drogante.
O conhecimento exigido para se passar nos concursos públicos
nunca é o popular, nem é o da Antropagogia (pedagogia social
que trata da educação além da escola e do círculo
familiar. – Dic. Houaiss). É sempre o de base euro-oitocentista,
frio, materialista, formal, inútil para a vida prática dos dias de hoje,
inútil até para a própria vida acadêmica. Só serve como forma de
seleção social para favorecer os já favorecidos históricos e para
Josenilton kaj Madragoa
64
manter os oriundos da periferia apenas espiando pela janela ou
servindo a merenda.
Não estou aqui desqualificando sistematicamente o português
culto ou erudito, não. Quem quiser ou gostar de usá-lo, deve usá-
lo. Ele também integra o idioma. Merece respeito. [De qualquer
forma, ela está se resvalando rapidamente para a norma
descritiva e já é vista por alguns como distração para
os antigos, para os culteranistas e para os puristas. Os
formadores de opinião dicionarísticos e telemidiáticos
convencem mais que os compêndios de gramática
normativa.] O preconceito linguístico não deve existir sobre
nenhuma vertente ou forma de expressão. O que mais importa é o
que se diz, não como se diz. A norma culta só não deveria servir
de parâmetro para aferição de conhecimentos de quem deseja
ingressar no ensino superior ou no serviço público, face a seu uso
limitadíssimo nas frentes sociolinguísticas e textuais pós-modernas.
Reiterando, todo aquele oriundo das camadas populares mais
afastadas do centro de prestígio urbano e que quiser se projetar
socialmente pelas vias da educação e do conhecimento, para não
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
65
alimentar as duras estatísticas do insensível IBGE, tem de ser
bilíngue dentro do seu próprio idioma. Tem de estabelecer um
diálogo progressista com seus eus intelectuais interiores.
O QI verbal é chave para os QIs intrapessoal, interpessoal e
cognitivo, e estes costumam abrir portas e portais mais seletivos e
estamentais.
Quem, por sua vez, não fizer essa questão toda de vender
conhecimentos para o sistema, selecione aprendizados mais
profundos, consciencio-expansivos e multi e translibertadores.}
Josenilton kaj Madragoa
66
AINDA FALTA UMA MESTIÇAGEM CULTURAL
Não dá para esquecermos o passado de forma definitiva,
como talvez muitos simplesmente queiram, porque o passado
não nos esquece. O passado, quando mal resolvido, nos
acompanha estrada do tempo adiante. Urge assinar uma carta de
alforria de toda uma gama de valores etnossociais pretéritos que
foram desqualificados, bloqueados e sufocados por mais de
quatrocentos anos. Só não foram anulados porque sua força era
de matriz preponderantemente espiritual.
Quando os africanos vieram para o Brasil, como presos
econômicos, eles não chegaram sem bagagem. Vieram com eles
companhias invisíveis, que também trouxeram toda uma carga de
culturalidade e de religiosidade para serem disseminadas do lado
de cá do Atlântico, inclusive como bálsamo psíquico, inclusive
para mostrar aos lusitanos e lusodescendentes a riqueza da vida
em sua interação entre as dimensões humana e espiritual.
De alguma forma, a trasmigração África-Brasil teve também
essa função ou missão transalfabetizadora ou civilizatória
espiritual, que só não se consolidou pujantemente por causa das
repressões eclesiástica e senhorial. Se os brancos se
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
67
assenhoreassem mais da realidade metafísica suscitada pela
religiosidade africana, haveria o enfraquecimento dos dogmas
cristãos-católicos, com uma crise de fé talvez sem precedentes.
Se as “coisas trabalhadoras” tivessem liberdade plena de
manifestação cultural, religiosa e artística, poderiam facilmente
ser “descoisificadas” perante a opinião pública. Seria um risco
para todo o processo colonizatório da Coroa. Daí a ambígua
política governamental-eclesiástica de manter os negros
coisificados enquanto seres sociais, mas, ao mesmo tempo,
cristianizados (ou catolicizados), inclusive através do batizamento
paroquial obrigatório, como um processo reforçativo da
transalienação religiosa.
“O boi na canga é uma rês. O
boi na mata é um indivíduo”. –
Clóvis Mota, professor e pensador de
Serrinha-BA.
Hodiernamente, ainda existe escravidão negra no Brasil.
Escravidão de valores, de manifestações culturais e artísticas.
Não que os negros contemporâneos não tenham liberdade de
Josenilton kaj Madragoa
68
manifestação, mas essa liberdade ainda está adstrita aos nichos
negros. Tais manifestações não têm liberdade de ir e vir por
todos os quadrantes sociais brasileiros, em pé de igualdade.
Ainda são vistas, e até admiradas, mas à distância, como coisas de
negros. Não existe nenhuma confusão no processo produtivo,
em que pesem a apreciações individuais de ambos os lados,
mesmo que a alguma distância.
Os negros são segregados em sua arte e em sua cultura, e
também são de certa forma proibidos de participar da festa do
salão nobre do conhecimento universal. Isso gera uma espécie de
apartheid cultural, artístico e religioso.
E isso já vem de longe. Na época do cativeiro laboral, os
negros eram cerceados não somente no direito de trabalhar
livremente e mediante paga, mas também eram proibidos de
estudar formalmente. Conhecer diretamente as obras clássicas da
literatura europeia e brasileira? Tocar piano? Dançar balé? Nem
pensar! Produzir livremente manifestações religiosas, artísticas e
culturais universais de origem europeia? Jamais! Era
exclusividade dos brancos.
Por isso, até hoje, ao lado do passivo econômico que o Brasil
adquiriu, e ainda não quitou, com os negros do passado e do
presente, há também um grito de liberdade de conhecimento, de
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
69
cultura e de relações fraternalmente multiabrangentes, que ainda
está preso na garganta do inconsciente negro do povo brasileiro,
sufocado principalmente pela pressão da dificuldade financeira.
Até essa abolição mais ampla se consolidar, milhões de
consciências individuais ainda precisam ser despertadas. Muitos
afrodescendentes, inclusive, precisam ainda despertar
a sua consciência negra como um processo terapêutico
de autoaceitação e de autoafirmação de sua própria
negritude. É uma fase fundamental e importante do
processo.
Outros “de cor”, contudo, já estendem o conceito e, mesmo
sem renegar sua etnicidade e sua eticidade de matriz negra, já
despertam e mobilizam, também, uma espécie de consciência
universal. Já almejam e contribuem para uma espécie de “paz
interétnica”, mas não aquela paz separatista em que a etnia
historicamente inferiorizada aceita sua condição submissa e se
mantém no seu canto, aparecendo no salão nobre só para servir.
Não. É a paz dos que se veem e lutam para ser vistos, acima de
tudo, como seres humanos iguais em tudo na vida, com os
mesmos direitos de ir e vir de todos os cidadãos. É a paz dos que
Josenilton kaj Madragoa
70
têm as artes, as religiões e as culturas de sua origem respeitadas,
inclusive porque também estas têm seu quê de universalidade.
Estes já transcenderam para uma perspectiva histórica e social
mais ampla das divergências conceituais no campo da justiça e da
injustiça sociais, do conhecimento e da ignorância e do poder e da
submissão em função de divergências étnicas e suas repercussões
ainda nos tempos hodiernos, especialmente na educação e no
emprego. Decorrentemente, acabam vendo como doentes morais,
ou como cegos conscienciais, alguns brancos que os discriminam.
[No geral, o sistema ainda é bruto para os
afrodescendentes, mas mais bruto ainda para aqueles
que não se olham no espelho cúbico caleidoscópico da
pluralidade humana. E é pior para aqueles que não
riem, não cantam e não dançam atrás do espelho, para
o espelho, do espelho, através do espelho e acima do
espelho. Enfim, para aqueles que não veem o espelho
dentro de si mesmos, no outro, na sociedade e em
todo o universo.]
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
71
Além do aspecto epidérmico, o grande passivo social
tupiniquim tem a ver também com toda uma ética espiritual de
matriz africana e indígena, manifestável em forma de arte e de
sabedoria, que precisa resplandecer e se fundir com a
culturalidade geral da nação. Após essa fusão cultural e de
liberdade de acesso dos negros e pobres e também dos brancos e
ricos aos ambientes da cultura e da arte universais de todas as
matrizes, num ir e vir harmonioso e unificador, aí, sim, há de
surgir um Brasil efetivamente democrático, modelar e
unitariamente plural para si e para o mundo.
Josenilton kaj Madragoa
72
A QUESTÃO NEGRA É UMA QUESTÃO
DE EDUCAÇÃO E DE ECONOMIA
Com a Lei Áurea, todos os escravos ganharam a liberdade social
definitiva, mas não receberam qualquer indenização que lhes
garantisse uma sobrevivência minimamente digna para si e para
seus descendentes. Não trouxeram para a vida livre das ruas a
liberdade econômica e a liberdade educacional formal,
imprescindíveis para assunção de melhores posicionamentos
estamentais dentro da sociedade competitiva como um todo.
Os negros entraram no páreo das concorrências mercadológicas
com muito atraso. A partir de 13 de maio de 1888 tiveram vida
nova, mas passaram a ter grandes dificuldades para arregimentar
recursos educacionais e financeiros próprios (além de
continuarem, por novas leis, restritos praticamente em nichos
segregados, o que equivale a um cativeiro indireto). Construir
quando se tem uma base herdada ou um apoio material
na construção é muito mais fácil do que construir do
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
73
zero, sem qualquer recurso, isso quando se tem direito
a construir alguma coisa.
As discriminações continuaram existindo, e existem até hoje,
em que pese à valorização da negritude e à tomada de consciência
dos próprios negros perante si como seres herdeiros de uma
ancestralidade muito rica de expressões artísticas, culturais,
religiosas e espirituais.
No Brasil, a convivência e o compartilhamento dos valores
sociais têm se dado de forma aparentemente harmoniosa. Porém,
ainda é comum a discriminação na distribuição de oportunidades
na esfera econômica. Os negros ainda moram predominantemente
nas periferias da cidade. Ainda trabalham nas periferias das
empresas de ponta (no setor de limpeza, segurança, vigilância etc).
Qualquer tipo de emprego é digno e merecedor de todo
respeito, mas muitos negros são “convencidos”, logo cedo, a ir,
com ou sem vocação, para a fila dos cargos de apoio ou da linha
de fundo, por causa de sua cor. Os critérios de seleção se definem
não somente na apresentação dos currículos, mas também já na
opção deles (obrigatória) pelas escolas e cursos de formação
profissional mais baratos, além da acomodação consciencial de
Josenilton kaj Madragoa
74
seus próprios familiares e professores, desde a infância. O
esquema é montado assim, difusamente, mas sempre eficaz para a
exibição do frame que todos vemos no mercado. É uma
tendência estatística que ainda se confirma
visualmente. Porém, no plano interindividual, a relação
empresa-empregado ou empresa-candidato a emprego
sempre leva em conta outros fatores (muitos deles
invisíveis aos olhos) para seu sucesso ou para seu
fracasso, independentemente de aparências estáticas
tridimensionais.
O raciocínio, ainda que inconsciente, de muitos empresários
chamados “privilegiados econômicos” é o seguinte: “nada contra os
negros como clientes, mas como representantes diretos da pessoa jurídica
comercial perante a clientela...” É uma forma sutil de empunhar ainda o
azorrague ou a chibata que se usava outrora para as punições no
regime escravocrata, mas que também marcava quem era quem no
jogo das dominações interétnicas. Ainda tem deixado seus
vincos.
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
75
Quase sempre, os negros que ocupam cargos estratégicos ou
bem remunerados nas grandes empresas são aqueles que fizeram
carreira e provaram sua capacidade funcional na lida diária.
Normalmente, a injustiça acontece é na seleção dos currículos,
após a análise da experiência escolar, da experiência profissional e
da fotografia.
[Até algum tempo atrás, era comum se ler nos
anúncios de emprego: “exige-se boa aparência”. Ficou
proibido por lei. Agora, a frase-chibata para negar aos
negros certos cargos executivos, cargos-vitrines ou
cargos-propagandas é: “Vossa Senhoria não atinge o
perfil exigido pela empresa”...]
"Enquanto a cor da pele for mais
importante que o brilho dos olhos,
ainda haverá guerra." - (Bob Marley)
As condições econômicas de moradia, de trabalho e,
consequentemente, de salário, são o principal termômetro de
Josenilton kaj Madragoa
76
identificação das distorções ainda havidas nas relações pragmáticas
entre as formações socioeconômicas.
Nas festas abertas e sociais, nas manifestações populares em
geral dos fins de semana, normalmente, todos são iguais perante a
lei (exceto nas abordagens policiais a suspeitos ou a
simples transeuntes). Porém, de segunda a sexta-feira, a lei
costuma ser aplicada de forma branda para os de cor branca e de
forma aleijadora e alijadora para os “de cor” que portam currículos
preto-e-branco. É uma seletividade sutilmente segregacionista.
O problema não é isoladamente apenas a imagem epidérmica
do candidato a emprego, mas também a sua condição de
incipiente e de insipiente oriundo de senzalas-escola.
As escolas públicas, em sua maioria (impressão que
ainda tenho em 2010), têm grades curriculares
forjadas para moldar os estudantes, desde o ensino
fundamental, para serem escravos do sistema. Não
lhes capacitam a se aprovarem por mérito nas
faculdades, nem nos concursos de emprego e nem na
articulação verbal nas provas-entrevistas do mercado
de recursos humanos. [Para afastar a associação com
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
77
prisão metodológica e didática, tem-se usado mais
amiúde nos ambientes pedagógicos a expressão
“currículo escolar” ou “matriz curricular” em lugar de
“grade curricular”.]
A questão não é apenas corrigir erros do passado através de
ações reparatórias. Fazem-se mister também políticas liberatórias,
unificatórias e, para garantia e sustentação disso tudo, políticas
educacionais de qualidade. E que estas não visem
necessariamente a atender às exigências mercadológicas, nem se
baseiem nos padrões capitalcêntricos, muito menos nas
exigências da plutocracia ou milionocracia, mas que priorizem a
formação de mentes libertárias, estimulem o pensamento
filosófico, a consciência crítica, a saúde integral e a ética crística,
social e humanitária.
Hoje em dia, já não é mais nada tão pessoal, ou seja, de pessoa
humana para pessoa humana, como soía acontecer no passado. O
preconceito é mais das pessoas jurídicas high society,
entranhadamente contaminadas pelas ideologias lucrólatras do
mercantilismo capitalista, contra as pessoas físicas trabalhadoras
Josenilton kaj Madragoa
78
“de cor" e preconceituosamente destoantes. As pessoas humanas
melanodermas (de pele excessivamente pigmentada ou
conceitualmente negra) ainda não satisfazem os interesses
econômicos das pessoas jurídicas que vivem de fachada e de “boa
aparência” perante sua clientela high society que compra grifes,
marcas e artigos de luxo e que é predominantemente composta
por leucodermas (de pele deficientemente pigmentada ou
conceitualmente branca).
O vácuo relacional trabalhador-negro/empregador-
branquista se alarga ainda mais quando, ao aspecto da
tez, se somam outros preconceitos, como o estético, o
biotípico, o indumentário, o etiquetário, o gestual e o
linguístico.
As empresas não socioelitistas, mas que também concorrem
pelo lucro e correm do fantasma da falência, também discriminam
os “pobre-descendentes” e, dentre estes, os afrodescendentes, por
causa da capacitação cada vez maior que é exigida no setor de
produção. A alta seletividade exigida pelo atual capitalismo
globalizado favorece sobremaneira aos candidatos oriundos das
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
79
escolas técnicas e das grandes faculdades e empresas de ensino de
ponta, que, por sua vez, exigem muita verba dos alunos-clientes.
E assim esse ciclo difuso vai se metastizando mais e mais no
corpo social, alargando, consequentemente as sarjetas marginais da
alta empregabilidade.
Enquanto isso, têm se fortalecido, sem riscos de falência, a
indústria dos entretenimentos emburrecedores, das (in)culturas de
massa, das drogas sociais dessensibilizantes, dos cacetetes-chibatas
e das grades carcerárias.
É uma tendência já anacrônica, que precisa ser banida do
consciente coletivo empresarial e do inconsciente social em suas
várias vertentes.
Talvez todo esse frame somente se modifique quando essas
próprias divisões gerais de classes sociais e suas injustiças
distributivas virarem páginas passadas no grande livro da dialética
histórica do planeta, a partir do pleno resgate e consolidação de
uma cosmovisão ancestral mesclada com uma supervisão
universalista e, consequentemente, confraternativa e agregadora
global. Será quando houver um trânsito interétnico livre e
igualitário, para apreciação e produção de manifestações culturais,
religiosas e artísticas universais, ainda que entre estas perdurem
Josenilton kaj Madragoa
80
marcas históricas de matriz europeia, africana, americana, indígena,
asiática etc. Será também quando o atual capitalismo leviatânico
sofrer uma freada em sua ascensão desnaturalizante e
desculturalizante, suficiente para fazer resplandecer outros valores
maiores da vida, outros focos de beleza humana, outros
sentimentos espiritualizantes e mais voltados para o amor,
fraternidade respeito às diferenças e compreensão e perdão aos
erros de visão próprios e alheios do passado.
Mas, ainda na atual contemporaneidade, algum laivo dessa
sociedade igualitária dos sonhos já poderá ser perceptível, a partir
da soma substancial de iniciativas etnoinclusivas dos indivíduos
pertencentes à high society, à low society, às diversas castas
educacionais e às direções empresariais e governamentais. Vamos
esperar, mas engendrando microações socialisticamente
voluntárias, individuais e convergentes, desde já, seja na sala de
aula, de frente para o espelho, no ambiente empresarial, no reduto
religioso, enfim, em cada oportunidade, em cada esquina.
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
81
AUTOESCRAVIDÃO: O PIOR JUGO
Como seres humanos, nós temos a capacidade natural de nos
adaptar a qualquer condição de sobrevivência, mesmo que seja
imposta por outros seres humanos. Por pior e mais desumanizante
que seja a condição, a partir do raciocínio que formamos a
respeito, podemos não morrer. Podemos até viver em paz, amar,
sonhar, brincar, mesmo presos a ambientes objetivamente
torturantes. Entra em bom socorrimento, também, o conjunto
total de interações que estabelecemos com todos os estímulos de
sustentação externa, horizontais ou verticais, e internas.
O que mata, adoece ou faz sofrer não é a condição externa em
si, mas é sua não aceitação sistemática e conflituosa pelo
condicionado. É o não desenvolvimento de qualquer meio
alternativo de respiração natural que não entre em conflito com a
condição. É, principalmente, a acomodação prostrativa que
impede o crescimento, apesar de ou independentemente da
condição, até poder se libertar dela por completo. Aliás, qualquer
estado de inércia prolongada já é em si uma pré-condição para
uma condição dolorosa posterior.
Josenilton kaj Madragoa
82
No Brasil, há uma tendência histórica de se criar e se aceitar um
condicionamento comportamental inferiorizante dos negros, ainda
na infância. [A famosa boneca Barbie, por exemplo, é
vendida em várias cores mundo afora, a depender da
cor predominante da população de certos países que são
grandes compradores. Já no Brasil, a empresa Mattel
(sua fabricante), só a vende bem branquinha, loiríssima
e magérrima. Será que não lhe disseram que aqui não é
a Europa? As crianças, inclusive as negras, veem nela o
modelo de beleza. Já começa por aí a supervalorização
da etnia branca e subvalorização da etnia negra.]
Nos seus primeiros relacionamentos sociais, muitas crianças
negras já se autoestigmatizam. Como elas são induzidas, às vezes,
pela própria educação doméstica e televisiva, a verem como
pessoas bonitas, alegres e bem sucedidas apenas as pessoas brancas
da televisão, então quando começam a frequentar os primeiros
ambientes sociais misturados, especialmente o ambiente escolar, já
entram com o seguinte letreiro escrito na testa: “Favor, excluir-
me” (das oportunidades de ascensão social, intelectual,
profissional...).
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
83
Na prática, esse letreiro é manifestado pela baixa autoestima,
timidez improdutiva, esqualidez mental, total desinteresse pelo
aprendizado, incapacidade de aceitar e superar desafios e pela
ausência de metas e ambições pessoais.
Assim, elas já antecipam lentamente a sentença do processo
social que tende a condenar os negros e os pobres a se manterem
degredados, desde o berço, nas bordas do grande círculo das
oportunidades de ascensão socioeconômica.
O trabalho em condições escravistas torna-se um inferno ou
uma tortura justamente para aqueles que se enfraquecem e se
acomodam ao regime da chibata ou dos rigores laborais. Quando
se toma consciência da sua situação, geralmente o caminho é a
liberdade, senão logo do ambiente torturador, mas imediata e
principalmente da consciência.
Qualquer condição deve ser superada com os poderes internos
do condicionado, e a superação é o caminho natural para a
libertação completa dos jugos interiores ou dos jugos exteriores.
Cada um de nós precisa se alforriar de conceitos e preconceitos
escravizantes, a todo momento. A abolição é um processo de cada
dia.
Josenilton kaj Madragoa
84
A propósito, vós, que estais aí no vosso sossego
leitoral, até agora, respondei-me, por favor: Vós sois
escravo de quê? Estais se escravizando em quê? Estais
livre de quê? Estais se libertando de quê? O que ainda
eventualmente viveis a carregar: chibata ou grilhão?
Azorrague ou libambo?
Cada um de nós ainda tem, de alguma forma, um escravo e um
algoz a libertar de dentro de si mesmo.
“Tava doromindo, cangoma me
chamô.
Disse: levanta, povo! Cativêro já cabô!”
– Versos de “Cangoma”, canto de jongo
de domínio público, famoso na voz de
Clementina de Jesus (escutai em
http://www.youtube.com/watch?v=YLIzH0
yKq5w).
Tão vital quanto a lei da aceitação é a lei do progresso.
Os preconceitos de cor atualmente reinantes na nossa sociedade
são meio obscuros e velados. Quase sempre são demonstrados
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
85
inconscientemente, porque consideram ainda as influências mais
racistas e discriminatórias do nosso passado escravista.
Muitas demonstrações de preconceito são fugidias e “escapam”
através dos atos falhos, por um velho costume enraizado dentro
do próprio preconceituoso, ou por estar incutido na sua herança
cultural subjacente dos velhos tempos.
Grande parte dos preconceituados, igualmente, não consegue
superar-se e acaba reacendendo às vistas alheias o preconceito de
que tendem a ser vítimas. Frise-se, inclusive, que muitos brancos
preconceitousos sistemáticos assim o são, porque ainda sentem na
pele perispiritual os traumas sofridos como negros em encarnação
passada. Pode-se dizer figurativamente que são brancos de alma
negra mal resolvida. O campo mental registra pensamentos,
sentimentos e sensações físicas, psíquicas e emocionais marcantes,
que podem atravessar várias encarnações, enquanto não houver
fatores suficientemente fortes para promover uma libertação
definitiva de tais autoarquétipos.
Muitos brancos preconceitousos sistemáticos assim o são,
porque ainda sentem na pele perispiritual os traumas sofridos
como negros em encarnação passada. Pode-se dizer
figurativamente que são brancos de alma negra mal resolvida. Não
Josenilton kaj Madragoa
86
se autorresolveram antes como negros, e ainda não se
autorresolveram agora como brancos.
"É a nossa mente que cria a escravidão e é ela
também que cria a libertação". – Sai Baba
A solução encontrada por muitos discriminados e integrantes de
grupos de desfavorecidos sociais é um maior empenho no sentido
de serem melhor do que a média da população, em todos os
sentidos. Essa superação abrange, inclusive, o alinhamento da
estética indumentária, a observância mais precisa das regras de
etiqueta e, principalmente, uma melhor performance escolar e
profissional. Isso não deixa de ser também uma espécie de
autodiscriminação, ainda que para melhor! Em muitas situações,
ela serve para favorecer o equilíbrio entre o que a sociedade
(inclusive a escolar), em princípio, costuma esperar deles (não
muita coisa) e o que eles acabam oferecendo efetivamente à
sociedade, em termos de resultados, adiante.
Muitos discriminados, através dessa linha acima da média,
costumam reverter olhares preconceituosos em seu derredor, e
acabam conseguindo, depois de muitos esforços, um lugar mais
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
87
digno sob o sol das oportunidades da ascensão social. E o retorno
positivo pretendido por eles avoluma-se, principalmente quando
essa autopreparação superante sobre a média comum se reverte
em resultados úteis e proveitosos para si mesmo e para a
coletividade.
“Nosso medo mais profundo
não é o de sermos inadequados.
Nosso medo mais profundo é o
de sermos poderosos além de
qualquer medida. É a nossa luz,
não as nossas trevas, o que mais
nos apavora. Nós nos
perguntamos: - Quem sou eu
para ser brilhante, maravilhoso,
talentoso e fabuloso? Na
realidade, quem é você para não
ser? Você é filho do Universo. Se
você se fizer de pequeno, não
ajuda o mundo. Não há
iluminação em se encolher para
Josenilton kaj Madragoa
88
que os outros não se sintam
inseguros quando estiverem
perto de você. Nascemos para
manifestar a glória do Universo
que está dentro de nós. Não está
apenas em um de nós, está em
todos nós. Conforme deixamos
nossa própria luz brilhar,
inconscientemente damos às
outras pessoas permissão para
fazer o mesmo. Quando nos
libertamos do nosso medo,
nossa presença
automaticamente libera os
outros.” – Nelson Mandela (1918,
advogado, ex-líder rebelde e ex-
presidente da África do Sul), em
trecho do seu discurso de posse
como presidente.
O mais esperável é a igualdade de direitos sociais para todos os
aparentemente diferentes, sem que estes precisem forçar mudanças
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
89
que não quereriam fazer se fossem privilegiados sociais. É gostoso
se ter e se exercer o direito de apenas ser e deixar ser o que se é,
quer como ser humano, quer como ser cultural, quer como ser
étnico. A paz, a igualdade, o respeito uns aos outros indivíduos e
umas às outras formações sociais é que devem reger todas as
relações conviviais, seja no ato ou na execução dos contratos, seja
no compartilhamento das alegrias, dos prazeres e da felicidade.
Em princípio, cada um tem o direito de aprender o que quiser,
vestir-se como quiser e fazer o que quiser, desde que não
prejudique direitos perigosamente próprios nem alheios. É esse
direito subjetivo de ser-se que o Estado, a sociedade como um
todo e cada indivíduo em si devem respeitar e fazer respeitar.
Abaixo os chamados privilégios sociais oriundos de diferenças
étnicas, econômicas, educacionais ou culturais!
Discriminar sistematicamente é um vício. Quando não vivemos
ostensivamente nesse vício, temos a tendência em estado latente.
A depender da pressão, da irritação ou do estímulo emocional em
um conflito, costumamos arrancar do inconsciente expressões
racistas ou pejorativas que tentam ferir a integridade do adversário
que tem uma marca social e historicamente discriminada. Depois
vem o arrependimento, ou não, mas o crime já foi perpetrado.
Josenilton kaj Madragoa
90
Quase todos nós somos educados socialmente para discriminar
os outros ou nós mesmos que já somos culturalmente
discriminados, desde a infância. Isso se transforma facilmente num
vício de comportamento.
Daí a importância do exercício constante de reeducar também
os sentidos e os reflexos adquiridos para comportamentos
antidiscriminatórios. As piadinhas, a simples maledicência e
qualquer associação dos feitos com aspectos aparentes de alguém
são formas de preconceito, seja positivo, seja negativo.
Recado particular para a Srta. Judiceia, de Campo
Grande(MS): A atitude é esta: não discriminar a nós mesmos, não
discriminar os diferentes de nós, não discriminar os que
discriminam suas próprias diferenças e não discriminar os que
discriminam os outros, mesmo que entre estes outros estejamos
nós mesmos. Podemos e devemos recriminar ações
discriminatórias, inclusive acionando as autoridades competentes,
se for o caso, mas não exatamente humilhar, ridicularizar ou
devolver ação igual para o discriminante.
Hoje, o grande algoz comum a todos é o sistema capitalista e
seu azorrague de mil correias, das mais enganadoras às mais
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA
91
cruéis e bestiais. É um meio mais influenciador sobre
nossas vidas do que o meio gráfico das tabelas
estatísticas do IBGE
Ao lado dele, entretanto, o grande império que se interpenetra
aos poucos na mente de todos os indivíduos mais sintonizados
com as novas ondas conceituais autolibertantes é o império da
consciência e do amor fraternal.
Oxalá, quando as futuras leis corretivas e expansivas
estiverem em pleno vigor, coincida também de já estar em
pleno desenvolvimento o mais esperado de todos os valores
relacionais: a ética, mesmo de matriz étnica, cultural, religiosa,
bíblica, crística, familiar ou simplesmente pessoal. Quando
cada um terá força e capacidade de destrancar seus grilhões
enferrujados, com a chave da consciência cósmica e do amor
crístico, confraternativo, solidário e respeitante a todas as
diferenças, impulsionado, inclusive, pela transpercepção da
linha evolutiva multiexistencial e suas inexoráveis leis de
livre-arbítrio, ação e reação, causa e efeito, progresso e amor.
Oxalá!