REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do...

91
REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA PORQUE OS GRILHÕES AINDA NÃO FORAM PARA O MUSEU Josenilton kaj Madragoa

Transcript of REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do...

Page 1: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO

A QUESTÃO NEGRA

PORQUE OS GRILHÕES AINDA

NÃO FORAM PARA O MUSEU

Josenilton kaj Madragoa

Page 2: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

2

Page 3: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

3

“Leitor, se não tens desprezo

De vir descer às senzalas,

Trocar tapetes e salas

Por um alcouce cruel,

Vem comigo, mas… cuidado…

Que o teu vestido bordado

Não fique no chão manchado,

No chão do imundo bordel.”

Castro Alves (no poema

“Tragédia no Lar")

Page 4: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

4

SUMÁRIO:

APRESENTAÇÃO 5 RAÇAS HUMANAS E A IDEOLOGIA DA ESCRAVIZAÇÃO NEGRA 6

BELEZA NEGRA. FORA DO CATÁLOGO DOS PADRÕES ESTÉTICOS TRADICIONAIS 16 IDEOLOGIAS SOCIOLÓGICAS SUSTENTADORAS DA TESE INFERIORIZANTE 18 AS FERIDAS PELO AZORRAGUE E PELA CHIBATA AINDA SANGRAM 25 QUEM VAI AGORA COTIZAR A DESPESA? 31 TENTANDO JUSTIFICAR A LEGITIMIDADE DA LEI DE COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES 35 A QUESTÃO NEGRA É UMA QUESTÃO DE TODOS NÓS 51

AINDA FALTA UMA MESTIÇAGEM CULTURAL 66 A QUESTÃO NEGRA É UMA QUESTÃO DE EDUCAÇÃO E DE ECONOMIA 72 AUTOESCRAVIDÃO: O PIOR JUGO 81

Page 5: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

5

APRESENTAÇÃO

Estamos todos, indivíduos, sociedades e governos, a caminho

de mudanças conscienciais no que se refere às diferenças étnicas,

culturais, religiosas e sexuais. Mas, as atitudes discriminatórias

oriundas de iniciativas individuais e de grupos retrógrados de todas

as esferas de poder ainda são uma chaga muito viva dentro de

todas as formações sociais, econômicas e políticas. E hoje

envolvem questões que vão além de fatores históricos e

ambientais. Têm a ver também com o jogo de interesses do

capitalismo apocalíptico que vivemos hodiernamente e que há de

ter um fim daqui a algum tempo.

A seguir, vamos tecer um rosário de argumentos que tentam

jatear um pouco de luz a mais sobre essa questão, especificamente

sobre a questão negra, ainda que seja apenas uma luz de fósforo

em relação aos holofotes elucidativos de autores mais gabaritados

e especializados. Tudo que lereis está mais para uma prosa

ficcional, amparada principalmente em meras hipóteses e

imaginações, do que para um texto científico, que exige pesquisa,

precisão de dados e uma linguagem acadêmica.

Page 6: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

6

RAÇAS HUMANAS

E A IDEOLOGIA DA ESCRAVIZAÇÃO NEGRA

reio ser inegável que as formações sociais não

evoluem ao mesmo tempo. Umas estão mais

adiantadas do que outras do ponto de vista filosófico,

científico, espiritual, cultural e artístico. Mas a consciência disso

nunca foi a mesma, inclusive pelas formações sociais mais

desenvolvidas de todos os continentes, do ponto de vista

intelectual.

Efetivamente, houve épocas, inclusive até o século XX, em que,

do ponto de vista de comportamentos, muitos grupos humanos

pouco se diferenciavam dos animais selvagens, praticando até o

canibalismo para sobreviver, para premiar vitórias bélicas ou para

atender a rituais religiosos zoologizados.

Muitas tribos americanas, africanas e australianas, por exemplo,

tinham práticas extremamente primitivas, rudes e bestiais. Tais

costumes faziam ser considerados seus indivíduos como seres não

humanos, próximos dos animais. Era a ótica reinante entre os

intelectuais, pensadores e filósofos europeus e árabes, até o século

C

Page 7: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

7

XIX. [Os brancos que eram vistos nas proximidades das

tribos negro-africanas eram particularmente alvo

preferencial das flechas. Por quê? Porque

historicamente os nativos já sabiam que os brancos não

estavam se aproximando por lá para trocar

experiências, mas, sim, para dardejá-los com flechas

psíquicas subjugadoras, para depois atacá-los de

verdade e dominar-lhes os territórios. E isso acabou

acontecendo em quase toda a África.]

Hodiernamente é inconcebível em todo o mundo a prática dos

sacrifícios torturantes e do canibalismo. As tribos sociais, mesmo

as ainda selvagens, de todos os quadrantes terrestres, humanizaram

e espiritualizaram suas culturas e seus rituais, graças, inclusive, às

miscigenações e interinfluências com outras consciências coletivas

menos animalizadas, e pelo maior tráfico de intercâmbio entre as

formações étnicas espirituais.

[Outrora, era normal se encarnar dezenas de vezes

em um só grupo étnico. Havia, pois, as raças humanas

Page 8: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

8

puras, quer do ponto de vista genético, quer do ponto

de vista memético.

A partir desse prisma, o que é raça humana?

Identidade fisioétnica combinada com identidade

culturoética.

Hodiernamente, não há mais raças puras,

principalmente no Brasil que é um país tradicionalmente

multiétnico.

Desde o início da colonização estrangeira do Brasil

pelos portugueses e pelos africanos, começou a haver

miscigenações interétnicas, que avançaram

explosivamente no século XIX. Mas sempre houve

também uma miscigenação espiritual no histórico dos

negros, dos brancos e também dos índios. Ou seja, na

África negra antiga as raças eram bipuras. Não só não

havia miscigenação com brancos fisioepidérmicos, como

também não havia transmigração de espíritos africanos

para encarnarem em outros continentes e vice-versa. A

Page 9: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

9

grande maioria encarnava e desencarnava no seu

próprio continente.

Hoje a miscigenação espiritual tem pulverizado mais

e mais os traços fortes de caráter e de cultura

baseados em origens ambientais puras. Tem havido, por

exemplo, muitos brancos multiexistenciais encarnando

na África sob epiderme negra e há muitos africanos

históricos encarnando na Europa sob epiderme branca.

Atualmente, quando muitos europeus ou americanos

excursionam ou vão morar no interior da África, estão

mesmo é regressando à terra natal. A memória afetiva

de ambientes onde se viveu antes durante centenas de

anos não se apaga logo após se encarnar em um

ambiente novo. A transmigração de almas conduz

também toda uma bagagem de impressões e de

expressões profundamente gravadas no perispírito.

Page 10: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

10

Consequentemente, é mais lógico dizer que não há

mais raças humanas, já que não há mais identidade

fisioétnica nem culturo-ética preservada sem

misturas.]

Entretanto, antes dessa maior troca de genes e psicogenes

(memes) entre as formações étnicas negras e brancas, havia, sim, a

visão de inferioridades e de superioridades raciais entre as

formações sociais humanas, que se utilizou durante séculos,

principalmente na Europa, para justificar, inclusive, a escravidão

dos negro-africanos na Idade Moderna. Foi uma ideologia

montada mais ou menos sobre o seguinte silogismo:

Premissa maior: Os negro-africanos têm hábitos selvagens

e não humanos.

Premissa menor: tu és negro-africano.

Conclusão: tu não és humano.

Foi um silogismo totalmente equivocado, mesmo porque as

culturas, as religiões, as etnias e as civilizações africanas nunca

foram homogêneas. A premissa maior é preconceitualmente

generalizante, portanto aberrantemente falha.

Page 11: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

11

Aliás, qual é a premissa maior que é perfeita no que

se refere a seres humanos? A única premissa perfeita

é esta: toda formação social, por mais homogênea que

seja na aparência, é intrinsecamente contraditória,

para impedir a formação de qualquer premissa

conceitual generalizante sobre si mesma.

Ademais, de que lado costumam se prestigiar as

verdades disseminadas socialmente? Historicamente, e

ainda hoje, a questão maior se cinge à diferença

cultural entre etnias culturalmente distintas.

É histórico que a cultura, a religião e os costumes de

quem manda é que são tidas como as verdadeiras, as

abençoadas por Deus. O mandado, consequentemente, é

visto como ignorante, atrasado, involuído e selvagem.

Na idade moderna, usava-se a arma de fogo para se

impor verdades. Hoje predominam as armas dos meios

de comunicação de massa, da união de grandes

Page 12: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

12

corporações ideológicas e dos discursos fascistas

confeitados e enfiados goela abaixo do povão, de forma

macia, porquanto aditivadas de drogas sociais

dessensibilizantes e alienantes.

E, mesmo em relação às tribos humanas animalistas, jamais

seria o caso de sua subjugação para trabalho forçado, e, sim, deixá-

las se autoevoluírem naturalmente, como ocorreu com todas as

formações sociais do mundo em épocas pretéritas.

Até o início das primeiras grandes colonizações europeias

(século XVI), a maioria das tribos e nações negro-africanas era

desconhecida do ponto de vista social. A ideia falsa (ou falseada)

que se tinha era a de que os negros africanos eram iguais em todos

os sentidos, simplesmente, porque eram homoetnicamente negros.

E eram convenientemente reunidas nos mesmos conceitos tanto

as tribos selvagens como as tribos e formações sociais evoluídas e

civilizações de toda a África Negra, inclusive a egípcia. É a velha

estratégia de misturar e confundir conceitualmente,

para justificar a subjugação coletiva.

Outra falha de visão conceitual era em relação ao próprio

conceito de “civilização”. O conceito reinante de civilização

Page 13: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

13

impulsionou a burguesia capitalista europeia a acoplar a

ideia de progresso ao domínio paternalista e colonial

sobre os povos selvagens. Estes sempre foram

ideologicamente tratados como “bons selvagens”, que

precisavam ser “educados”.

O eurocentrismo ou europeísmo influenciava todo o planeta a

reconhecer apenas na Europa os modelos ideais de cultura, de

religião e consequentemente de civilização. Era uma visão

praticamente natural no conceito dos europeus e do resto do

mundo, ao ponto até de grandes gênios e homens de notável saber

de todos os continentes terem sido influenciados por essa limitada

visão eurocêntrica, o que ainda acontece nos dias atuais.

E, assim, quase todos os povos do continente europeu, com

toda sua garbosa civilização, foram também extremamente

ignorantes e bestiais no que se refere à visão global do mundo.

Praticaram canibalismos ideológicos e estupros culturais contra os

povos de outros continentes distanciados de seus padrões de

cultura e de beleza. Praticaram genocídios, massacres, etnocídios e

civilizocídios, tudo em nome de reis, expansões territoriais, missões

civilizatórias e até em nome de Deus. E praticaram a emigração

Page 14: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

14

forçada e a escravização de negros africanos, em nome do

capitalismo exploratório.

[Na nossa hodiernidade, a maior forma de

discriminação é o descaso dos países economicamante

ricos com a sorte dos povos que vivem na sarjeta

socioeconômica do planeta. E a maior demonstração de

selvageria dos chamados povos civilizados,

principalmente os do primeiro mundo, é explorar as

riquezas do continente africano e dar as costas para os

graves problemas sociais e econômicos de seus países

pobres. Destaque-se inclusive que muitas guerras entre

nações africanas são fomentadas com armas adquiridas

dos Estados Unidos.

Qualquer enriquecimento montado a partir de

passivos ambientais, morais ou econômicos é falso e

costuma se converter em condições resgativas muito

penosas tempos adiante, quer para os indivíduos, quer

para as sociedades que se locupletam disso.]

Page 15: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

15

Page 16: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

16

BELEZA NEGRA. FORA DO CATÁLOGO

DOS PADRÕES ESTÉTICOS

TRADICIONAIS

Em relação à beleza humana, houve uma ideologia reinante no

Velho Continente, de reconhecer como pessoas bonitas somente

aquelas que mais se aproximavam dos contornos faciais exigidos

pela chamada “proporção áurea”, que era um padrão geométrico

criado e utilizado por artistas e matemáticos europeus para

expressar formas tidas como suaves, harmoniosas e perfeitas.

[Segundo a “proporção áurea” para a beleza facial, a

largura da boca deve ser 1,618 maior do que a largura

do nariz. A largura do dente incisivo central deve ser

1,618 maior do que a largura do incisivo lateral. E a

largura da boca seja 1,618 maior do que a distância

entre o canto da boca e a ponta da bochecha.]

O próprio pintor renascentista Leonardo da Vinci utilizou tais

medidas para desenhar a Monalisa. Tal regra de geometria

certamente influenciou nas ideologias racistas e preconceituosas de

inferioridade dos negros africanos, já que estes em nada se

Page 17: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

17

adequavam a essas medidas artificiais, pelo menos se

considerarmos como parâmetro o rosto da famosa pintura

leonardesca.

Ainda hoje existem discutíveis padrões oficiais de

beleza, pelo menos corporalmente, nos concursos de

misses. As medidas ideais são europeizadas (as medidas

tradicionais giram em derredor de 80cm de busto,

60cm de cintura e 85cm de quadril) e sempre

desestimulam a maioria das mulheres negras a

concorrer. A única mulher negra a vencer o certame no

Brasil até hoje foi a gaúcha Deise Nunes, em 1986, mas

porque suas medidas estiveram perfeitamente de

acordo com as medidas oficiais.

Page 18: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

18

IDEOLOGIAS SOCIOLÓGICAS

SUSTENTADORAS DA TESE

INFERIORIZANTE

Para reforço ideológico, ainda reinava o entendimento,

sustentado pelas ideias de Aristóteles (retomadas pelo

Renascimento), de que o trabalho escravo seria uma espécie de

terapia ocupacional para os homens “inferiorizados pela natureza”.

Prevaleceu também o conceito de “determinismo biológico”,

defendido por Émile Durkhein (1858-1917; professor francês,

considerado um dos pais da Sociologia), segundo o qual os grupos

humanos exercem papéis sociais estanques e padronizados, em

razão, inclusive, de seus traços físicos. [Ele baseava-se no

princípio de que os fatos sociais devem ser analisados

como coisas. Ainda bem que apareceu no fim do

espetáculo escravista.]

Várias formações sociais historicamente prestigiadas na Europa

do século XIX aplaudiram o chamado Darwinismo Social

(expansão da teoria da evolução das espécies entre os animais

Page 19: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

19

levada para as sociedades humanas), para justificar sua tese de

soberania racial sobre os demais povos da Terra, particularmente

sobre os negros africanos.

Esse conceito sociodeterminista se expandiu para os seres

humanos individualmente.

O criminologista italiano Cesare Lombroso (1835-1909),

festejadíssimo por “positivistas entendidos”, pré-classificava

muitos excluídos congênitos como criminosos natos, a partir da

análise de seus traços antropométricos! Já pensou: diga-me como é sua

nuca, que eu direi qual é, ou qual vai ser o seu caráter! Fez sucesso até no

Brasil.

Já no início do século XIX, houve um precursor dessa ideia, o

médico alemão Franz Joseph Gall (1758-1828), que desenvolveu a

Frenologia, (segundo a Wikipédia, “teoria que reivindica ser capaz de

determinar o caráter, características da personalidade, e grau de criminalidade

pela forma da cabeça (lendo "caroços ou protuberâncias")”.

A própria Sociologia como ciência, nascida no século XIX, na

Europa, foi marcada por conceitos positivistas, materialistas, e,

consequentemente, frágeis e limitados acerca dos homens, suas

formações sociais, suas culturas e seus destinos. Essa espécie de

separatismo conceitual foi reforçada pela Antropologia e pela

Page 20: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

20

Etnologia, também nascidas no mesmo continente e século e com

as mesmas bases sociodivisionais hierarquizantes.

Tudo isso serviu como forma de justificar e até de aumentar a

dominação dos chamados “povos civilizados” sobre os povos

africanos, os quais, além de fisicamente, eram também

psicoideologicamente subjugados, para viabilizar a mantença do

regime.

Os escravizados eram também objetificados. Objeto ou coisa

em Direito é tudo aquilo de que se pode dispor na qualidade de

proprietário, para compra, venda, alteração da substância ou até

para destruição. Era um gancho de raciocínio para alívio da

consciência social como um todo. Considerar convencionalmente

alguém como coisa, e acomodar esse conceito no inconsciente

coletivo, foi um facilitador para a aceitação do regime de trabalho

forçado.

Os escravizados eram adrede desqualificados como seres

humanos, e acabavam aceitando a condição inferiorizada, porque

passavam a se ver mesmo como coisas. Então, era um conceito

com bons resultados comerciais e psicodominiais.

Page 21: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

21

Por falta de uma supervisão socio-humanística do mundo,

muitos homens de boa-fé, de boa índole e até de grande visão

social tiveram homens escravizados a seu dispor.

[Aqui no Brasil, é consabido que a família de Castro

Alves tinha escravos. Sabe-se, através de pesquisas

acadêmicas, que houve negros livres que tiveram e

negociaram escravos no Brasil. Alguns estudos

polêmicos apontam para o fato de que houve negros

reescravizados no próprio Quilombo dos Palmares.

Muitos escravos que negavam participar de fugas eram

assassinados, para não delatarem os fugitivos.

Em algumas fazendas escravistas a convivência da

casa grande com a senzala era relativamente

harmoniosa, considerando a relação vertical impositiva.

Muitos escravos, principalmente velhos e inválidos,

eram tratados de forma humana e quase como membros

da família senhorial. Isso funcionava, pelo menos,

enquanto cada um dos polos opostos exercia com

Page 22: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

22

habilidade seus papéis. Durava enquanto não houvesse

maiores arranhões ou qualquer ponta de ameaça para o

sistema geral nem para o sistema particular de

tratamento. Os conflitos afetivos e as crises de

relações íntimas geralmente se resolviam não com a

separação, mas, sim, com a retomada da relação

hierárquica senhorial-escrava e seus castigos

decorrentes.]

Bem, estamos aqui pegando apenas um fragmento da

relação senhorial-escrava reinante em tempos que já lá

vão na história da vida privada do Brasil Colônia e do

Brasil Império. Nesse terreno, a História constrói-se

também com histórias dedutivas e indutivas, não com

fatos reais. Havia milhares de tipos de relação social e

microssocial que não foram flagrados pelos primeiros

historiadores-testemunhas presenciais e que não foram

documentados para informar o universo livresco futuro.

Cada formação social tem sua própria história e seus

Page 23: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

23

próprios fatos ocultos, inclusive muitos deles ligados a

muitos outros fatos maiores, não somente da

macrossociedade, mas também de matrizes ocultas à

lente de qualquer observador científico e formal-

acadêmico.

Sempre foi normal os favorecidos sociais ou econômicos se

locupletarem, consciente ou inconscientemente, com as

discriminações étnicas. Entretanto, naqueles tempos já recuados

não era tão marcante o preconceito. O que prevalecia era a

discriminação estamental. A maioria das pessoas não tinha plena e

real consciência das condições objetivamente humilhantes dos

escravos, nem a maioria destes próprios.

Muitas fugas, levantes, revoltas e movimentos

pontuais marcaram o regime escravista no mundo e

particularmente no Brasil, mas sempre foram

estrategicamente abafados ou violentamente

reprimidos pelos poderes sociais dominantes.

Page 24: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

24

Grandes líderes de resistência, muitos deles

implacavelmente assassinados ou perseguidos sem

trégua, foram enterrados nos arquivos mortos da

história colonial, a exemplo de Ganga Zumba, Zumbi dos

Palmares (século XVII), Carucango, Luiza Mahim e

Zeferina (século XIX), no Brasil; Nzinga Mbandi Ngola,

rainha de Matamba e Angola (século XVII), Mackland

(guineano), no Haiti (século XVIII), e os irmãos ganeses

Lanu e Avakó, no Suriname (século XVII).

Page 25: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

25

AS FERIDAS PELO AZORRAGUE E PELA CHIBATA AINDA SANGRAM

A força cultural e religiosa africanista serviu de base de

sustentação e de amenização da própria submissão forçada de

grande parte dos negros vitimados pelo regime da chibata e seus

estresses mentais contínuos.

Com o sincretismo afrocristão-eclesial, carregado de símbolos e

imagens comparativas, a própria inteligência espiritual do povo

negro se enriqueceu e enriqueceu também a religiosidade luso-

brasileira, em que pese à histórica intolerância e perseguição

oficiais ao livre-cultismo africano por estas plagas.

Apesar do impositivo cristianismo eclesial e toda sua

dogmática vaticanista, os negros reconheceram e

passaram, de alguma forma, a se identificar também

com a mensagem pura do cristianismo crístico, que é

eterna e universal e se perpassa por entre todas as

formações ideológicas congregacionais. E grandes

parcelas da população negra brasileira, como um todo,

Page 26: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

26

também perceberam com mais nitidez a força espiritual

das inteligências invisíveis que influenciam e corregem

nossos destinos humanos, considerando que as culturas

religiosas africanas são essencialmente espiritual-

interativas.

Com o passar das gerações, muitos escravos nativos do Brasil já

nasceram naturalmente dentro de um ambiente de sincretismo

religioso e cultural. Não sofreram o trauma múltiplo da separação

familiar, étnica e territorial dos escravizados estrangeiros. Não

sofreram, especificamente, a longa e torturante travessia

transatlântica, nos porões dos tumbeiros ou navios negreiros. Não

foram considerados meras mercadorias, ao ponto de serem

jogados ao mar quando os capitães precisavam aliviar a carga dos

navios ameaçados de naufrágio com o peso de pedras portuguesas

que também vinham para as construções da Colônia. [E os

escolhidos para aliviar o peso eram os já fragilizados

psíquica e fisicamente pelo rigor do transporte.]

“Era um sonho dantesco... o tombadilho

Page 27: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

27

Que das luzernas avermelha o brilho.

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite...

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar...”

Castro Alves (em “O Navio Negreiro –

Tragédia no Mar”)

Essa brasilidade difusa, cafuza e confusa lhes amenizou a

relação com os açoites, com os pelourinhos e com a própria

tortura continuada do trabalho gratuito e obrigatório. Propiciou-

lhes alguma felicidade, ainda que clandestina, ao lado da evolução

natural dos tratamentos mais humanizantes que foram recebendo

no decorrer principalmente do século XIX, inclusive do ponto de

vista legal.

Em 1831, uma lei libertou todos os cativos que tinham

vindo da África, ainda que para atender a imposição

britânica para o reconhecimento da independência brasileira.

Em 1850, surgiu a lei que aboliu o tráfico negreiro, que não

foi, contudo, eficiente para impedir o tráfico clandestino, que

Page 28: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

28

ainda perdurou por cerca de vinte e cinco anos. Em 1871, foi

promulgada a Lei do Ventre Livre. A partir de sua vigência,

todos os negro-brasileiros filhos de escravas já nasciam

automaticamente livres, ainda que tivessem de permanecer

sob a tutela dos senhores de seus pais, até os vinte e um

anos. [Por isso tal lei não teve eficácia plena, já que

dezoito anos depois de sua vigência ocorreu a Abolição

da Escravatura no país.] Logicamente, considerando que a

média de vida dos escravos era quarenta anos, tem-se que

nos anos setenta e oitenta do século XIX quase todos os

senhores de escravo eram fora da lei. Em 1885, promulgou-se

a lei do sexagenário, que libertava todos os cativos maiores

de sessenta anos, mediante polpuda indenização

governamental a seus senhores, o que para estes foi um

excelente negócio, considerando que geralmente os escravos

que conseguiam chegar a tão vetusta idade já não tinham

mais qualquer capacidade produtiva. [Em verdade, foi

também uma vitória de pirro. Veja art. 3º, § 10: “São

libertos os escravos de 60 anos de idade, completos

antes e depois da data em que entrar em execução esta

Page 29: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

29

Lei; ficando, porém, obrigados, a titulo de indenização

pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores

pelo espaço de três anos”.] Só vigeu três anos, já que em

1888 veio a tão esperada Lei Áurea, que foi o resultado final

de uma evolução legislativa. Foi o coroamento também de

uma evolução de consciência social e de um bombardeio de

pressões internacionais, considerando que o Brasil foi um

dos últimos países a extinguir o regime negro-escravista. [O

último foi a Mauritânia, oficialmente em 1975.] Foi

igualmente a vitória de uma sequência de revoltas pontuais e

localizadas e de movimentos abolicionistas, tanto dos

próprios escravos quanto de intelectuais e artistas negros e

brancos.

Já havia uma insatisfação crescente do povo em geral, que

andava incomodado, percebendo a incongruência de um regime

caduco em relação aos esclarecimentos e novas percepções sociais

do fim do século XIX. O povo estava se alfabetizando, ouvia

histórias e romances, lia jornais. Já surgia uma literatura romanesca

genuinamente brasileira. Havia rodas e saraus de leitura, discursos

Page 30: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

30

em palanques... O povo estava aprendendo a pensar criticamente.

Alguma consciência negra já ecoava na sociedade largamente

mesticizada. Enfim, a abolição era coisa de dias, o que se consolidou com a

assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, pela Princesa

Isabel, que estava regendo o império em lugar de D. Pedro II, que

estava fora. Houve a libertação do cativeiro e seus trabalhos

forçados e totalmente gratuitos.

Page 31: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

31

QUEM VAI AGORA COTIZAR A DESPESA?

Hoje, os povos de todos os continentes, sejam brancos, sejam

negros, repudiam a escravocracia das gerações pregressas.

Entretanto, as sequelas etnoeconômicas resultantes ainda causam

grandes prejuízos para a maioria dos afrodescendentes, sejam para

os de epiderme negra, melanoderma ou anegrada, morena ou

amorenada ou faioderma (parda ou pardacenta).

{Esse jogo de matizes epidérmicas serve apenas para hilariar

um pouco a velha e ainda não pacificada questão acerca de quem é

mesmo negro ou branco no Brasil. E se tomarmos a lupa da

Genética, aí fica mais complicado ainda. Lembra-se daquela

pesquisa do geneticista Sérgio Pena, encomendada pela BBC

Brasil? Concluiu que o sambista Neguinho da Beija-Flor e a ginasta

Daiane dos Santos são geneticamente mais brancos do que negros.

A convenção hoje reinante é a de que negro é quem se diz

negro e de que branco é quem se diz branco. Esse é o principal

entrave ao sucesso da política de cotas, principalmente

considerando que, a rigor, a grande maioria do povo brasileiro é

Page 32: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

32

composta de mestiços ou faiodermas (pardos), quer do ponto de

vista epidérmico, quer do ponto de vista genético.

Sob a ótica etno-histórica, uma classificação talvez também

válida é a de que negros são os negro-africanos e de que brancos

são os branco-europeus e suas descendências disseminadas pelo

mundo. Mas, vale lembrar que nem na África existe uma única

etnia negra, nem na Europa existe uma única etnia branca. As

próprias cores das etnias não intermiscigenadas são variadas. Daí,

poderíamos ilar, também, que não existem etnias nem raças

humanas, considerando, inclusive, que todos somos originários da

África. [Segundo pesquisas, os australopitecos mais

antigos viveram no sul da África há aproximadamente

três milhões de anos.] Mas, isso aí já é uma ilação talvez muito

avançada, quem sabe para viger no transfuturo (dos anos 2060 em

diante).

Como no Brasil a predominância é a descendência miscigenada

de ambos os extremos, negro aqui passou a ser mais uma cor

conceitual e político-afirmativa do que necessariamente

epidérmica, étnica ou antropológica. [Isso para não falar da

influência genética indígena e asiática em quase todas

as regiões do país.]

Page 33: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

33

Com a cada vez maior expansão da consciência negra, a maioria

dos afrodescendentes e dos mestiços negro-genéticos faz questão

de assumir sua negritude ou a negritude de sua constituição física

ou psíquica. A consciência negra é antes de tudo uma consciência

de afirmação, de superação e de felicidade.}

As próprias políticas públicas atuais de reparação se justificam

não por questões negrais em si, mas, pelo menos, por dois motivos

históricos e bem objetivos.

Em primeiro lugar, em todo o período escravista, os

escravizados, quer tenham sido negro-africanos, quer tenham sido

negro-brasileiros ou miscigenados, eram proibidos de frequentar

escolas. Mesmo depois da abolição houve leis restritivas contra

eles, inclusive uma que os impedia de se reunir. Houve leis pós-

abolição no sentido de não jogarem capoeira, de não praticarem o

Candomblé, de não votarem, de não poderem ser funcionários

públicos, de não poderem casar com pessoas brancas, de não

estudarem juntamente com os brancos etc.

“O processo educacional brasileiro fez com que brancos

tivessem muitos privilégios. Durante muitos anos depois da

abolição os negros não podiam estudar nos mesmos lugares

Page 34: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

34

que os brancos. Os negros e negras só podia estudar aos

finais de semana. Depois, somente à noite, onde os cursos

eram mais fracos. A educação não privilegiava os negros nem

no ensino, porque durante muitos anos a história dos negros

foi negada e manipulada.” - Marco Davi de Oliveira.

Fonte:

http://negreirosurbanos.blogspot.com/2008/05/influencia-da-

ideologia-do.html.

Em segundo lugar, ainda no tempo do cativeiro, todos eles,

inclusive os “negros de ganho” (escravos que trabalhavam na

rua a fim de conseguir dinheiro para seus senhores),

eram proibidos de acumular riquezas para uso inteiramente livre e

para legar a seus descendentes. Exceção apenas para os

poucos “negros de aluguel”, que podiam juntar dinheiro

para comprar sua própria alforria ou para contribuir

com fundos de entidades negro-protetivas, já no século

XIX.

Page 35: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

35

TENTANDO JUSTIFICAR A

LEGITIMIDADE DA LEI DE COTAS

PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES

Como foi o governo português o instituidor e o governo

brasileiro o mantenedor do (agora horrendo) regime da escravidão,

é justo que o próprio governo, hoje, promova políticas reparadoras

para as vítimas indiretas do regime escravista que vivem nos dias

atuais. Que faça o papel que não fizeram os primeiros

republicanos. Afinal, os governantes, os governados, os escravistas

e os escravizados mudaram, mas o governo é o mesmo, o país é o

mesmo. E os benefícios e os prejuízos consequenciais do regime

permanecem os mesmos, até hoje, para eurodescendentes bem de

vide e para afrodescendentes pobres, respectivamente. Portanto,

temos uma responsabilidade histórica, mas também

contemporânea, e temos de acertar essas contas.

É certo que quem acaba pagando pelas políticas de reparação,

especialmente no que se refere ao sistema de cotas nas

universidades, são os vestibulandos eurodescendentes, os branco-

Page 36: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

36

brasileiros e os afro-brasileiros não adotantes das cotas, sejam de

que etnia ou subetnia ou condição econômica forem.

Ocorre que todos os privilegiados históricos são herdeiros

diretos de gerações de senhores de escravo ou de homens livres da

escravidão, que eram, nos séculos passados, também livres para

estudar e livres para acumular e legar riquezas para seus

descendentes atuais. E o que os negros pobres de hoje herdaram

dos seus ancestrais? Nada de economia nem de educação formal,

porque seus ancestrais, ainda que tivessem capacidade laborativa e

intelectual, simplesmente não podiam exercer economia, nem

podiam estudar, proibições que perduraram mesmo no século XX.

A lei das cotas não deve se destinar para os afrodescendentes

pobres apenas porque estes são negros ou pardos. O espírito da lei

seja o de beneficiar objetivamente a quem de direito, que são os

trinetos e tetranetos de escravos aqui do século XXI, oriundos de

escola pública e hipossuficientes do ponto de vista econômico, por

uma questão mínima de justiça socio-histórica. E como os

escravos eram negro-africanos ou afrodescendentes

diretos ou mestiçados, então o critério utilizado pela lei

de cotas é de que o candidato ao benefício se

identifique como afrodescendente e que demonstre,

Page 37: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

37

pela documentação epidérmica, que efetivamente tem

“sangue negro” na sua linhagem genealógica, além de ser

baixa-renda. O sistema não tem nada de assistencialismo

demagógico nem de preconceito positivo piegas. Tem caráter

reparador (ou difusamente indenizatório) de toda uma etnodiceia

(conjunto dos direitos de um grupo étnico ou nação –

Dic. Houaiss.) que fora usurpada pela própria iniciativa

governamental luso-brasileira, e que ainda hoje gera consequências

danosas na maior parte do corpo social do país.

Pode e até deve ser um direito renunciável. Quem, por qualquer

razão, não quiser se utilizar do benefício da cota, que exerça seu

direito de não exercer tal direito. Mas, para quem a julgar

necessária e queira se beneficiar dela, é importante que ela exista,

como embrião de uma futura legislação mais ampla e efetivamente

igualizadora das condições socioeducacionais para todos os

cidadãos, o que será percebido finalmente quando as escolas

públicas assumirem de vez seu papel de formação de mentes e de

cidadania, desde o nível fundamental. Isso talvez ainda precise de

mais algumas gerações.

Page 38: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

38

{Não defendo cega nem apaixonadamente a lei de cotas. Em

princípios, todos deveriam ser iguais perante a lei,

independentemente de raça, cor etc, como dita a Constituição

Federal. Entretanto, reconheço que, a partir de um prisma de

interpretação jus-historicista, essa lei (ainda) é justificável, pelo

menos enquanto não houver uma educação de qualidade

acadêmico-ingressiva para todos, para que todos estejam

efetivamente em pé de igualdade perante as oportunidade da vida

social. A lei maior é justa. Injustos são os sistemas econômicos e

sociais, que na prática desigualam os afrodescendentes pobres

desde o maternalzinho, que, à propósito nem existe em grande

parte das escolas públicas do ensino fundamental.

Contudo, fazendo fileira com os demais movimentos sociais, os

movimentos negros, numa política de preparação mais específica,

devem lutar mais intensamente, não pela manutenção ad infinitum

dessa lei protetiva, mas principalmente para, através de cursos

paralelos de formação geral e específica, melhor instrumentalizar

as pessoas histórica e socialmente discriminadas para enfrentarem

todos os concursos que exigem grande preparo intelectual. A luta

também seja no sentido de que o próprio governo, numa política

de reparação mais ampla, melhore imediatamente as escolas

públicas, desde o ensino fundamental, para que as pessoas

Page 39: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

39

hipossuficientes financeiras possam ter mais capacidade de

ultrapassar a barreira de acesso e possam frequentar as

universidades públicas em pé de igualdade com os preparados em

escolas particulares de ponta. [Tem existido uma melhoria

em algumas escolas públicas, mas só para aquelas

voltadas para curso técnicos específicos para o

mercado de trabalho, trabalhadores ou seres humanos

roboides capacitados a servir ao sistema capitalista ou

homines cientifici e homines fabri. Obviamente, com a

relação com os números e cálculos, o meio estudantil

pode se quadrificar, ou pode se circularizar. Quer

dizer: ou a máquina maquiniza o homem, ou o homem

humaniza a máquina. Depende de cada aluno e seu

histórico escolar de vida pregressa intra e pré-

encarnacional.]

A obrigação do crescimento é individual, fruto do esforço e do

mérito. É básico. Porém é obrigação do governo e da sociedade

civil oferecer as condições para esse crescimento, concorrendo em

Page 40: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

40

pé de igualdade com as escolas particulares, que as oferecem muito

bem para quem pode pagar por elas. Por isso a lei de cotas é antes

de tudo um instrumento de justiça social, porque propõe uma

política não só de reparação, mas também uma política de

igualização de oportunidades socioascensionais.

{“Suspiramos pela democracia, mas nunca lhe quisemos

pagar o preço. O preço da democracia é a educação para

todos. É a educação que faz homens livres e virtuosos. E por

que não a tivemos? Porque força é insistir. Jamais fizemos da

educação o serviço fundamental da República." - Anísio

Teixeira.}

Mas, a questão de ordem agora também já passa a ser a

seguinte: o que é mesmo que se deve ensinar em sala de aula? Qual

é o pulo do gato que o povo deve aprender, para se livrar das

garras diabólicas do famigerado capitalismo democraticida?

Vamicê, camujerê, que é passante (de assuntos) e mestre da

educação, pode ensinar qual é a ginga ou a esquiva de ouro? Ou V.

Sa. serve passivamente ao sistema conscienciofágico e

desumanizante dos dinheirudos plutocratas e destruidores da

cultura nacional, da filosofia, das tradições e das artes, da liberdade

e da independência de pensar?}

Page 41: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

41

A questão negra, pois, não é meramente étnica. Envolve

objetivamente aspectos de liberdade econômica, de liberdade

educacional e, agora, de liberdade de pensar, também.

Ainda nos dias atuais se veem os reflexos desse desequilíbrio de

forças nos resultados de concursos públicos. A grande maioria dos

aprovados provem de boa formação escolar e de famílias bem

estruturadas financeiramente. Já a maioria dos negros sequer

conclui o ensino médio, inclusive porque tem de trabalhar cedo

para ajudar na sobrevivência familiar.

O sistema de cotas tenta amenizar os desníveis de ascensão

social impostos pelas gerações do passado e que ainda sequelam e

vitimam os negros da atualidade. Isso para não incluir nestas

reflexões o fato de que os azorragues e as chibatas

ainda zunem nos ares da nossa contemporaneidade,

através do neoescravismo laboral, que serve ao

capitalismo lucrólatra, e através das atitudes

discriminatórias e etnopreconceituosas que ainda

contaminam toda a nação. Só não zunem com mais

contundência graças às políticas sindicais, às leis

Page 42: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

42

antidiscriminatórias e às denúncias dos próprios

prejudicados. Graças também às ações cada vez mais

inclusivas dos movimentos negros que nunca baixam a

vigilância. Graças, enfim, aos próprios

afrodescendentes próximos ou remotos que

individualmente assumem suas atitudes protetivas,

autoafirmativas, superativas e libertadoras da maior

forma de escravidão dos tempos atuais: a escravidão

das consciências.

A lei das cotas serve apenas para pensar (tapar com curativo

superficial) as feridas ainda abertas pelas chibatas escravistas. De

certa forma, ela retoma a evolução legislativa negro-libertária do

século XIX, que fora interrompida com a lacunosa Lei Áurea. [Ela

teve apenas dois artigos: “Art. 1º É declarada extinta

desde a data desta Lei a escravidão no Brasil. Art. 2º

Revogam-se as disposições em contrário.”] Analogamente,

equipara-se à satisfação liminar de um direito continuado,

enquanto se espera a sentença judicial ou a lei final complementar

Page 43: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

43

que vai conceder todos os direitos principais, inclusive o

indenizatório.

A atual legislação federal atinente à matéria tem usado

corretamente a expressão “reparação”, ao invés de “indenização”.

Como se trata de um prejuízo moral e material de proporções

incalculáveis, é melhor promover ações afirmativas, reparatórias e

emancipatórias, com efeitos ex nunc (a partir de agora), do que ficar

tentando contar ou reascender prejuízos originados há quase

quinhentos anos. [Indenizar é tornar indene, íntegro,

inteiro. No caso de seres humanos, quando

desindenizados, é impossível haver reindenização por

medidas externas. Porém, medidas reparatórias

externas atuais podem contribuir para a reindenização

pelas próprias vítimas herdeiras dos processos

desindenizadores e intergeracionalmente

sequelizadores do ponto de vista de educação, inclusão

social e cidadania plena.]

Facilitar, pelo menos, o ingresso dos historicamente excluídos

às cadeiras da faculdade pode ser o bom início de prestação de

Page 44: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

44

contas com as dívidas desse passado mal resolvido com a própria

consciência coletiva. É uma forminha de redenção. É uma fumaça

de boa justiça, tardia, mas ainda a tempo. Espiritualmente, é um

descarrego cármico de toda a sociedade, mesmo que

simbolicamente. A memória da história continua perseguindo

estrada do tempo adiante, enquanto não se resolve questões

acumuladas no inconsciente, seja individual, seja coletivo, mesmo

que, de certa forma, correções objetivas já tenham se perpetrado

pelo corretivo das reencarnações individuais com troca de papéis.

O nosso problema maior ainda é que, mesmo com as

regulações pontuais já operadas pela justiça reencarnatória, as

lembranças dos traumas antigos (que são iguais aos próprios

traumas) perduram ou se fortalecem, enquanto os preconceitos, as

discriminações e as novas formas de escravidão substituem as

desoportunizações de crescimento ou de liberdades sociais do

passado. Grande parte dos negros de hoje continuam de certa

forma alijados nas senzalas sociais, que são as periferias sem

infraestrutura sobrevivencial digna, que são os rincões perdidos no

sertão, que são as escolas públicas desequipadas, que são as prisões

sem qualquer política de educação efetivamente moralizante,

reinclusiva e dignificadora.

Page 45: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

45

{O que se aprende na faculdade não é necessariamente o que se

aprendeu antes no ensino médio, muito menos é o que se estudou para

passar no vestibular.

Não pretendo aqui fazer apologia cega ao academicismo. Tem gente

que entra na faculdade institucional sabendo pouco sobre o que deve saber

na faculdade da vida, e quando recebe o canudo, sabe menos ainda.

Mas, do ponto de vista pragmático-social, a universidade é um

mundo à parte nas vivências estudantis. É lá que são formadas mentes

pensantes, muitas destas oriundas de escolas públicas ou até de cursos

supletivos ou de aceleração. Lá incubam-se mentes não necessariamente

pensantes sobre o que se lhes é posto a pensar, mesmo porque por lá

também se perpassam ideologias contrárias à verdade sobre os problemas

do ser, do destino e da dor.

Quem faz sua universidade é cada aluno em si e seus propósitos,

suas intenções, sua visão geral de mundo já trazida na mochila para a aula

inaugural. O aluno ativo e questionador aprende com os mestres e com os

autores, mas também tem sua forma de pensar própria, a qual se amplia

com as ideias, noções e terminologias adquiridas nas aulas, nos textos e

nas discussões e nas teses infinitas, principalmente no campo das ciências

sociais.

Ao se formar numa faculdade, ou se está pronto para ser um

interventor social construtivo, ou se transforma num robo sapiens

programado para reproduzir ideologias dominantes veredas sociais afora.

Depende das tomadas de posição e das elucubrações mentais adotadas por

cada discente, logo no primeiro semestre, principalmente a partir das

Page 46: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

46

disciplinas Introdução à Filosofia, Economia Brasileira e Elementos de

Sociologia.

Muitos acadêmicos que ingressaram pela lei de cotas dão-se melhor

do que não cotistas no enfrentamento do currículo, principalmente quando

levam no consciente um certo engajamento de postura crítica perante o

sistema social etnoexcludente. Depende da dedicação, do enturmamento,

da personalidade, da vontade de superação. Ele vai com propósitos além de

somente aprender. Ele vai para melhor se instrumentalizar cognitivamente

acerca das políticas ostensivas e ocultas que controlam as matrizes sociais

e para melhor se posicionar no mercado de trabalho e no mercado da vida

de relações em geral.

Aqueles alunos hipossuficientes financeiros conscientizados que

desistem, ou que são seguidamente reprovados, não é exatamente por

causa da dificuldade de entendimento, mas por causa da dificuldade de

acompanhar o ritmo como um todo, aí incluindo-se questões subsidiárias.

Se fosse primeiramente por questão cognitiva, o cotista sequer teria

passado no vestibular. Ele foi beneficiado apenas pela reserva percentual,

não pelo ingresso sem preparo no ambiente acadêmico. [É certo

também que depende do curso escolhido. Cada caso é um caso.]

Há também outra questão. A lei de cotas não é apenas um

instrumento da política de reparação, não. Serve também para garantir

uma inclusão mercadológica em níveis socioeconomicamente mais

prestigiados e confortáveis para mentes pensantes e com grandes

potenciais intelectualmente produtivos. Para os negros que querem ou têm

capacidade de desenvolver sua mão de obra mais especializada junto às

Page 47: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

47

esteiras de produção intelectual, o título universitário tem sido uma

necessidade primária. No comum das relações empresarial-operária

baseadas nas aparências, um negro com o terceiro grau tem o mesmo

prestígio de um branco com o segundo grau, principalmente quando se

trata de um negro que tem o padrão biotípico africano em disputa com um

branco com padrão biotípico europeu, independentemente da origem

socioeconômica de cada um.

Nossa sociedade é racista e etnoexcludente. Nas empresas de contato

direto com clientes finais convencionalmente classificados de high society

ainda funcionam as chibatas, não para castigar, mas para afugentar e não

empregar negros, ainda quando sejam demonstradamente qualificados.

Quando não têm o terceiro grau no currículo escolar, fica mais difícil

ainda.

Essa distorção não fica mais à mostra, porque não há uma

consciência nem uma preocupação voltada para essa percepção. Existe

uma certa acomodação geral nesse apartheid manso e pacífico em terras

brasileiras, particularmente na Bahia, tanto da parte dos brancos quanto

da parte dos negros. O que existe é a prestigiação de uma cultura negra,

mas de um lado, e, depois de um hiato sificientemente largo, a prestigiação

de uma cultura branca do outro, mais confortável, mais bem

infraestruturada e climatizada. Isso se reflete também na vitrina dos

negócios empregatícios.

Page 48: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

48

Todos são iguais perante as leis, inclusive perante as leis do mercado

e perante os critérios da empregabilidade. Só quem não liga para isso são

os empregadores high society.

Então, os negros pobres e em especial os negros afrobiotípicos que,

usando apenas o conhecimento como instrumento de acesso, pretendam

chegar mais para o centro dos ambientes laborais econômica e socialmente

prestigiados, precisam perseguir uma maior instrução escolar, além das

capacitações cognitiva e profissional, para concorrer em pé de igualdade

com os brancos, em especial com os brancos eurobiotípicos. A culpa da

exclusão etnossocial não é exatamente destes últimos. É do sistema como

um todo, sediado particularmente no departamento de RH das corporações

elitistas e aristocráticas caducas.

Enfim, mesmo sem ter a devida preparação para ingressar na

faculdade, é necessário um esforço maior de quem se origina de camadas

etnossociais desprestigiadas, para enfrentar e vencer o currículo

acadêmico. E, como eles também são egressos de ambientes

cognoformacionais fracos e pedagogicamente limitantes, se puderem

vencer a barreira que dá acesso à faculdade beneficiados por uma lei

reparadora de um passivo etnoeducacional histórico e que seja socialmente

equalizadora, por que não aproveitar a chance? Uma vez lá dentro, aí são

outros quinhentos. Aí é a hora de correr atrás do prejuízo e de despertar a

consciência acadêmica, a partir do empenho, da dedicação e da garra

inspirada nas lutas dos guerreiros ancestrais.}

Page 49: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

49

A Constituição Federal preconiza o princípio da igualdade de

condição de acesso à educação. Por isso, já foram criadas várias

leis tendentes à pragmatização desse princípio, tais como as que

instituíram o ENEM e o PROUNI.

Entretanto, muito ainda precisa ser legislado para corrigir e

efetivamente cicatrizar de vez as chagas herdadas da maior

monstruosidade da história social de Portugal e do Brasil. E para

se plenificar essa gigante correção inclusiva, devem contribuir e se

responsabilizar, conjuntamente, o governo, a sociedade e cada

cidadão, independentemente de suas origens étnicas ou

multiétnicas e do grau de sua negralidade epidérmica.

“E vós, arcas do futuro,

Crisálidas do porvir,

Quando vosso braço ousado

Legislações construir,

Levantai um templo novo,

Porém não que esmague o povo,

Mas lhe seja o pedestal.

Que ao menino dê-se a escola,

Ao veterano — uma esmola...

A todos — luz e fanal!”

Castro Alves (no poema “O Século”)

Page 50: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

50

Page 51: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

51

A QUESTÃO NEGRA É UMA QUESTÃO DE TODOS NÓS

Todo esse tema sobre a questão da escravatura negra já deveria

se integrar apenas na História, para nos servir de (abo)lições

preventivas no presente e no futuro. Sabemos que o instituto da

escravidão para trabalho forçado e gratuito é tão velho quanto a

história do homem. A rigor, houve muito mais escravidão de não-

negros do que de negros. A folha corrida de todas as etnias tem

dívidas nesse sentido. Mas, no atual ciclo ascensional do Brasil,

temos de resolver mesmo é a pendência presente que nos

incomoda e aflige, que são os efeitos ainda prementes da

escravidão negra luso-brasileira.

No Brasil Colônia houve contornos únicos no mundo em

relação ao papel dos escravizados africanos que ajudaram na

povoação do território. O Brasil nasceu e cresceu juntamente com

os negros e se fortaleceu principalmente com o sangue negro.

O Brasil é um país formado por brancos, negros, índios,

asiáticos e suas infinitas miscigenações. A riqueza da nossa nação

está nessa mistura, que lhe fará crescer tanto mais quanto maior

for o equilíbrio de forças e de oportunidades entre as várias

Page 52: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

52

formações étnicas, subétnicas, sociais, culturais, religiosas,

educacionais e econômicas.

A contribuição negra para a formação do povo brasileiro foi a

mais dura. Ao mesmo tempo em que eram tratados como objetos

e ao mesmo tempo em que viviam subjugados pelo império da

chibata, os negros também iam fazendo valer sua cultura, sua

ascendência moral, sua sabedoria milenar, sua religiosidade

espiritual. Ao mesmo tempo em que viviam sob coações laborais,

psíquicas, morais, religiosas e sociais, demonstravam a pujança de

sua inteligência, de sua capacidade de sobrevivência e de superação

de traumas sociais continuados, no convívio mais íntimo, no

exercício mais em close da “microfísica do poder”, pelo corpo,

pela mente, pela espiritualidade e pelas emoções.

[A instância do exercício de poder nem sempre é

territorial, hierárquica ou dominiosa. Pode ser também

circunstancial, emocional, psicológica, espiritual,

intelectual ou decorrente de outros fatores reais ou

ocultos de poder. Em seu livro “Microfísica do Poder”,

o filósofo e professor francês Michel Foucault (1926-

1984), sustenta a tese de que não existe o poder em si,

Page 53: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

53

mas apenas sua prática, que não é necessariamente de

mão única, mas que empodera quem engana melhor,

quem convence e subjuga com mais eficácia, quem faz

mais pressão, quem faz mais aceleração. No teatro

inter-relacional, quem toma a iniciativa de fazer o papel

de poderoso, normalmente recebe do outro o poder que

espera. Para isso o pretenso poderoso vale-se da

arrogância ou prepotência verbal, gestual, vocal,

cognitiva ou até fisioaspectual. A materialização do

poder dá-se quando a parte “passiva” da relação

oferece ou exibe um perfil de submissão ou de

consentimento usando os mesmos instrumentos

aparentes (palavras, gestos, entonação ou timbre de

voz, além também do aspecto físico). [Lembremos que,

pela segunda lei da mecânica, de Isaac Newton, força

(ou poder) é o produto da massa pela aceleração. Não

tendo massa (sujeito ativo) ou aceleração (ação,

Page 54: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

54

movimento), não há poder. Quem mais empodera o

poderoso é quem é propenso a ser empoderado

passivamente. Não é raro, contudo, o jogo de

dissimulações de ambos os polos para ver quem tira

mais proveito de suas aparências em relação ao outro.

No frigir dos ovos, não importa tanto o poder, mas, sim,

o que se tira de proveito com seu exercício ou com o

exercício do outro. Tão ou até mais importante do que o

poder é a ponderação.]

A prática negro-escravista começara no Sec. VI, pelos árabes,

mas os negros não contribuíram fundamentalmente para a

formação do povo árabe como contribuíram para a formação do

povo brasileiro.

Os negros brasileiros sempre foram sócios do Brasil como

nação, ainda que inicialmente tenham entrado pela porta de

serviço forçado e gratuito. Só que, mesmo após a abolição da

escravatura, essa categoria de sócios nunca lhes foi outorgada pela

sociedade, porque o preconceito nascido da sua antiga condição de

escravos sempre se impôs coletivamente.

Page 55: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

55

{“Ser negro no Brasil é, com frequência, ser

objeto de um olhar enviesado. A chamada boa

sociedade parece considerar que há um lugar

predeterminado, lá em baixo, para os negros”.

– Milton Santos.}

Há um preconceito quase natural da “chamada boa sociedade”

em relação aos negros, ainda vigente. Esse “lá em baixo” referido

pelo grande geógrafo e professor Milton Santos é como se fosse

uma senzala inconsciencial no cérebro coletivo da elite branca

brasileira, herdada dos conceitos e preconceitos históricos, e para

onde são colocados os negros automaticamente. É um impulso

reflexo, talvez marcado por arquétipos fossilizados desde a época

do aportamento dos primeiros navios negreiros, em 1530.

Todos são iguais perante o ente abstrato chamado Lei. O

problema é que a dureza da lei não tem a mesma densidade para

todos na hora de se fazer valer, porque quem realiza a lei são os

homens detentores de poder. São estes que fazem as

discriminações, concretizam os preconceitos e patrocinam as

segregações no caso concreto, dia a dia e noite a noite, das formas

Page 56: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

56

mais ostensivas ou sutis possíveis, consciente ou

inconscientemente.

Tudo bem que hoje a tônica das grandes questões sociais gira

derredor dos desnivelamentos sociais, drogas, violência urbana,

direitos humanos e outras urgências, que atingem todas as classes

sociais e etnias. Entretanto, o chato do IBGE sempre nos alerta

que a problemática da questão negra, independentemente de seus

contextos e correlações com outras questões sociais, sempre é uma

questão historicamente mal ou não resolvida. [Segundo dados

do IBGE, de 2006, dois em cada três analfabetos

brasileiros são negros ou pardos. Das pessoas com mais

de 15 anos de estudo – o que basta para se concluir o

ensino superior, 78% são brancas e apenas 3,3% são

negras(!) Isso para não citar dados alarmantes quanto a

empregabilidade e saúde] Sempre carece de um enfoque em

separado, em que pese à necessidade atual de se enfrentar qualquer

questão, seja individual, seja social, sempre sob pontos de vista

multidisciplinares. É uma equação que ainda se sustenta por si só e

admite, ou melhor, exige recortes reflexivos próprios, até ser

Page 57: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

57

fechada pela matemática da justiça histórica.

{A grande e corpulenta pessoa coletiva chamada “povão”,

multiétnica, de matiz e de matriz predominantemente mestiça

(oitenta por cento dos brasileiros têm gene africano), tem

dificuldades de se adequar ao ensino formal de qualidade,

principalmente o superior, porque nunca lhe foi dada real

oportunidade para isso.

Nossos pacotes curriculares ainda são marcadamente

tradicionalistas, formalistas e "branquistas", portanto limitados,

cientificistas e antipovão.

"Na maioria das vezes, os professores não estão

preparados para lidar com as diferenças, e muitos

deles já se mostram predispostos a não esperar o

melhor resultado do estudante negro e pobre." -

Kabengele Munanga (1942), antropólogo congolês naturalizado

brasileiro, pesquisador, escritor e professor na Universidade de São

Paulo, em entrevista para uma revista étnica.

Page 58: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

58

[Ele refere-se principalmente à discriminação prima

facie, ou seja, à primeira vista, àquela que tende a

marcar de logo o nível comunicativo ou contratual que

vai predominar na continuidade da relação.]

Temos a tendência de privilegiar a educação civilizatória

europeísta que ainda vige em nossos dias e se estende

sarcasticamente nos vestibulares e nos concursos e testes

admissionais do grande mercado de trabalho. Coaduna-se com os

reclames do atual capitalismo globalizado, lucrólatra, culturofágico

e anticonsciencial. Charles Darwin, do século XIX, ainda

exerce cátedra nos currículos escolares do século XXI.

Quem não se afina com o discurso oficial é tido como

analfabeto funcional ou iletrado, mesmo sendo detentor de outras

formas de saber sobrevivenciais, e é alijado das oportunidades

ascensionais dentro das camadas politicamente prestigiadas da

sociedade.

É inquestionável que o sucesso de quem quer que seja depende

muito mais de si mesmo do que de fatores externos. Porém, o

homem é, também, produto inevitável dos vários meios exteriores

Page 59: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

59

e ulteriores com que interage, desde a família, a escola, o trabalho,

as ideologias reinantes e influências espirituais. E é fruto também

dos meios de comunicação (inclusive literários). Isso para não

falarmos daquela conhecida turma de amigos ou colegas e sem

nunca desprezar o mais sutilmente determinante de todos os

meios: os dados estatísticos formadores de pessoas coletivas. Os

meios étnicos, religiosos, culturais, sociais, drogais,

intelectuais e acadêmicos tendem a uniformizar

pensamentos, sentimentos e ações coletivas, com

repercussão na individualidade, automaticamente.

Por sua vez, o indivíduo tem maiores noções das

pluralidades unificadas quando se depara com

resultados de pesquisas quantitativas (em que pese às

suas diferenças para mais e para menos ou às

informações inexatas dos pesquisados, às falhas de

registro dos pesquisadores ou ao erro na análise dos

próprios resultados). A partir da visão numérica e

gráfica, o indivíduo abala, reduz ou expande seus

Page 60: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

60

pensares, seus sentires e seus agires, com repercussão

na coletividade, automaticamente.

Se alguém é nascido e educado em um meio, mas quer ou

precisa, por algum motivo, interagir com outro meio, ele tem que

conhecer, no mínimo, a linguagem de acesso desse outro meio,

ainda que de forma artificial, só para entrar, como se fosse uma

linguagem-senha, isso se pretender eleger o conhecimento escolar

ou acadêmico como forma de prosperidade. O português de

concursos é uma língua praticamente morta entre os

falantes de todos os meios sociais. Serve mais como

critério reprovativo do que aprovativo nas provas

escritas em geral.

A maioria das escolas públicas abertas, que são as do povão,

não preparam seus alunos para transpor o estreito portal dos

saberes acadêmicos. Daí as escandalosas estatísticas do IBGE com

referência aos negros, que são a principal etnia das camadas sociais

menos favorecidas intelectual e economicamente. Sempre,

contudo, é necessário excetuar o talento, a

competência e o esforço individual de alguns magísteres

Page 61: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

61

e administradores escolares idealistas que veem na

atividade do ensino um sacerdócio e que compensam,

até onde podem ou lhes é permitido, a deficiência dos

currículos disciplinares obrigatórios. São aqueles que,

mesmo mal pagos, mal assistidos e mal compreendidos,

não saem do ramo, nem perdem o rumo da sua missão e,

na média, conseguem artifícios para encantar seus

alunos, mesmo concorrendo com o MSN, ORKUT, MP3,

MP4, ipod e outros tecnologismos desconcentrativos do

aprendizado coletivo via giz.

E sempre, também, é necessário excetuar a garra, a

determinação e o empenho heroico de certos alunos que

vencem os bloqueios do sistema, porque vencem antes

seus próprios bloqueios, e partem e conseguem se

posicionar firmemente no campo das concorrências

sociais mais exigentes. Muitos já assumem essa

consciência autoinclusiva ainda na adolescência, e

Page 62: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

62

chegam juntos na superação dos obstáculos que lhes

são impostos, ao ponto até de renunciarem ao benefício

das cotas ao disputar um lugar no ensino superior

público através do exame vestibular.

Enfim, os que, com ou sem apoio ostensivo, tomam a

iniciativa de correr atrás da própria autoinclusão social,

dão seus pulos aqui e acolá, com ou sem benefício de

cotas, e, quando se pensa que não, olhem eles lá

aparecendo também na foto, junto dos mais

favorecidos histórico-ambientais!

Especificamente, quem quiser transpor os portais da "elitista

universidade pública", vindo das camadas populares, tem que se

preparar “por fora”, romper madrugadas frente a luz de velas,

passar fichas de assuntos no ônibus, alisar cadeiras de biblioteca...

e tem de dominar o português e o português. Tem de dominar a

linguagem do seu ambiente de origem, se quiser manter seu

respiradouro linguístico natural, tem de dominar o português

padrão (o dos livros, revistas, jornais e textos midiáticos) e tem de

Page 63: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

63

dominar a linguagem artificial, que é o português culto, exigido

pelo sistema agressivo e ingressivo das elites sociais e econômicas.

Os filhos destas se preparam em escolas ou cursos especialmente

montados para capacitá-los a se saírem bem nos certames. E os

filhos dos excluídos? Contam com quê?

Na atual estrutura de distribuição de oportunidades

educacionais, a rica e autêntica cultura popular não garante

qualquer colocação. Não é reconhecida pelo MEC.

Vale ressaltar, inclusive, que a cultura genuinamente

popular está agonizando frente ao bombardeio

incessante da chamada (in)cultura de massa,

destruidora de valores, emburrecedora, anestesiante,

insensibilizante, erotizante, drogante.

O conhecimento exigido para se passar nos concursos públicos

nunca é o popular, nem é o da Antropagogia (pedagogia social

que trata da educação além da escola e do círculo

familiar. – Dic. Houaiss). É sempre o de base euro-oitocentista,

frio, materialista, formal, inútil para a vida prática dos dias de hoje,

inútil até para a própria vida acadêmica. Só serve como forma de

seleção social para favorecer os já favorecidos históricos e para

Page 64: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

64

manter os oriundos da periferia apenas espiando pela janela ou

servindo a merenda.

Não estou aqui desqualificando sistematicamente o português

culto ou erudito, não. Quem quiser ou gostar de usá-lo, deve usá-

lo. Ele também integra o idioma. Merece respeito. [De qualquer

forma, ela está se resvalando rapidamente para a norma

descritiva e já é vista por alguns como distração para

os antigos, para os culteranistas e para os puristas. Os

formadores de opinião dicionarísticos e telemidiáticos

convencem mais que os compêndios de gramática

normativa.] O preconceito linguístico não deve existir sobre

nenhuma vertente ou forma de expressão. O que mais importa é o

que se diz, não como se diz. A norma culta só não deveria servir

de parâmetro para aferição de conhecimentos de quem deseja

ingressar no ensino superior ou no serviço público, face a seu uso

limitadíssimo nas frentes sociolinguísticas e textuais pós-modernas.

Reiterando, todo aquele oriundo das camadas populares mais

afastadas do centro de prestígio urbano e que quiser se projetar

socialmente pelas vias da educação e do conhecimento, para não

Page 65: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

65

alimentar as duras estatísticas do insensível IBGE, tem de ser

bilíngue dentro do seu próprio idioma. Tem de estabelecer um

diálogo progressista com seus eus intelectuais interiores.

O QI verbal é chave para os QIs intrapessoal, interpessoal e

cognitivo, e estes costumam abrir portas e portais mais seletivos e

estamentais.

Quem, por sua vez, não fizer essa questão toda de vender

conhecimentos para o sistema, selecione aprendizados mais

profundos, consciencio-expansivos e multi e translibertadores.}

Page 66: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

66

AINDA FALTA UMA MESTIÇAGEM CULTURAL

Não dá para esquecermos o passado de forma definitiva,

como talvez muitos simplesmente queiram, porque o passado

não nos esquece. O passado, quando mal resolvido, nos

acompanha estrada do tempo adiante. Urge assinar uma carta de

alforria de toda uma gama de valores etnossociais pretéritos que

foram desqualificados, bloqueados e sufocados por mais de

quatrocentos anos. Só não foram anulados porque sua força era

de matriz preponderantemente espiritual.

Quando os africanos vieram para o Brasil, como presos

econômicos, eles não chegaram sem bagagem. Vieram com eles

companhias invisíveis, que também trouxeram toda uma carga de

culturalidade e de religiosidade para serem disseminadas do lado

de cá do Atlântico, inclusive como bálsamo psíquico, inclusive

para mostrar aos lusitanos e lusodescendentes a riqueza da vida

em sua interação entre as dimensões humana e espiritual.

De alguma forma, a trasmigração África-Brasil teve também

essa função ou missão transalfabetizadora ou civilizatória

espiritual, que só não se consolidou pujantemente por causa das

repressões eclesiástica e senhorial. Se os brancos se

Page 67: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

67

assenhoreassem mais da realidade metafísica suscitada pela

religiosidade africana, haveria o enfraquecimento dos dogmas

cristãos-católicos, com uma crise de fé talvez sem precedentes.

Se as “coisas trabalhadoras” tivessem liberdade plena de

manifestação cultural, religiosa e artística, poderiam facilmente

ser “descoisificadas” perante a opinião pública. Seria um risco

para todo o processo colonizatório da Coroa. Daí a ambígua

política governamental-eclesiástica de manter os negros

coisificados enquanto seres sociais, mas, ao mesmo tempo,

cristianizados (ou catolicizados), inclusive através do batizamento

paroquial obrigatório, como um processo reforçativo da

transalienação religiosa.

“O boi na canga é uma rês. O

boi na mata é um indivíduo”. –

Clóvis Mota, professor e pensador de

Serrinha-BA.

Hodiernamente, ainda existe escravidão negra no Brasil.

Escravidão de valores, de manifestações culturais e artísticas.

Não que os negros contemporâneos não tenham liberdade de

Page 68: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

68

manifestação, mas essa liberdade ainda está adstrita aos nichos

negros. Tais manifestações não têm liberdade de ir e vir por

todos os quadrantes sociais brasileiros, em pé de igualdade.

Ainda são vistas, e até admiradas, mas à distância, como coisas de

negros. Não existe nenhuma confusão no processo produtivo,

em que pesem a apreciações individuais de ambos os lados,

mesmo que a alguma distância.

Os negros são segregados em sua arte e em sua cultura, e

também são de certa forma proibidos de participar da festa do

salão nobre do conhecimento universal. Isso gera uma espécie de

apartheid cultural, artístico e religioso.

E isso já vem de longe. Na época do cativeiro laboral, os

negros eram cerceados não somente no direito de trabalhar

livremente e mediante paga, mas também eram proibidos de

estudar formalmente. Conhecer diretamente as obras clássicas da

literatura europeia e brasileira? Tocar piano? Dançar balé? Nem

pensar! Produzir livremente manifestações religiosas, artísticas e

culturais universais de origem europeia? Jamais! Era

exclusividade dos brancos.

Por isso, até hoje, ao lado do passivo econômico que o Brasil

adquiriu, e ainda não quitou, com os negros do passado e do

presente, há também um grito de liberdade de conhecimento, de

Page 69: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

69

cultura e de relações fraternalmente multiabrangentes, que ainda

está preso na garganta do inconsciente negro do povo brasileiro,

sufocado principalmente pela pressão da dificuldade financeira.

Até essa abolição mais ampla se consolidar, milhões de

consciências individuais ainda precisam ser despertadas. Muitos

afrodescendentes, inclusive, precisam ainda despertar

a sua consciência negra como um processo terapêutico

de autoaceitação e de autoafirmação de sua própria

negritude. É uma fase fundamental e importante do

processo.

Outros “de cor”, contudo, já estendem o conceito e, mesmo

sem renegar sua etnicidade e sua eticidade de matriz negra, já

despertam e mobilizam, também, uma espécie de consciência

universal. Já almejam e contribuem para uma espécie de “paz

interétnica”, mas não aquela paz separatista em que a etnia

historicamente inferiorizada aceita sua condição submissa e se

mantém no seu canto, aparecendo no salão nobre só para servir.

Não. É a paz dos que se veem e lutam para ser vistos, acima de

tudo, como seres humanos iguais em tudo na vida, com os

mesmos direitos de ir e vir de todos os cidadãos. É a paz dos que

Page 70: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

70

têm as artes, as religiões e as culturas de sua origem respeitadas,

inclusive porque também estas têm seu quê de universalidade.

Estes já transcenderam para uma perspectiva histórica e social

mais ampla das divergências conceituais no campo da justiça e da

injustiça sociais, do conhecimento e da ignorância e do poder e da

submissão em função de divergências étnicas e suas repercussões

ainda nos tempos hodiernos, especialmente na educação e no

emprego. Decorrentemente, acabam vendo como doentes morais,

ou como cegos conscienciais, alguns brancos que os discriminam.

[No geral, o sistema ainda é bruto para os

afrodescendentes, mas mais bruto ainda para aqueles

que não se olham no espelho cúbico caleidoscópico da

pluralidade humana. E é pior para aqueles que não

riem, não cantam e não dançam atrás do espelho, para

o espelho, do espelho, através do espelho e acima do

espelho. Enfim, para aqueles que não veem o espelho

dentro de si mesmos, no outro, na sociedade e em

todo o universo.]

Page 71: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

71

Além do aspecto epidérmico, o grande passivo social

tupiniquim tem a ver também com toda uma ética espiritual de

matriz africana e indígena, manifestável em forma de arte e de

sabedoria, que precisa resplandecer e se fundir com a

culturalidade geral da nação. Após essa fusão cultural e de

liberdade de acesso dos negros e pobres e também dos brancos e

ricos aos ambientes da cultura e da arte universais de todas as

matrizes, num ir e vir harmonioso e unificador, aí, sim, há de

surgir um Brasil efetivamente democrático, modelar e

unitariamente plural para si e para o mundo.

Page 72: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

72

A QUESTÃO NEGRA É UMA QUESTÃO

DE EDUCAÇÃO E DE ECONOMIA

Com a Lei Áurea, todos os escravos ganharam a liberdade social

definitiva, mas não receberam qualquer indenização que lhes

garantisse uma sobrevivência minimamente digna para si e para

seus descendentes. Não trouxeram para a vida livre das ruas a

liberdade econômica e a liberdade educacional formal,

imprescindíveis para assunção de melhores posicionamentos

estamentais dentro da sociedade competitiva como um todo.

Os negros entraram no páreo das concorrências mercadológicas

com muito atraso. A partir de 13 de maio de 1888 tiveram vida

nova, mas passaram a ter grandes dificuldades para arregimentar

recursos educacionais e financeiros próprios (além de

continuarem, por novas leis, restritos praticamente em nichos

segregados, o que equivale a um cativeiro indireto). Construir

quando se tem uma base herdada ou um apoio material

na construção é muito mais fácil do que construir do

Page 73: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

73

zero, sem qualquer recurso, isso quando se tem direito

a construir alguma coisa.

As discriminações continuaram existindo, e existem até hoje,

em que pese à valorização da negritude e à tomada de consciência

dos próprios negros perante si como seres herdeiros de uma

ancestralidade muito rica de expressões artísticas, culturais,

religiosas e espirituais.

No Brasil, a convivência e o compartilhamento dos valores

sociais têm se dado de forma aparentemente harmoniosa. Porém,

ainda é comum a discriminação na distribuição de oportunidades

na esfera econômica. Os negros ainda moram predominantemente

nas periferias da cidade. Ainda trabalham nas periferias das

empresas de ponta (no setor de limpeza, segurança, vigilância etc).

Qualquer tipo de emprego é digno e merecedor de todo

respeito, mas muitos negros são “convencidos”, logo cedo, a ir,

com ou sem vocação, para a fila dos cargos de apoio ou da linha

de fundo, por causa de sua cor. Os critérios de seleção se definem

não somente na apresentação dos currículos, mas também já na

opção deles (obrigatória) pelas escolas e cursos de formação

profissional mais baratos, além da acomodação consciencial de

Page 74: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

74

seus próprios familiares e professores, desde a infância. O

esquema é montado assim, difusamente, mas sempre eficaz para a

exibição do frame que todos vemos no mercado. É uma

tendência estatística que ainda se confirma

visualmente. Porém, no plano interindividual, a relação

empresa-empregado ou empresa-candidato a emprego

sempre leva em conta outros fatores (muitos deles

invisíveis aos olhos) para seu sucesso ou para seu

fracasso, independentemente de aparências estáticas

tridimensionais.

O raciocínio, ainda que inconsciente, de muitos empresários

chamados “privilegiados econômicos” é o seguinte: “nada contra os

negros como clientes, mas como representantes diretos da pessoa jurídica

comercial perante a clientela...” É uma forma sutil de empunhar ainda o

azorrague ou a chibata que se usava outrora para as punições no

regime escravocrata, mas que também marcava quem era quem no

jogo das dominações interétnicas. Ainda tem deixado seus

vincos.

Page 75: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

75

Quase sempre, os negros que ocupam cargos estratégicos ou

bem remunerados nas grandes empresas são aqueles que fizeram

carreira e provaram sua capacidade funcional na lida diária.

Normalmente, a injustiça acontece é na seleção dos currículos,

após a análise da experiência escolar, da experiência profissional e

da fotografia.

[Até algum tempo atrás, era comum se ler nos

anúncios de emprego: “exige-se boa aparência”. Ficou

proibido por lei. Agora, a frase-chibata para negar aos

negros certos cargos executivos, cargos-vitrines ou

cargos-propagandas é: “Vossa Senhoria não atinge o

perfil exigido pela empresa”...]

"Enquanto a cor da pele for mais

importante que o brilho dos olhos,

ainda haverá guerra." - (Bob Marley)

As condições econômicas de moradia, de trabalho e,

consequentemente, de salário, são o principal termômetro de

Page 76: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

76

identificação das distorções ainda havidas nas relações pragmáticas

entre as formações socioeconômicas.

Nas festas abertas e sociais, nas manifestações populares em

geral dos fins de semana, normalmente, todos são iguais perante a

lei (exceto nas abordagens policiais a suspeitos ou a

simples transeuntes). Porém, de segunda a sexta-feira, a lei

costuma ser aplicada de forma branda para os de cor branca e de

forma aleijadora e alijadora para os “de cor” que portam currículos

preto-e-branco. É uma seletividade sutilmente segregacionista.

O problema não é isoladamente apenas a imagem epidérmica

do candidato a emprego, mas também a sua condição de

incipiente e de insipiente oriundo de senzalas-escola.

As escolas públicas, em sua maioria (impressão que

ainda tenho em 2010), têm grades curriculares

forjadas para moldar os estudantes, desde o ensino

fundamental, para serem escravos do sistema. Não

lhes capacitam a se aprovarem por mérito nas

faculdades, nem nos concursos de emprego e nem na

articulação verbal nas provas-entrevistas do mercado

de recursos humanos. [Para afastar a associação com

Page 77: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

77

prisão metodológica e didática, tem-se usado mais

amiúde nos ambientes pedagógicos a expressão

“currículo escolar” ou “matriz curricular” em lugar de

“grade curricular”.]

A questão não é apenas corrigir erros do passado através de

ações reparatórias. Fazem-se mister também políticas liberatórias,

unificatórias e, para garantia e sustentação disso tudo, políticas

educacionais de qualidade. E que estas não visem

necessariamente a atender às exigências mercadológicas, nem se

baseiem nos padrões capitalcêntricos, muito menos nas

exigências da plutocracia ou milionocracia, mas que priorizem a

formação de mentes libertárias, estimulem o pensamento

filosófico, a consciência crítica, a saúde integral e a ética crística,

social e humanitária.

Hoje em dia, já não é mais nada tão pessoal, ou seja, de pessoa

humana para pessoa humana, como soía acontecer no passado. O

preconceito é mais das pessoas jurídicas high society,

entranhadamente contaminadas pelas ideologias lucrólatras do

mercantilismo capitalista, contra as pessoas físicas trabalhadoras

Page 78: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

78

“de cor" e preconceituosamente destoantes. As pessoas humanas

melanodermas (de pele excessivamente pigmentada ou

conceitualmente negra) ainda não satisfazem os interesses

econômicos das pessoas jurídicas que vivem de fachada e de “boa

aparência” perante sua clientela high society que compra grifes,

marcas e artigos de luxo e que é predominantemente composta

por leucodermas (de pele deficientemente pigmentada ou

conceitualmente branca).

O vácuo relacional trabalhador-negro/empregador-

branquista se alarga ainda mais quando, ao aspecto da

tez, se somam outros preconceitos, como o estético, o

biotípico, o indumentário, o etiquetário, o gestual e o

linguístico.

As empresas não socioelitistas, mas que também concorrem

pelo lucro e correm do fantasma da falência, também discriminam

os “pobre-descendentes” e, dentre estes, os afrodescendentes, por

causa da capacitação cada vez maior que é exigida no setor de

produção. A alta seletividade exigida pelo atual capitalismo

globalizado favorece sobremaneira aos candidatos oriundos das

Page 79: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

79

escolas técnicas e das grandes faculdades e empresas de ensino de

ponta, que, por sua vez, exigem muita verba dos alunos-clientes.

E assim esse ciclo difuso vai se metastizando mais e mais no

corpo social, alargando, consequentemente as sarjetas marginais da

alta empregabilidade.

Enquanto isso, têm se fortalecido, sem riscos de falência, a

indústria dos entretenimentos emburrecedores, das (in)culturas de

massa, das drogas sociais dessensibilizantes, dos cacetetes-chibatas

e das grades carcerárias.

É uma tendência já anacrônica, que precisa ser banida do

consciente coletivo empresarial e do inconsciente social em suas

várias vertentes.

Talvez todo esse frame somente se modifique quando essas

próprias divisões gerais de classes sociais e suas injustiças

distributivas virarem páginas passadas no grande livro da dialética

histórica do planeta, a partir do pleno resgate e consolidação de

uma cosmovisão ancestral mesclada com uma supervisão

universalista e, consequentemente, confraternativa e agregadora

global. Será quando houver um trânsito interétnico livre e

igualitário, para apreciação e produção de manifestações culturais,

religiosas e artísticas universais, ainda que entre estas perdurem

Page 80: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

80

marcas históricas de matriz europeia, africana, americana, indígena,

asiática etc. Será também quando o atual capitalismo leviatânico

sofrer uma freada em sua ascensão desnaturalizante e

desculturalizante, suficiente para fazer resplandecer outros valores

maiores da vida, outros focos de beleza humana, outros

sentimentos espiritualizantes e mais voltados para o amor,

fraternidade respeito às diferenças e compreensão e perdão aos

erros de visão próprios e alheios do passado.

Mas, ainda na atual contemporaneidade, algum laivo dessa

sociedade igualitária dos sonhos já poderá ser perceptível, a partir

da soma substancial de iniciativas etnoinclusivas dos indivíduos

pertencentes à high society, à low society, às diversas castas

educacionais e às direções empresariais e governamentais. Vamos

esperar, mas engendrando microações socialisticamente

voluntárias, individuais e convergentes, desde já, seja na sala de

aula, de frente para o espelho, no ambiente empresarial, no reduto

religioso, enfim, em cada oportunidade, em cada esquina.

Page 81: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

81

AUTOESCRAVIDÃO: O PIOR JUGO

Como seres humanos, nós temos a capacidade natural de nos

adaptar a qualquer condição de sobrevivência, mesmo que seja

imposta por outros seres humanos. Por pior e mais desumanizante

que seja a condição, a partir do raciocínio que formamos a

respeito, podemos não morrer. Podemos até viver em paz, amar,

sonhar, brincar, mesmo presos a ambientes objetivamente

torturantes. Entra em bom socorrimento, também, o conjunto

total de interações que estabelecemos com todos os estímulos de

sustentação externa, horizontais ou verticais, e internas.

O que mata, adoece ou faz sofrer não é a condição externa em

si, mas é sua não aceitação sistemática e conflituosa pelo

condicionado. É o não desenvolvimento de qualquer meio

alternativo de respiração natural que não entre em conflito com a

condição. É, principalmente, a acomodação prostrativa que

impede o crescimento, apesar de ou independentemente da

condição, até poder se libertar dela por completo. Aliás, qualquer

estado de inércia prolongada já é em si uma pré-condição para

uma condição dolorosa posterior.

Page 82: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

82

No Brasil, há uma tendência histórica de se criar e se aceitar um

condicionamento comportamental inferiorizante dos negros, ainda

na infância. [A famosa boneca Barbie, por exemplo, é

vendida em várias cores mundo afora, a depender da

cor predominante da população de certos países que são

grandes compradores. Já no Brasil, a empresa Mattel

(sua fabricante), só a vende bem branquinha, loiríssima

e magérrima. Será que não lhe disseram que aqui não é

a Europa? As crianças, inclusive as negras, veem nela o

modelo de beleza. Já começa por aí a supervalorização

da etnia branca e subvalorização da etnia negra.]

Nos seus primeiros relacionamentos sociais, muitas crianças

negras já se autoestigmatizam. Como elas são induzidas, às vezes,

pela própria educação doméstica e televisiva, a verem como

pessoas bonitas, alegres e bem sucedidas apenas as pessoas brancas

da televisão, então quando começam a frequentar os primeiros

ambientes sociais misturados, especialmente o ambiente escolar, já

entram com o seguinte letreiro escrito na testa: “Favor, excluir-

me” (das oportunidades de ascensão social, intelectual,

profissional...).

Page 83: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

83

Na prática, esse letreiro é manifestado pela baixa autoestima,

timidez improdutiva, esqualidez mental, total desinteresse pelo

aprendizado, incapacidade de aceitar e superar desafios e pela

ausência de metas e ambições pessoais.

Assim, elas já antecipam lentamente a sentença do processo

social que tende a condenar os negros e os pobres a se manterem

degredados, desde o berço, nas bordas do grande círculo das

oportunidades de ascensão socioeconômica.

O trabalho em condições escravistas torna-se um inferno ou

uma tortura justamente para aqueles que se enfraquecem e se

acomodam ao regime da chibata ou dos rigores laborais. Quando

se toma consciência da sua situação, geralmente o caminho é a

liberdade, senão logo do ambiente torturador, mas imediata e

principalmente da consciência.

Qualquer condição deve ser superada com os poderes internos

do condicionado, e a superação é o caminho natural para a

libertação completa dos jugos interiores ou dos jugos exteriores.

Cada um de nós precisa se alforriar de conceitos e preconceitos

escravizantes, a todo momento. A abolição é um processo de cada

dia.

Page 84: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

84

A propósito, vós, que estais aí no vosso sossego

leitoral, até agora, respondei-me, por favor: Vós sois

escravo de quê? Estais se escravizando em quê? Estais

livre de quê? Estais se libertando de quê? O que ainda

eventualmente viveis a carregar: chibata ou grilhão?

Azorrague ou libambo?

Cada um de nós ainda tem, de alguma forma, um escravo e um

algoz a libertar de dentro de si mesmo.

“Tava doromindo, cangoma me

chamô.

Disse: levanta, povo! Cativêro já cabô!”

– Versos de “Cangoma”, canto de jongo

de domínio público, famoso na voz de

Clementina de Jesus (escutai em

http://www.youtube.com/watch?v=YLIzH0

yKq5w).

Tão vital quanto a lei da aceitação é a lei do progresso.

Os preconceitos de cor atualmente reinantes na nossa sociedade

são meio obscuros e velados. Quase sempre são demonstrados

Page 85: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

85

inconscientemente, porque consideram ainda as influências mais

racistas e discriminatórias do nosso passado escravista.

Muitas demonstrações de preconceito são fugidias e “escapam”

através dos atos falhos, por um velho costume enraizado dentro

do próprio preconceituoso, ou por estar incutido na sua herança

cultural subjacente dos velhos tempos.

Grande parte dos preconceituados, igualmente, não consegue

superar-se e acaba reacendendo às vistas alheias o preconceito de

que tendem a ser vítimas. Frise-se, inclusive, que muitos brancos

preconceitousos sistemáticos assim o são, porque ainda sentem na

pele perispiritual os traumas sofridos como negros em encarnação

passada. Pode-se dizer figurativamente que são brancos de alma

negra mal resolvida. O campo mental registra pensamentos,

sentimentos e sensações físicas, psíquicas e emocionais marcantes,

que podem atravessar várias encarnações, enquanto não houver

fatores suficientemente fortes para promover uma libertação

definitiva de tais autoarquétipos.

Muitos brancos preconceitousos sistemáticos assim o são,

porque ainda sentem na pele perispiritual os traumas sofridos

como negros em encarnação passada. Pode-se dizer

figurativamente que são brancos de alma negra mal resolvida. Não

Page 86: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

86

se autorresolveram antes como negros, e ainda não se

autorresolveram agora como brancos.

"É a nossa mente que cria a escravidão e é ela

também que cria a libertação". – Sai Baba

A solução encontrada por muitos discriminados e integrantes de

grupos de desfavorecidos sociais é um maior empenho no sentido

de serem melhor do que a média da população, em todos os

sentidos. Essa superação abrange, inclusive, o alinhamento da

estética indumentária, a observância mais precisa das regras de

etiqueta e, principalmente, uma melhor performance escolar e

profissional. Isso não deixa de ser também uma espécie de

autodiscriminação, ainda que para melhor! Em muitas situações,

ela serve para favorecer o equilíbrio entre o que a sociedade

(inclusive a escolar), em princípio, costuma esperar deles (não

muita coisa) e o que eles acabam oferecendo efetivamente à

sociedade, em termos de resultados, adiante.

Muitos discriminados, através dessa linha acima da média,

costumam reverter olhares preconceituosos em seu derredor, e

acabam conseguindo, depois de muitos esforços, um lugar mais

Page 87: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

87

digno sob o sol das oportunidades da ascensão social. E o retorno

positivo pretendido por eles avoluma-se, principalmente quando

essa autopreparação superante sobre a média comum se reverte

em resultados úteis e proveitosos para si mesmo e para a

coletividade.

“Nosso medo mais profundo

não é o de sermos inadequados.

Nosso medo mais profundo é o

de sermos poderosos além de

qualquer medida. É a nossa luz,

não as nossas trevas, o que mais

nos apavora. Nós nos

perguntamos: - Quem sou eu

para ser brilhante, maravilhoso,

talentoso e fabuloso? Na

realidade, quem é você para não

ser? Você é filho do Universo. Se

você se fizer de pequeno, não

ajuda o mundo. Não há

iluminação em se encolher para

Page 88: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

88

que os outros não se sintam

inseguros quando estiverem

perto de você. Nascemos para

manifestar a glória do Universo

que está dentro de nós. Não está

apenas em um de nós, está em

todos nós. Conforme deixamos

nossa própria luz brilhar,

inconscientemente damos às

outras pessoas permissão para

fazer o mesmo. Quando nos

libertamos do nosso medo,

nossa presença

automaticamente libera os

outros.” – Nelson Mandela (1918,

advogado, ex-líder rebelde e ex-

presidente da África do Sul), em

trecho do seu discurso de posse

como presidente.

O mais esperável é a igualdade de direitos sociais para todos os

aparentemente diferentes, sem que estes precisem forçar mudanças

Page 89: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

89

que não quereriam fazer se fossem privilegiados sociais. É gostoso

se ter e se exercer o direito de apenas ser e deixar ser o que se é,

quer como ser humano, quer como ser cultural, quer como ser

étnico. A paz, a igualdade, o respeito uns aos outros indivíduos e

umas às outras formações sociais é que devem reger todas as

relações conviviais, seja no ato ou na execução dos contratos, seja

no compartilhamento das alegrias, dos prazeres e da felicidade.

Em princípio, cada um tem o direito de aprender o que quiser,

vestir-se como quiser e fazer o que quiser, desde que não

prejudique direitos perigosamente próprios nem alheios. É esse

direito subjetivo de ser-se que o Estado, a sociedade como um

todo e cada indivíduo em si devem respeitar e fazer respeitar.

Abaixo os chamados privilégios sociais oriundos de diferenças

étnicas, econômicas, educacionais ou culturais!

Discriminar sistematicamente é um vício. Quando não vivemos

ostensivamente nesse vício, temos a tendência em estado latente.

A depender da pressão, da irritação ou do estímulo emocional em

um conflito, costumamos arrancar do inconsciente expressões

racistas ou pejorativas que tentam ferir a integridade do adversário

que tem uma marca social e historicamente discriminada. Depois

vem o arrependimento, ou não, mas o crime já foi perpetrado.

Page 90: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

Josenilton kaj Madragoa

90

Quase todos nós somos educados socialmente para discriminar

os outros ou nós mesmos que já somos culturalmente

discriminados, desde a infância. Isso se transforma facilmente num

vício de comportamento.

Daí a importância do exercício constante de reeducar também

os sentidos e os reflexos adquiridos para comportamentos

antidiscriminatórios. As piadinhas, a simples maledicência e

qualquer associação dos feitos com aspectos aparentes de alguém

são formas de preconceito, seja positivo, seja negativo.

Recado particular para a Srta. Judiceia, de Campo

Grande(MS): A atitude é esta: não discriminar a nós mesmos, não

discriminar os diferentes de nós, não discriminar os que

discriminam suas próprias diferenças e não discriminar os que

discriminam os outros, mesmo que entre estes outros estejamos

nós mesmos. Podemos e devemos recriminar ações

discriminatórias, inclusive acionando as autoridades competentes,

se for o caso, mas não exatamente humilhar, ridicularizar ou

devolver ação igual para o discriminante.

Hoje, o grande algoz comum a todos é o sistema capitalista e

seu azorrague de mil correias, das mais enganadoras às mais

Page 91: REAGITANDO A QUESTÃO NEGRAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2920072.pdf · riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de

REAGITANDO A QUESTÃO NEGRA

91

cruéis e bestiais. É um meio mais influenciador sobre

nossas vidas do que o meio gráfico das tabelas

estatísticas do IBGE

Ao lado dele, entretanto, o grande império que se interpenetra

aos poucos na mente de todos os indivíduos mais sintonizados

com as novas ondas conceituais autolibertantes é o império da

consciência e do amor fraternal.

Oxalá, quando as futuras leis corretivas e expansivas

estiverem em pleno vigor, coincida também de já estar em

pleno desenvolvimento o mais esperado de todos os valores

relacionais: a ética, mesmo de matriz étnica, cultural, religiosa,

bíblica, crística, familiar ou simplesmente pessoal. Quando

cada um terá força e capacidade de destrancar seus grilhões

enferrujados, com a chave da consciência cósmica e do amor

crístico, confraternativo, solidário e respeitante a todas as

diferenças, impulsionado, inclusive, pela transpercepção da

linha evolutiva multiexistencial e suas inexoráveis leis de

livre-arbítrio, ação e reação, causa e efeito, progresso e amor.

Oxalá!