Realismo grotesco e carnavalização no contexto de Hermilo Borba Filho

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Realismo grotesco e carnavalização no contexto de Hermilo Borba Filho Adriana Bertolucci Reis de Souza Bakhtin denomina realismo grotesco a herança modificada da cultura cômica popular. Nele, o princípio da vida material e corporal surge como forma universal, festiva e utópica em que há a ligação indivisível do cósmico, do social e do corporal. O agente desse princípio é, então o povo, e não um ser isolado. O princípio material e corporal se opõe à separação das raízes materiais e corporais do mundo, do isolamento, fazendo com que o corpo tenha eterna ligação com a terra. Um traço marcante do realismo grotesco, portanto, é a transferência de tudo que é elevado, espiritual e abstrato, para o plano material e corporal (terra com o corpo). Tal traço caracteriza o rebaixamento: a aproximação da terra e a corporificação. O ponto central dessa característica é a fertilização e o crescimento. Estas premissas carnavalescas permitem ver o mundo de uma forma dialógica: O corpo grotesco em suas formas carnvalescas [...] é uma metáfora válida, que podemos utilizar para compreender o contraste entre duas visões de mundo em uma mesma cultura. Por um lado, Bakhtin concebe o corpo como individual e fechado, auto-suficiente e isento de qualquer relação com outros corpos; por outro lado o coloca em uma relação intercorporal. Trata-se de um corpo aberto, com protuberâncias e furo, visto em todos os comportamentos que inevitavelmente o relacionam com

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Realismo grotesco e carnavalização no contexto de Hermilo Borba Filho

Adriana Bertolucci Reis de Souza

Bakhtin denomina realismo grotesco a herança modificada da cultura cômica popular. Nele, o princípio da vida material e corporal surge como forma universal, festiva e utópica em que há a ligação indivisível do cósmico, do social e do corporal. O agente desse princípio é, então o povo, e não um ser isolado. O princípio material e corporal se opõe à separação das raízes materiais e corporais do mundo, do isolamento, fazendo com que o corpo tenha eterna ligação com a terra.Um traço marcante do realismo grotesco, portanto, é a transferência de tudo que é elevado, espiritual e abstrato, para o plano material e corporal (terra com o corpo). Tal traço caracteriza o rebaixamento: a aproximação da terra e a corporificação. O ponto central dessa característica é a fertilização e o crescimento. Estas premissas carnavalescas permitem ver o mundo de uma forma dialógica:

O corpo grotesco em suas formas carnvalescas [...] é uma metáfora válida, que podemos utilizar para compreender o contraste entre duas visões de mundo em uma mesma cultura. Por um lado, Bakhtin concebe o corpo como individual e fechado, auto-suficiente e isento de qualquer relação com outros corpos; por outro lado o coloca em uma relação intercorporal. Trata-se de um corpo aberto, com protuberâncias e furo, visto em todos os comportamentos que inevitavelmente o relacionam com o exterior. Encontramos assim o fechamento para a identidade e a abertura para a alteridade (PONZIO, 2010, p. 25).

Todas essas características do realismo grotesco, assim como o princípio da vida material e corporal são encontradas na obra de Rabelais. Nelas, há imagens do corpo, da bebida, da satisfação de necessidades naturais, da vida sexual, conservando sua natureza original e diferenciando-se das imagens da vida cotidiana, preestabelecidas e perfeitas. Ocorre uma nova construção das imagens clássicas que as trespassa, dando a elas um sentido diferente: “São imagens que se opõe às imagens

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clássicas do corpo humano acabado, perfeito e em plena maturidade, depurado das escórias do nascimento e do desenvolvimento” (BAKHTIN, 1996, p. 22).Hermilo Borba Filho, dramaturgo pernambucano do século XX, escreveu textos de grande importância para a literatura moderna brasileira. Ajudou a construir e disseminar por todo o país a cultura nordestina. Dentre suas várias obras destacam-se História do Teatro (1953); Os caminhos da solidão (romance 1957), Os ambulantes de Deus (novela de 1976) e O general está pintando (Contos, 1973) – obra que será tratada aqui.O general está pintando é a primeira coletânea de Hermilo Borba Filho. O título da obra é retirado de um conto. Nessas narrativas, o mágico, o fantástico e o maravilhoso andam de mãos dadas com a realidade nordestina e nela se encontram. O livro, contém doze novelas [como o autor chama cada texto] que, em uma leitura completa, percebe-se que são ligadas entre si. Alguns personagens principais são citados como personagens secundários em outras, assim como algum espaço físico da cidade também reaparece. Portanto, é a narrativa de uma mesma cidade nordestina que presencia a existência do fantástico e do real ao mesmo tempo.Em suas obras, Borba Filho faz constante ligação com a cultura popular. De acordo com Bakhtin, Rabelais também tem uma ligação profunda com fontes populares, determinando seu conjunto artístico. De alguma maneira, é possível entender a obra de Borba Filho integrada à tradição rabelaisiana de representação do realismo grotesco. As manifestações culturais, como festas públicas e carnavalescas, compõem parcelas da cultura popular cômica, fazendo-se presente nas obras de ambos os autores. Além disso, o riso, o humor literário que aproxima-se da carnavalização também estão muito presentes. De acordo com Bakhtin, há três divisões das múltiplas manifestações dessa cultura carnavalesca que, apesar de separadas pelo crítico, são estreitamente inter-relacionadas. Elas tratam da forma dos ritos e dos espetáculos, das obras cômicas verbais e também dos diferentes gêneros do vocabulário grotesco (cf. Introdução de Cultura popular na Idade Média e no Renascimento).Os festejos de carnaval são manifestações constantes nas obras de Hermilo Borba Filho. A teatralização da vida pernambucana é feita por espectadores que vivem e compõe o carnaval. Para Bakhtin, esse tipo de carnavalização é em sua natureza feita para todo o povo:

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Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval pela sua própria natureza existe para todo o povo. (…). Durante a realização da festa só se pode viver de acordo com as suas (do carnaval) leis, isto é, as leis da liberdade (BAKHTIN, 1996, p. 06,).

Tal liberdade transforma-se, portanto, em festa de uma vida secundária do povo. É a fuga do cotidiano opressivo da cidade, do trabalho, da ordem, do contexto oficial. É a representação da desordem, a eliminação provisória das divisões hierárquicas, inversões, aterrissagens etc. Dessa forma, cria-se uma nova rede de comunicação entre toda a população, impossível de ocorrer na vida ordinária da sociedade: “Os heróis dissolvidos no corpo do povo, o discurso ainda fervilhante na luta social e os conflitos e energias carnavalizadas que caminham conjuntamente permitiram essa construção e percepção de uma poética dialógica no gênero” (RODRIGUES, 2009).Na obra de Borba Filho, há personagens que têm nos festejos a própria vida representada. É o caso do Almirante Siri, da novela “O Almirante”. Ele é capitão-geral do fandango de sua cidade e nos momentos de folga de almirante, dedica o tempo para os ensaios de sua banda. Não há nada mais importante e de maior valor do que seu encontro com o fandango. É uma brincadeira levada à sério e com alto grau de responsabilidade, onde o jogo se transforma em vida, e a realidade passa a ser o ambiente fantástico.Entende-se que as novelas de Hermilo Borba Filho são, portanto, um texto de narrativa carnavalesca. Nelas, são narradas a vida fantástica a partir de uma linguagem específica popular. A própria forma do texto, que apresenta um escasso uso de pontuação, contribui para proporcionar ao leitor sequências de imagens difusas e oníricas que se confundem na passagem de uma para outra. São constantes referências à ações extra-cotidianas e à liberdade que estende-se ao próprio estilo. Há, também, o uso de apelidos e epítetos injuriosos que adquirem tom afetuoso, uma linguagem familiar de praça pública. De acordo com Bakhtin, essas formas de comunicação verbal, na modernidade, “[...] não necessitam polir a linguagem nem observar os tabus, podem usar, portanto, palavras e expressões inconvenientes, etc.” (BAKHTIN, p.14, 1996).É essa linguagem carnavalizada de Borba Filho, que faz com que

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obras como as novelas reunidas em “O general está pintando” dê um caráter universal, um clima de festa e um ar fantástico para suas histórias. Ocorre um acúmulo de expressões verbais ditas 'proibidas' que são eliminadas da comunicação politizada e usadas especificamente nos dias de festejo – desdobramentos dos discursos da praça pública, da feira, da rua, do discurso humorístico etc.: “Esse bom humor é algo precioso e positivo em Hermilo e, estranhamente, se mantém até quando ele aborda o trágico e se equilibra ali sem perder o sentimento de tragédia, o que, finalmente, resulta no patético, como nas histórias de “O palhaço” e “O general está pintando” [...] (OLIVEIRA, 1993, p. 11). Esse humor é carnalizado e as imagens do povo compõem a visão prosaica de Borba Filho.A partir da linguagem não-oficial e da composição de imagens extra-cotidianas, Hermilo Borba Filho compõe o que Bakhtin chama de realismo grotesco. Para o crítico, essa expressão é o que caracteriza a concepção estética da vida prática existente na obra de Rabelais.  Em ambas obras literárias, encontra-se o desejo pela carne, pelas satisfações das necessidades naturais, o princípio da vida material e corporal. Em “O general está pintando”, há personagens que constantemente caem na perdição do desejo pela ação carnal, pelo sexo, pela bebida e pela gula. Tais desejos fazem parte de um conjunto de ações que compõem o dia dessa sociedade.Para Bakhtin, o “cósmico, o social, e o corporal estão ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível.” (BAKHTIN, p. 17. 1996). É a eterna ligação do corpo com a terra e que em ações como o coito, a fertilidade e a morte, ocorre o rebaixamento.O realismo grotesco bakhtiniano, portanto, está presente na atmosfera de necessidades naturais do homem de Borba Filho. A abundância e universalidade são compostas não individualmente, mas por todo o povo. Por isso há em suas imagens um caráter de exagero das ações que acabam determinando o tom alegre e festivo. É possível encontrar tais características em novelas como “O Almirante”e “A gravata”. Na primeira, o Almirante Siri sacia todo seu desejo de gula em um banquete que não era destinado a ele. E depois de comer tamanha fartura, ele se rende aos efeitos do álcool. Todas as imagens dessa cena fazem referência ao exagero do mundo material: a bebida, a comida a digestão:

O Almirante atrapalhou-se um pouco com a salada de maionese

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onde havia, de mistura, salmão e arenque, mas o vinho branco lhe foi dando ânimo e calor, ouvia um zumzum da conversa, ora se voltava para a anfitrioa, ora para uma senhora mais gorda que uma porca bem cevada, balançava a cabeça, sorria. Quando teve de servir-se do peixe o bicho escapuliu, dançou na beira da travessa, a senhora gorda deu um gritinho, o peixe aprumou-se, toda a mesa caiu na gargalhada, o Almirante é formidável!, mas o Almirante estava a essa altura suando mesmo, de agonia, dele já se exalava o cheiro do bodum, discretamente a anfitrioa levava o guardanapo no nariz. (BORBA FILHO, p. 11, 1917).

Percebe-se claramente nesse trecho o grotesco na mesa de jantar. Primeiro há a imagem do personagem que não têm o costume de se sentar numa mesa com diversos tipos de comida que ele, aparentemente, jamais tivera algum tipo de contato anteriormente. Uma experiência que está fora do seu cotidiano. Depois o efeito do álcool começa a mudar a percepção e a visão desse personagem. O narrador compara uma mulher que está sentada na mesa com um porco que, entretanto, está sorrindo. E após a descrição da falta de costume para manusear a comida, o narrador fala do mau cheiro que o Almirante já começa a exalar no meio do jantar. Tais ações não são ordinárias, comuns no dia a dia do leitor.Já na segunda novela citada, os desejos realizados são os desejos sexuais de Antão Locerpa com Maria-dá-de-Graça. A linguagem usada por Hermilo compõe a atmosfera suja da relação carnal dos dois:[...] não demorou nada e Maria-dá-de-Graça já se chegou, eu disse, com aquele mesmo gesto seu de arregaçar o vestido, foi só ver a bela rosa-escura Antão Locerpa nem sequer se deu ao trabalho de se virar para o melhor, só fez desembainhar e ela, Maria-dá-de-Graça, se acomodou, as ancas sobrando para os lados, tudo no mais profundo, ele cruzou as mãos por baixo da cabeça e ela, sustentando a saia nos dentes, era só um tal de subir e descer, até sentir que primeiro o dele chegou, pela inundação, e logo depois o dela, se desvaneceu, se curvou, parecia uma preguiça montada num cavalo [...] (BORBA FILHO, p. 75, 1917).

Há o uso de várias ações ligadas umas às outras. Os gestos de Maria-dá-de-Graça são contínuos, terminando o gesto anterior e ao mesmo tempo iniciando o próximo. Neste trecho, a

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personagem entra no quarto ao mesmo tempo que Antão Locerpa fala e em seguida, sem pausa alguma, ela já arregaça o vestido. E dessa forma, todas as outras ações da cena continuam: sem uma pausa para separar uma da outra.E para salientar ainda mais o grotesco dessa relação, o narrador compara os dois personagens com animais: 'uma preguiça montada num cavalo'. E novamente percebe-se o não uso de imagens cotidianas compondo na obra o realismo grotesco.Nas novelas de Hermilo Borba Filho, pode-se encontrar o realismo grotesco e fantástico. Representadas com uma linguagem popular, as ações criam imagens da carnavalização da sociedade e oscilam entre o mundo de concretizações impossíveis e a dura realidade do homem do sertão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento. O contexto de François Rabelais. Ed. Universidade de Brasília, 1996. São Paulo- Brasília.

BORBA FILHO, Hermilo. O general está pintando. Ed. Globo, 1973, Porto Alegre.

OLIVEIRA, Sílvio R. Hermilo: um palco em suas mãos. In: Os melhores contos de Hermilo Borba Filho. São Paulo: Global, 1994.

PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Editora Contexto, 2010.

RODRIGUES, Augusto. Bakhtin: Leitor de Romances. In: Conversas Escritas para o Círculo 2009. Disponível em: <http://conversasbakhtinianas.blogspot.com/search/label/Augusto%20Rodrigues>. Acesso em: 30 ago. 2010.

*              Aluna do Curso de Letras – UnB. Pesquisadora do Grupo: Literatura e Cultura – CAPES. Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Augusto Rodrigues da Silva Junior (TEL/UnB). E-mail: [email protected]

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