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Ao começar um Novo Ano ainda envolto na agitação das muitas festas natalícias e reveillons vários, estas sempre suas Lusofonias podem mesmo asso- ciar-se a este clima fraterno descansa- do entre feriados e alguma preguiça oferecendo alguma dessa poesia que, felizmente tão abun- dante quanto mar- cante, tem ajudado a construir as lite- raturas dos países de língua oficial portu- guesa. Acontece, con- tudo, que nas suas diversas expressões culturais e nacionais a poesia escrita em português dedicada ao Ano Novo é curta, escassa, difícil até de reunir. Exis- te, felizmente, um poema célebre de autor ainda mais fa- moso, Carlos Drum- mond de Andrade, a que normalmente se recorre para inspi- rar receita de novo ano. Aqui se convoca outra vez esse opor- tuno texto poético do grande arauto do primeiro moder- nismo brasileiro, mas que se decidiu acompanhar de uma muito despreten- siosa selecção de outros poemas devi- damente distribuídos em alfabética ordem pelos oito países de língua portugue- sa, logo depois sim- bolicamente concluídos com um pequeno texto poético originário de Macau, escrito por José dos Santos Ferreira – ou, melhor, Adé –, servindo para recordar tanto a imensa pluralidade do que temos vindo a designar por lusofonias como esse papel que a RAEM quer promover de querer ser lusofonias nº 26 | 06 de Janeiro de 2013 Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente COORDENAÇÃO: Ivo Carneiro de Sousa TEXTOS: • Carlos Drummond de Andrade • Alda Lara • Manuel Bandeira • Jorge Barbosa • Agnello Regala • José Craveirinha • Fernando Pessoa • Caetano da Costa Alegre • Francisco Borja da Costa • José dos Santos Ferreira (Adé) Dia 13 de Janeiro: Oito Séculos de Língua Portuguesa (1214-2014) APOIO: Receita de Ano Novo Com Poesia em Lusofonias

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Ao começar um Novo Ano ainda envolto na agitação das muitas festas natalícias e reveillons vários, estas sempre suas Lusofonias só podem mesmo asso-ciar-se a este clima fraterno descansa-do entre feriados e alguma preguiça oferecendo alguma dessa poesia que, felizmente tão abun-dante quanto mar-cante, tem ajudado a construir as lite-raturas dos países de língua oficial portu-guesa. Acontece, con-tudo, que nas suas diversas expressões culturais e nacionais a poesia escrita em português dedicada ao Ano Novo é curta, escassa, difícil até de reunir. Exis-te, felizmente, um poema célebre de autor ainda mais fa-moso, Carlos Drum-mond de Andrade, a que normalmente se recorre para inspi-rar receita de novo ano. Aqui se convoca outra vez esse opor-tuno texto poético do grande arauto do primeiro moder-nismo brasileiro, mas que se decidiu acompanhar de uma muito despreten-siosa selecção de outros poemas devi-damente distribuídos em alfabética ordem pelos oito países de língua portugue-sa, logo depois sim-bolicamente concluídos com um pequeno texto poético originário de Macau, escrito por José dos Santos Ferreira – ou, melhor, Adé –, servindo para recordar tanto a imensa pluralidade do que temos vindo a designar por lusofonias como esse papel que a RAEM quer promover de querer ser

lusofoniasnº 26 | 06 de Janeiro de 2013

Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente

COORDENAÇÃO:Ivo Carneiro de Sousa

TEXTOS:

• Carlos Drummond de Andrade• Alda Lara• Manuel Bandeira• Jorge Barbosa• Agnello Regala• José Craveirinha• Fernando Pessoa• Caetano da Costa Alegre• Francisco Borja da Costa• José dos Santos Ferreira (Adé)

Dia 13 de Janeiro:Oito Séculos de

Língua Portuguesa (1214-2014)

APOIO:

Receitade Ano Novo

Com Poesia em Lusofonias

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II Segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014 • LUSOFONIAS

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LUSOFONIAS - SUPLEMENTO DE CULTURA E REFLEXÃO

RECEITADE ANO NOVOcom Poesia

em LusofoniasIvo Carneiro de Sousa

lusofonias

Ao começar um Novo Ano ainda envolto na agitação das muitas festas natalícias e reveillons vários, es-

tas sempre suas Lusofonias só podem mesmo associar--se a este clima fraterno descansado entre feriados e alguma preguiça oferecendo alguma dessa poesia que, felizmente tão abundante quanto marcante, tem aju-dado a construir as literaturas dos países de língua ofi-cial portuguesa. Acontece, contudo, que nas suas di-versas expressões culturais e nacionais a poesia escrita em português dedicada ao Ano Novo é curta, escassa, difícil até de reunir. Existe, felizmente, um poema cé-lebre de autor ainda mais famoso, Carlos Drummond de Andrade, a que normalmente se recorre para inspi-rar receita de novo ano. Aqui se convoca outra vez esse oportuno texto poético do grande arauto do primeiro modernismo brasileiro, mas que se decidiu acompa-nhar de uma muito despretensiosa selecção de outros poemas devidamente distribuídos em alfabética ordem pelos oito países de língua portuguesa, logo depois sim-bolicamente concluídos com um pequeno texto poético originário de Macau, escrito por José dos Santos Ferrei-ra – ou, melhor, Adé –, servindo para recordar tanto a imensa pluralidade do que temos vindo a designar por lusofonias como esse papel que a RAEM quer promover de querer ser plataforma pertinente de serviços entre a grande China e os países lusófonos soberanos.

Em 2014, não faltam comemorações, datas, eventos e temas importantes cruzando e sigeriondo certamente estudos, investigações e reflexões inteligentes sobre as lusofonias. É precisamente em 2014 que se cumprem, comemoram e, espera-se, se venha a investigar com pro-fundidade e actualizado rigor os Oito Séculos de Língua Portuguesa. O testamento do rei D. Afonso II – homem doente, cavaleiro não conseguiu ser, mas cognome de O Gordo haveria de ganhar em crónicas, primeiro, e em oitocentistas manuais de história, depois – apresenta-se normalmente como o primeiro documento oficial escre-vendo o que viria a ser a língua portuguesa vernácula agora espalhada por oito países e quase todos os conti-nentes. Uma língua que, na longa duração da história, foi verbo tanto de opressão, escravatura, quanto de li-bertação e independências. Língua de ciência já era du-rante o Renascimento, de fina parenética também o foi na pena maior do Padre António Vieira, espalhando-se desde esse seu século XVII em muitas literaturas, vários géneros, misturando-se mesmo aos falares e outras lin-guagens que se encontravam (e ainda se encontram...) pelos diferentes espaços da expansão e presença colo-nial portuguesa. Uma mais do que importante língua de cultura, uma língua hoje de várias literaturas, mas uma língua definitivamente de poesia. Segue, por isso, sem qualquer pretensão antológica ou afim, um muito singelo presente de poesias em língua portuguesa com que se procura cultivar somente o amor sempre culto e excitante por uma língua que oito diferentes países quiseram mobilizar para erguer a sua soberania e que, aqui por Macau, pretende concretizar uma extraordiná-ria aventura de bilinguismo que se inscreveu solene na Lei Básica desta Região Administrativa Especial da Repú-blica Popular da China. A ler preguiçosa e poeticamente como convém a estes dias festivos. Uma receita com que se expressam os nossos mais sinceros votos de um Feliz Ano Novo de 2014!

Carlos DrummonD De anDraDe

reCeita De ano novoPara você ganhar belíssimo Ano Novocor do arco-íris, ou da cor da sua paz, Ano Novo sem comparação com todo o tempo jávivido (mal vivido talvez ou sem sentido) para você ganhar um anonão apenas pintado de novo, remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; novoaté no coração das coisas menos percebidas(a começar pelo seu interior)ovo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,

mas com ele se come, se passeia, se ama, se compreende, se trabalha, você não precisa beber champanha ou qualqueroutra birita, não precisa expedir nem receber mensagens(planta recebe mensagens?passa telegramas?)

Não precisafazer lista de boas intençõespara arquivá-las na gaveta. Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumidas nem parvamente acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas modem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novoque mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo,tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.

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LUSOFONIAS • Segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014 IIIlusofonias

De angolaCom alDa lara

Nascida em Benguela, em 1930, falecida em 1962, licenciada em Medicina pela Universidade de Coimbra, Alda Lara é nome maior

na renovação e fundação de uma poesia verdadeiramente angola-na. Nacionalista convicta e figura fundamental na divulgação dos poetas africanos, Alda Lara não assistiu infelizmente em vida à pu-blicação da sua obra, editada entre 1966 e 1984, muito graças ao diligente trabalho de compilação do seu marido, o escritor Orlando Albuquerque. Por aqui se celebra e revisita com poema importante de Alda Lara, simplesmente intitulado Prelúdio.

alDa laraPrelúDio

(1951)

Pela estrada desce a noiteMãe-Negra, desce com ela... Nem buganvílias vermelhas,nem vestidinhos de folhos,nem brincadeiras de guisos,nas suas mãos apertadas.Só duas lágrimas grossas,em duas faces cansadas. Mãe-Negra tem voz de vento,voz de silêncio batendonas folhas do cajueiro... Tem voz de noite, descendo,de mansinho, pela estrada... Que é feito desses meninosque gostava de embalar?... Que é feito desses meninos que ela ajudou a criar?...Quem ouve agora as históriasque costumava contar?... Mãe-Negra não sabe nada... Mas ai de quem sabe tudo,como eu sei tudoMãe-Negra!... Os teus meninos cresceram,e esqueceram as históriasque costumavas contar... Muitos partiram p’ra longe,quem sabe se hão-de voltar!... Só tu ficaste esperando,mãos cruzadas no regaço,bem quieta bem calada. É a tua a voz deste vento,desta saudade descendo,de mansinho pela estrada..

Do BrasilCom manuel BanDeira

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho, de seu nome completo, nas-ceu no Recife, em 1886, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1968. Manuel

Bandeira dispensa apresentações: foi provavelmente o maior poeta brasi-leiro do século XX. Sem outras demoras, fique-se com esse poema maior que, de “pérsica” inspiração, o grande poeta da línos versos originais -se na original poesia de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, em 1968. Manuel Bandeira dispensa apresentaçngua portuguesa chamou Vou-me embora pra Pasárgada. Poema lido e relido, muitas vezes imitado e glosado, mas que só pode mesmo revisitar-se nos versos originais de Manuel Bandeira.

manuel BanDeiravou-me emBora Pra PasárgaDa

(1930)

Vou-me embora pra PasárgadaLá sou amigo do reiLá tenho a mulher que eu queroNa cama que escolherei

Vou-me embora pra PasárgadaVou-me embora pra PasárgadaAqui eu não sou felizLá a existência é uma aventuraDe tal modo inconsequenteQue Joana a Louca de EspanhaRainha e falsa dementeVem a ser contraparenteDa nora que nunca tive

E como farei ginásticaAndarei de bicicletaMontarei em burro braboSubirei no pau-de-seboTomarei banhos de mar!E quando estiver cansadoDeito na beira do rioMando chamar a mãe-d’águaPra me contar as históriasQue no tempo de eu meninoRosa vinha me contarVou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudoÉ outra civilizaçãoTem um processo seguroDe impedir a concepçãoTem telefone automáticoTem alcaloide à vontadeTem prostitutas bonitasPara a gente namorar

E quando eu estiver mais tristeMas triste de não ter jeitoQuando de noite me derVontade de me matar— Lá sou amigo do rei —Terei a mulher que eu queroNa cama que escolhereiVou-me embora pra Pasárgada.

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IV Segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014 • LUSOFONIASlusofonias

Da guiné BissáuCom

agnello regala

Nascido em Campeana, na região de Tombali, no sul da Guiné Bissau, em

1952, Agnelo Augusto Regalla é hoje um dos mais importantes e originais poetas guineenses. Tendo ocupado vários cargos na áera da informação. De Director Geral da Rádio Difusão Nacional da Guiné-Bis-sau a secretário de Estado, Agnello foi um dos promotores da criação da União Nacional dos Artistas e Escritores da Gui-né-Bissau e muito activo colaborador na recolha dos materiais que deram origem à primeira antologia poética guineense, “O Eco do Pranto”, o preciso título do poema que aqui se oferece à descoberta de uma literatura fazendo das terras fér-teis guineenses aquilo que elas só podem vir a merecer no futuro: estabilidade e prosperidade.

agnello regallao eCo Do Pranto

(1990)

Não me digas

Que essa é a voz de uma criança

Não...

A voz da criança

É suave e mansa

É uma voz que dança...

Não me digas

Que essa é a voz de uma criança

Parece mais

Um grito sem esperança

Um eco

Partindo de fundo de um beco

Não me digas

Que essa é a voz de uma criança,

Essa é doce e mansa

É uma voz que dança...

Esta parece mais

Um grito sufocado sob um manto

- O Eco do Pranto.

O drama do Mar,O desassossego do Mar,sempresempredentro de nós!

O Mar!cercandoprendendo as nossas Ilhas,desgastando as rochas das nossas Ilhas!Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,roncando nas areias das nossas praias,batendo a sua voz de encontro aos montes,baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas...

O Mar!pondo rezas nos lábios,deixando nos olhos dos que ficarama nostalgia resignada de países distantesque chegam até nós nas estampas das ilustraçõesnas fitas de cinemae nesse ar de outros climas que trazem os passageirosquando desembarcam para ver a pobreza da terra!

O Mar!a esperança na carta de longeque talvez não chegue mais!...

O Mar!saudades dos velhos marinheiros contando históriasde tempos passados,histórias da baleia que uma vez virou a canoa...de bebedeiras, de rixas, de mulheres, nos portosestrangeiros...

O Mar! dentro de nós todos,no canto da Morna,no corpo das raparigas morenas,nas coxas ágeis das pretas,no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente!

Este convite de toda a horaque o Mar nos faz para a evasão!Este desespero de querer partire ter que ficar!

De CaBo verDeCom Jorge BarBosa

Poeta maior da caboverdianidade, Jorge Barbosa nas-ceu na cidade da Praia, em 1902, falecendo em Al-

mada, em 1971. Em 1935, publicou Arquipélago, obra fundacional da poesia de Cabo Verde. Seguida, em 1941, por Ambiente, em 1955, por Caderno de um Ilhéu, mais os livros perseguidos e proibidos que foram Meio Milénio, Júbilo e Panfletário. A Jorge Barbosa se foi pedir o seu indispensável Poema do Mar para voltar a reflectir sobre “Este desespero de querer partir/ e ter que ficar!”

Jorge BarBosaPoema Do mar

(1941)

De moçamBiqueCom José Craveirinha

Nascido em Maputo, em 1922, falecido também na capital,

em 2003, José João Craveirinha é reconhecidamente o maior poeta moçambicano, o primeiro escritor africano galardoado com o impor-tante Prémio Camões, em 1991. A sua biografia é sobejamente conhe-cida e a sua obra constitui hoje pa-trimónio fundamental da literatura em língua portuguesa. Revisite-se em Craveirinha o poema Aparências com que o grande escritor moçambi-cano recordava a sua prisão quando, entre 1965 e 1969, fazia parte de uma célula da 4ª Região Político--Militar da Frelimo. A exacta mesma língua que foi servindo para reprimir os movimentos de emancipação nas antigas colónias portuguesas aqui se transforma em língua de poesia de libertação, em rigor, em grande poesia em língua portuguesa.

Nasceu em 1888 Fernando Antó-nio Nogueira Pessoa aquele que

se transformou no último meio sé-culo no mais universal dos poetas portugueses. Faleceu cedo, aos 47 anos, com uma cirrose hepática, escrevendo no leito do hospital, a 29 de Novembro de 1935, a sua úl-tima frase em inglês “I know not what tomorrow will bring” (Não sei o que o amanhã trará). Morreria no dia seguinte. Não sabia mesmo que o futuro haveria de o consa-grar como um dos grandes poetas do mundo quando, em vida, apenas conseguiu publicar uma obra em português, a célebre Mensagem, editada em 1934, mais três títulos em inglês estampados em Lisboa, em 1918 e 1921, assim recordando a sua educação primária e liceal em Durban, na África do Sul. Felizmen-te, Pessoa deixou-nos obra vastís-sima, complexa, quase misteriosa, aberta a muitas interpretações e ainda mais admirações. A um dos seus vários heterónimos, Alberto Caeiro, se foi pedir este quase es-tranho Poema do Menino Jesus.

De PortugalCom

FernanDo Pessoa

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LUSOFONIAS • Segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014 Vlusofonias

De moçamBiqueCom José Craveirinha

Nascido em Maputo, em 1922, falecido também na capital,

em 2003, José João Craveirinha é reconhecidamente o maior poeta moçambicano, o primeiro escritor africano galardoado com o impor-tante Prémio Camões, em 1991. A sua biografia é sobejamente conhe-cida e a sua obra constitui hoje pa-trimónio fundamental da literatura em língua portuguesa. Revisite-se em Craveirinha o poema Aparências com que o grande escritor moçambi-cano recordava a sua prisão quando, entre 1965 e 1969, fazia parte de uma célula da 4ª Região Político--Militar da Frelimo. A exacta mesma língua que foi servindo para reprimir os movimentos de emancipação nas antigas colónias portuguesas aqui se transforma em língua de poesia de libertação, em rigor, em grande poesia em língua portuguesa.

José CraveirinhaaParênCias

Amigos!Apesar das aparênciasestarem de acordo com as circunstânciasnão sou eu quem morre de medo. AntesDuranteE após os interrogatórios(Inclusive nos quotidianos trajectos de jipe)a minha língua é que se torna de papel almaçoE minhas desavergonhadas rótulas de borrachaCoitadas é que tremem. Ao bom evangelho dos cassetetesouvir avoengos pássaros bantoscantarem algures nos ombrosvelhas melodias de feridas. E depoisà sedutora persuasão das ameaçaspela décima segunda vez humildementepensar: Não sou luso-ultramarinoSOU MOÇAMBICANO! Será suficiente esta confissãoSr. Chefe dos cassetetesda 2ª. Brigada?

Nasceu em 1888 Fernando Antó-nio Nogueira Pessoa aquele que

se transformou no último meio sé-culo no mais universal dos poetas portugueses. Faleceu cedo, aos 47 anos, com uma cirrose hepática, escrevendo no leito do hospital, a 29 de Novembro de 1935, a sua úl-tima frase em inglês “I know not what tomorrow will bring” (Não sei o que o amanhã trará). Morreria no dia seguinte. Não sabia mesmo que o futuro haveria de o consa-grar como um dos grandes poetas do mundo quando, em vida, apenas conseguiu publicar uma obra em português, a célebre Mensagem, editada em 1934, mais três títulos em inglês estampados em Lisboa, em 1918 e 1921, assim recordando a sua educação primária e liceal em Durban, na África do Sul. Felizmen-te, Pessoa deixou-nos obra vastís-sima, complexa, quase misteriosa, aberta a muitas interpretações e ainda mais admirações. A um dos seus vários heterónimos, Alberto Caeiro, se foi pedir este quase es-tranho Poema do Menino Jesus.

PoemaDo menino Jesus

Num meio-dia de fim de PrimaveraTive um sonho como uma fotografia.Vi Jesus Cristo descer à terra.Veio pela encosta de um monteTornado outra vez menino,A correr e a rolar-se pela ervaE a arrancar flores para as deitar foraE a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.Era nosso demais para fingirDe segunda pessoa da Trindade.No céu tudo era falso, tudo em desacordoCom flores e árvores e pedras.No céu tinha que estar sempre sérioE de vez em quando de se tornar outra vez homemE subir para a cruz, e estar sempre a morrerCom uma coroa toda à roda de espinhosE os pés espetados por um prego com cabeça,E até com um trapo à roda da cinturaComo os pretos nas ilustrações.Nem sequer o deixavam ter pai e mãeComo as outras crianças.O seu pai era duas pessoas -Um velho chamado José, que era carpinteiro,E que não era pai dele;E o outro pai era uma pomba estúpida,A única pomba feia do mundoPorque nem era do mundo nem era pomba.E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.Não era mulher: era uma malaEm que ele tinha vindo do céu.E queriam que ele, que só nascera da mãe,E que nunca tivera pai para amar com respeito,Pregasse a bondade e a justiça!Um dia que Deus estava a dormirE o Espírito Santo andava a voar,Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

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De PortugalCom

FernanDo Pessoa

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VI Segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014 • LUSOFONIASlusofonias

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Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruzE deixou-o pregado na cruz que há no céuE serve de modelo às outras.Depois fugiu para o SolE desceu no primeiro raio que apanhou.Hoje vive na minha aldeia comigo.É uma criança bonita de riso e natural.Limpa o nariz ao braço direito,Chapinha nas poças de água,Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.Atira pedras aos burros,Rouba a fruta dos pomaresE foge a chorar e a gritar dos cães.E, porque sabe que elas não gostamE que toda a gente acha graça,Corre atrás das raparigasQue vão em ranchos pelas estradasCom as bilhas às cabeçasE levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.Ensinou-me a olhar para as coisas.Aponta-me todas as coisas que há nas flores.Mostra-me como as pedras são engraçadasQuando a gente as tem na mão E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.Diz que ele é um velho estúpido e doente,Sempre a escarrar para o chãoE a dizer indecências.A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.E o Espírito Santo coça-se com o bicoE empoleira-se nas cadeiras e suja-as.Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.Diz-me que Deus não percebe nadaDas coisas que criou -“Se é que ele as criou, do que duvido.” -“Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,Mas os seres não cantam nada.Se cantassem seriam cantores.Os seres existem e mais nada,E por isso se chamam seres.”E depois, cansado de dizer mal de Deus,O Menino Jesus adormece nos meus braçosE eu levo-o ao colo para casa.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.Ele é o humano que é natural.Ele é o divino que sorri e que brinca.E por isso é que eu sei com toda a certezaQue ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divinaÉ esta minha quotidiana vida de poeta,E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.E que o meu mínimo olharMe enche de sensação,E o mais pequeno som, seja do que for,Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivoDá-me uma mão a mimE outra a tudo que existeE assim vamos os três pelo caminho que houver,Saltando e cantando e rindoE gozando o nosso segredo comumQue é saber por toda a parteQue não há mistério no mundoE que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.O meu ouvido atento alegremente a todos os sonsSão as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outroNa companhia de tudoQue nunca pensamos um no outro,Mas vivemos juntos e doisCom um acordo íntimoComo a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhasNo degrau da porta de casa,Graves como convém a um deus e a um poeta,E como se cada pedraFosse todo o universoE fosse por isso um grande perigo para elaDeixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homensE ele sorri porque tudo é incrível.Ri dos reis e dos que não são reis,E tem pena de ouvir falar das guerras,E dos comércios, e dos naviosQue ficam fumo no ar dos altos mares.Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdadeQue uma flor tem ao florescerE que anda com a luz do SolA variar os montes e os valesE a fazer doer aos olhos dos muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.Levo-o ao colo para dentro de casaE deito-o, despindo-o lentamenteE como seguindo um ritual muito limpoE todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha almaE às vezes acorda de noiteE brinca com os meus sonhos.Vira uns de pernas para o ar,Põe uns em cima dos outrosE bate palmas sozinhoSorrindo para o meu sono.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Quando eu morrer, filhinho,Seja eu a criança, o mais pequeno.Pega-me tu ao coloE leva-me para dentro da tua casa.Despe o meu ser cansado e humanoE deita-me na tua cama.E conta-me histórias, caso eu acorde,Para eu tornar a adormecer.E dá-me sonhos teus para eu brincarAté que nasça qualquer diaQue tu sabes qual é.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Esta é a história do meu Menino Jesus.Por que razão que se percebaNão há-de ser ela mais verdadeiraQue tudo quanto os filósofos pensamE tudo quanto as religiões ensinam ?

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LUSOFONIAS • Segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014 VIIlusofonias

De são tomé e PrínCiPeCom Caetano Da Costa alegre

Poeta hoje muito pouco conhecido, Caetano da Costa Alegre nas-ceu em São Tomé, em 1864, no seio de uma família de emigrantes

cabo-verdianos que se expressavam em crioulo. Em 1882, estudou du-rante oito anos em Portugal, formando-se como médico naval que nun-ca viria a ser, falecendo em 1890 vítima de tuberculose. A sua poesia singular foi reunida e publicada em 1916 pelo esforço do seu amigo, o jornalista Cruz Magalhães, destacando uma poética romântica em que se celebra a saudade de São Tomé e se elogiam as culturas africanas. Criador da poesia da negritude viriam depois a designar o precursor que é verdadeiramente Caetano da Costa Alegre, a seguir recordado nos seus Cantares Santomenses.

Caetano Da Costa alegreCantares santomenses

Branca a espuma e negra a rocha,Qual mais constante há-de ser,A espuma indo e voltando,A rocha sem se mexer? Não creias que em teu jazigoAlguém parta o coração,No mundo quem morre, morre,Quem cá fica come pão. Não me dizem quanto tempoTenho ainda que viver,Ficava ao menos sabendoQuando finda o meu sofrer. Se eu me casasse contigo,Fazia um voto de ferro,De deixar-te unicamenteNo dia do meu enterro. Todos me dizem: “esqueceEssa paixão, que te abrasa”.Que serve fechar a portaAo fogo que tenho em casa? Não havia tanta caraDe asno, de tolo e pedante,Se falasse, quem censura,Com um espelho adiante. Brotam espinhos da rosa,O incêndio brota do lume.A traição brota das juras,Brota do amor o ciúme. Numa loja conhecidaO que é cem custa duzentos,Levam dinheiro em fazendasE o tempo nos cumprimentos. Macaco, chamaste toloAo meu pequeno sagüi.Também queria que ouvissesO que ele disse de ti. Por teu desdém não me mato,Não faço tamanha asneira,Se o meu amor tu não queres,Há muita gente que o queira. Quem pode num campo vastoO joio apartar dos trigos?Quem conhece dentre os falsosOs verdadeiros amigos?

De timor-lesteCom FranCisCo BorJa Da Costa

Conhecido por ser o autor da letra de Pátria, o hino nacional da Repú-blica Democrática de Timor, Francisco Borja da Costa nasceu em Mana-

tuto, em 1946, sendo morto a 7 de Dezembro de 1975 no preciso primeiro dia da conhecida e muito dramática invasão das terras timorenses pelo poderoso exêrcito da Indonésia. Poeta com textos dispersos por vários jornais e revistas, aguardando conveniente reunião e estudo, retirou-se da sua obra curta, maioritariamente escrita em tetum, este poema mais referenciado intitulado Um Minuto de Silêncio.

FranCisCo BorJa Da Costaum minuto Do silênCio

CalaiMontesVales e fontesRegatos e ribeirosPedras dos caminhosE ervas do chão,Calai

CalaiPássaros do arE ondas do marVentos que sopramNas praias que sobramDe terras de ninguém,Calai

CalaiCanas e bambusÁrvores e «ai-rús»Palmeiras e capimNa verdura sem fimDo pequeno Timor,Calai

CalaiCalai-vos e calemo-nosPOR UM MINUTOÉ tempo de silêncioNo silêncio do tempoAo tempo de vidaDos que perderam a vidaPela PátriaPela NaçãoPelo PovoPela NossaLibertaçãoCalai - um minuto de silêncio...

Page 8: Receita língua oficial portu Ano Novo - jtm.com.mojtm.com.mo/record/2014/01Jan/06-01-2014 - Lusofonias.pdf · Mando chamar a mãe-d’água Pra me contar as histórias Que no tempo

VIII Segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014 • LUSOFONIASlusofonias

De maCauCom José Dos santos Ferreira (aDé)

Encerre-se esta receita de Ano Novo com um Poéma di Macau escrito por essa figura maior da cultura macaense que foi José dos Santos Ferrei-

ra, mas que por Adé foi mais simplesmente conhecido. Nascido em 1919 de pai de origens portuguesas e mãe macaense, em Adé se descobre uma vasta obra, ainda muito dispersa, em que se vai destacando a defesa e divulgação do patuá, mais um continuado comprometimento na promoção das culturas macaenses enquanto encruzilhada fundamental entre civili-zações, culturas e linguagens. Essas mesmo que fazem de Macau ponte im-perdível entre Oriente e Ocidente de que os macaenses são tão herdeiros quanto depositários. Por Hong Kong faleceu Adé, em 1993, mas deixou-nos textos e poesias suficientemente generosos a merecer novas edições rigo-rosas e estudo sério. Para que conste. Para que fique.

José Dos santos Ferreira (aDé)Poéma Di maCau ii

(1983)

Vôs, Macau, co passado alegre, triste,Sã lembrá céu di laia-laia côr:Têm dia, olá Sol brilhá co chiste,Têm ora, núve iscuro pintá dôr.Vôs têm sosségo, lô vêm calmaria,Tudo gozá, soltá cacada, ri!Virá lestada, suprá ventania,Quim sentá churá, quim botá fuzil (Leitura:Tu, Macau, de passado alegre e triste,Fazes lembrar o céu quando varia de cor:Dias em que o Sol brilha com graça,Horas em que núvens escuras retratam dor.Se estás em sossego, há tranquilidade,Todos gozam, riem às gargalhadas!Vem a lestada, fustiga a ventania,Uns ficam a chorar, outros se põem a fugir!)