Recensão Crítica CIA e guerra fria cultural

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“A CIA e a Guerra Fria Cultural” – Recensão Crítica por Ana Rita Faleiro, 12582319 Santiago de Compostela, Maio de 06 Professor: Doutor Eduardo Rico Boquete Disciplina: História do Mundo Actual I Universidade de Santiago de Compostela Faculdade de Geografia e História Recensão Crítica: “A CIA e a Guerra-fria Cultural”, de F. S. Saunders Disciplina: O Mundo Actual I Aluna: Ana Rita Faleiro (Erasmus), 12582319 Professor: Doutor Eduardo Rico Boquete

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“A CIA e a Guerra Fria Cultural” – Recensão Crítica por Ana Rita Faleiro, 12582319

Santiago de Compostela, Maio de 06 Professor: Doutor Eduardo Rico Boquete Disciplina: História do Mundo Actual I

Universidade de Santiago de Compostela Faculdade de Geografia e História

Recensão Crítica: “A CIA e a Guerra-fria Cultural”, de F. S. Saunders

Disciplina: O Mundo Actual I

Aluna: Ana Rita Faleiro (Erasmus), 12582319

Professor: Doutor Eduardo Rico Boquete

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Antes de se iniciar qualquer tipo de abordagem crítica a uma

determinada obra, é necessário apresentar-se obra e autor, de maneira a melhor

percebermos todo o contexto em que ela foi escrita.

Assim, começo por frisar que o livro sobre o qual me debruçarei é “A

CIA e a Guerra-fria Cultural”, de Francis Stonor Saunders, publicado pela

Editoral Debate em 2001, tendo ficado a tradução a cargo de Rafael Fontes.

Mas se já indicámos o livro, ainda não indicámos o autor. Assim, o que

dizer sobre Francis Stonor Saunders?

Frances Stonor Saunders, nascida em 1966 é produtora de documentários

de arte para filmes independentes, e empregada em cadeias televisivas tão

importantes como sejam a Channel 4 e a BBC. Com este livro, que tomou pelo

menos 3 anos da sua vida, Saunders ganhou o Gladstone History Prize, no ano

2000; é de referir igualmente que este livro teve por base o documentário

No fundo, esta obra, dividida em 26 capítulos e epílogo, vai analisar o

âmbito de acção da tão conhecida e famosa CIA dentro de um dos aspectos

mais importantes da vida humana: a cultura.

Na verdade, é comum pensar-se que durante o período da Guerra-fria os

únicos assuntos que se tratavam limitavam-se ao âmbito político (confronto

ideológico dos blocos, uma ameaça nuclear permanente, crise dos mísseis...); no

entanto, este magnífico e enorme trabalho de Saunders mostra-nos que a

Guerra-fria foi também sobre a cultura: a música, a pintura, a literatura... Tudo

foi influenciado por ela, e assim se percebe que a CIA1, tendo sido criada no

início do pós-guerra (em 1947) e inserindo-se claramente na doutrina de

contenção de Harry Truman, tenha estado por trás do financiamento de tanta

arte, de tanta cultura, manipulando-a de acordo com o que considerava que era

o melhor para a segurança nacional. Esta obra vem deitar abaixo o pensamento

pré-concebido de que a Agência apenas levava a cabo trabalhos “sujos”, como

1 (Central Intelligence Agency – isto é, Agência Central de Inteligência)

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sequestros, assassinatos políticos e subversão de governos democraticamente

eleitos (como sejam os de Mossadegh, Arenz ou Allend), e vem mostrar a sua

grande actuação em actividades menos vistosas: organização de exposições de

artes plásticas, concertos musicais, congressos de intelectuais ou ainda edição

de revistas e livros (como por exemplo, Encounter); lembremos que esta

actividade não é original da CIA, uma vez que no logo início de pós guerra,

após a fundação de uma Casa da Cultura por parte dos soviéticos em Berlim, os

Estados Unidos aperceberam-se do poder de luta de um livro. Se juntarmos a

este facto a proibição que caíra sobre os autores alemães, percebemos bem o

porquê da emergência tão grande de escritores americanos, que passavam

assim a propaganda “certa”. Além disso, ao tempo que mostravam à Alemanha

e ao Mundo os seus escritores e a sua cultura, provavam que detinham as

condições necessárias para serem os líderes indiscutíveis morais e intelectuais

do mundo “livre”, isto é, não comunista.

É nesta procura da segurança nacional que se insere por exemplo a

política levada a cabo por McCarthy, a tão conhecida “Caça às Bruxas”. Foi sem

dúvida um período de frequentes investigações sobre a vida privada e o

passado de alguns dos mais importantes homens da época, e Saunders retrata-o

bastante bem; aliás, um dos seus capítulos refere precisamente o “ataque” que o

senador McCarthy estava disposto a levar a cabo contra a própria Agência! Não

mostrará isto o clima de paranóia ideológica que se vivia na altura? A própria

Agência de Inteligência, paradigma da luta contra o comunismo, ser

investigada...

Dentro desta Caça às Bruxas insere-se também o processo Rosenberg, e o

que é de ressaltar é a atenção que a autora dá à análise da projecção

internacional deste processo, bem como a aspectos que nunca são referidos

(como seja por exemplo a carta que Julius e Ethel escrevem aos seus filhos na

véspera da execução, ou o facto de antes de ser executada, Ethel ter chamado a

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sua carcereira e a ter beijado, ou ainda o facto da frieza das cartas que Julius

envia à sua mulher durante o tempo de encarceramento).

Creio que ao longo de todo o livro uma das características fundamentais

da autora: ela tenta sempre apresentar os factos tais como eles são, sem os

atenuar, sem querer suavizá-los quer para o bloco ocidental quer para o bloco

oriental. Ou seja, mais concretamente, o que quer isto dizer? Que apesar de ser

certo que muitos erros foram cometidos pelo bloco ocidental, Saunders não

tenta justificar assim os crimes do bloco de Leste.

Outra característica importante desta obra parece-me ser o facto de a

autora usar documentos que por vezes são “esquecidos” ou relegados para

segundo plano: ela usa dados fornecidos por quem viveu de dentro o papel da

CIA, como por exemplo conversas, cartas, registos telefónicos, tudo de

personagens tão importantes como Josselsson, Lasky, Spender, Hanna Arendt...

Neste aspecto, gostaria de fazer ressaltar o facto de a abordagem de Saunders se

parecer à abordagem de Beevor para a sua “Queda de Berlim”. No entanto, a

autora apresenta um ponto positivo em relação a Beevor, pelo menos na minha

opinião. Na verdade, a autora não parte do pressuposto de que os seus leitores

sabem a priori tudo sobre o tema tratado, explicando minuciosamente os

assuntos e as acções levadas a cabo; relaciona igualmente vários factos, o que

permite ao leitor da obra ter uma visão abrangente e geral sobre o assunto.

O motivo do recurso a este tipo de arquivos e documentos é por si só

uma crítica à “liberdade” de pesquisa cultural na América, pois à autora foram

negados os arquivos da CIA, o que teria facilitado em muito o trabalho de

Saunders. Ela opta portanto por consultar arquivos privados e registos

orais/entrevistas, como eu já referi.

Em várias críticas e ensaios que já foram feitos a esta obra, há uma

opinião generalizada e consensual sobre a maneira como Saunders apresenta o

tema da guerra-fria cultural: na verdade, se é certo que a nível factual, poucas

são as novidades que ela introduz (não sendo no entanto inexistentes), a

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maneira como ela escreve (ou melhor, descreve) os factos, a maneira como os

interrelaciona, vem mostrar de forma contundente e indubitável o

envolvimento da CIA nas campanhas culturais e artísticas.

A melhor prova disso encontra-se nos financiamentos a instituições,

muitas vezes tão inesperadas como o Museu de Arte Moderna... aliás, na página

366 da sua obra, Saunders reproduz a opinião de Cockroft (escritora,

historiadora de arte e artista): “ En términos de propaganda cultural, los

objectivos del aparato cultural de la CIA y los programas internacionales del

MoMA eran similares y, de hecho, se apoyaban mutuamente”. Ou seja,

Saunders não afirma categoricamente que tenha existido um acordo formal

entre a CIA e o Museu (na verdade, até escreve que nada há que o prove); no

entanto, dá a entender que seria essa a realidade. No fundo não é descabido

pensar assim: basta lembrarmo-nos do caso de Jackson Pollock, artista

expressionista abstracto. Qual a relação? É muito simples: na verdade, o

expressionismo abstracto foi visto pelo governo dos Estados Unidos como

sendo uma forma de luta contra o comunismo: na página 353 podemos ler que

“En (...) 1946, los criticos estaban aplaudiendo el nuevo arte por ser «expresión

auténtica, independiente y atóctona de la voluntad, el espíritu y el carácter

nacionales”. No entanto, esta nova corrente não pode ser apoiada abertamente

pelos altos políticos – pelo que se recorre à CIA! E neste organismo, de acordo

com Tom Braden... para levar a cabo a liberdade de expressão era necessário

fazer-se tudo em segredo. Este “segredo de Estado não impediu, no entanto,

que a CIA de facto, patrocinasse digressões de arte moderna, que passavam

obrigatoriamente pelo Museu.

Fosse em relação à pintura, fosse em relação à literatura, fosse em relação

ao Congresso pela Liberdade Cultural, principal associação financiada pela CIA

(ainda que tivesse sempre negado este apoio, aliás, como todas as associações

culturais ou económicas – Fundação Ford, Fundação Rockefeller... – fizeram),

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todos os aspectos culturais estavam sob o olho vigilante da Agência. É esta a

tese de Saunders.

Saunders dá uma grande importância a este Congresso – que atravessa

praticamente a obra inteira – pois foi a principal “tapadera” da CIA, agrupando

no seu seio ex-Trotskyistas, social-democratas e artistas liberais, escritores e

intelectuais. Sendo financiada por ela, o Congresso trabalhava para o governo

americano. Esta tese está explícita em várias passagens do seu livro: tome-se

como exemplo a afirmação da página 169: “Se abrió en Nueva York una «cuenta

del festival», en la que el Comité Americano por la Libertad Cultural servia para lavar

los fondos de la CIA y del departamento de Estado. El dinero se transfería a

través de la Fundación Farfield, una tapadera creada por la CIA (...)”.

Outro exemplo da actuação da CIA a nível cultural prende-se, apenas

para referir um caso, ao mundo musical. Em 1951, começa a idealizar-se um

festival de artes (a que Saunders chama de “Cette fête americaine”), ao estilo de

Nabokov (isto é, com um toque de extravagância, espectáculo, propaganda,

fogos de artifício, Carnavais, ou seja, cheio de diversão; este festival (que

contaria com a ajuda do prestigiado músico Stravinski) decorreria em 1952, em

Paris, e aqui deveria participar a Orquestra Sinfónica de Boston, teoricamente a

mando do Congresso (pela Liberdade Cultural); no entanto, oficiosamente, a

entidade encarregada de financiar o concerto por esta orquestra foi a CIA, que

adiantou cerca de 130.000 dólares para a digressão. Ou seja, para além de tudo o

resto, este exemplo dado pela autora vem demonstrar uma vez mais a ligação

indubitável entre Congresso e Agência.

Na verdade, ao longo de todo o livro, a autora é profícua em exemplos

que nos mostram que a CIA e o Congresso, financiado por ela, estavam por

detrás de todos os aspectos que se pensavam como livres de direito. Não foi

isso que aconteceu, tudo era controlado, e Saunders consegue demonstrá-lo

muito bem.

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Mas se ainda subsistirem dúvidas sobre a relação da CIA com a cultura, a

autora dá-nos mais um exemplo: CIA ligada, através do Congresso, ao PEN

Club, ou seja, CIA ligada a uma associação de poetas, Editores, ensaístas,

dramaturgos e novelistas. Em 1966, estava previsto um congresso internacional

do PEN, pelo que a CIA investiu muito neste acontecimento... através do

Congresso.

Para onde quer que se olhasse, desde qualquer ângulo que se olhasse, a

CIA estava interligada com o Congresso, com Fundações, e formavam um

conjunto interligado e influenciador da cultura.

Não devemos no entanto pensar que isto era algo que andasse à luz do

dia. Tal como alguém que não quer ser apanhado a fazer algo errado, o

Congresso e as fundações financiadas pela CIA sempre negaram qualquer

ligação, mostrando uma grande “indignação” quando dita ligação era

descoberta: foi o caso de Encounter, em que Isaiah Berlin se mostra

indignadíssimo e acusa Lasky e Josselsson de terem “comprometido a gente

honrada” (pg. 539).

Tomemos outro exemplo: os agentes do Congresso.

Na verdade, a maior parte dos agentes do Congresso pertenciam à CIA,

ainda que isso fosse “segredo”.

No entanto, a verdade prevalece sempre, e a revista “Ramparts”, após ter

sido duramente atacada pela CIA, lança as primeiras sementes de dúvida sobre

o real papel da Agência. Sobrevive, no entanto, e continua a publicar as suas

investigações sobre o “lado obscuro” da CIA (é por exemplo através da

Ramparts que se tem finalmente a certeza da ligação da CIA à Encounter) e

sobre a sua ligação com o Congresso.

É esta a razão para o “julgamento” que o próprio Congresso instaura a

quem mais por ele trabalhou: Josselsson e Hunt. Este “julgamento” não era

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evitável, pois nunca o congresso admitiria ter sido financiado pela CIA, e

Josselsson era um agente.

É de notar a importância e o relevo que a autora dá a este julgamento,

pois mostra como se tratavam a quem já não tinha utilidade. Humaniza a

questão, que é algo que normalmente não se costuma ver. E além disso, vem

provar ser impossível o Congresso não saber do envolvimento da CIA... não era

Josselson um agente?

Estes são apenas alguns dos aspectos que há a referir sobre este livro.

Muito mais haveria para dizer, pois é um livro grande, resultado de uma

gigantesca pesquisa, que transparece ter sido muito sistemática e muito bem

organizada.

Transforma-se numa obra fascinante, pois traz luz e esclarecimento sobre

o tema da guerra da cultura, talvez o tipo de guerra em que menos se pensa e

que menos se analisa. Mas existe, e esta obra demonstra-o de uma maneira

inequívoca. Ajuda-nos a perceber (principalmente a uma geração posterior a

estes acontecimentos, que se inserem na Guerra Fria) de que maneira todo o

mundo era de tal maneira divido em dois blocos: oriente – ocidente; boa cultura

– má cultura. Capitalismo – Comunismo.

No fundo, o que a autora nos mostra ao longo de centenas de páginas, é

a função prática (ainda que não teórica) da CIA como um (estranho) Ministério

da Cultura, pois forneceu milhares de dólares à Fundação que mais lutava pelo

estabelecimento da cultura (ainda que fosse uma cultura manipulada, escolhida

e retalhada pela censura): o CCF (Congress for Cultural Freedom).

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Bibliografia:

• SAUNDERS, F.S., “La CIA y la Guerra Fria Cultural”, trad. de Rafael

Fontes Editorial Debate, 1ª edição, Outubro de 2001, Madrid

• http://www.lamurals.org/MuralistPages/CockroftE.html

• http://www.cia.gov/cia/information/info.html

• http://www.granta.com/authors/126

• http://www.cebela.org.br/imagens/Materia/2000-3%20229-

232%20luis%20felipe%20miguel.pdf

• http://www.wpunj.edu/newpol/issue31/johnso31.htm

• http://www.voltairenet.org/article120771.html