RECENSÃO CRÍTICA – LUFA
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Universidade Nova de Lisboa
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Recensão críticaDilemas do quotidiano: subjectividades negociadas - José Machado Pais
Pais, José Machado. Lufa-lufa Quotidiana: Ensaios sobre a cidade, cultura e vida urbana, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2010
Curso: Ciências da Comunicação – 1º anoCadeira: Comunicação e Ciências SociaisDocente: Marisa Torres da SilvaAluno: Ricardo Martins Geraldes, n.º 34420, Turma A
José Machado Pais, licenciado em Economia e doutorado em Sociologia, investigador
coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, é detentor de uma vasta
obra na qual tem reflectido sobre alguns dos emergentes paradigmas sociais que caracterizam a
contemporaneidade. Em Lufa-lufa quotidiana: Ensaios sobre a cidade, cultura e vida urbana
(2010), Machado Pais apresenta-nos um excerto do poema “A Passagem das Horas” de Álvaro de
Campos. É sobre este retrato do ritmo da vida, como uma bebedeira de rua, que se constitui o mote
de toda a sua análise. A forma narrativa utilizada pelo autor, para além da abordagem sociológica,
coloca o leitor num contexto participativo e convidativo à reflexão. Um dos principais objectivos do
livro é questionar aquilo que é para nós uma relação de conflito com o tempo, ou a falta dele, um
“corre-corre”, um rodopio. Embora em desuso, “Lufa-Lufa” foi o termo utilizado por Machado Pais
para caracterizar esse mesmo conflito temporal, «[…] denunciando o apressuramento que
caracteriza a vida urbana contemporânea, como se ela estivesse enfeitiçada pela correria»(Pais,
2010:11).
Será sobre o capítulo 3, Dilemas do quotidiano: subjetividades negociadas, que iremos
debruçar a nossa atenção, onde se analisa uma tensão existente entre heteronomia e autonomia bem
como uma tensão entre alienação e emancipação.
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Separado em quatro subcapítulos (Quotidiano e reflexividade; O conhecimento de si e o
reconhecimento dos outros; Moralidades e identidades; A cegueira do quotidiano), José Machado
Pais ancora a sua visão em Anthony Giddens, Ulrich Beck e Scott Lash, autores que analisaram e
estruturaram o conceito de Modernidade Reflexiva. Este conceito, utilizado para caracterizar a
sociedade contemporânea, sublinha a ideia de que vivemos num mundo cada vez mais reflexivo,
em constante transformação e tensão com o passado. Segundo o livro de Giddens, Beck, Lash, a
Modernização Reflexiva, esta teoria não se coloca simplesmente na justaposição dicotómica da
tradição e da modernidade, mas antes numa concepção de três estágios: «da tradição para a
modernidade à modernidade reflexiva» (1995:138).
Em Dilemas do quotidiano: subjectividades negociadas, o autor começa por descrever uma
situação dilemática do quotidiano. Num congresso sobre «Sociologia e Sociedade: Reflexividade e
Acção», José Machado Pais viu-se confrontado com um silêncio generalizado, após cumprimentar
a larga plateia que assistia ao congresso. O autor refere prontamente que a reciprocidade depende do
modo pelo qual as ideias ou situações estão encadeadas. Uma reflexividade reactiva, que tem o seu
próprio tempo, o seu próprio estado convencional, e quando se encontra fora desses parâmetros
poderá tornar-se num reflexo indolente.
O conceito de Modernidade Reflexiva é assim a ideia fundadora pelo qual estabelece o seu
conjunto de ensaios. A reflexividade impositiva e a reflexividade transformadora tornam-se pontos
base à análise. Machado Pais constata a forma impositiva da vida quotidiana como parte de
ordenamentos culturais, ou seja, é algo categoricamente orientado pelo passado, exemplificado
através de máximas ou provérbios, classificando-os como «bússolas de orientação normativa»(Pais,
2010:96). Machado Pais aponta para o confronto entre a reflexão orientada pelo passado e reflexão
transformadora orientada para o futuro, não como uma correspondência mecânica, e como algo
simplesmente encadeado, mas uma relação espelhada, salientando que, no presente tempo de
Modernidade Reflexiva, existe uma predominância da reflexividade transformadora, o que toma a
rotina diária como um espaço aberto à experiência.
Através de um exemplo contemporâneo apresentado neste capítulo: que poderá ser mais
vantajoso caminhar a pé para se chegar ao destino do que enfrentar o tráfego caótico das estradas
citadinas, o sociólogo demonstra como a modernidade reflexiva poderá indicar um retorno da
tradição. Apontando as tensões existentes entre os dois tipos de reflexividade, o texto salienta como
é criado o campo para situações dilemáticas, o que estabelece o quotidiano como um «terreno de
negociações, de resistências, de inovações e, consequentemente, de dilemas»(Pais, 2010:97). O
autor discursa os dilemas que sucedem de «cenários de suposição», apontando para as palavras de
Anthony Giddens como «incertezas fabricadas»(Pais, 2010:97). Algo característico das nossas
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vidas, afirmando que não vivemos apenas numa sociedade «de risco», mas numa «sociedade
dilemática». Nesta sociedade carregada de dilemas, somos forçados a um constante campo de
decisões, que nos levam a uma politização da vida que afecta a «identidade do eu». Giddens, sugere
a emancipação do corpo, através da invocação de sistemas abstractos que são representadas por um
número crescente de manuais práticos de ajuda aos dilemas do quotidiano, embora Machado Pais
note que este tipo de literatura poderá apenas estimular «[...] uma falsa consciência de
emancipação»(Pais, 2010:98).
No subcapítulo Quotidiano e reflexividade é apresentado mais um exemplo reflexivo: um
dilema banal como a gravata e a sua convencionalidade. Retratando o já referido congresso, José
Machado Pais vê-se confrontado com o dilema de levar ou não a gravata. Assim, analisando a sua
própria condição, reinscreve a problemática das identidades reflexivas. Não é apenas o dilema de ter
opções, mas o de ter de optar. A questão assoma-se quando se observa ao espelho: está-se a
construir uma identidade individual ou social? Os teóricos da modernidade reflexiva afirmam como
os tempos que decorrem são oportunos às chamadas biografias reflexivas, biografias do faça você
mesmo, que descartam uma estrutura preconcebida, para que os próprios se assumam como
construtores dos seus destinos, embora o autor realce que existem limites para esta autoconstrução,
já que o desenvolvimento do eu depende sempre do domínio das respostas apropriadas às
expectativas dos outros. Quando nos observamos ao espelho, embora não conscientemente, estamos
numa espécie de ritual de arrumação, mas estamos também a elaborar a nossa imagem para os
outros. É neste ritual que se começa por alumiar a «fachada» mencionada por Erving Goffman em A
Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias (1993) como sendo «[...] o equipamento expressivo
de tipo padronizado, empregue intencional ou inconscientemente [...]»(Goffman, 1993:34).
A gravata é para Machado Pais como um género de couraça protectora que nos tranquiliza e
perante estas situações a reflexividade, segundo uma visão etnometodológica, não trata apenas de
pressupor uma descrição de algo, mas que faça ao mesmo tempo, parte desse algo. A reflexividade
não é apenas usada pelo seu carácter descritivo, mas também pelo seu carácter participativo.
Consequentemente, somos levados para o pensamento de Goffman. O autor canadiano refere o
«desempenho» como qualquer tipo de actividade que um individuo tem em relação a «um conjunto
determinado de observadores[...]» (Goffman, 1993:34).
A metáfora da gravata é bastante significativa e não se torna num dilema “idiota”, como o
autor nos permite apontar, quando menciona que na língua inglesa, a palavra gravata ( tie) sugere a
ideia de corrente, laço ou vínculo, reforçando a ideia subjacente aos vínculos sociais das nossas
acções e performances. Questionar a preponderância dos laços sociais sobre as nossas acções, bem
como a nossa libertação desses mesmos laços, está no centro da discussão da reflexividade.
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Em O conhecimento de si e o reconhecimento dos outros, é definido o acto de consumo como
o cenário onde se torna mais aparente o resultado das escolhas individuais. Na literatura
vanguardista, afirma Machado Pais, o consumo acomoda um «projecto de vida» meramente
individual sem lugar para o social. Descoberta de individualização do corpo através do consumo e
da aparente livre escolha ou livre arbítrio. Como sublinha Gilles Lipovetsky em A Era do Vazio:
«O consumo é uma estrutura aberta e dinâmica: desprende o indivíduo dos seus laços de dependência
social e acelera os movimentos de assimilação e de rejeição, [...] universaliza os modos de vida, [...] ao
mesmo tempo que permite um máximo de singularização dos homens.»(Lipovetsky, 1983:105)
O dilema da gravata demonstra as alternativas opcionais, contudo não saem da construção de
consensos sociais, por isso que o quotidiano é um terreno de reflexividades. Partindo do quotidiano
podemos observar a liberdade de opção, que é constituinte da modernidade reflexiva, traduzindo-se
em ganhos de autonomia, mas também, como perdas de aceitabilidade. Concorda-se que na
modernidade reflexiva são criadas condições para um aumento da nossa individualidade, mas
também torna-se evidente como somos semelhantes na tentativa de sermos diferentes.
O autor aponta para um exagero do ponto de vista sociológico que torna como ridículo as
«pretensões ao ineditismo artificial»(Pais, 2010:105), quando exemplifica como um amante poderá
achar-se excepcional e apenas apaixonar-se por mulheres excepcionais (criando a ilusão ou a falsa
consciência dessa essência reflexiva), quando mais tarde acaba por ser confrontado com um estudo
que atribuí o tal sentimento de «amante excepcional» a 80% da população, colocando o «modo
especial de beijar» a um estado comum.
Sobre a autonomia emocional, que está associada ao «projecto reflexivo do eu», Machado
Pais fala da correspondência de algumas revistas «cor-de-rosa», que servem o propósito de
examinar o dilema entre a alienação e a emancipação, a tensão «entre o desejo de experimentação e
as ameaças de rejeição»(2010:107). As respostas aos dilemas sexuais enviado pelas leitoras das
revistas cor-de-rosa, criam um sistema de aconselhamento que acaba por promover a auto-
reflexividade, o que define a própria intimidade como sendo mais uma faceta da modernidade
reflexiva. Anthony Giddens, fortalece a ideia da autonomia emocional no seguimento de um estudo
sobre o divórcio e o segundo casamento, apresentado em Os Contornos da Modernidade
Tardia(1994):
«A esfera daquilo a que hoje chamamos “relações pessoais” oferece oportunidades de intimidade e
auto-expressão que não existem em muitos contextos mais tradicionais.[...]Os modos de
comportamento e sentimento associados à vida sexual e marital tornaram-se móveis, instáveis e
“abertos”.» (Giddens, 1994:11)
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O espelho poderá ser utilizado, como objecto de reflexividade, a imagem espelhada do eu, que
serve como ferramenta de aprendizagem do próprio. No entanto quando abandonamos o espelho
colocamos a imagem que carregamos, no espelho que os outros se tornam, e apenas quando
voltamos a presenciar o nosso reflexo, reaprendemos e recuperamos esta reflexividade induzida
pelos outros.
No subcapítulo Moralidades e identidades, a reflexão sobre a ética kantiana, em que a razão e
as regras da moral devem ser de modo igual para todos. Embora nos nossos dias assistimos a uma
desordem moral, que indica a diversidade de moralidades. Machado Pais justifica esta desordem
pela passagem do «núcleo duro da acção moral», do social para o individual. Cabe agora ao
indivíduo estipular as suas regras morais e éticas, dentro de uma conduta do quotidiano obedecendo
a regras que ainda espelham alguns consensos sociais, mas, neste tempo de desordem, o indivíduo é
capaz de as modificar. Os juízos passam a ser um objecto de «natureza contextual e interaccional».
A modernidade é, mais um vez sublinhada, como terreno de produção de sujeitos e tensões
entre a reflexividade impositiva e a reflexividade transformadora, dois espelhos que reflectem para
frente e para trás, permitindo ao mesmo tempo o indivíduo criar-se a si próprio. Segundo as
palavras de Giddens, citadas no texto, estamos todos presos numa experiência, quer queiramos ou
não. Estamos presos neste jogo de espelhos, criando-nos a nós próprios, aplicando as regras da
moral a nosso belo prazer.
A cegueira do quotidano, José Machado Pais aponta através das palavras do sociólogo Ulrich
Beck, como a modernidade reflexiva pode gerar um quotidiano «culturamente cego». Uma cegueira
«traduzida numa compulsão para repetição». Esta compulsividade como a fuga impossível da
tradição, acaba por afectar a identidade do indivíduo, levando aquilo que Giddens menciona como
tradição sem tradicionalismo. A tradição coloca-se no caminho da autonomia em vez de a estimular.
Machado Pais denota-se desta cegueira ao afirmar que o futuro constrói-se no dia-a-dia, numa
envolvência entre o passado e o presente, já que segundo a modernidade reflexiva, quanto mais os
indivíduos têm a capacidade de reflexão mais possibilidade têm de a modificar. O autor sugere que
se não quisermos ver o quotidiano como efeito de reflexividades impositivas, teremos que aplicar a
prespectiva de um sistema emergente do tipo bottom up, contrapondo aos modelos deterministas,
bottom down, característicos de reflexividades impositivas. Embora isto possa não traduzir um
antídoto da cegueira. O autor volta a afirmar a reflexividade transformadora como amâgo da
modernidade reflexiva, no entanto ele próprio admite a possibilidade de uma falsa consciência
derivada do protagonismo criado por essa libertação do eu, no processo transformador.
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Na conclusão desta análise, três pontos são salientados: primeiro, que a modernidade não se
deve limitar à compreensão do empolamento de opções. Segundo, a liberdade do sujeito não deve
apenas surgir de uma negação ao convencional, que a subjectivação não se contrapõem à
socialização. Terceiro que a individualização pode criar uma falsa consciência de libertação.
Numa apreciação final, constatamos como conceitos base, a modernidade reflexiva e a tensão
existente entre o tradicional impositivo e a modernidade transformadora, como veículos de uma
emancipação, bem como uma alienação do sujeito. São subjectividades negociadas, criadores de
conflitos internos e conflitos sociais, originárias no que intitula o último subcapítulo, uma cegueira
quotidiana. Fazemo-nos indivíduos livres caminhando entre espelhos? Segundo o filósofo Gilles
Lipovetsky, estamos perante uma era do vazio, já indicador dessa cegueira, pois a construção do
sujeito baseada no conflito entre o tradicional e o moderno, típico da modernidade, só pode levar a
uma desorientação e a uma exacerbação da individualização.
O capítulo Dilemas do quotidiano: subjectividades negociadas, vem efectivamente classificar
situações do quotidiano que demonstram uma sociedade carregada de dilemas, mas verifica-se que
apesar de vivermos numa sociedade dilemática, vivemos acima de tudo numa sociedade de risco e
em risco. Uma sociedade residente no dilema da modernidade que se entrega à problemática de um
desfazimento do eu (por meio de subjectividades negociadas).
Bibliografia
Giddens, A. (1994). Modernidade e Identidade Pessoal. Oeiras: Celta.
Goffman, E. (1993). A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias. Lisboa: Relógio d´Água.
Lipovetsky, G. (1983). A Era do Vazio. Lisboa: Relógio d´Água.
Ricardo Martins Geraldes, n.º 34420, Turma A
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