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A presença dos Estados Unidos no Médio Oriente tem sido uma das questões mais debatidas na análise das relações internacionais nos últimos anos. É inegável que o Médio Oriente é uma zona de importância vital, quer por moti- vos estratégicos quer por motivos econó- micos. É assim para americanos, como para europeus e russos. Contudo, desde a segunda metade do século XX, os Estados Unidos definiram como prioridade da sua política externa o controlo do Médio Oriente, quer para conter a ameaça sovié- tica (durante a Guerra Fria), quer para garantir a segurança de Israel e assegurar o acesso a recursos energéticos funda- mentais, como o petróleo. Actualmente, um dos maiores debates cen- tra-se na possibilidade de democratizar o Médio Oriente. Esta é uma tarefa assumida pela actual Administração americana. Segundo o projecto conhecido como «Grande Médio Oriente», os Estados Uni- dos propõem-se impulsionar reformas políticas e instalar regimes democráticos que garantam os direitos fundamentais dos cidadãos, desde Marrocos ao Paquistão. Para analisar esta problemática é funda- mental conhecer as linhas de força da política externa americana para o Médio Oriente. Este é o objectivo perseguido por Maria do Céu Pinto, professora na Univer- sidade do Minho, no seu livro «Os Infiéis da Terra do Islão»: os Estados Unidos, o Médio Oriente e o Islão, o qual surge na sequência de uma tese de doutoramento defendida na Universidade de Durham, mas revista e actualizada após os acontecimentos de 11 de Setembro (e com um prefácio de Adriano Moreira). Esta obra pretende, por um lado, dar uma visão de conjunto da política externa americana face aos diversos estados do Médio Oriente, desde a II Guerra Mun- dial até aos nossos dias; e, por outro, discutir os métodos segundo os quais o Islão tem sido identificado como uma das maiores ameaças à segurança inter- nacional e, em particular, à dos Estados Unidos da América. Como tal, a análise encontra-se estruturada em três pilares: o fundamentalismo islâmico; a política externa americana para o Médio Oriente; e o Islão político. Os EUA e o Islão radical: uma nova Guerra Fria? Ana Santos Pinto 191 RECENSÃO Os EUA e o Islão radical: uma nova Guerra Fria? Ana Santos Pinto MARIA DO CÉU PINTO ˙Os Infi is da Terra do Isl o¨: os Estados Unidos, o M dio Oriente e o Isl o Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia 2003, 376 páginas

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A presença dos Estados Unidos noMédio Oriente tem sido uma das

questões mais debatidas na análise dasrelações internacionais nos últimos anos.É inegável que o Médio Oriente é umazona de importância vital, quer por moti-vos estratégicos quer por motivos econó-micos. É assim para americanos, comopara europeus e russos. Contudo, desde asegunda metade do século XX, os EstadosUnidos definiram como prioridade da suapolítica externa o controlo do MédioOriente, quer para conter a ameaça sovié-tica (durante a Guerra Fria), quer paragarantir a segurança de Israel e asseguraro acesso a recursos energéticos funda-mentais, como o petróleo.Actualmente, um dos maiores debates cen-tra-se na possibilidade de democratizar oMédio Oriente. Esta é uma tarefa assumidapela actual Administração americana.Segundo o projecto conhecido como«Grande Médio Oriente», os Estados Uni-dos propõem-se impulsionar reformaspolíticas e instalar regimes democráticosque garantam os direitos fundamentais doscidadãos, desde Marrocos ao Paquistão.

Para analisar esta problemática é funda-mental conhecer as linhas de força dapolítica externa americana para o MédioOriente. Este é o objectivo perseguido porMaria do Céu Pinto, professora na Univer-sidade do Minho, no seu livro «Os Infiéis daTerra do Islão»: os Estados Unidos, o MédioOriente e o Islão, o qual surge na sequênciade uma tese de doutoramento defendidana Universidade de Durham, mas revista e actualizada após os acontecimentos de11 de Setembro (e com um prefácio deAdriano Moreira).Esta obra pretende, por um lado, dar umavisão de conjunto da política externaamericana face aos diversos estados doMédio Oriente, desde a II Guerra Mun-dial até aos nossos dias; e, por outro,discutir os métodos segundo os quais oIslão tem sido identificado como umadas maiores ameaças à segurança inter-nacional e, em particular, à dos EstadosUnidos da América. Como tal, a análiseencontra-se estruturada em três pilares:o fundamentalismo islâmico; a políticaexterna americana para o Médio Oriente;e o Islão político.

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R E C E N S Ã O

Os EUA

e o Islão radical:

uma nova Guerra

Fria?

Ana Santos Pinto

MARIA DO CÉU PINTO

˙Os Infi is da Terra do Isl o¨: os Estados Unidos, o M dio Oriente e o Isl o

Lisboa,Fundação Calouste Gulbenkiane Fundação para a Ciênciae Tecnologia2003, 376 páginas

PRIMEIRO, OS CONCEITOS

Maria do Céu Pinto começa por analisar ofenómeno do fundamentalismo islâmico,expondo de forma elucidativa um con-junto de importantes conceitos. De facto,são inúmeras as confusões entre concep-ções como Islão, fundamentalismo eJihad, por exemplo. Neste último caso,definido num âmbito geral como umesforço no caminho de Deus para encon-trar a perfeição, é de salientar a distinçãoentre «grande Jihad», ou seja, a luta internado indivíduo face à observância dos valo-res do Islão, e a «pequena Jihad», isto é, adefesa da fé utilizando a violência face aum inimigo externo.«O fenómeno do fundamentalismo reli-gioso implica sempre um regresso aospreceitos religiosos originais, aos alicer-ces puritânicos da fé» (p. 21), escreve aautora. Os fundamentalistas defendemassim um regresso aos princípios consa-grados na Escritura, base das premissasideológicas que suportam os movimentosradicais. O objectivo último é a criação de«um estado teocrático numa sociedadeconvertida aos valores do Islão» (p. 25),em oposição à impureza dos valores oci-dentais que ao longo do período colonial,e actualmente, penetraram nas sociedadesislâmicas.Apesar das semelhanças em termos ideo-lógicos, Maria do Céu Pinto salienta que«existe uma grande diversidade em ter-mos de movimentos islamistas. Caracte-rizar o Islão actual é uma tarefa complexa[…] De facto, o mais exacto seria afirmarque o que realmente define o mundo islâ-mico é a diversidade dos movimentos»(p. 25).

A análise do fenómeno é realizada atravésde uma descrição da sua evolução histó-rica. «O movimento de ressurgimentoislâmico só pode ser entendido no con-texto do trajecto pós-independência dospaíses árabes. O movimento do ressurgi-mento islâmico da actualidade resultadirectamente da emergência de Estados--nações no mundo árabe-islâmico» (p. 28).Isto porque «os islamistas contemporâ-neos apontam a experiência colonial comoa principal responsável pelo declínio dassociedades islâmicas» (p. 41).As críticas dos islamistas «radicam nospadrões de desenvolvimento sócio-econó-mico das sociedades muçulmanas e nasconsequências culturais e políticas dessedesenvolvimento» (p. 29), fruto não só daactuação dos regimes autoritários nopoder, mas também do apoio dado a estespelo Ocidente.Os americanos despertam para o funda-mentalismo islâmico com a revolução ira-niana de 1978-1979, através da qual osradicais chegam ao poder e declaram osEstados Unidos como o «Grande Satã». Naobra destaca-se o facto de esta ter sido umarevolução «genuinamente islâmica» e con-siderada uma «grande vitória e exemplo»pelos islamistas, já que tinha sido derro-tado o inimigo ocidental, responsável portantas humilhações ao longo da história.Para a autora este momento histórico ins-pira toda uma geração de fundamentalis-tas, desde as milícias do Hizbollah àAl-Qaida de Osama bin Laden. Contudo,ela nota que «o grande catalisador domovimento de ressurgimento islâmico foia derrota dos estados árabes face a Israelem 1967» (p. 33).

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ENTRE O PETRÓLEO E A SEGURANÇA

Maria do Céu Pinto considera que «tradi-cionalmente, os Estados Unidos têm defi-nido os seus interesses no Médio Orientecomo sendo: o acesso aos recursos petro-líferos do Golfo; a defesa do Estado deIsrael; a resolução do conflito israelo--árabe; a manutenção de uma situaçãosócio-política favorável aos Estados Uni-dos, nomeadamente através do apoio con-cedido a Estados árabes com umaorientação pró-ocidental. A estas priorida-des deve-se acrescentar aquela que, para-lelamente à questão petrolífera, durante operíodo da Guerra Fria, constituiu a pri-meira razão para a intervenção dos Esta-dos Unidos na zona: a necessidade deconter o alastramento da influência sovié-tica» (p. 47). Face à demonstração de inte-resse por parte da URSS em penetrar naregião, não só por motivos políticos mastambém económicos, «a principal preocu-pação de Washington passou a ser contero expansionismo soviético no mundoárabe» (p. 49). Segundo a autora, «ao ten-tar congregar o mundo árabe em torno deuma organização defensiva – um blocopró-ocidental em pleno Médio Oriente –os EUA possivelmente terão alienadoalguns países, empurrando-os para osbraços da URSS» (p. 54).Na análise da política externa norte-ameri-cana para o Médio Oriente é incontornávela questão do conflito israelo-árabe. «Não épossível perceber o sentimento anti-oci-dental que perpassa todo o mundo muçul-mano sem analisar o problema de Israel ea questão palestiniana» (p. 42). Contudo,Maria do Céu Pinto destaca, ainda, outrosfactos históricos determinantes para as

percepções árabes sobre o Ocidente, comoa Guerra do Golfo de 1991, a guerra daBósnia em 1992, e a invasão do Iraque emMarço de 2003.A autora considera que existem numerosasafinidades ideológicas, históricas e cultu-rais que determinam a relação entre osEstados Unidos e Israel, e salienta, justa-mente, a importância do lóbi judaico naAmérica. Esta «relação especial» tem larga-mente beneficiado Israel, fortalecida pelaconcessão por parte de Washington de umimpressionante apoio económico e mili-tar. Contudo, o que no aparelho políticoamericano mais pesa a favor de Israel é ochamado lóbi pró-Israel que age principal-mente ao nível do Congresso. Este lóbiexerce enorme pressão sobre a Adminis-tração, em particular por ocasião das cam-panhas eleitorais para o Congresso e para aPresidência dos EUA (p. 70).Maria do Céu Pinto recorda dois episódiosda história diplomática americana quecorroboram esta tese. No primeiro, o Pre-sidente Truman (1945-1953) declarouperante uma reunião de embaixadoresamericanos no Médio Oriente: «Lamentosenhores, mas tenho de responder perantecentenas de milhares de pessoas que estãoansiosas pelo sucesso do Sionismo: nãotenho centenas de milhares de Árabescomo meus eleitores» (p. 73). Um outro, jána Administração Clinton (1993-2001),recorda que «o Embaixador americano,Andrew Killgore, afirmou que a políticados Estados Unidos sobre o Irão consti-tuía um alinhamento claro e inequívococom os interesses de Israel […] Bill Clin-ton acredita que não poderá ser reeleitosem o apoio maciço dos media e sem o

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apoio financeiro do lobby israelita…Assim, ele e Christopher Warren estãodispostos a ‘comprarem’ os exagerosisraelitas no que reporta aos perigos ema-nados pelo Irão, quer acreditem neles ounão» (p. 270).Segundo Maria do Céu Pinto, «numa aná-lise retrospectiva, a história da presençaamericana no mundo árabe é uma históriade sucesso. […] Esta política (face aoIslão) foi formulada para enquadrar aposição americana face a um conjunto dedesafios em desenvolvimento numa zonadefinida como «arco de crise» – uma zonaque geograficamente se estendia do Nortede África à Ásia central» (p. 330).

OS AMERICANOS FACE

AO «PERIGO VERDE»

A última parte é consagrada à análise dofenómeno do Islão político. Maria do CéuPinto começa por denominar o perigoislamista como «perigo verde». Esta desig-nação, utilizada por vários autores naúltima década do século XX, recorda overde não só por esta ser, tradicional-mente, a cor do Islão, mas também porcomparação à «ameaça vermelha», expres-são utilizada para designar o perigo comu-nista durante a Guerra Fria.A comparação entre o Islão e o comunismosoviético é umas das questões elaboradaspela autora, que procura demonstrar asdiferentes percepções de análise dos inves-tigadores. Com o final da Guerra Fria, osEstados Unidos e o Ocidente deixaram deter um inimigo definido. Para Maria doCéu Pinto, com o surgimento da ameaçado fundamentalismo islâmico, o Islãoparecia ser «o candidato ideal ao papel de

vilão» (p. 258). «O estereótipo ocidental doIslão como ameaça era análogo à criação,na sequência do colapso da ideologiacomunista, de um segundo “império domal”» (p. 259).«A política dos Estados Unidos em relaçãoao Islão político tem as suas raízes naadministração Reagan, que se inicioudepois da revolução de 1979 no Irão e ter-minou antes da série de vitórias eleitoraisislâmicas no Médio Oriente» (p. 299).A ameaça islâmica tornou-se, então, «umtermo popular em alguns redutos doDepartamento de Estado, entre analistaspolíticos, lobbies e parte do aparelho polí-tico americano». Na nova ordem interna-cional, «o Islão era tido como o novoterreno de onde partiria a agressão contrao Ocidente, em substituição do comu-nismo da era bipolar» (p. 300).O Islão surge como alvo de fácil compara-ção com o perigo soviético, não só para osEstados Unidos mas também para algunsdos seus aliados, como Israel. A autorarecorda a teoria defendia por Leon Hadar,segundo o qual «o «perigo verde» serviriapara restabelecer o papel de Israel como«trunfo estratégico» americano: aquelepapel de Israel tinha sido posto em causacom o fim da Guerra Fria e consequentedeclínio da influência soviética no MédioOriente» (p. 264).Outro dos exemplos que poderá corrobo-rar esta teoria é o papel da NATO, que viuos seus objectivos estratégicos esvaziadoscom o fim do mundo bipolar. Maria doCéu Pinto considera que «nas opiniões,por vezes inconfessadas, dos membros daAliança, o maior desafio que a NATO teráde enfrentar é saber como lidar com o

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Islão político enquanto força de mudança,talvez mudança violenta nos principiaisEstados do Norte de África». Recordandouma declaração do Secretário-Geral daNATO, em 1995, a autora afirma mesmoque «a Aliança estava tão preocupada como fundamentalismo islâmico como haviaoutrora estado preocupada com o comu-nismo» (p. 253).

«ACOMODACIONISTAS»

VS «CONFRONTACIONISTAS»

Ao analisar as estratégicas americanasperante o Islão político, Maria do CéuPinto descreve a confrontação de argumen-tos entre duas escolas: a acomodacionista(accommodationist) e a confrontacionista(confrontational).A escola acomodacionista – à qual perten-cem autores como John Esposito ou GrahamFuller – defende que o movimento islâ-mico não constitui uma ameaça, mas simuma resposta à incapacidade dos governosárabes em resolverem os problemas sócio-económicos das populações. Assim, nãodeve ser impedido o acesso de islamistasao poder – por exemplo, através da partici-pação em actos eleitorais – uma vez quequanto mais forem excluídos mais radi-cais e extremistas se tornarão e mais forteserá o sentimento antiocidental. Ao con-trário, a escola confrontacionista consi-dera que o Islão é inerentemente hostil aoOcidente, pelo que é inevitável uma coli-são. Esta é a teoria defendida por autorescomo Samuel Huntington ou DanielPipes.Maria do Céu Pinto considera que a polí-tica americana consagra o respeito peloIslão «como grande religião», estabele-

cendo uma distinção entre «os muçulma-nos moderados (mesmo que politica-mente empenhados) e os radicais». Ouseja, «o Islão em si não constitui um pro-blema para a política externa americana: oproblema são os movimentos que usam daviolência, pregam a intolerância ou violamos direitos humanos e atentam contraprincípios importantes como a democra-cia, mercado livre e estabilidade» (p. 331).Esta distinção «é politicamente útil porquepermite a Washington opor-se a gruposque advoguem a violência e se oponhamaos regimes moderados pró-ocidentais» e«permite aos Americanos apoiarem os“bons fundamentalistas”, aqueles queembora fanáticos possam ajudar a defen-der os interesses americanos (como fize-ram com os mujahaideen afegãos duranteos anos 80)» (p. 332).Perante declarações de diversos responsá-veis das sucessivas administrações ameri-canas, em particular na última década doséculo XX, Maria do Céu Pinto conclui que«o uso de tácticas extremistas e a avaliaçãodos interesses americanos envolvidos emdeterminado contexto, são as condiçõesque Washington estabelece para a aceita-ção dos islamistas» (p. 319).

A DEMOCRACIA E O ISLÃO

Ao analisarmos as relações entre o Oci-dente, particularmente os Estados Uni-dos, e o Médio Oriente é impossível nãoreferir a tese do «Choque de Civilizações»,desenvolvida por Samuel Huntington noinício dos anos 90.Com o 11 de Setembro, muitos afirmaramque «a animosidade do Islão contra o Oci-dente é a demonstração do “confronto

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civilizacional” de que falava Huntington.Parece ser este aliás, o ponto de vista deBernard Lewis […] o autor afirma que aactual animosidade entre as duas civiliza-ções deriva da humilhação, inveja e receiosentido pelos Muçulmanos em relação aoOcidente». Na sua análise, Maria do CéuPinto considera que Lewis defendia que «omovimento fundamentalista não seriaassim um fenómeno circunstancial ouconjuntural, mas o resultado de umpadrão histórico comprovado» e que«Huntington avançou com uma posiçãosimilar ao afirmar que o confronto civili-zacional deriva da incompatibilidade doIslão com axiomas fundamentais do pen-samento ocidental, como a democracia e amodernidade» (pp. 38-39).Entre estas duas teses será necessáriofazer uma distinção: Samuel Huntingtonconsidera que existe uma colisão entre acultura ocidental e outras religiões, comoo islamismo e o confucionismo, pelo queo fenómeno da globalização trará um cho-que inevitável, provavelmente entremuçulmanos e não-muçulmanos, não sóno contexto internacional como no inte-rior dos grandes estados, como por exem-plo os Estados Unidos; já Bernard Lewis,como a autora indica, defende que «anatureza e a história do Islão e a relaçãoentre o Islão e o poder temporal, nãofazem da democracia liberal e do Islãocompanheiros naturais». Porque «no pen-samento islâmico não existem tais consi-derações» (p. 292). Tal, contudo, nãosignifica uma colisão irremediável entrecivilizações, já que o próprio autor consi-dera que é sobretudo necessária uma evo-lução interna, que o mundo islâmico

ainda não experimentou, para existir umareal adaptação à democracia.Muitos no Médio Oriente vêem os EstadosUnidos e o Ocidente como guardiões dostatus quo, já que apoiam os regimes auto-ritários no poder, perante o receio doperigo do fundamentalismo islâmico. Estaé, sem dúvida, uma questão central. Talcomo salientou o ministro dos NegóciosEstrangeiros alemão, Joschka Fischer,num discurso recente em Munique, «nemos Estados Unidos nem a Europa e oMédio Oriente podem continuar tolerar o status quo na região».Maria do Céu Pinto recorda que «a políticaamericana em relação ao Islamismopadece de algumas limitações: uma delasé saber até que ponto os Estados Unidospodem e devem fazer pressão paraimplantar a democracia e defender osdireitos humanos, sabendo que a promo-ção de tais ideais pode favorecer a tomadade poder dos islamistas» (p. 322). Este é odilema não só das administrações ameri-canas, como da própria União Europeia nasua relação com os países muçulmanos,em especial do Norte de África (por exem-plo da Argélia). Para a autora, «a conclu-são lógica é que Washington preferepreservar as ditaduras existentes, poisestas são menos sensíveis a certos valorese estão mais insuladas das pressões domeio internacional» (p. 323).Uma análise deste tipo coloca-nos váriasquestões: será que existe um confrontoinevitável entre os princípios do Islão e acultura democrática ocidental, baseadanuma sociedade aberta e igualitária, ecom a responsabilização dos governosatravés do sufrágio eleitoral? Será possí-

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vel impor a democracia de cima parabaixo, sem preparar as sociedades civispara uma participação activa e conscientenos destinos dos seus países? Ou serápreferível continuar a apoiar governosautocráticos sob pena de permitir oacesso ao poder de grupos islâmicosradicais, tendo como principal conse-

quência um fortalecimento da revoltacontra o Ocidente e a ideia de moderni-dade? Para estas questões não encontra-mos respostas claras. Mas elas nãodeverão estar ausentes das reformas polí-ticas de que o Médio Oriente tanto carece,nem das estratégias que o Ocidente vier adelinear para a região.

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