recepção do concílio de trento em portugal
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Seminrio de Histria Religiosa Moderna 1 Sesso - 19/3/2013
Apresentao
A recepo do Conclio de Trento em Portugal Amlia Polnia (Faculdade de Letras da Universidade do Porto)
"He do vosso beneplacito que para louvor e gloria da santa e individua
Trindade, Pai, Filho e Espirito Santo, para aumento da f e religio christa, para
extirpao das heresias, para paz e unio da Igreja, para reformao do clero e
povo christo e para abatimento e extino dos inimigos do povo christo, se
determine e declare que o sagrado e geral Concilio tridentino comea e est
principiado? Respondero. He do nosso beneplacito."
Foi com estas palavras, vincando a premncia de combater as heresias
dilaceradoras da unidade crist que, no dia 13 de Dezembro de 1545, se abriu em
Trento um dos conclios mais marcantes de toda a histria. Duraria at Dezembro
de 1563. Dezoito anos que permitiram a reafirmao e redefinio de muitos
pontos basilares da doutrina e a composio de um programa de reforma interna
da Igreja que pautaram os rumos que seguiu, e configuraram o clero e a
religiosidade dos fiis at segunda metade do sculo XIX. S ento se celebrou
novo conclio, o Vaticano I (iniciado em 1860). Tinham passado quase 300 anos.
Eis outro sinal da importncia de Trento: a sua durabilidade.
Entre 1545 e 1563, os conciliares no estiveram sempre reunidos.
Dificuldades de vria ordem, sobretudo de natureza poltica, fizeram com que o
Conclio tivesse trs fases. A primeira durou de 1545 a 1549, com mudana para
Bolonha entre 1547 e 1549. A segunda efectuou-se em 1551-1552, era ento j
papa Jlio III. A terceira e ltima em 1562-1563, no pontificado de Pio IV.
Os decretos tridentinos foram aprovados pela bula Benedictus Deus, de 26 de
Janeiro de 1564, mas publicada em 30 de Junho desse ano, revelando como
permanecia a controvrsia em torno das decises adoptadas. Por isso, e porque
estava em jogo, igualmente, a manuteno da supremacia da autoridade
pontifcia, foi decidido que o papado se reservava o direito de interpretao dos
decretos que suscitassem discusso e era ao mesmo papado que competia
promover a sua aplicao. Para julgar dvidas de interpretao veio a criar-se um
novo dicastrio, em Agosto de 1564, por Pio IV, a Congregao do Conclio. E as
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decises demoraram a aplicar-se e ocuparam diversos papas, sendo necessrio
esperar pelo pontificado de Clemente VIII (1592-1605) para se terem concluido,
com a publicao da nova edio da Bblia (dita Vulgata Clementina) em 1593, o
Pontifical Romano (1596) e o Cerimonial dos Bispos (1600).
O que motivou esta reunio magna?
Hubert Jedin, na sua clssica e incontornvel Histria do Concilio de Trento
(1 edio alem em 4 vols. entre 1951-1976, nunca traduzida para portugus)
alertava para os dois eixos fundamentais em jogo: por um lado, tratava-se de
responder e conter o alastramento do protestantismo. Linha que enfatizava uma
dimenso de contra reforma que pautaria a dinmica conciliar. Por outro lado,
havia uma vertente de reforma catlica, isto , de reforma interna da Igreja. Esta
tinha razes, pelo menos, desde o V Conclio de Latro (1512-1517), mergulhava
ainda mais fundo na corrente de renovao espiritual da Devotio Moderna, e j
dera pontuais e isolados frutos na aco de alguns bispos ditos pr-reformadores,
de que, em Portugal - territrio em que centraremos a nossa ateno no decurso
do seminrio deste ano - foram bons exemplos Diogo de Sousa (bispo do Porto e
arcebispo de Braga), Jorge de Almeida (Coimbra) e at D. Afonso (em vora e
Lisboa).
A proposta luterana da justificao pela f, que se dar a conhecer ao
mundo na sequncia da querela das indulgncias desencadeada pelas teses que
publicou em Vitemberga (1517), estimulou vrias respostas romanas. Jurdico-
cannicas, militares, de debate intelectual, como a realizao de colquios entre
representantes romanos e seguidores de Lutero. O ltimo, em Ratisbona (1541),
entre o cardeal Contarini e Melanchton, fora mais uma vez inconclusivo.
A via conciliar era igualmente reclamada e ante os constantes insucessos das
outras, em 1536, Paulo III publicou a 1 bula de convocao de um conclio, para
Mntua. Deparou-se com muitas resistncias. Para alm do temor que o conclio
questionasse a supremacia papal, at no seio da cria romana havia faces
contrrias sua celebrao. Era o caso de Giampiero Carafa, mais tarde papa
Paulo IV, defensor de soluo no conciliar, mas antes de a Igreja colocar em
vigor e fazer observar decretos j existentes para restaurar a disciplina do clero e
enfrentar com o rigor da represso inquisitorial a dissidncia hertica. Outros
combatiam esta estratgia mais intransigente e rspida, como o cardeal Morone.
Para ele a religio no se resolvia "atravs da guerra". Era necessrio, portanto,
debater e discutir num amplo conclio.
Este ocorreu num tempo de profunda renovao do mundo catlico, para
retomar ttulo de uma das mais teis snteses de interpretao do seu significado.
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Refiro-me ao livro The world of catholic renewal, de Ronnie Po-Chia Hsia, que
incorpora j o conceito de confessionalizao, criado por Heinz Schilling e Wolfang
Reinhardt e que, desde os anos 90, renovou os sentidos da historiografia sobre os
rumos e impactos, tanto da difuso do protestantismo como do catolicismo
romano. Mas Trento, no seria apenas o resultado dessas transformaes
religiosas e polticas que estavam a alterar o mundo. Foi tambm uma das
alavancas nucleares dessa mudana. Eis outra marca da sua importncia.
Esse tempo de renovao, que integra os conceitos de Reforma Catlica e de
Contra Reforma numa perspectiva global e universal, assentou em 4 pilares:
1 - A reorganizao da doutrina e da Igreja a partir do centro Romano
2 - A interaco profunda entre poltica e religio - uma das dimenses da
noo de confessionalizao
3 - O disciplinamento e vigilncia da experincia religiosa dos fiis
4 - O encontro entre o catolicismo europeu e o resto do mundo. Pese embora,
em Trento no se ter tido em muita considerao realidades extra-europeias, as
decises ali tomadas tiveram enorme impacto tambm em frica, na sia e na
Amrica.
Escapou a este olhar de Ronnie Po-Chia uma outra importantssima dimenso
de mudana. Relembrou-a Francisco Bethencourt durante a abertura de colquio
sobre a reforma catlica celebrado em Londres, em Dezembro de 2011, ao
enfatizar a importncia da renovao das ordens religiosas, o que incluiu a criao
de algumas novas. Entre elas a Companhia de Jesus, que h dias viu um seu
membro ascender ao papado (levando-nos a cogitar se tal teria sido possvel em
vida do seu fundador). Verificou-se ainda um revigoramento da vida conventual
feminina, para alm da difuso de confrarias congregando leigos de diferentes
origens sociais, incluindo escravos, que se tornaram importantes instncias de
estruturao da participao dos laicos na vida da Igreja.
Nesta breve nota de apresentao do objecto do seminrio, sob o tpico do
Conclio de Trento, e sem que se deva ver nesta escolha qualquer tendncia de
uma histria comemoracionista, no h a inteno de reconstituir todos os
debates de Trento. Acresce que boa parte do que foi, do que nele se debateu e
das consequncias que teve na vida religiosa, eclesistica, cultural, social e
poltica est hoje bem estudado.
sabido como o Conclio se confrontou com questes teolgicas e de reforma
disciplinar, apesar da celeuma suscitada na definio da agenda. Mas como
lembrou Paolo Prodi, outro nome incontornvel dos estudos tridentinos, pela
primeira vez na histria conciliar houve uma diviso entre decretos dogmticos e
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disciplinares.
No plano teolgico-dogmtico, depois de adoptar a verso do texto bblico a
seguir - a verso da vulgata de S. Jernimo, o que no era escolha neutral -, deu
Igreja Catlica as certezas de um dogma definido e um programa reformador
que se foi gradualmente aplicando, parcial ou totalmente, por todo o mundo
catlico. Destaque-se a fixao da doutrina relativa ao pecado original e
justificao, bem como a teologia sacramental, aspectos onde ficou bem vincada a
demarcao e no cedncia aos entendimentos luteranos.
No tocante reforma disciplinar ele teve impactos a trs nveis distintos:
funcionamento institucional da Igreja, formao e disciplina do clero e vida
quotidiana dos fiis.
Ao nvel do funcionamento institucional da Igreja o objectivo maior foi
reforar o poder papal, reorganizar as suas estruturas de actuao e criar a
imagem de um bispo forte, juridicamente protegido, possuidor de mecanismos de
vigilncia eficazes e com capacidade de execuo de penas tanto sobre laicos
como eclesisticos.
A reforma do clero secular teve directrizes j bem identificadas: impor a
obrigatoriedade de residncia e a impossibilidade de acumular benefcios, a
promoo do clrigo "cura de almas" que pelo seu comportamento, formao e
trajes se distinguisse dos leigos; a criao de seminrios, universidades e outros
meios de preparao do clero; um recrutamento melhor tutelado pelo episcopado,
a quem eram dados meios mais efectivos para vigiar o comportamento dos
eclesisticos, nomeadamente atravs das visitas pastorais e da realizao de
exames a quem queria confessar e pregar.
O terceiro eixo visou os leigos, numa perspectiva que Jean Delumeau j
caracterizou, nos anos 70 do sculo passado, como uma profundo esforo para
remodelar os fiis.
Era necessrio que aprendessem e assimilassem um credo, aspecto em que a
catequese, pregao e misses foram imprescindveis instrumentos, numa lgica
em que a palavra divina devia ser servida ao crente por via da mediao clerical,
contribuindo para um cristianismo vivido sem acesso directo ao livro sagrado por
parte dos leigos, deixando marcas vincadas na sua experincia religiosa; era
imperioso que os crentes se conformassem com a frequncia regular de
sacramentos como a eucaristia e a confisso, esta ltima com consequncias
profundas ao nvel da estrutura psquica das populaes, ao estimular um exame
de conscincia e, consequentemente, promovendo o aprofundamento de uma
conscincia individualizada e a inculcao e interiorizao de mecanismos de
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auto-coao e auto-censura. Para uma mais adequada recepo do cristianismo
entendeu-se ainda que se devia purificar a liturgia e dar mais decncia e
cerimonialidade ao culto, cavando a separao entre sagrado e profano, tantas
vezes indistinta nas manifestaes de religiosidade dita popular, o que implicou
tanto uma tendncia para o embelezamento dos templos e para a exuberncia
triunfante da arte sacra, como a imposio do ritual romano, acabando com a
pulverizao de rituais extravagantes. Intensificou-se o culto dos santos, das
relquias e de outras devoes como a do rosrio, das almas do purgatrio, da
paixo de Cristo e de Cristo menino, os lausperenes, o culto das 40 horas - esta
uma das novidades da reforma catlica - o que contribuiu para a promoo da
vida confraternal.
Por fim, procurou-se que as populaes interiorizassem a tica crist e
adoptassem comportamentos individuais e sociais conciliveis com os preceitos do
cristianismo. Da o combate a condutas como a da sexualidade extra-matrimonial,
a blasfmia ou a inimizade entre vizinhos, os designados pecados pblicos
escandalosos.
Tudo isto conhecido, sem tal significar que haja hoje um conhecimento
acabado e definitivo sobre Trento e, sobremaneira sobre a sua aplicao em
Portugal, pois esse o ponto de vista que procuraremos estimular ao longo das
prximas oito sesses.
Sem poder aqui aprofundar os caminhos da historiografia portuguesa neste
campo, sublinharia que possumos j uma primeira boa sntese da autoria de
Federico Palomo (A contra-reforma em Portugal 1540-1700, publicada em 2006).
estudo bem informado, assente num slido conhecimento de categorias
imprescindveis para abordar esta questo (como as referidas noes de Contra
Reforma, Reforma Catlica, confessionalizao ou disciplinamento) e til guia
para sistematizar e entender as diversas vias e impactos da aplicao de Trento.
Aspectos de que igualmente h ampla, mas mais dispersa informao, no volume
II da Histria Religiosa de Portugal (2000), dirigida por Carlos Moreira Azevedo,
atravs dos ricos contributos de Maria de Lurdes Fernandes, Joo Marques ou
Antnio Cames Gouveia. Antes destes, o padre Jos de Castro, com o seu
Portugal no Conclio de Trento (1944) j coligira boa parte da documentao sobre
a participao portuguesa no Conclio, no fugindo de um cariz apologtico e algo
descritivo que no facilita a compreenso cabal da configurao dessa
participao. Marcelo Caetano, em artigo de 1965, esclareceu problemas
suscitados pela recepo e aplicao das decises tridentinas em Portugal. Silva
Dias, nas suas incontornveis Correntes de sentimento religioso em Portugal,
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aprofundou o quadro das ideias de pr-reforma que as decises conciliares vieram
encontrar, o conflito existente na corte de D. Joo III e o quadro poltico-
ideolgico, se assim podemos dizer, que nortearia a contra-reforma em Portugal.
Mas ficou pelo plano da histria das ideias que tanto prezava e, sobretudo, no
sculo XVI.
Mais recentemente (1990), David Sampaio Barbosa publicou na Lusitania
Sacra artigo com preocupaes explicativas que Jos de Castro no teve, dando
alguma coerncia analtica ao que considerou a presena discreta dos portugueses
em Trento. Amlia Polnia da Silva, para alm de um magnfico trabalho, tambm
de 1990, sobre as normas enviadas aos bispos do reino sobre Trento, de que hoje
aqui seguramente nos falar, autora de um estudo importantssimo sobre a
aco de D. Henrique, enquanto arcebispo de vora. Este livro, publicado em
2005, a mais slida e abrangente anlise sobre a aco de um prelado
portugus na poca do "limiar da viragem tridentina", para retomar a sua prpria
expresso. Infelizmente, termina em 1564, com a passagem do cardeal para
arcebispo de Lisboa, no permitindo seguir como actuou nos anos subsequentes
ao fecho do Conclio. Giuseppe Marcocci, em I custodi dellortodossia (2004)
ajudou a complexificar a anlise por ter mostrado algumas divergncias e debates
nascidos entre os que, na esteira de posies sadas de Trento, custodiaram a f
em Portugal, nomeadamente confessores, bispos, inquisidores e jesutas. Eu
prprio, se me permitem a imodstia, em alguns estudos com um cariz mais
disperso sobre visitas pastorais, a pregao, a missionao, a censura literria
episcopal abordei dimenses teis e, mais especificamente num artigo publicado
na revista Tiempos Modernos. Revista electrnica de Historia Moderna, 20, 1
(2010), procurei sistematizar e dar alguma coerncia explicativa aos sentidos da
aplicao das reformas tridentinas em Portugal durante o perodo em que o reino
esteve integrado na monarquia hispnica.
No partimos do vazio. Mas h ainda territrios pouco ou nada explorados.
Na ptica da comisso cientfica deste Seminrio persistem problemas de fundo
insuficientemente resolvidos que reclamam maior ateno para se poder ter viso
mais segura e integral dos impactos de Trento em Portugal. Entre eles, elegemos
cinco que nortearo o ciclo deste ano, no qual houve o cuidado de combinar
distintos enfoques e metodologias de anlise.
1 Falta uma reconstituio sistmica e uma anlise explicativa dos motivos
que determinam as sucessivas atitudes ante o Conclio da coroa portuguesa, tanto
no reinado de D. Joo III como no de D. Sebastio, tendo em conta as polticas
mais gerais de relao da coroa com o papado e com as diversas foras e
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indivduos que integravam os campos religioso e poltico nestas diversas
conjunturas. A sesso que hoje teremos pode ser importante resposta a alguns
destes aspectos.
2 Est por estudar como, por quem, e em que perodos foram as diretrizes
da reforma catlica transportadas para os diversos espaos do imprio
ultramarino, que inrcias e dificuldades enfrentaram nas distintas realidades
geogrficas, sociais e religiosas com que se depararam. Por isso, requeremos
ngela Xavier que sondasse como que se fez A reinveno/readaptao
tridentina no Estado da ndia e ao Bruno Feitler que tentasse responder a uma
mal esclarecida questo: Quando chegou Trento ao Brasil?
3 necessrio aprofundar e diversificar por pocas, tipos de diocese e
modelos de bispo o processo de aplicao tridentino, sobretudo na especificidade
concreta da reforma catlica. Vo neste sentido as intervenes pedidas ao Joo
Nunes, que na prxima sesso abordar A aplicao do Conclio de Trento na
diocese de Viseu e a de Susana Goulart Costa que, em Setembro, discorrer sobre
Trento e o clero secular nas ilhas atlnticas
4 H que indagar de forma mais sistemtica e profunda os impactos das
decises conciliares sobre a arquitectura, a escultura e pintura sacras. Para o
efeito ningum em Portugal est melhor preparado para o fazer do que o Vtor
Serro, que aqui estar em Maio para abordar a pintura entre o maneirismo e o
barroco.
5 Por ltimo, no se pode esquecer que Portugal no foi uma ilha nesta
matria, pelo que o estmulo de estudos que permitam a comparatividade so
imprescindveis para captar consonncias e dissemelhanas que ajudem a
perceber melhor este complexo processo. Nesse sentido, pedimos ao Ignasi
Fernndez Terricabras que nos esclarecesse como Felipe II aplicou Trento em
Castela e Arago, e terminaremos com uma leitura global de um dos historiadores
que hoje melhor conhecem os problemas suscitados em Trento e por Trento, Alain
Tallon, que falar sobre O impacto de Trento na vida politica e religiosa europeia.
Jos Pedro Paiva