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RECORTES DE IMAGENS URBANAS DA CIDADE DE FEIRA DE SANTANA, BAHIA, BRASIL Livia Dias de Azevedo Geógrafa, Mestre em Desenho e Cultura Universidade Estadual de Feira de Santana-UEFS [email protected] Lysie dos Reis Oliveira Arquiteta e urbanista, Doutora em História Social Universidade Estadual de Feira de Santana-UEFS [email protected] 1 Introdução Diante de todas as transformações técnicas, científicas e informacionais verificadas nos últimos anos, não causa surpresa que todas as esferas da vida coletiva tenham sido modificadas. Nesse sentido, estabeleceram-se novas ou renovaram-se as organizações sócio- espaciais de tradição. Parece ponto comum entre os estudiosos das mais diversas áreas do conhecimento que o mundo não é mais o mesmo: as mudanças envolvem os campos cultural, educacional, científico, ético, filosófico e artístico e, assim, as relações tempo-espaço, sociedade-espaço e espaço físico/material-virtual ganham novos olhares, contornos e dinamismos. Desta forma, as mudanças envolvem os campos culturais, educacionais, científicos, éticos, filosóficos e artísticos. Diante desse entendimento, apropriamo-nos como alicerce teórico-metodológico das idéias de Kevin Lynch (1997) 1 , Claúdia Pereira Vasconcelos (2008) 2 , Milton Santos (2004) 3 , Jacques Le Goff (1998) 4 , Lucrécia D’aléssio Ferrara (1988, 2000) 5 e outros autores, que mesmo não sendo efetivamente citados, contribuíram para a articulação e o desenvolvimento dos argumentos que estão aqui colocados. É neste complexo e dinâmico contexto que o presente estudo objetiva fazer uma leitura visual da paisagem urbana da cidade de Feira de Santana-Bahia, bem como, identificar através do desenho, a distribuição espacial das matrizes culturais que se misturam na cultura local desta cidade. Este trabalho contribui para os estudos em imagem na medida em que articula de forma interdisciplinar desenho urbano e geografia, é necessário esclarecer que esta busca refletir e analisar a relação sociedade-natureza do ponto de vista da espacialidade, em uma leitura onde III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 1830

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RECORTES DE IMAGENS URBANAS DA CIDADE DE FEIRA DE SANTANA, BAHIA, BRASIL

Livia Dias de Azevedo Geógrafa, Mestre em Desenho e Cultura

Universidade Estadual de Feira de Santana-UEFS [email protected]

Lysie dos Reis Oliveira

Arquiteta e urbanista, Doutora em História Social Universidade Estadual de Feira de Santana-UEFS

[email protected]

1 Introdução

Diante de todas as transformações técnicas, científicas e informacionais verificadas nos

últimos anos, não causa surpresa que todas as esferas da vida coletiva tenham sido

modificadas. Nesse sentido, estabeleceram-se novas ou renovaram-se as organizações sócio-

espaciais de tradição. Parece ponto comum entre os estudiosos das mais diversas áreas do

conhecimento que o mundo não é mais o mesmo: as mudanças envolvem os campos cultural,

educacional, científico, ético, filosófico e artístico e, assim, as relações tempo-espaço,

sociedade-espaço e espaço físico/material-virtual ganham novos olhares, contornos e

dinamismos.

Desta forma, as mudanças envolvem os campos culturais, educacionais, científicos,

éticos, filosóficos e artísticos. Diante desse entendimento, apropriamo-nos como alicerce

teórico-metodológico das idéias de Kevin Lynch (1997)1, Claúdia Pereira Vasconcelos

(2008)2, Milton Santos (2004)3, Jacques Le Goff (1998)4, Lucrécia D’aléssio Ferrara (1988,

2000)5 e outros autores, que mesmo não sendo efetivamente citados, contribuíram para a

articulação e o desenvolvimento dos argumentos que estão aqui colocados.

É neste complexo e dinâmico contexto que o presente estudo objetiva fazer uma leitura

visual da paisagem urbana da cidade de Feira de Santana-Bahia, bem como, identificar através

do desenho, a distribuição espacial das matrizes culturais que se misturam na cultura local

desta cidade.

Este trabalho contribui para os estudos em imagem na medida em que articula de forma

interdisciplinar desenho urbano e geografia, é necessário esclarecer que esta busca refletir e

analisar a relação sociedade-natureza do ponto de vista da espacialidade, em uma leitura onde

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o desenho é entendido por meio da concepção de Lysie dos Reis Oliveira e Gláucia Maria

Costa Trinchão (1998)6, como não apenas grafia, expressão humana, mas, sobretudo como

registro, como um instrumento de leitura que carrega consigo uma lógica e, por isso mesmo, é

elemento transmissor de informações diversas.

Neste sentido, o desenho atua não apenas como representação do espaço, mas,

principalmente, como fonte de informação e conhecimento. Esta leitura da dinâmica espacial

das relações dialéticas sociedade-espaço, se insere em uma perspectiva que coaduna com a

contemporaneidade e as atuais e complexas relações interespaciais. Nesta direção, possibilita

outras leituras acerca do espaço e seu desenho denotando assim, uma perspectiva de leitura do

ambiente urbano ainda pouco explorada.

É importante informar ao leitor que para o desenvolvimento dessa pesquisa empregou-se o

método utilizado por Kevin Lynch (1997), o qual busca compreender como as pessoas

observam, percebem e se deslocam no espaço urbano. O autor explica que as formas físicas da

cidade agem sobre os seus transeuntes, provocando percepções, gerando informações e

imagens de cidade.

O trabalho ora apresentado tem como objeto de estudo a paisagem da Avenida Getúlio

Vargas e da Rua Marechal Deodoro da Fonseca, consideradas parte do centro da cidade de

Feira de Santana-Bahia. Estas vias são representativas não só por hoje serem concentradoras

de fluxo populacional, comercial e de automóveis, mas, principalmente, por serem duas das

vias mais antigas desta cidade e se apresentarem como grandes marcos7 urbanos. Além de

importantes pontos nodais8, são referências da antiga cidade e da antiga feira livre da qual a

cidade legou o nome.

Para a efetivação desse trabalho utilizamos como procedimentos metodológicos a revisão

bibliográfica acerca do tema em questão, assim como trabalho de campo que ocorreu através

de trajetos que fizemos caminhando pelas ruas onde registramos fotograficamente a paisagem

e os seus elementos híbridos que se remetem a matrizes culturais ligadas ao sertão e ao litoral

baianos. Anotou-se em um diário de campo as impressões e sensações dos arredores que

envolvem os elementos destacados. Posteriormente, fez-se uma reflexão da localização desses

elementos culturais no contexto do centro da cidade a fim de compreender a sua

espacialidade.

O uso das fontes e recursos imagéticos, como as fotografias e desenhos, foram essenciais

para o desenvolvimento do trabalho, na medida em que possibilitou uma leitura do urbano,

assim como a criação de mapas de localização referentes aos recortes culturais na cidade de

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Feira de Santana. Destaca-se que todas as fotografias aqui apresentadas foram produzidas

pelas autoras.

2 Desenvolvimento do trabalho

Feira de Santana é considerada a maior cidade do interior da Bahia. E, por conta do

número de sua população, cerca de 500.000 habitantes e da variedade de bens e serviços

oferecidos à sua micro e mesorregião, se estabelece como importante cidade de médio porte

baiana. Está localizada entre dois importantes domínios morfoclimáticos, a caatinga e os

mares de morros que abrange o litoral baiano, abaixo consta o mapa de localização de Feira

de Santana em relação ao contexto baiano.

Mapa 01: Localização do município de Feira de Santana em relação a Salvador e ao contexto baiano

Fonte: Laerte Dias, 2009

Desde a década de 1950 a cidade de Feira de Santana vem passando por modificações

profundas em sua paisagem. Esta temporalidade é especialmente importante, pois integra

Feira a uma rede urbana de maior alcance. As já intensas vias de comunicação entre Feira e o

recôncavo e entre Feira e o sertão da Bahia, foram incrementadas com a abertura das rodovias

que instituíram Feira como um ponto nodal, ou seja, como rota de passagem obrigatória

interligando não apenas cidades baianas, mas regiões brasileiras, como a sudeste-nordeste-

norte, com a construção da atual rodovia BR 116 e BR 324.

Mas este não é um fenômeno novo em Feira de Santana, visto que esta cidade tem a sua

história ligada ao transporte e abastecimento de mercadorias agropecuárias do sertão em

direção ao recôncavo baiano. Transformou-se em ponto de referência para tropeiros e

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vaqueiros que paravam para descansar a si e aos animais, bem como para já ali aproveitando a

aglomeração de pessoas comercializarem alguns produtos básicos de subsistência.

Esta vocação para o comércio acompanha a imagem da cidade até hoje, sendo impossível

tanto internamente quanto externamente dissociar Feira de Santana à idéia de cidade

essencialmente comercial. Imagem que, para além da sua tendência comercial favorecida pela

sua localização geográfica, foi apropriada pelo poder público municipal para justificar toda e

qualquer intervenção urbana como meio necessário para potencializar as relações comerciais

da cidade, garantindo assim o seu crescimento econômico e gerando a perspectiva de um

progresso em curto prazo.

Essa discussão nos induz a pensar que esta população possui origens diversas,

possibilitando uma mistura cultural, sendo difícil, hoje, identificar a cultura local. Vários

foram os elementos culturais e símbolos agregados e/ou modificados dentro do cenário

cultural feirense. Esse fenômeno, dentre outros, está sendo registrado com a expansão, a

profunda modificação e o redesenho de seu espaço urbano. Consequentemente, novas formas

estão fazendo parte da paisagem ou velhas formas estão abrigando novas ou modificando suas

funções, acarretando uma mudança dos fluxos, da organização da cidade, bem como do modo

de vida da população feirense, ou seja, das suas práticas e hábitos culturais que, sobretudo,

tornam-se visíveis na paisagem urbana.

A paisagem muda de feição em decorrência de uma série de combinações, como:

frequência e circulação de veículos diversos: (carros, motocicletas, bicicletas, carroças,

carros-de-mão); comportamento e vestuário das pessoas; fluidez do trânsito; disposição dos

objetos no espaço e suas funções; aglomeração e densidade desses elementos, dentre

inúmeras outras.

2.1 Da dualidade ao hibridismo da cultura feirense

A história do estado Bahia se confunde com a própria história da cidade de Salvador, a

sua hegemonia política, governamental, administrativa, econômica e cultural a incumbiu de

torná-la um centro magnético, polarizando todas ou quase todas as cidades e municípios do

estado em torno de si.

A imagem da cidade de Salvador é estendida a toda a Bahia, dando, inclusive, uma idéia

de homogeneidade cultural em todo o estado. É como se existisse apenas uma única cultura

capaz de representar toda Bahia, os recortes espaciais, as suas gentes, as suas origens

históricas e culturais são escondidas, esquecidas e sombreadas pela cultura de Salvador e de

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seu entorno, especialmente o recôncavo baiano. Salvador, assim, se torna referência de cidade

e de cultura para todos os outros municípios baianos e não baianos. Vale ressaltar que a idéia

de Salvador como referência de cidade é datada desde o período colonial, quando era ainda

sede do governo nacional e principal centro econômico do país, isto por volta de 1549 até

século XVIII. Como percebemos a construção de Salvador como principal imagem da Bahia e

referência estadual tem suas origens na produção e organização do espaço brasileiro e

estadual. Cláudia Pereira Vasconcelos publica um artigo contendo parte da sua pesquisa

concluída em 2007 sobre a baianidade e a sertanidade no jogo identitário da cultura baiana,

tendo como foco da análise os textos do escritor Jorge Amado e do poeta e advogado Eurico

Alves Boaventura. Dois baianos, porém nascidos em contextos espaciais bastante diferentes, o

primeiro em Itabuna e criado em ilhéus, seguindo para Salvador e o mundo, e o segundo em

Feira de Santana, também residindo em Salvador para estudar mas, ao contrário de Jorge

Amado, retorna a sua cidade de nascimento.

Eurico Alves Boaventura trabalha com um par bastante interessante e define o litoral

como cidade e o sertão como sertão, mas isto cria uma distinção entre urbano e rural,

conceitos que estão diretamente ligados ao modo de vida nestes espaços.

Segundo Vasconcelos (2008, p.01) “a idéia de Bahia – baianidade – foi construída

através de uma estratégia imagético-discursiva que a colocou como algo à parte, sui generis”,

ou seja, como um lugar diferente de todos os outros, singular e exclusivo. Neste sentido,

influenciou não apenas a imagem construída internamente, mas, sobretudo externamente

“aparecendo no imaginário nacional e internacional como sendo a terra da felicidade, um

lugar diferente, místico e sensual, um caso à parte do Nordeste e, mais ainda, um caso à parte

no Brasil. Uma imagem que de certa forma foi se organizando tanto de dentro para fora como

de fora para dentro”, salienta a autora.

Depreende-se a partir desse fragmento de texto que os grupos políticos que governavam

a Bahia procuravam uma imagem que a caracterizasse da melhor maneira possível, que a

destacasse como única e incomparável e que havia um projeto de dissociar a sua imagem com

a do Nordeste, possivelmente por esse ser lembrado como atrasado, feio e miserável.

A imagem do sertão baiano associada a do Nordeste brasileiro traz outras implicações,

como a ambivalência ou dicotomia no discurso entre campo e cidade, ambivalência que

também se encontra na teoria de Le Goff (1998) quando afirma que existe, ainda na

antiguidade, uma desvalorização e menosprezo pelo trabalho do camponês, em contraposição

ao trabalho urbano. “Trata-se sobretudo de trabalho rural e, segundo uma tradição que o

cristianismo apenas reforça com relação à Antiguidade, o camponês é menosprezado. Na

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antiguidade, ele é o grosseiro, o rústico, em oposição ao homem da cidade” (LE GOFF, 1998,

p. 47). Encontramos esta idéia reforçada em outro texto:

mas seja qual for o status depreciado de numerosos trabalhadores que evocamos, a grande valorização do trabalho se dá na cidade. Esta é uma das funções históricas fundamentais da cidade: nela são vistos os resultados criadores e produtivos do trabalho. Todos esses curtidores, ferreiros, padeiros...são pessoas que produzem coisas úteis, boas e, às vezes, belas, e tudo isso se faz pelo trabalho, à vista de todo mundo (LE GOFF, 1998, p. 49).

Como vimos a depreciação e a desvalorização do trabalho rural não é criada com a

idade moderna ou contemporânea, mas remonta desde a Antiguidade, e ainda hoje essa

imagem é perpetrada e aceita como realidade. É a partir dessa imagem, dessa cultura, desse

olhar que teimamos em entender a região do Nordeste brasileiro e do sertão da Bahia de base

agrícola-rural. Consideramos estes espaços e suas gentes como atrasados, desprovidos de

tecnologias e possibilidades. Discursos e ideologias criadas, na antiguidade, pela igreja cristã

e na atualidade pelas elites econômicas e políticas locais.

Assim, a discussão iniciada por Vasconcelos (2008) chama a atenção para a restrição

desse discurso hegemônico e aparentemente consensual, pois deixa de fora outras regiões

baianas com igual riqueza cultural, tais como a Chapada Diamantina, e o Semi-Árido, este

último se expressando “através de outros elementos e artefatos culturais mais identificados

com o Nordeste do que com a Bahia e já apresenta, por si só, referências culturais bastante

diversas” (idem, p.02). Ressalte-se que a Bahia é um Estado de grandes extensões

longitudinais e latitudinais, sendo maior, inclusive, que muitos países do mundo.

Se observarmos as imagens construídas pela literatura baiana, como, por exemplo, Dona

Flor e seus dois maridos, Gabriela cravo e canela, Mar morto e Bahia de todos os Santos,

todos de Jorge Amado, pela música com Dorival Caymmi, pela televisão, pelos desenhos,

pela pintura de autoria de Carybé e outros que foram expoentes nas artes na Bahia,

perceberemos que, em sua esmagadora maioria, não há referência aos elementos rurais e

sertanejos, porque estes estariam ligados à imagem nordestina, por isso, a necessidade de

esquecimento e/ou de sombreamento desta cultura. A imagem nordestina contraria a imagem

feliz da Bahia. Vale acrescentar que Carybé veio à Bahia com o propósito de entrevistar

Lampião, símbolo do homem do sertão, mas não conseguiu, então se contentou em pintá-lo,

talvez por isto, tenha se dedicado à pintura e à serigrafia que retratavam a cultura e o

cotidiano da cidade de Salvador, elementos que marcaram definitivamente a sua carreira.

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Feira de Santana, espaço também da cultura sertaneja, não foge à lógica descrita acima.

Os ícones ligados ao sertão, ao vaqueiro, ao tropeiro, ao boiadeiro, ao coureiro, como, por

exemplo, visto nas imagens 01 e 02, são esquecidos e/ou sombreados pela cultura do

recôncavo baiano, contudo, são estrategicamente convocados e resgatados quando há

necessidade de mostrar símbolos da identidade local ou de suas especificidades.

Assim, o símbolo do vaqueiro, assim como do tropeiro são escondidos e a cidade parece

não os acolher como seus patrimônios, parte da sua memória visual e referência cultural.

Imagem 01. Foto do Monumento em homenagem ao tropeiro localizado na praça do

tropeiro perpendicular a Avenida Getúlio Vargas. Fonte: Azevedo, 2008

Um exemplo emblemático desse sombreamento dos ícones ligados à cultura sertaneja está

explicitado na imagem 02, onde entre as sombras das árvores esta o monumento em

homenagem ao vaqueiro, praticamente invisível na paisagem urbana da cidade.

Imagem 02. Avenida Getúlio Vargas. Monumento em homenagem ao Vaqueiro. Fonte: Azevedo, 2009

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Em nossa percepção, Feira já nasce dual, primeiro porque foi inserida no contexto

baiano a partir da necessidade de criar gado para abastecer os centros produtores de cana de

açúcar e mineração, como vimos anteriormente, neste momento à cidade ainda fazia parte da

jurisdição de Cachoeira9, ou seja, era considerada como parte das cidades que pertenciam ao

recôncavo baiano10, integrada, dessa forma, ao conjunto de estruturação econômica das

cidades ao redor de Salvador ou do recôncavo baiano. Em 1833 Feira de Santana emancipa-se

e separa-se de Cachoeira, para polarizar sua própria microrregião. Com isso, alguns hábitos e

costumes do recorte litoral foram trazidos e introduzidos pela população migrante neste

período. Admitimos que o processo migratório foi de fundamental importância para que

mistura cultural se realizasse. Este fluxo migratório proporcionou agregar e misturar hábitos,

costumes e tradições diversas, modificando a cultura da cidade.

Aceitando a pluralidade cultural provocada pela migração e evidenciada neste início de século

principalmente pelos meios de comunicação, percebemos que a dualidade da cultura feirense

está marcadamente presente na paisagem, sobretudo, do centro da cidade de Feira de Santana,

aqui representado, como dito anteriormente, pela Avenida Getúlio Vargas e Rua Marechal

Deodoro da Fonseca.

Dessa forma, torna-se possível analisar o fenômeno da hibridez, da pluralidade cultural

vivida neste início de século XXI, que, por sua vez, fica registrado na paisagem urbana das

cidades. No caso da cidade em questão, Feira de Santana, escolhemos focar nestes dois

recortes culturais sertão e litoral em função da sua preponderância na paisagem desta cidade,

bem como em função do processo histórico, exposto acima, que subsidiou o surgimento e

crescimento da mesma.

É importante ressaltar que a Avenida Getúlio Vargas é relativamente mais extensa que a

Rua Marechal Deodoro da Fonseca, estas duas vias se cruzam formando um dos principais

pontos nodais da cidade. Mas as casas comerciais, os produtos, enfim, o público que circula e

freqüenta estes dois espaços são muito diferentes e consomem também culturas diferentes.

Os dois importantes, representativos e emblemáticos recortes culturais baianos o sertão e

o litoral, estão particularmente presentes nessas duas vias. Percebemos a cultura do sertão

descrita na paisagem da Rua Marechal Deodoro da Fonseca, através de seus hábitos e modos

viver e se relacionar com o espaço cotidianamente. Nas imagens a seguir observar-se-á

vendedores de frutas, verduras, legumes, beijus, bolos, feijões, produtos originários do sertão

baiano que são comercializados, via de regra, pelos próprios produtores, ocasionando mesmo

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no centro da cidade uma grande feira livre com produtos variados e atendendo a um público

de baixo poder aquisitivo.

Observa-se na imagem 03 a variedade de produtos comercializados na rua, são cajus,

laranjas, limas, mangas, feijão de corda, que é debulhado em um ritual corporal, memorial e

aceito a visibilidade urbana, ou seja, não há estranheza, todos dispostos ali no chão, observa-

se também a reduzida quantidade dos produtos, o que reforça a idéia de que são vindos das

pequenas propriedades de cultivo caseiro.

Imagem 03. Foto das vendedoras e vendedor de produtos alimentícios, localizados na Rua

Marechal Deodoro da Fonseca. Fonte: Azevedo, 2008

Já na imagem 04, visualizamos os produtos simbolicamente ligados aos hábitos

nordestinos, como os beijus de tapioca de variados tamanhos e sabores, a quebradinha, a

massa puba, derivada, assim como os beijus e a quebradinha, da mandioca, comida

tradicionalmente ligada ao sertão. Vemos mangas e limões em pequenas quantidades e

reservadas em sacos de nylon.

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Imagem 04. Foto da vendedora da Rua Marechal Deodoro da Fonseca.

Fonte: Azevedo, 2008

Pode ser visualizado nas imagens acima que as vendedoras utilizam parte do passeio das

lojas para comercializarem os seus produtos. Tendo em vista os trajetos e observações

realizados na rua não se observou uma relação conflituosa entre as vendedoras e os lojistas. O

imaginário do que significou a antiga feira é expressivamente marcante na cultura desta

cidade e as imagens 03 e 04 são exemplares.

Nas imagens 05 e 06 se remetem dois grandes símbolos da cultura do recôncavo baiano,

o acarajé e a moqueca, estes dois restaurantes localizados em uma área privilegiada da

avenida, atendem a um público de alto poder aquisitivo.

Na fachada mostrada na imagem 05, observamos os acompanhamentos do acarajé,

como a pimenta, o camarão e o vatapá. Todos estes se referem à cultura ligada ao litoral

baiano. Afirmamos isto com base no processo colonizador que impôs a Salvador e ao

chamado recôncavo baiano a influência das culturas africanas.

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Imagem 05. Foto do Restaurante na Avenida Getúlio Vargas. Fonte: Azevedo, 2008

Na imagem 06 o que é posto em destaque é a moqueca. A fachada do restaurante nos

induz a pensar em um ambiente de mar, representado pelos peixes e as ondas do letreiro, ver

imagem 07.

Imagem 06. Foto do Restaurante na Avenida Getúlio Vargas. Fonte: Azevedo, 2008

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Imagem 07. Detalhe da fachada do Restaurante Ki- Mukeka

Fonte: Reis, 2008.

3 Considerações finais

Diante da discussão empreendida acima, verificamos que em parte específica da Avenida

Getúlio Vargas há preponderância na paisagem urbana de elementos relacionados ao litoral e

recôncavo baianos, como, por exemplo, o acarajé, o vatapá e a moqueca. E que esta

paisagem, está em uma área privilegiada da Avenida, de grande valorização econômica e

sendo consumida por um público de alto poder aquisitivo.

Já na Rua Marechal Deodoro da Fonseca encontramos uma paisagem urbana que

contém elementos ligados ao sertão da Bahia, como os produtos derivados da mandioca e o

feijão de corda. O comércio de frutas, verduras, legumes e outros produtos é realizado por

feirantes originários da zona rural do município de Feira de Santana e atende, basicamente, ao

público de baixo poder aquisitivo. Assim, podemos inferir que a partir da leitura da paisagem

urbana da cidade de Feira de Santana percebemos a presença de elementos culturais

definidores dos grupos sociais que a compõem.

NOTAS

1 LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 2 VASCONCELOS, Cláudia Pereira. Ser-tão baiano: a baianidade e a sertanidade no jogo identitário da cultura baiana. Disponível em: <http://www.cult.ufba.br/enecult2008/14139.pdf>. Acesso em: 20.11.2008. 3 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: EDUSP, 2004. 4 LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. 5 FERRARA, Lucrecia D’Alessio. Ver a cidade: cidade, imagem, leitura. São Paulo: Nobel, 1988.

FERRARA, Lucrecia D’Alessio. Os significados urbanos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, FABESB, 2000. 6 OLIVEIRA, Lysie dos Reis; TRINCHÃO, Gláucia Maria Costa. A história contada a partir do desenho. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE ENGENHARIA GRAFICA NAS ARTES E NO DESENHO, 2., 1998,

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Feira de Santana. Anais... Feira de Santana: UEFS, Associação Brasileira dos Professores de Geometria Descritiva e Desenho Técnico, 1998. p. 156-164. 7 Os marcos são outro tipo de referência, mas nesse caso, o observador não entra neles: são externos. Em geral, são um objeto físico definido de maneira muito simples: edifício, sinal, loja ou montanha. (Lynch, 1997, p.53) 8 Segundo Lynch (1997, p. 52-53) “os pontos nodais são pontos, lugares estratégicos de uma cidade através dos quais o observador pode entrar, são focos intensivos para os quais ou a partir dos quais ele se locomove. Podem ser basicamente junções. Locais de interrupção do transporte, um cruzamento ou uma convergência de vias, momentos de passagem de uma estrutura a outra.” 9 Cidade distante cerca de 120 km da capital baiana, Salvador. Considerada recôncavo baiano, pela sua proximidade espacial e, principalmente, por coadunar a com cultura desta capital. 10 Região que agrega, por relações culturais e econômicas, cidades próximas à Salvador.

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