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Processo n.º 39/2002-I Data do acórdão: 2002-07-18 (Recurso penal)
Assuntos:
– poder de cognição do Tribunal de Segunda Instância
– valor probatório de relatório laboratorial
– art.º 149.º do CPP
– prova pericial
– alteração não substancial dos factos descritos na acusação
– reenvio do processo
– âmbito da decisão da causa
– art.º 9.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro
– tráfico de quantidade diminuta
– comprimidos com metanfetamina no interior
S U M Á R I O
1. O Tribunal de Segunda Instância, quando julgue em recurso,
conhece de matéria de facto e de direito, excepto disposição em contrário das
leis de processo.
2. O juízo técnico e científico constante de um relatório de exame
laboratorial respeitante ao peso líquido total de uma dada substância
Processo n.º 39/2002-I 1/37
estupefaciente contida no interior de comprimidos submetidos ao exame
presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
3. Isto porque em matéria de prova pericial, o Código de Processo
Penal, no seu art.º 149.º, n.º 1, determina que o juízo técnico, científico ou
artístico se presume subtraído à livre apreciação do julgador, o que traduz
uma excepção ao princípio da livre apreciação da prova consagrado no seu
art.º 114.º.
4. Significa isto que o julgador, embora mantendo a inteira liberdade de
apreciação da base de facto pressuposta pelo perito – e, contrariando-a, pode
furtar validade ao parecer – só pode divergir do juízo contido no parecer do
perito, fundamentando devidamente a divergência, se puder fazer uma
apreciação também técnica, científica ou artística, ou se se tratar de um caso
inequívoco de erro (art.º 149.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
5. Se a alteração dos factos descritos na acusação for não substancial e
derivar da alegação nesse mesmo exacto sentido pelo próprio arguido, não é
necessária a comunicação prévia a ele nem concessão de tempo estritamente
necessário para a preparação da defesa, sob pena de uma ilógica processual
traduzida em o arguido ter de defender contra uma coisa que ele tiver alegado
para a sua própria defesa (cfr. art.º 339.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo
Penal).
6. Sob pena de se sacrificarem gratuitamente a economia e celeridade
processuais, só se ordena o reenvio do processo para novo julgamento no
tribunal a quo como uma medida de ultima ratio, a empregar apenas no caso
Processo n.º 39/2002-I 2/38
de não for possível ao tribunal ad quem decidir da causa, como preceitua
expressamente no art.º 418.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
7. Provado que está que o agente conhecia as características e a
natureza legalmente proibida de uma dada substância estupefaciente contida
no interior de 40 comprimidos, e mesmo assim, “traficou” de livre vontade
mas não por finalidade exclusiva para conseguir substâncias ou preparados
para seu uso pessoal, sabendo que assim procedendo iria contrariar a lei, o
mesmo agente tem que ser punido a título da autoria material, na forma
consumada, do crime do art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, salvo se o
tribunal competente a conhecer do caso e apenas esta entidade julgadora
entender, sob a égide do espírito do n.º 5 do art.º 9.º do mesmo Decreto-Lei,
por sua livre convicção e segundo as regras da experiência, que a quantidade
em questão “não excede o necessário para consumo individual durante três
dias”, hipótese em que o agente só será punido com a moldura mais leve do
art.º 9.º do mesmo diploma legal.
8. Não se provando nos autos qual a quantidade consumida pelo
arguido e se o fazia todos os dias, na definição de qual a quantidade de
metanfetamina apresentada em determinado número de comprimidos que a
contêm no seu interior, considerada como não execedente da necessária para
consumo individual durante três dias para os efeitos do n.º 3 do art.º 9.º do
Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro, com pertinência para a
aplicabilidade do tipo de crime privilegiado do art.º 9.º, n.º 1, do mesmo
diploma, há que recorrer às regras da experiência vividas pela generalidade
dos consumidores da metanfetamina apresentada e contida no interior do tipo
de comprimidos em causa, a fim de formar a convicção do julgador a nível de
Processo n.º 39/2002-I 3/39
emissão do juízo de valor acerca da verificação ou não, in casu, de
“quantidade diminuta”, nos termos e em prol do espírito do n.º 5 do art.º 9.º
do referido Decreto-Lei.
9. Estando em causa 1,198 gramas líquidos da substância
metanfetamina contida e dispersa em 40 comprimidos, e consideradas as
condições normais em que esses comprimidos são consumidos pelo comum
dos seus consumidores do tipo do homem médio, é de formar a convicção de
que não se verifica in casu nenhuma “quantidade diminuta” para os efeitos do
art.º 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
10. Pois, os comprimidos deste tipo como “droga para lazer”, nas
situações normais da vida humana dos seus consumidores comuns, não
podem ser nem são consumidos por três dias seguidos, exactamente porque
após o estado de exaustão do corpo humano resultante do efeito de “sentir
alto” com a sua ingestão oral, o seu consumidor comum carece de tempo para
se recuperar fisicamente, pelo que ninguém, do tipo do homem médio e
razoável, se propõe a “sentir alto” com consequente estado de exaustão
corporal durante três dias consecutivos através da ingestão deste tipo de
comprimidos.
11. A tese de que se o comum dos consumidores desse tipo de
comprimidos em questão soubesse, de antemão, da quantidade líquida exacta
da substância ou substâncias activas proibidas contidas no seu interior, e se a
achasse tão ínfima que não chegaria a “sentir alto”, já estaria disposto a
ingerir maior número de comprimidos, por exemplo, uma dezena de
comprimidos para poder sentir o mesmo grau pretendido de “sentir alto”,
Processo n.º 39/2002-I 4/40
diverge das regras da experiência humana na normalidade das situações a
respeito das condições normais em que os comprimidos do tipo em causa são
consumidos, uma vez que estando a substância activa em causa encoberta
dentro de comprimidos, normalmente miturada com outras substâncias
activas e/ou impurezas, para cujo consumo nas suas condições normais, o
comum dos consumidores não vai nem está disposto a “desmantelar”
primeiro os comprimidos a fim de extrair deles a quantidade líquida da
substância activa que pretenda tomar para alcançar lazer em festas ou
convívios em discoteca ou em privado, pois para este “objectivo” ele optará
com certeza pela aquisição da mesma substância activa no seu estado puro e
não contida em comprimido, dada toda a inconveniência desse “desfazer” do
comprimido em ocasiões de “rave party” ou convívios em discoteca ou em
privado, para além da inerente inviabilidade técnica, para o comum dos
consumidores, da extracção e determinação da quantidade líquida exacta da
substância activa em causa contida no interior dos comprimidos.
12. Entretanto, essa tese já será adequada se se tratar de uma substância
activa consumida no seu estado puro à vista desarmada e sem ser contida em
comprimido, pois neste caso, como o comum dos seus consumidores já
consegue prever a quantidade líquida da mesma substância, já se sente livre e
com vontade para a tomar na quantidade que desejar a fim de matar as suas
necessidades com os efeitos da mesma.
O relator por vencimento,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 39/2002-I 5/41
Processo n.º 39/2002-I (Autos de recurso penal)
Recorrente: (A)
Tribunal a quo : Tribunal Colectivo do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Base
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I
1. (A), com os sinais dos autos, veio recorrer para este Tribunal de
Segunda Instância (TSI), do acórdão de 18 de Janeiro de 2002, proferido pelo
1.º Juízo do Tribunal Judicial de Base, a fls. 124 a 127 dos autos (no
respectivo Processo Comum Colectivo n.º PCC-075-01-1), tendo concluído e
peticionado na sua motivação para o recurso apresentada a fls. 137 a 153, nos
termos a seguir transcritos:
“(...) – CONCLUSÕES
1.a O douto Acórdão recorrido subsumiu a conduta do ora recorrente à autoria
de um crime do arto. 8o., no. 1, do Decreto-Lei no. 5/91/M, de 28 de Janeiro,
quando tal conduta integra um crime do arto. 9o., no.s 1 e 3 do mesmo diploma,
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uma vez que o total de substâncias proibidas quer as encontradas na sua posse quer
as anteriormente detidas é considerado quantidade diminuta;
2a. Não estando preenchido o conceito de “quantidade diminuta” na lei que
apenas refere “a que não excede a quantidade necessária para o consumo
individual durantre três dias”, há que recorrer ao entendimento expressso na
Jurisprudência dos nossos Tribunais que aponta para os 2 (dois) gramas diários
quando se trata da substância “metanfetamina” um dos componentes contidos nos
comprimidos encontrados na posse do recorrente;
3a. Efectuado o exame aos 40 comprimidos apreendidos pelo ora recorrente,
veio a apurar-se que eles continham um total de 1,198g de “metanfetamina” e,
embora, do exame tenha resultado que os mesmos comprimidos continham uma
outra substância ilegalizada, na RAEM, desde 2 de Maio de 2001 – “ketamina” –
não foi possível determinar a sua quantidade exacta, por falta de meios materiais
para tal exame;
4a. Embora tenha havido informação de que fôra pedida informação ao
Instituto da Droga junto das Nações Unidas sobre a forma de determinar tal
quantidade de “ketamina”, o douto Tribunal prescindiu dessa informação;
5a. Tem sido entendimento pacífico que se o exame laboratorial da droga em
causa não puder fazer-se, por qualquer motivo, a sua falta será suprida por outros
meios de prova;
6a. Recorrendo-se às regras da experiência, sempre se chegará à conclusão que
a percentagem de “Ketamina” contida num determinado comrimido que contém,
simultaneamente, “metanfetamina” não poderá ser maior do que a percentagem
desta, dada as características de tal substância que é, efectivamente, utilizada para
contrariar os efeitos das substâncias estimulantes, uma vez que se trata de uma
Processo n.º 39/2002-I 7/42
substância anestésica muito poderosa com efeitos análgésicos e amnésicos.
7a. Tendo prescindido de tal exame, o douto Tribunal apenas poderá aferir-se
pela dosagem de “metanfetamina” contida nos mesmos comprimidos, pelo que não
poderá concluir que a quantidade total de “ketamina” contida nos 40 comprimidos
seja superior à quantidade de “metanfetamina”, ou seja, terá que concluir que os 40
comprimidos continham também eles um total de 1,198g de “ketamina”.
8a. Tomando em consideração que a Jurisprudência dessa Alta Instância tem
sido no sentido de que “no crime de tráfico de estupefacientes está em causa não
só a droga concretamente apreendida, num determinado processo, mas também a
quantidade de droga que durante uma determinada época foi traficada pelo
agente”, para o cômputo da quantidade na disponibilidade do ora recorrente
ter-se-á que entrar em linha de conta com os 20 comprimidos por ele detidos numa
vez anterior, facto que se deu como provado.
9a. Seguindo-se o percurso para determinar que quantidade de substâncias
proibidas teve o ora recorrente na sua disponibilidade, ter-se-á que aferir pelos
dados constantes do presente processo, sendo que o ora recorrente teve na sua
disponibilidade um total de 3,594g de substâncias proibidas, o que não excederia a
quantidade tida como diminuta – para efeitos do no. 1 do arto. 9.o do DL n.o 5/91/M –
que é de 6 gramas.
10a. A moldura penal, abstractamente, aplicável ao crime de tráfico de
quantidades diminutas é prisão de 1 a 2 anos e multa de MOP$2,000.00 a
MOP$225,000.00, pelo que, estando perante a aplicação de uma pena inferior a três
anos, essa Alta Instância terá que se pronunciar sobre a aplicabilidade (ou
denegação) do instituto da suspensão da execução da pena;
11a. A suspensão da execução da pena depende da verificação de dois
Processo n.º 39/2002-I 8/42
pressupostos: um formal (uma pena não superior a três anos) e outro material consistente
numa prognose social favorável ao arguido;
12a. O pressuposto material da suspensão da execução da pena é limitado por
duas coordenadas: (1) a salvaguarda das exigências mínimas essenciais de defesa
do ordenamento jurídico (prevenção geral) e o (2) afastamento do agente da
criminalidade (prevenção especial);
13a. Face aos fundamentos apresentados, essa Alta Instância poderá considerar
adequada ao caso concreto a pena pedida de um ano e um mês de prisão e multa de
MOP$3,000.00, verificando-se, assim, o pressuposto formal da suspensão da
execução da pena;
14a. Não pode deixar o ora recorrente de fazer referência ao apelo feito, em
1997, nas Nações Unidas pelo Órgão Internacional de Controlo de Estupefacientes,
sugerindo que “os países estabeleçam como prioridade absoluta a apreensão e a
punição dos grandes criminosos na área da droga. No caso de pessoas condenadas
por possuírem pequenas quantidades de drogas ilícitas, deveriam ser consideradas
alternativas às penas de prisão”;
15a. Quando se faz um apelo desta natureza, tem-se em vista que não são as
penas de prisão dos pequenos traficantes de droga que vão, efectivamente, ajudar à
prevenção geral que, no caso do tráfico de drogas, é reprimir o mais possível a
observância deste tipo de crime, atendendo ao verdadeiro flagelo que hoje constitui
esse tráfico e o consumo de droga e toda a actividade criminosa que lhe está
associada;
16a. Não pode deixar de se considerar que o ora recorrente se posicionava, na
actividade do tráfico de droga, ao nível mais baixo, àquele a que pertencem as
denominadas últimas personagens da cadeia de tráfico, os chamados distribuidores
Processo n.º 39/2002-I 9/42
ou “dealers”;
17a. Sendo certo que a RAEM está dotada de um sistema penitenciário que
garante o respeito pela dignidade humana, foi uma preocupação constante do
legislador limitar, tanto quanto possível, a pena de prisão, atento o seu
incontroverso efeito criminógeno, especialmente quando se trata de jovens;
18a. A possibilidade legal de subordinar a suspensão da execução da pena de
prisão ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta com o fim
de reparar o mal do crime, por um lado e a facilitar a readaptação social, por outro,
garante suficientemente a salvaguarda das exigências mínimas essenciais do
ordenamento jurídico (prevenção geral) e reforça o carácter pedagógico da medida
(prevenção especial), pelo que, se fôr considerado conveniente, por Vossas
Excelências, deverão ser fixadas certas obrigações (arto.s 49.o e 50.o do Código Penal)
ao recorrente que servirão também para compensar a situação decorrente da não
execução da pena de prisão.
19a. O douto Acórdão recorrido violou a norma do arto. 9o., no.s 1 e 3, do Código
Penal de Macau.
(...) – PEDIDO
Nestes Termos e contando com o indispensável suprimento de Vossas
Excelências, requer seja dado provimento ao recurso e, em consequência, seja
convolada a acusação do ora recorrente para um crime do arto. 9o., no.s 1 e 3 do
Decreto-Lei no. 5/91/M, de 28 de Janeiro, aplicada uma pena de prisão inferior a
dois anos, considerando-se justa a de um ano e um mês, suspendendo-se a sua
execução por um período de um ano, impondo-se – se ainda fôr do superior
entendimento de Vossas Excelências – certas obrigações ou fixando-se alguns dos
deveres ou das regras de conduta previstas nos arto.s 49.o e 50.o do Código Penal.
Processo n.º 39/2002-I 10/42
(...)”
2. O Digno Magistrado do Ministério Público junto da Primeira
Instância concluiu a sua resposta à motivação acima do recorrente, de fls. 155
a 161, pelo seguinte:
“(...)
I- O exame laboratorial efectuado aos 40 comprimidos apreendidos ao
Recorrente revelaram a presença de 1,198gr de “metanfetamina”, peso esse
que ultrapassa em muito o consumo médio para 3 dias desse tipo de
estupefaciente, já que a dose diária do mesmo não deverá ultrapassar os
50mg.
II- pese embora não tenha sido possível apurar a quantidade específica do
estupefaciente “ketamina”, também comprovadamente existente naqueles
comprimidos, aquela quantidade de “metanfetamina” atesta, por si só a
correcção da subsunção jurídica efectuada, não sendo possível a almejada
integração no disposto no n.o 1 do art. 9o do DL 5/91/M.
III- Neste contexto, fez o colectivo correcta apreciação dos factos, devida
integração jurídica dos mesmos, usando de doseometria penal justa.
Tanto basta para pugnar pela manutenção do douto acórdão em crise,
assim se fazendo
JUSTIÇA”
Processo n.º 39/2002-I 11/42
3. Nesta Instância ad quem, e em sede de vista dos autos, o Digno
Procurador-Adjunto emitiu o douto parecer de fls. 174 a 176, de seguinte
teor:
“(...)
PARECER
Acompanhamos, na sua essencialidade, as judiciosas considerações
vertidas na resposta à motivação.
Impõe-se, todavia, liminarmente, uma explicitação.
O acórdão mencionado na motivação do recurso, na verdade,
reporta-se ao ice em termos de “peso bruto”.
Não deve inferir-se, assim, que as quantidades de metanfetamina aí
referenciadas sejam doses “puras” dessa substância.
Sempre seria inaceitável, de qualquer forma, um conceito de
“quantidade diminuta” do produto em questão correspondente aos aludidos 6
gramas.
Isso mesmo evidencia, de resto, proficientemente, o nosso Exmo.
Colega.
E, tendo em conta o seu interesse para a boa decisão da causa, junta-
se, agora, cópia do estudo citado a fls. 158.
No caso “sub judice”, estão em causa 1,198 gramas de metanfetamina
pura.
Trata-se de um “quantum” que, cientificamente, como é sabido, deve
ter-se como letal.
E que, nos termos propugnados, excede largamente – em cerca de 8
Processo n.º 39/2002-I 12/42
vezes – “o necessário para consumo individual durante três dias”.
A pena de prisão imposta ao recorrente situa-se, apenas, um mês
acima do limite mínimo da respectiva moldura abstracta.
E tal “quantum” não merece, efectivamente, qualquer censura.
É certo que, em benefício do mesmo, se provou a confissão e o
arrependimento.
No que tange à primeira, porém, não se mostra, desde logo, que se
esteja perante uma confissão espontânea, integral e sem reservas.
E não se divisa, também, que tenha contribuído, de qualquer modo,
para a descoberta da verdade.
No que concerne ao arrependimento, por outro lado, há que frisar que
o mesmo não se traduziu em actos concretos de que se possa retirar a respectiva
sinceridade (cfr. arto. 66o, no. 2-c, do C. Penal).
Pode dizer-se, em suma, que o facto de o recorrente ter confessado e
a circunstância de se mostrar arrependido não passam de consequências naturais – e,
até, necessárias – de ter sido “descoberto”.
O recurso em análise é, pelo exposto, manifestamente
improcedente.
Deve, consequentemente, ser rejeitado (cfr. artos. 407o, no. 3 – c,
409o, no. 2 – a e 410o, do C. P. Penal).
(...)”
4. Na sequência de toda essa tramitação, foi a final proferido por este
Processo n.º 39/2002-I 13/42
TSI o acórdão de 4 de Abril de 2002, a fls. 190 a 201 dos autos, então lavrado
em termos definitivos pelo primeiro dos juízes-adjuntos do presente
Colectivo, por o Mm.º Juiz Relator a quem o processo se encontrava
distribuído e afecto neste TSI ter ficado vencido relativamente a todos os
fundamentos a título principal da decisão. E por esse acórdão de 4 de Abril de
2002, foi decidido rejeitar o recurso do arguido (A) do acórdão da Primeira
Instância, por manifesta improcedência do mesmo, com custas pelo
recorrente, com 3 UC de taxa de justiça e 4 UC a título de importância devida
pela rejeição.
5. Desse mesmo aresto interpôs o arguido recurso para o Venerando
Tribunal de Última Instância (TUI), o qual foi oportunamente admitido e
mandado a subir para esse supremo Tribunal por despacho do Mm.º Juiz
Relator do processo neste TSI.
6. Julgado o recurso no TUI, foi pelo mesmo proferida a seguinte
decisão expressa no dispositivo do respectivo douto Acórdão de 30 de Maio
de 2002, ora constante de fls. 263 a 274 dos autos:
“Face ao expendido, anula-se a decisão recorrida e decide-se determinar a
baixa do processo ao Tribunal de Segunda Instância, para que seja apurada a
quantidade de metanfetamina nos 40 comprimidos encontrados na posse do
recorrente e se profira decisão em conformidade com a doutrina exposta.” (cfr.
fls. 273v a 274).
Processo n.º 39/2002-I 14/42
7. Baixados então os autos a esta Segunda Instância, o Mm.º Juiz
Relator a quem tinha sido distribuído inicialmente o processo reassumiu as
suas funções de relator na presente instância recursória “renovada” por força
dos termos ordenados no douto Acórdão de 30 de Maio de 2002 do TUI (para
nós por comando do art.º 631.º, n.º 3, segunda parte, do Código de Processo
Civil de Macau (CPC), interpretado a contrario sensu e em conjugação
lógica e necessária nomeadamente com os art.ºs 592.º e 619.º, n.º 1, proémio,
do mesmo Código, ex vi do art.º 4.º do Código de Processo Penal (CPP)), e
determinou a notificação do recorrente e do Ministério Público junto deste
TSI para se pronunciarem como por bem entenderem sobre a questão surgida
com aquela douta decisão do TUI.
8. Assim, enquanto o Digno Procurador-Adjunto ficou silente, opinou o
recorrente, a fls. 284 a 285, essencialmente que, como nos termos do art.º
39.º da Lei n.º 9/1999, “o Tribunal de Segunda Instância, quando julgue em
recurso, conhece de matéria de facto e de direito”, e constando “dos autos o facto
que deve ficar consignado na fundamentação da sentença, nos termos do art.º 339º.,
n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal”, o “Tribunal da Segunda Instância pode
sanar o vício, não sendo necessário o reenvio do processo à Primeira Instância para
novo julgamento”.
9. Em face disso, o Mm.º Juiz Relator do processo nesta instância
recursória renovada mandou, no seu despacho a fls. 286, que se colhesse
vistos aos juízes-adjuntos, bem como a subsequente inscrição do processo em
tabela para julgamento em conferência.
Processo n.º 39/2002-I 15/42
10. Apresentado o douto Projecto de Acórdão por ele elaborado à
discussão e deliberação na conferência do presente Tribunal realizada no
passado dia 11 de Julho de 2002, o mesmo Mm.º Juiz Relator ficou, na
votação sobre o mesmo, vencido quer quanto à decisão quer quanto à
fundamentação da mesma (cfr. o teor da acta dessa conferência a fls. 290).
11. É por isso que urge agora decidir nos termos constantes do presente
acórdão definitivo, lavrado pelo primeiro dos juízes-adjuntos de acordo com
a posição de vencimento.
II
1. Para o efeito, há que, desde logo, tomar em consideração a seguinte
matéria de facto fixada pela Primeira Instância:
“1. (...), resultaram provados os seguintes factos:
1o
Em 20 de Junho de 2001, cerca das 20H41, no posto fronteiriço das Portas
do Cerco, o pessoal da PMF abordou o arguido (A) que vinha de Zhuhai para
Macau.
2o
O pessoal da PMF encontrou, em flagrante, no corpo do arguido (A) 40
comprimidos suspeitos de serem comprimidos “ecstasy”.
Processo n.º 39/2002-I 16/42
3o
Após exame laboratorial, os tais comprimidos continham Metanfetamina e
Ketamina, substâncias essas constantes respectivamente na Tabela II-B e II-C do
DL no 5/91/M (alterado pela Lei no 4/2001).
4o
Tais estupefacientes foram adquiridos pelo arguido (A), em Zhuhai a um
indivíduo desconhecido, a fim de trazer para Macau e entregar a outro indivíduo
desconhecido de nome “Ah Tong” para venda.
5o
O arguido (A) agiu livre, consciente e voluntariamente o supracitado.
6o
Ele sabia perfeitamente a natureza e as características dos estupefacientes
acima referidos.
7o
A sua conduta não era permitida por lei.
8o
Ele bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
***
Esta foi a segunda vez que o arguido trazia estupefaciente para Macau.
Na primeira vez, trouxe vinte comprimidos “ecstasy” e recebeu, como
remuneração, a quantia de MOP$300,00.
E desta vez, era para receber do tal indivíduo “Ah Tong” a quantia de
MOP$500,00, como recompensa.
***
O arguido confessa os factos e mostra-se arrependido.
Processo n.º 39/2002-I 17/42
Auferia, mensalmente, cerca de MOP$3.500,00 e tem a seu cargo os seus
pais. Possui o curso primário.
***
Nada consta em seu desabono do seu CRC junto aos autos.
***
2. Nenhum facto ficou por provar.”
2. E a esta factualidade então julgada pelo Tribunal a quo, há que
acrescentar agora mais um facto provado, sob a égide do disposto no art.º
339.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, e conforme o teor da conclusão do relatório de
exame n.º DT2001-135A, de 19 de Dezembro de 2001, a fls. 118 dos autos, e
da acta da audiência de julgamento da Primeira Instância a fls. 109v), nos
termos seguintes:
“O peso líquido total de Metanfetamina contida nos 40 comprimidos
apreendidos ao arguido e enviados ao exame do Laboratório de Polícia Científica
da Polícia Judiciária, realizado a pedido dele formulado e deferido na audiência de
10 de Dezembro de 2001, é de 1,198 gramas.”
E com isso, fica desde já sanado o vício de insuficiência para a decisão
da matéria de facto provada em obediência à acima referida douta decisão e
30 de Maio de 2002 do TUI com força obrigatória para o processo ora sub
judice, sanação esta que reputamos como possível, porquanto:
– Abstractamente falando, por força do preceituado no art.º 39.º da Lei
Processo n.º 39/2002-I 18/42
n.º 9/1999, de 20 de Dezembro, definidora das Bases da Organização
Judiciária da Região Administrativa Especial de Macau, este TSI, quando
julgue em recurso, conhece de matéria de facto e de direito, excepto
disposição em contrário das leis de processo;
– E in casu, é líquido que se impõe a reapreciação da matéria de facto
julgada pela Primeira Instância, por efeito da constatação pelo TUI, no seu
douto aresto de 30 de Maio de 2000, do vício de insuficiência para a decisão
da matéria de facto provada previsto no art.º 400.º, n.º 2, al. a), do CPP;
– Reapreciação fáctica esta que deve ser feita neste TSI, por a questão
mandada pelo TUI a apurar – consistente em saber “a quantidade de
metanfetamina nos 40 comprimidos encontrados na posse do recorrente” –
poder ser resolvida cabalmente com os elementos existentes nos autos e
decorrentes do texto da decisão recorrida da Primeira Instância, quais sejam,
os precisamente constantes do relatório de exame n.º DT2001-135A, de 19 de
Dezembro de 2001, do Laboratório de Política Científica da Polícia Judiciária
de fls. 115 a 120, cujo juízo técnico e científico respeitante ao peso líquido
total de metanfetamina contida nos 40 comprimidos então submetidos ao
mesmo exame se presume subtraído à livre apreciação do julgador por
imperativo do disposto no n.º 1 do art.º 149.º do CPP, e como tal, com base
nesse juízo eminentemente técnico e cientítico, que, aliás, se nos apresenta
límpido e sem erro manifesto, temos que formar a convicção com ele
convergente acerca do facto acima acrescentado à matéria de facto
inicialmente fixada pela Primeira Instância, porquanto in casu entendemos,
por razões retro ditas, descenessário recorrer a outros elementos exteriores ao
Processo n.º 39/2002-I 19/42
mesmo relatório para podermos ficar esclarecidos do seu juízo de valor
(hipótese esta prevista no art.º 144.º, n.º 1, do CPP), e, o mais importante, não
somos capazes de tirar a validade ao mesmo valor técnico e científico
constante do relatório de exame em causa, por não conseguirmos fazer um
outro juízo técnico e científico contrário ou divergente daquele, a fim de ilidir,
com exposição de fundamentos expressos nesse sentido, a “presunção legal
da subtracção à livre apreciação do jugador” em causa (hipótese última esta
que se encontra referida no n.º 2 do art.º 149.º do CPP), isto tudo na esteira
dos seguintes ensinamentos constantes das Lições do Prof. Doutor JORGE
DE FIGUEIREDO DIAS, coligidas por MARIA JOÃO ANTUNES,
chamadas de DIREITO PROCESSUAL PENAL, 1988-9, Secção de textos da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 143: “Em matéria de
prova pericial, a lei (artigo 163.º, n.º 1) [nota nossa: art.º 163.º, n.º 1, do CPP de
Portugal referido nessas lições, homólogo ao art.º 149.º, n.º 1, do CPP de Macau]
determina que o juízo técnico, científico ou artístico se presume subtraído à
livre apreciação do julgador , o que traduz uma excepção ao princípio
consagrado no artigo 127.º [homólogo ao art.º 114.º do CPP de Macau].// Significa
isto que o julgador, embora mantendo a inteira liberdade de apreciação da
base de facto pressuposta pelo perito – e, contrariando-a, pode furtar validade
ao parecer – só pode divergir do juízo contido no parecer do perito,
fundamentando devidamente a divergência (artigo 163.º, n.º 2) [homólogo ao
art.º 149.º, n.º 2, do CPP de Macau] se puder fazer uma apreciação também técnica,
científica ou artística, ou se se tratar de um caso inequívoco de erro.” (com
sublinhado nosso colocado agora);
– Razões estas precisamente pelas quais não se pode, salvo o devido
Processo n.º 39/2002-I 20/42
respeito, acolher – ao arrepio da lei (i.e., maxime, do citado art.º 149.º, n.º 1,
do CPP) e sob pena de se sacrificarem gratuitamente a economia e celeridade
processuais num processo penal com arguido preso com o reenvio do
processo para a Primeira Instância – a douta tese projectada pelo Mm.º Juiz
Relator do presente processo no sentido, nomeada e esssencialmente, de que:
“Assim, não constando dos presentes autos as provas produzidas no
julgamento efectuado pelo Tribunal “a quo” e não constituindo o referido
relatório, elemento probatório ao qual, incondicionalmente, se possa
considerar estar este Tribunal vinculado, não se vislumbre como poder esta
Instância suprir a referida insuficiência; (...)
Nesta conformidade, outra solução não se vislumbra que não cremos
haver a não ser que a de, através de novo julgamento e da análise crítica e
global de todas as provas então produzidas, se decidir da questão em causa.
Para tal, como é obvio, impõe-se o reenvio dos autos ao Tribunal “a quo”;
(cfr. artº 400.º, nº 2, al. a) e 415º, nº 1 e 2 do C.P.P.M.).” (sic);
Posição do Mm.º Juiz Relator esta que – note-se a título de entre
parentesis – até está em sentido contrário, à moda de venire contra factum
proprium, à tese por ele próprio preconizada no seu douto Voto Vencido então
apendiculado ao Acórdão de 4 de Abril de 2002 no âmbito do presente
processo, pois aí o mesmo Mm.º Relator então vencido afirmou, para
fundamentar a decisão por ele proposta, de rejeição do recurso do mesmo
arguido (A), apesar de em contornos distintos dos termos constantes do aresto
definitivo de 4 de Abril de 2002, que:
“Todavia, outra é a “ardua questio”, (colocada pelo ora recorrente).
Processo n.º 39/2002-I 21/41
Reside (exactamente) em se saber se, a quantidade líquida de
metanfetamina contida nos referidos 60 comprimidos, constitui “quantidade
diminuta”, nos termos e para os efeitos do citado artº 9º.
Ora, resulta dos autos (a fls. 118), que os 40 comprimidos ao recorrente
apreendidos continham um total de 1.198 gramas líquidos de metanfetamina,
(para além de uma outra quantidade não especificada de Ketamina).
(...)
Perante este “quantum” (líquido) de mentanfetamina, (cerca de 1200 mg
nos 40 comprimidos e de quase 600 mg nos outros 20) poder-se-à afirmar
constituir o mesmo – como pretende o recorrente –“quantidade diminuta”?
Ressalvado o devido respeito por opinião diversa, temos para nós ser
patente assim não poder ser.
Aliás, em nossa opinião, até mesmo o “quantum” de metanfetamina que
continham os 40 comprimidos apreendidos ao recorrente não constitui
“quantidade diminuta”” (cfr. o teor das págs. 8 e 9 do douto Voto Vencido
referido, a fls. 206v a 297 dos autos, e sic).
Ademais, até o próprio TUI afirma, na fundamentação do seu douto
aresto de 30 de Maio de 2002, que:
– “...Tanto o Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, como o
Tribunal de Segunda Instância, não deram como provado qual a quantidade de
metanfetamina nos 40 comprimidos encontrados na posse do recorrente. Isto
apesar de tal constar de exame feito nos autos (fls. 118). Tal facto apenas
consta do voto de vencido ...” (cfr. o teor de fls. 269, com sublinhado nosso
posto agora);
Processo n.º 39/2002-I 22/41
– “É sabido que em recurso, em processo penal, correspondente a
terceiro grau de jurisdição, o Tribunal de Última Instância apenas conhece de
matéria de direito, bem como dos vícios do n.º 2, do art. 400.º ... (...) e das
nulidades não sanadas, nos termos do n.º 3, do mesmo art. 400.º.
Quer isto dizer o Tribunal de Última Instância não tem poder para
declarar provada a quantidade de metanfetamina nos 40 comprimidos
encontrados na posse do recorrente.” (cfr. o teor de fls. 269 a 269v);
– “De facto, embora o facto não constasse da acusação, o Tribunal
Colectivo devia tê-lo dado como provado, já que se tratava de matéria
relevante, sendo que o Tribunal havia determinado a realização de exame, o
que foi feito, a requerimento do arguido.” (cfr. o teor de fls. 273);
– Assim, é-nos, frise-se, evidente que o facto acima acrescentado como
provado não implica nenhuma alteração substancial dos factos descritos na
acusação com efeitos previstos no art.º 1.º, n.º 1, al. f), do CPP, mas tão-só
uma alteração não substancial dos mesmos, a qual, in casu, por ter derivado
da alegação nesse mesmo exacto sentido pelo próprio arguido, não reclama
comunicação prévia a ele nem concessão ao mesmo, de tempo estritamente
necessário para a preparação da defesa, sob pena de uma ilógica processual
traduzida em o arguido ter de defender contra uma coisa que ele tiver alegado
para a sua própria defesa (cfr. o disposto nos dois únicos números do art.º
339.º do CPP);
– Por fim, há que salientar que só se ordena o reenvio do processo
para novo julgamento na Primeira Instância como uma medida de ultima
ratio, a empregar apenas no caso de não for possível à Instância ad quem
decidir da causa, como preceitua expressamente no art.º 418.º, n.º 1, do CPP.
Processo n.º 39/2002-I 23/41
Em suma, pode ser e fica sanado nesta Segunda Instância, o vício de
insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, verificado pelo TUI
no seu douto Acórdão de 30 de Maio de 2002, evitando assim o desnecessário
reenvio do processo para novo julgamento na Primeira Instância.
III
Resta, agora, proferir nova decisão ao recurso sub judice, interposto pelo
arguido (A) do acórdão condenatório da Primeira Instância, tendo presente
que “Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a
cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de
vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe
apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para
sustentar a sua pretensão.” (Doutrina esta do Insigne Professor JOSÉ ALBERTO
DOS REIS, in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V
(Reimpressão), Coimbra Editora Limitada, 1984, pág. 143, já por nós seguida
mesmo em causas penais, maxime nos Acórdãos deste TSI, de 17/5/2001 no
Processo n.º 63/2001, de 21/9/2000 no Processo n.º 127/2000, e de 7/12/2000 no
Processo n.º 130/2000).
É, pois, de considerar as seguintes questões concretamente postas pelo
recorrente:
Processo n.º 39/2002-I 24/41
A. – Da pretendida convolação do crime do art.º 8.º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro, por que veio condenado pelo
Tribunal a quo, para o do art.º 9.º, n.º 1, do mesmo diploma (cfr. o alegado
pelo recorrente nos pontos 2 a 18 da motivação, com respectivo
enquadramento nas conclusões 1.ª a 9.ª da mesma).
B. – Da subsequente medida da pena a aplicar ao crime do art.º 9.º,
n.º 1, do Decreto-Lei n.º 5/91/M, e da correlativa aplicabilidade da suspensão
de execução da nova pena a aplicar por este crime (cfr. o alegado pelo
recorrente nos pontos 19 a 39 da motivação, com correspondente
enquadramento nas conclusões 10.ª a 18.ª da mesma).
Cabe, entretanto, notar que a conclusão 19.ª da motivação do recurso do
arguido é por nós entendida como se referindo ao art.º 9.º, n.ºs 1 e 3, do
Decreto-Lei n.º 5/91/M, e não ao art.º 9.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal de
Macau, atento o contexto geral de toda a motivação do recorrente, pelo que,
perante esse lapso manifesto de escrita, a mesma conclusão 19.ª deve ser
entendida como referente, ao fim e ao cabo, à Questão A.
Conhecendo agora em concreto, há que observar que o recorrente se
serviu da Questão A como a trave-mestra da sua motivação, pois construiu a
sua motivação essencialmente em torno da alegada quantidade diminuta – em
termos de peso líquido – da substância metanfetamina contida nos
comprimidos detidos por ele, considerando nomeadamente que segundo o
relatório do exame laboratorial de fls. 118, tais comprimidos contêm uma
percentagem de 8,5% de metanfetamina, pelo que o peso líquido total desta
Processo n.º 39/2002-I 25/41
substância contida nos 40 comprimidos trazidos por ele em 20 de Junho de
2001 era de 1,198g, daí que, conforme o que alega, em especial, nos pontos
15, 6 e 5 da sua motivação, enquadrados por sua vez nas conclusões 1.ª a 9.ª
da mesma, estando “provado que o ora recorrente detinha, à data em que foi preso,
em flagrante delito, um grama e cento e noventa e oito miligramas da substância
designada por “Metanfetamina”, terá que se considerar tal quantidade como
diminuta por não exceder o necessário para o consumo individual durante três dias
e, consequentemente, considerar que a actuação do ora recorrente consubstancia o
crime previsto e punido pelo artº. 9º., nº. 1, do Decreto-Lei nº. 5/91/M, de 28 de
Janeiro”, visto que não “estando ainda concretizada na lei qual a quantidade
necessária para o consumo individual durante três dias, há que recorrer ao
entendimento que vem sendo expresso na Jurisprudência dos nossos Tribunais que
aponta para os 2 gramas diários, nomeadamente, quando se trata da substância
metanfetamina (por todos cfr. Ac. de 02/06/99, Proc. n.º 1073, in “Jurisprudência
1999”, p. 760)”.
Assim, a solução a dar a esta Questão A – aliás, tida como fulcral para o
conhecimento do objecto do recurso sub judice, dado que a improcedência da
mesma prejudica o conhecimento da Questão B, colocada como
consequência necessária do provimento da Questão A – reside em saber se se
está in casu perante uma “quantidade diminuta” para efeitos da convolação
do crime do art.º 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 5/91/M por que vinha
condenado no crime privilegiado de tráfico de quantidades diminutas previsto
e punível pelo art.º 9.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
Processo n.º 39/2002-I 26/41
Da matéria de facto acima fixada, se retira que estão em causa nos
presentes autos:
– 40 comprimidos encontrados no corpo do arguido (A), em 20 de
Junho de 2001 no posto fronteiriço da Porta do Cerco, suspeitos de
serem comprimidos “ecstasy”, em relação aos quais se veio
detectar que continham metanfetamina e ketamina, substâncias
essas constantes respectivamente das Tabela II-B e II-C do
Decreto-Lei n.º 5/91/M (com redacção dada pela Lei n.º 4/2001);
– e mais 20 comprimidos “ecstasy” que ele trouxe para Macau na
vez anterior.
Assim sendo, para decidir da Questão A, é de atender à metanfetamina
contida nos tais 40 comprimidos encontrados naquele dia 20 de Junho de
2001, pois se esta parte ultrapassar a quantidade considerada necessária para
consumo individual durante três dias, já improcederá o recurso neste ponto,
caso contrário, haverá que considerar também a “droga” na vez anterior, isto
independentemente da jurisprudência de Macau no sentido de que no crime
de tráfico de droga está em causa não só a droga concretamente apreendida
num determinado processo, mas também a quantidade de droga que durante
uma determinada época foi traficada pelo agente.
É, pois, atento o espírito da doutrina do TUI no douto Aresto de 30 de
Maio de 2000, de considerar apenas a substância metanfetamina contida nos
referidos 40 comprimidos e proibida pelo Decreto-Lei n.º 5/91/M, em relação
Processo n.º 39/2002-I 27/41
à qual já se apurou acima o seu peso líquido, abstraindo-se por enquanto da
substância ketamina também comprovadamente contida nos 40 comprimidos
em causa e proibida pelo Decreto-Lei n.º 5/91/M com a entrada já em vigor
da Lei n.º 4/2001 à data em que o arguido foi abordado pelo pessoal da
Polícia Marítima e Fiscal no posto fronteiriço da Porta do Cerco, já que por
outro lado não se conseguiu apurar o peso líquido da substância ketamina.
Entretanto, à falta de definição na doutrina fixada pelo TUI, nesse seu
douto Aresto, de qual a quantidade de metanfetamina existente nas e para as
condições concretas apuradas nos presentes autos, considerada como não
execedente da necessária para consumo individual durante três dias para os
efeitos do n.º 3 do art.º 9.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, com pertinência para a
aplicabilidade, in casu, do tipo de crime privilegiado do art.º 9.º, n.º 1, do
mesmo diploma, entendemos que temos que formar, por nós próprios, a
convicção acerca da questão de “quantidade diminuta”, pois se nos afigura
que a douta doutrina exposta pelo TUI naquele mesmo Aresto, com força
obrigatória para o presente processo, tem por objecto determinar a
necessidade de, em regra, apurar a quantidade líquida da substância ou
substâncias estupefacientes activas existentes no interior de comprimidos,
sempre que isto seja tecnicamente possível, a fim de possibilitar uma matéria
de facto assente suficientemente completa que possa servir de base para a
adopção de diversas soluções plausíveis de direito ao caso concreto
considerado, e já não impor uma certa convicção acerca de qual a quantidade
que se deva ser considerada como não excedente para consumo individual
durante três dias, para o caso concreto dos presentes autos.
Processo n.º 39/2002-I 28/41
Assim sendo, ao decidir novamente da causa, nos termos do art.º 650.º do
CPC de Macau, aplicável ao presente processo nos termos considerados no
mencionado douto Aresto do TUI, há que chamar aqui à colação, as regras da
experiência vividas pela generalidade dos consumidores da metanfetamina
apresentada e contida no interior do tipo de comprimidos em causa, a fim de
formar a convicção do julgador a nível de emissão do juízo de valor acerca da
verificação ou não, in casu, de “quantidade diminuta”, nos termos e em prol
do espírito do n.º 5 do art.º 9.º do referido Decreto-Lei, já que, aliás, não se
provou nos autos qual a quantidade consumida individualmente pelo arguido
ora recorrente e se o fazia todos os dias.
Ora, atentos os 1,198 gramas líquidos da substância metanfetamina
contida e dispersa por 40 comprimidos em causa, e consideradas, em especial,
as condições normais em que esses comprimidos que a contêm são
consumidos pelo comum dos seus consumidores do tipo do homem médio, é
da nossa convicção de que não se verifica no caso concreto dos autos,
nenhuma “quantidade diminuta” para os efeitos do art.º 9.º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 5/91/M.
Convicção nossa esta que se funda nas seguintes regras da experiência
humana na normalidade das situações:
– a) Os consumidores comuns de comprimidos do tipo idêntico ao dos
Processo n.º 39/2002-I 29/41
presentes autos são adolescentes de “middle-class” e adultos jovens
participantes de “rave party” ou frequentadores de “night-club” e “bar” ou
mesmo de festas ou convívios em privado, os quais pretendem, através desses
comprimidos tidos como “droga de design”, “sentir alto” no lazer que se faz
nesse tipo de festas ou convívios;
– b) Assim, este tipo de comprimidos são adquiridos por seus
consumidores comuns acima referidos por unidade de comprimidos, por
preços calculados e cobrados também por unidade de comprimidos, e não por
x grama(s) (ou outra unidade de peso) de quantidade líquida da substância
pura de metanfetamina contida no seu interior, visto que como esses
comprimidos que se traficam ilegalmente são, na normalidade das situações
da experiência humana, fabricados clandestinamente, sem controlo rigoroso
da qualidade, nem etiqueta identificativa dos seus ingredientes, os normais
traficantes retalhistas dos mesmos não sabem ao certo qual a quantidade
líquida da substância activa ou pura de metanfetamina contida no interior do
tipo de comprimidos em causa, por um lado, e, por outro, quanto ao comum
dos seus consumidores adquirentes, não lhe é possível saber de antemão e ao
exacto a quantidade dessa substância activa contida no interior dos
comprimidos a adquirir àqueles, uma vez que é já dado adquirido de que essa
quantidade líquida só se pode apurar através de exames ou testes laboratoriais
com recurso a equipamentos ou aparelhos científicos sofisticados, aos quais
pelo menos o comum dos consumidores (e também dos referidos traficantes
retalhistas) não têm acesso;
Processo n.º 39/2002-I 30/41
– c) Aliás, o mais importante é que os comprimidos do tipo em causa,
nas situações normais da vida humana dos seus consumidores comuns, não
podem ser nem são consumidos por três dias seguidos, exactamente porque
após o estado de exaustão do corpo humano resultante do efeito de “sentir
alto” com a sua ingestão oral, o seu consumidor comum carece de tempo para
se recuperar fisicamente, pelo que ninguém, do tipo do homem médio e
razoável, se propõe a “sentir alto” com consequente estado de exaustão
corporal durante três dias ou noites consecutivas através da ingestão deste
tipo de comprimidos, ao que acresce que ninguém se atreve, sob pena de
correr grave risco se não mortal à sua saúde, a ingerir, na normalidade das
situações da vida humana, mais do que um ou dois comprimidos do tipo em
causa numa mesma só ocasião de “rave party” ou convívio na discoteca ou
mesmo em privado com amigos (festas ou convívios estes que, para o comum
dos seus frequentadores ou participantes, também não são pelo mesmo
participados com consumo do tipo de comprimidos em causa em todos os três
dias ou noites seguidas), já que por um lado, ninguém lhe garante que o
comprimido a tomar só contenha uma quantidade ínfima de metanfetamina, e
mesmo que lhe “garanta” isto, a gente também não ingere numa mesma
ocasião de festas ou convívios acima referidos mais do que um ou dois
comprimidos, por causa da natureza destes como “droga para lazer” e não
droga clássica que cria e sustenta toxicodependência habitual (no sentido
próprio do termo) como o caso de heroína, cocaína ou de marijuana, etc..
E nem se diga que se o comum dos consumidores desse tipo de
comprimidos em questão soubesse, de antemão, da quantidade líquida exacta
da substância ou substâncias activas proibidas contidas no seu interior, e se a
achasse tão ínfima que não chegaria a “sentir alto”, já estaria disposto a
Processo n.º 39/2002-I 31/41
ingerir, por exemplo numa mesma ocasião, maior número de comprimidos,
por exemplo, uma dezena de comprimidos para poder sentir o mesmo grau
pretendido de “sentir alto”. É que esta observação está a divergir das regras
da experiência humana na normalidade das situações acima expendidas a
respeito das condições normais em que os comprimidos do tipo em causa são
consumidos. Entretanto, ela já será adequada se se tratar de metanfetamina
apresentada no seu estado puro à vista desarmada e sem ser contida em
comprimido, pois neste caso, como o comum dos seus consumidores já
consegue prever qual a quantidade líquida da mesma substância activa, já se
sente livre e com vontade para a consumir na quantidade que desejar a fim de
matar as suas necessidades com os efeitos da substância activa em questão.
Em conclusão e para nós, se não fosse o art.º 9.º do Decreto-Lei n.º
5/91/M, provado que está qualquer acto descrito no tipo de crime do seu art.º
8.º, o agente do mesmo seria punido sempre pela moldura fundamental do
art.º 8.º, exceptuando obviamente os casos em que o acto praticado tivesse
por finalidade exclusiva conseguir as substâncias ou preparados para uso
pessoal dele, situação em que seria punido pela moldura mais leve do art.º
11.º do mesmo diploma legal.
Assim sendo, provado que está que o agente conhecia as características e
a natureza legalmente proibida da substância activa contida nos 40
comprimidos em causa, e mesmo assim, “traficou” de livre vontade mas não
por finalidade exclusiva para conseguir substâncias ou preparados para seu
uso pessoal, sabendo que assim procedendo iria contrariar a lei, o mesmo
agente tem que ser punido a título da autoria material, na forma consumada,
Processo n.º 39/2002-I 32/41
do crime do art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, salvo se a entidade julgadora
(como o tribunal competente a conhecer do caso) e apenas esta entidade
julgadora entender, sob a égide do espírito do n.º 5 do art.º 9.º do mesmo
Decreto-Lei, portanto, por sua livre convicção e segundo as regras da
experiência, que a quantidade em questão “não excede o necessário para
consumo individual durante três dias”, hipótese em que o agente só será
punido com a moldura mais leve do art.º 9.º do mesmo diploma legal.
Com efeito, não se pode admitir que seja necessário ao arguido ora
recorrente ou ao comum dos consumidores do tipo de comprimidos com
metanfetamina no seu interior consumir pelo menos 13 comprimidos desses
por dia, segundo a nossa convicção fundada com base nas regras da
experiência na normalidade das situações da vida humana nas condições do
consumo do tipo desses comprimidos, os quais são consumidos para lazer em
festas ou convívios em discoteca ou em privado.
Sendo certo que a conclusão para os efeitos do n.º 3 do art.º 9.º do
Decreto-Lei n.º 5/91/M já seria outra se os 1,198 gramas líquidos da
metanfetamina em causa fossem apresentados no seu estado puro e à vista
desarmada, por não serem contidos em comprimidos, já que neste caso, o
comum dos seus consumidores já consome esta substância neste estado puro,
conforme a sua própria necessidade e em quantidade que pretender e
previamente dela ciente, condições e realidade de consumo estas que são
diferentes daquelas como as do caso concreto dos comprimidos em causa nos
autos, em que a metanfetamina está “encoberta” dentro de comprimidos, e até
misturada com outras substâncias activas e/ou impurezas, para cujo consumo
nas suas condições normais acima referidas, o comum dos consumidores não
vai nem está disposto a “desmantelar” primeiro o comprimido ou os
Processo n.º 39/2002-I 33/41
comprimidos a fim de extrair dele(s) a quantidade líquida da metanfetamina
que pretenda tomar para alcançar lazer nas ditas festas ou convívios, pois
para este “objectivo” ele optará com certeza pela aquisição da metanfetamina
no seu estado puro e não contida em comprimido, dada toda a inconveniência
desse “desfazer” do comprimido em ocasiões de festas ou convívios referidas,
por estar contra a lógica e pretensão do próprio lazer pretendido, para além da
inerente inviabilidade técnica, para o comum dos consumidores, da extracção
e determinação da quantidade líquida exacta da substância activa em causa
contida no comprimido.
Por aí se conclui pela improcedência do pedido de convolação do crime
de tráfico p. e p. pelo art.º 8.º, n.º 1, do dito Decreto-Lei n.º 5/91/M, pelo qual
o arguido recorrente vinha condenado pelo Tribunal a quo, para o de tráfico
de quantidades diminutas do art.º 9.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, devendo
ele ser mesmo condenado pela autoria material, na forma consumada, de um
crime de tráfico do art.º 8.º, n.º 1, já que estão efectivamente preenchidos os
elementos objectivos e subjectivos deste tipo-de-ilícito e este TSI não dá por
verificada nenhuma “quantidade diminuta” segundo a livre convicção e as
regras da experiência vividas pelo comum dos consumidores nas condições
normais do consumo para lazer do tipo dos comprimidos em causa que
contêm no seu interior a metanfetamina.
E com esta conclusão fica, por outro lado, prejudicada a apreciação da
Questão B acima indicada como componente do objecto do presente recurso,
colocada pelo recorrente apenas como corolário lógico da procedência da
pretendida convolação para o crime do art.º 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
5/91/M, e não como uma questão autónoma traduzida em pedir a diminuição
da pena então aplicada a ele pela prática do crime do tráfico do art.º 8.º, n.º 1,
Processo n.º 39/2002-I 34/41
do mesmo diploma.
IV
Resumindo e concluindo:
1. O Tribunal de Segunda Instância, quando julgue em recurso,
conhece de matéria de facto e de direito, excepto disposição em contrário das
leis de processo.
2. O juízo técnico e científico constante de um relatório de exame
laboratorial respeitante ao peso líquido total de uma dada substância
estupefaciente contida no interior de comprimidos submetidos ao exame
presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
3. Isto porque em matéria de prova pericial, o Código de Processo
Penal, no seu art.º 149.º, n.º 1, determina que o juízo técnico, científico ou
artístico se presume subtraído à livre apreciação do julgador, o que traduz
uma excepção ao princípio da livre apreciação da prova consagrado no seu
art.º 114.º.
4. Significa isto que o julgador, embora mantendo a inteira liberdade de
apreciação da base de facto pressuposta pelo perito – e, contrariando-a, pode
furtar validade ao parecer – só pode divergir do juízo contido no parecer do
perito, fundamentando devidamente a divergência, se puder fazer uma
apreciação também técnica, científica ou artística, ou se se tratar de um caso
inequívoco de erro (art.º 149.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
5. Se a alteração dos factos descritos na acusação for não substancial e
Processo n.º 39/2002-I 35/41
derivar da alegação nesse mesmo exacto sentido pelo próprio arguido, não é
necessária a comunicação prévia a ele nem concessão de tempo estritamente
necessário para a preparação da defesa, sob pena de uma ilógica processual
traduzida em o arguido ter de defender contra uma coisa que ele tiver alegado
para a sua própria defesa (cfr. art.º 339.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo
Penal).
6. Sob pena de se sacrificarem gratuitamente a economia e celeridade
processuais, só se ordena o reenvio do processo para novo julgamento no
tribunal a quo como uma medida de ultima ratio, a empregar apenas no caso
de não for possível ao tribunal ad quem decidir da causa, como preceitua
expressamente no art.º 418.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
7. Provado que está que o agente conhecia as características e a
natureza legalmente proibida de uma dada substância estupefaciente contida
no interior de 40 comprimidos, e mesmo assim, “traficou” de livre vontade
mas não por finalidade exclusiva para conseguir substâncias ou preparados
para seu uso pessoal, sabendo que assim procedendo iria contrariar a lei, o
mesmo agente tem que ser punido a título da autoria material, na forma
consumada, do crime do art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, salvo se o
tribunal competente a conhecer do caso e apenas esta entidade julgadora
entender, sob a égide do espírito do n.º 5 do art.º 9.º do mesmo Decreto-Lei,
por sua livre convicção e segundo as regras da experiência, que a quantidade
em questão “não excede o necessário para consumo individual durante três
dias”, hipótese em que o agente só será punido com a moldura mais leve do
art.º 9.º do mesmo diploma legal.
8. Não se provando nos autos qual a quantidade consumida pelo
Processo n.º 39/2002-I 36/41
arguido e se o fazia todos os dias, na definição de qual a quantidade de
metanfetamina apresentada em determinado número de comprimidos que a
contêm no seu interior, considerada como não execedente da necessária para
consumo individual durante três dias para os efeitos do n.º 3 do art.º 9.º do
Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro, com pertinência para a
aplicabilidade do tipo de crime privilegiado do art.º 9.º, n.º 1, do mesmo
diploma, há que recorrer às regras da experiência vividas pela generalidade
dos consumidores da metanfetamina apresentada e contida no interior do tipo
de comprimidos em causa, a fim de formar a convicção do julgador a nível de
emissão do juízo de valor acerca da verificação ou não, in casu, de
“quantidade diminuta”, nos termos e em prol do espírito do n.º 5 do art.º 9.º
do referido Decreto-Lei.
9. Estando em causa 1,198 gramas líquidos da substância
metanfetamina contida e dispersa em 40 comprimidos, e consideradas as
condições normais em que esses comprimidos são consumidos pelo comum
dos seus consumidores do tipo do homem médio, é de formar a convicção de
que não se verifica in casu nenhuma “quantidade diminuta” para os efeitos do
art.º 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
10. Pois, os comprimidos deste tipo como “droga para lazer”, nas
situações normais da vida humana dos seus consumidores comuns, não
podem ser nem são consumidos por três dias seguidos, exactamente porque
após o estado de exaustão do corpo humano resultante do efeito de “sentir
alto” com a sua ingestão oral, o seu consumidor comum carece de tempo para
se recuperar fisicamente, pelo que ninguém, do tipo do homem médio e
razoável, se propõe a “sentir alto” com consequente estado de exaustão
corporal durante três dias consecutivos através da ingestão deste tipo de
Processo n.º 39/2002-I 37/41
comprimidos.
11. A tese de que se o comum dos consumidores desse tipo de
comprimidos em questão soubesse, de antemão, da quantidade líquida exacta
da substância ou substâncias activas proibidas contidas no seu interior, e se a
achasse tão ínfima que não chegaria a “sentir alto”, já estaria disposto a
ingerir maior número de comprimidos, por exemplo, uma dezena de
comprimidos para poder sentir o mesmo grau pretendido de “sentir alto”,
diverge das regras da experiência humana na normalidade das situações a
respeito das condições normais em que os comprimidos do tipo em causa são
consumidos, uma vez que estando a substância activa em causa encoberta
dentro de comprimidos, normalmente miturada com outras substâncias
activas e/ou impurezas, para cujo consumo nas suas condições normais, o
comum dos consumidores não vai nem está disposto a “desmantelar”
primeiro os comprimidos a fim de extrair deles a quantidade líquida da
substância activa que pretenda tomar para alcançar lazer em festas ou
convívios em discoteca ou em privado, pois para este “objectivo” ele optará
com certeza pela aquisição da mesma substância activa no seu estado puro e
não contida em comprimido, dada toda a inconveniência desse “desfazer” do
comprimido em ocasiões de “rave party” ou convívios em discoteca ou em
privado, para além da inerente inviabilidade técnica, para o comum dos
consumidores, da extracção e determinação da quantidade líquida exacta da
substância activa em causa contida no interior dos comprimidos.
12. Entretanto, essa tese já será adequada se se tratar de uma substância
activa consumida no seu estado puro à vista desarmada e sem ser contida em
comprimido, pois neste caso, como o comum dos seus consumidores já
consegue prever a quantidade líquida da mesma substância, já se sente livre e
Processo n.º 39/2002-I 38/40
com vontade para a tomar na quantidade que desejar a fim de matar as suas
necessidades com os efeitos da mesma.
V
Em harmonia com todo o acima fundamentado, acorda-se em:
1. Aditar o seguinte facto dado como provado à matéria de facto fixada
pela Primeira Instância:
– “O peso líquido total de Metanfetamina contida nos 40 comprimidos
apreendidos ao arguido e enviados ao exame do Laboratório de Polícia
Científica da Polícia Judiciária, realizado a pedido dele formulado e deferido
na audiência de 10 de Dezembro de 2001, é de 1,198 gramas.”
2. E negar provimento ao recurso interposto pelo arguido (A) do
acórdão proferido em 18 de Janeiro de 2002 pela Primeira Instância.
Custas pelo recorrente, com 3 UC de taxa de justiça.
Macau, 18 de Julho de 2002.
Chan Kuong Seng (1.º juiz-adjunto e relator do acórdão) Lai Kin Hong (2.º Juiz-Adjunto)
Processo n.º 39/2002-I 39/40
José Maria Dias Azedo (vencido, nos termos da declaração que anexo) (Relator do processo)
Processo n.º 39/2002-I 40/40
Processo nº 39/2002-I
Declaração de voto (de vencido)
Como relator, considerando inviável a esta Instância sanar o vício de
“insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, elaborei projecto
de acórdão no qual propunha o reenvio dos presentes autos ao Tribunal
Judicial de Base.
Na conferência que se realizou no passado dia 11 do corrente mês, e
perante o entendimento perfilhado pelos Exmºs Colegas 1º e 2º Adjuntos e
ora vertido no Acórdão que antecede esta declaração, fiquei vencido, e, nesta
conformidade, atento o disposto no artº 621º nº 1 do C.P.C.M., aqui passo a
sintetizar os motivos que me levaram a divergir da solução que fez
vencimento.
A questão que em primeira mão se colocava na presente lide recursória,
era, desde logo, a de saber se podia este Tribunal sanar o apontado vício de
“insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, decidindo qual a
quantidade de metanfetamina contida nos 40 comprimidos apreendidos ao
arguido/recorrente; (cfr. Ac. do T.U.I. de 30.05.2002, Proc. nº 7/2002, a fls.
263 a 271).
Processo n.º 39/2002-I 41/41
Como já se fez referência, estatui o artº 39º da Lei de Bases da
Organização Judiciária que: “excepto disposição em contrário das leis de
processo, o Tribunal de Segunda Instância, quando julgue em recurso,
conhece de matéria de facto e de direito”; (sub. nosso)
Em harmonia com o assim preceituado, dúvidas não há que, como
“regra geral”, pode esta Instância, em sede de recurso – como é o presente
caso – suprir insuficiências quanto à factualidade dada por assente em
julgamento ocorrido em Tribunal da Primeira Instância.
Todavia, e antes de mais, importa atentar nas referidas “leis de
processo”, e, “in casu”, no estatuído no artº 629º do C.P.C.M. (aqui aplicável
por força do artº 4º do C.P.P.M.), o qual dispõe que:
“1. A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto
pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que
serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em
causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados,
tiver sido impugnada, nos termos do artigo 599.º, a decisão com
base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão
diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
Processo n.º 39/2002-I 42/42
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que,
por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão
assentou.
2. No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número
anterior, o Tribunal de Segunda Instância reaprecia as provas em que
assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo
das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente
atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham servido de
fundamento à decisão de facto impugnada.
3. O Tribunal de Segunda Instância pode determinar a renovação dos meios
de prova produzidos em primeira instância que se mostrem absolutamente
indispensáveis ao apuramento da verdade, quanto à matéria de facto objecto
da decisão impugnada, aplicando-se às diligências ordenadas, com as
necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e
julgamento na primeira instância e podendo o relator determinar a comparência
pessoal dos depoentes.
4. Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos
termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode
o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão
proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou
contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou
quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento
não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o
Processo n.º 39/2002-I 43/43
tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de
facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
5. Se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da
causa não estiver devidamente fundamentada, pode o Tribunal de Segunda
Instância, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de primeira
instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou escritos ou
repetindo a produção da prova, quando necessário; sendo impossível obter a
fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da
causa limita-se a justificar a razão da impossibilidade”; (sub. nosso)
Perante o assim preceituado, sendo que quanto à questão “sub judice”,
apenas constam destes autos um relatório elaborado pelo Laboratório da
Polícia Judiciária no qual se fez constar conter os ditos 40 comprimidos,
“1,198 gramas de metanfetamina” cremos, ressalvado o muito respeito
devido a opinião diversa, impor-se o reenvio do processo.
Com efeito, não obstante estatuir o nº 1 do artº 149º do C.P.P.M. que “a
prova pericial presume-se subtraída à livre apreciação do julgador”,
despiciendo não é, ter-se também presente que – para além de ter tal
normativo em vista, exclusivamente, o parecer pericial propriamente dito e
não os pressupostos de facto sobre os quais se firma – logo no seu nº 2 se
preceitua que “sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido
no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência”.
Processo n.º 39/2002-I 44/44
Assim – e como no Acórdão que antecede esta declaração também já se
consignou, citando-se o nosso projecto – não constando dos presentes autos
todas as provas produzidas no julgamento efectuado pelo Tribunal “a quo” –
visto que não houve registo das declarações e depoimentos prestados – e não
constituindo o referido relatório, elemento probatório ao qual,
incondicionalmente, se possa considerar estar este Tribunal vinculado,
afigura-se-me não poder esta Instância suprir a referida insuficiência dando
como assente a quantidade de metanfetamina contida nos referidos 40
comprimidos apenas com base no dito relatório da P.J., (até mesmo porque,
ignorando esta Instância quais os motivos que levaram o Colectivo “a quo” a
não incluir na matéria de facto que deu como provada a quantidade de
metanfetamina consignada no referido relatório – após ter expressamente
ordenado o exame aos comprimidos e na factualidade que considerou assente,
fazer referência ao “exame laboratorial” – podendo, assim, eventualmente, ter
tido razões para com o dito relatório discordar, e por lapso, não o ter
consignado, parece-nos, no mínimo, prematuro, dar-se o seu teor por
“inquestionável”).
Nesta conformidade, somos pois de opinião que tão só através de novo
julgamento e da análise crítica e global de todas as provas então produzidas
se poderá decidir da questão em causa.
Processo n.º 39/2002-I 45/45
Daí, não considerando o ora consignado um “venire contra factum
proprium”, já que, na declaração de voto que anexei ao veredicto deste T.S.I.
de 04.04.2002, perante a questão que aí se colocava de saber se a quantidade
de 1,198 gramas de metanfetamina constituía “quantidade diminuta” para os
efeitos do artº 9º do D.L. nº 5/91/M, tão só por lapso não atentei que tal
“facto” não constava da factualidade pelo Tribunal “a quo” considerada
provada, crendo ainda não se dever sacrificar os princípios da segurança e
certeza jurídica em prol dos princípios da economia e celeridade processual, e
não me parecendo constituir a questão “sub judice” uma mera questão de
“alteração dos factos”, uma vez que para se alterar, há que, antes, poder-se
dar como “assente” o “facto novo”, ter pugnado pelo reenvio dos presentes
autos ao Tribunal “a quo” – (cfr. artº 400º, nº 2, al. a) e 415º, nº 1 e 2 do
C.P.P.M.) – e, face ao entendimento sustentado pelos meus Exmºs Colegas
que, sem embargo do muito respeito devido, não pude subscrever, esta
declaração.
Macau, aos 18 de Julho de 2002
José Maria Dias Azedo
Processo n.º 39/2002-I 46/46