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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

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Redefinições das fronteirasentre o público e o privado:

implicações para ademocratização da educação

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Redefinições das fronteirasentre o público e o privado:

implicações para ademocratização da educação

Vera Maria Vidal PeroniOrganizadora

2013

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© Autores e autoras – 2013

Editoração e impressão: Oikos

Capa: Juliana Nascimento

Revisão: Rui Bender

Arte-final: Jair de Oliveira Carlos

Catalogação na publicação:Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184

R314 Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: impli-cações para a democratização da educação. / Organizado-ra Vera Maria Vidal Peroni. Brasília: Liber Livro, 2013.352 p.; 16 x 23cm.ISBN 978-85-.......-......-......1. Educação. 2. Política educacional – Relação – Público-

privado. 3. Democratização da educação. 4. Relação – Edu-cação pública e privada. I. Peroni, Vera Maria Vidal.

CDU 37

Liber Livro Editora Ltda.

CLN – Qd. 315 – Bloco “B”Sala 15 – Asa Norte/DF70774-520 Brasília/DFFone: (61) 3965-9667Fax: (61) [email protected]

Conselho Editorial

Bernardete A. GattiIria BrzezinskiMaria Celia de AbreuOsmar FaveroPedro DemoRogério de Andrade CórdovaSofia Lerche Vieira

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Sumário

Apresentação ....................................................................................... 7

A privatização do público: implicações para a democratizaçãoda educação ......................................................................................... 9

Vera Maria Vidal Peroni

A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social e as redes de políticasglobais em educação ........................................................................... 33

Stephen J. BallAntonio Olmedo

Autonomia das escolas: entre público e privado................................... 48João Barroso

Diretor(a) de escola pública: unipessoalidade e concentraçãodo poder no quadro de uma relação subordinada ................................ 58

Licínio C. Lima

Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação.Notas de um estudo no campo da Educação e Formaçãode Adultos em Portugal ...................................................................... 82

Fátima Antunes

Paixão pela educação... privada – Educação e terceira via emPortugal: da Revolução dos Cravos aos nossos dias ........................... 120

Raquel VarelaSandra Duarte

Las actividades de extension en el marco de la “responsabilidadsocial universitaria” y las politicas de “tercera via” ............................ 140

Susana E. ViorLaura R. Rodríguez

O histórico da relação público-privada no Brasil: o enfoque jurídico .. 159Daniela de Oliveira Pires

A influência das consultorias internacionais nas decisões daspolíticas educacionais no Brasil ......................................................... 175

Jaqueline Marcela Villafuerte BittencourtMaria de Fátima Oliveira

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Relação público-privada no Programa de Desenvolvimento daEducação: uma análise do plano de ações articuladas ........................ 198

Alexandre José RossiLiane Maria BernardiLucia Hugo Uczak

Expansão da Educação Infantil através de parceria público-privada:algumas questões para o debate (quantidade versus qualidade noâmbito do direito à educação) ........................................................... 220

Maria Luiza Rodrigues FloresMaria Otília Kroeff Susin

As parcerias público-privadas na educação brasileira e as decorrênciasna gestão da educação: o caso do Instituto Ayrton Senna (IAS) ......... 245

Luciani Paz ComerlattoMaria Raquel Caetano

Sistema de ensino Aprende Brasil – Grupo POSITIVO...................... 266Monique Robain Montano

Relação público-privada na Educação Básica no Brasil: uma análiseda proposta do Instituto Unibanco para o Ensino Médio público ....... 276

Marcelisa Monteiro

O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – Pronatec: um olhar a partir das relações entre o público e o privado.. 290

Maurício Ivan dos SantosRomir de Oliveira Rodrigues

A relação entre a educação pública e a privada na EducaçãoEspecial brasileira ............................................................................. 308

Fabíola Borowsky

AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado: a parceria público-privadanas políticas de educação de jovens e adultos ..................................... 327

Denise Maria ComerlatoJaira Coelho Moraes

Sobre autores e autoras ..................................................................... 347

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Apresentação

Este livro tem como objetivo apresentar resultados parciais da pes-quisa financiada pelo CNPQ: “Parcerias entre sistemas públicos e institui-ções do terceiro setor: Brasil, Argentina, Portugal e Inglaterra e as implica-ções para a democratização da educação”, que busca entender como paísescom trajetórias distintas em termos de papel do Estado na consecução dodireito à educação vivenciam esse período particular do capitalismo e asconsequentes mudanças na relação entre o público e o privado e a interven-ção da lógica do privado na educação pública.

A ideia é conhecer a produção internacional e avançar nos estudosdo referencial teórico metodológico e estabelecer um diálogo mais sistemá-tico com grupos de pesquisa que estudam o tema nas suas realidades. Con-sideramos importante avançar na discussão das especificidades e regulari-dades vivenciadas pelos países, levando em consideração tanto a sua histo-ricidade como a correlação de forças políticas atuais, relacionando assim oparticular e o universal, o local e o global, no que Harvey chama de capita-lismo histórico e geográfico (HARVEY, 2004).

Para dialogar com os outros países, analisamos as políticas educacio-nais que envolvem a relação entre público e privado na educação básica noBrasil em todas as etapas (infantil, fundamental e médio) e modalidades(Educação de Jovens e Adultos, Educação Especial e Educação Profissio-nal), assim como o histórico dessa relação e a atual proposta de gestão públi-ca do governo federal e a assessoria do grupo internacional Mackinzei aogoverno federal. Os temas foram divididos entre os integrantes do grupo.

O grupo de pesquisa está vinculado ao Programa de Pós-Graduaçãoem Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU/UFRGS) e é composto por uma bolsista de PIBIC, mestrandos, doutoran-dos, pós-doutorandos, mestres, doutores e docentes do programa, assimcomo pesquisadores de outras instituições, totalizando 16 membros. Esse

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coletivo estuda o tema público-privado desde 2001 e na atual pesquisa rea-liza reuniões periódicas em que cada subgrupo traz para a discussão docoletivo seus dados e análises, assim o grupo participa da elaboração emtodas as fases do processo.

A metodologia é debatida coletivamente e tem como desafio perma-nente analisar as implicações das várias formas de relação público-privadapara a democratização da educação no Brasil. No primeiro momento, paraa análise temos como principais parâmetros: se o programa ou a parceriaampliou o acesso à educação e a concepção educacional ou o conteúdo daproposta. O levantamento das fontes é realizado através da coleta de docu-mentos, legislação, dados estatísticos e, sempre que possível, de entrevistas.E também nas páginas oficiais dos programas ou instituições do terceirosetor analisados, como: Instituto Ayrton Senna, Instituto Unibanco e ou-tros.

O livro está distribuído em duas partes: a primeira trata das mudan-ças no papel do Estado e das redefinições nas fronteiras entre o público e oprivado, materializadas das mais diferentes formas nas políticas educacio-nais dos países envolvidos na pesquisa. A segunda apresenta o estudo dogrupo brasileiro que fez um mapeamento das diferentes formas de relaçãoentre o público-privado presentes nas políticas educacionais de educaçãobásica no Brasil.

Com este livro pretendemos ampliar o diálogo inicialmente propostoentre o grupo brasileiro e os grupos internacionais, para que outros pesqui-sadores possam participar dessa importante discussão em um momentohistórico de avanço na privatização do público.

Apresentação

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A privatização do público: implicaçõespara a democratização da educação

Vera Maria Vidal Peroni

Este artigo objetiva apresentar reflexões para fomentar o diálogo acer-ca das redefinições no papel do Estado e das fronteiras entre o público e oprivado em um contexto de crise do capital com implicações para a demo-cracia e direitos sociais.

São muitas as formas de materialização das relações entre o públicoe o privado nas políticas educacionais atualmente. Priorizaremos a análisede três processos: as parcerias entre instituições do terceiro setor e sistemaspúblicos de educação, a assessoria de instituições privadas que influenciamnas políticas públicas brasileiras e os programas governamentais que tra-zem a lógica gerencial do mercado para o sistema público de educação.

É importante destacar que, em nosso enfoque teórico metodológico, apolítica educacional não é, simplesmente, determinada pelas mudançasmacrossociais e econômicas, mas é parte constitutiva dessas mudanças (PE-RONI, 2003). Concordamos com Harvey (2005) que o Estado, assim comocapital, deve ser visto como relação ou processo. Assim entendemos que ele éparte importante do movimento de correlação de forças de sujeitos1 situadosem um contexto histórico e geográfico2. A democracia também não é enten-dida como uma abstração, mas a materialização de direitos e de igualdadesocial3 (WOOD, 2003) e a “coletivização das decisões” (VIEIRA, 1998) comefetiva participação na elaboração de políticas com base na prática socialcrítica e autocrítica no curso de seu desenvolvimento (MÉSZÁROS, 2002).

Assim entendemos que tanto o Estado como a sociedade civil são per-passados por correlações de forças de classes sociais e projetos societáriosdistintos. Nesse sentido, destacamos que estamos tratando em nossas pes-

1 Sujeitos na concepção de Thompson (1981).

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quisas da sociedade civil mercantil, onde o privado está vinculado ao mer-cado. O foco da análise é a privatização do público com implicações para ademocratização da educação.

É importante deixar claro que, ao tratarmos do tema público-privado,não estamos fazendo uma contraposição entre Estado e sociedade civil, masestamos nos referindo a interesses públicos e privados em uma sociedade declasses que perpassam o Estado e a sociedade civil. Destacamos inclusive quefoi uma parte da sociedade civil que lutou contra o Estado e a sociedade daditadura no Brasil e que continua lutando pela democracia e direitos sociais.

A questão, quando tratamos da relação entre o público e o privadoem educação, é a efetivação de direitos sociais universais materializadosem políticas sociais e o poder público como seu garantidor, não apenasenquanto acesso, mas também através de mecanismos participativos de ela-boração das políticas.

Redefinições no papel do Estado e as redefiniçõesnas fronteiras entre o público e o privado

Entendemos que as mudanças nas fronteiras entre o público e o pri-vado são partes de redefinições no papel do Estado, que ocorrem comoconsequências da profunda crise atual. Assim, com base em autores comoMészáros (2002), Harvey (2005), Brenner (2008) e Chesnais, partimos datese já desenvolvida em trabalhos anteriores4, segundo a qual existe umacrise estrutural do capital. E, nesse sentido, o neoliberalismo, a globaliza-ção, a reestruturação produtiva e a Terceira Via são estratégias do capitalpara tentar minimizar a queda na taxa de lucros. São essas estratégias queredefinem o papel do Estado e as fronteiras entre o público e o privado,tanto na alteração da propriedade como em relação ao que permanece napropriedade estatal, mas passa a ter a lógica do mercado, reorganizando osprocessos educacionais.5

2 Contexto histórico e geográfico na concepção de Harvey (2005).3 Sobre a não separação entre o econômico e o político ver WOOD (2003).4 Ver PERONI (2003, 2006) e PERONI, ADRIÃO (2005).5 Essa discussão aparece de forma mais aprofundada no meu texto “As relações entre o público

e o privado nas políticas educacionais no contexto da Terceira Via”, no livro “Reconfigurações

PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Mészáros (2011) ressalta a importância de uma avaliação adequadada natureza da atual crise econômica e social. Para o autor, a crise do capi-tal que estamos experimentando é estrutural, tem caráter universal, é glo-bal e sua escala de tempo é extensa e contínua (MÉSZÁROS, 2011).

Nesse mesmo sentido, Antunes destaca que a crise do Fordismo e doKeynesianismo foi a expressão fenomênica de um quadro crítico mais com-plexo de tendência decrescente da taxa de lucros (ANTUNES, 1999). Bren-ner (2008) concorda com a profundidade da crise e que ela está enraizadana queda das taxas de lucro. O autor destaca ainda que a “combinação dafragilidade da acumulação de capital com a crise do sistema bancário trans-formou o presente declínio econômico numa crise de difícil resolução pelopoder político e que potencialmente pode se tornar um desastre” (BREN-NER, 2008, p. 1). E adverte que quem está pagando a “conta” da crise sãoos Estados e os trabalhadores, já que ocorreu o aumento da exploraçãocom a expansão da jornada de trabalho e a diminuição salarial além doendividamento dos Estados ao financiar a crise.

Harvey (2010) enfatiza que o papel do Estado na crise atual não énada mínimo, como propõe a teoria neoliberal. Destacamos um exemplodado pelo autor que ilustra bem esse fato:

Pouco depois da falência do Lehman, alguns funcionários e banqueiros dotesouro, incluindo o Secretário do Tesouro, que era um ex-presidente daGoldman Sachs e atual diretor executivo da Goldman, surgiram de umasala de conferências com um documento de três páginas exigindo 700 bi-lhões de dólares para socorrer o sistema bancário, prenunciando um Arma-gedom nos mercados. Era como se Wall Street tivesse iniciado um golpefinanceiro contra o governo e o povo dos Estados Unidos. Algumas sema-nas depois, com ressalvas aqui e ali e muita retórica, o Congresso e, emseguida, o presidente George Bush cederam e o governo foi enviado, semqualquer controle, para todas as instituições financeiras consideradas ‘gran-des demais para falir’ (HARVEY, 2010, p. 12).

É importante destacar que o Estado foi historicamente chamado a tentarcontrolar e regular as contradições do capital e a relação capital/trabalho. Atu-almente, apesar do anunciado Estado mínimo, ele é chamado a “socorrer” ocapital produtivo e financeiro nos momentos de maior crise. Em trabalhos ante-

do Estado: implicações da Terceira Via para políticas sociais no Brasil, Portugal e Inglaterra”,Brasília. Editora Líber, 2013 (no prelo).

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riores, já constatávamos que, na crise dos anos 1990, o Estado era mínimopara as políticas sociais e máximo para o capital (PERONI, 2003); verifica-mos que no período atual de crise essa tendência permanece e se acentua.

Com base nos autores mencionados, a crise do Estado seria conse-quência e não a causa da crise do capital. No entanto, para a teoria neolibe-ral, o Estado é o culpado pela crise, tanto porque gastou mais do que podiapara se legitimar, já que tinha que atender às demandas da população porpolíticas sociais, o que provocou a crise fiscal, como porque, ao regulamen-tar a economia, atrapalhou o livre andamento do mercado. Para a teorianeoliberal, as políticas sociais são um verdadeiro saque à propriedade pri-vada, pois são formas de distribuição de renda, além de também atrapalharo livre andamento do mercado (PERONI, 2003).

Conforme Harvey, no processo de neoliberalização6, “o bem social émaximizado se se maximizam o alcance e a frequência das transações de mer-cado” (HARVEY, 2008, p. 13). Para o autor, o mercado regula inclusive o bem-estar humano. A competição é o mecanismo regulador. “as regras de base dacompetição no mercado têm de ser adequadamente observadas (...). E adverteainda que “em situações nas quais estas regras não estejam claramente estabe-lecidas ou em que ajam dificuldades para definir os direitos de propriedade, oEstado tem de usar o seu poder para impor ou inventar sistemas de mercado”.

O autor destaca ainda que para os neoliberais “ (...) a privatização e adesregulação combinadas com a competição eliminam os entraves buro-cráticos, aumentam a eficiência e a produtividade, melhoram a qualidade ereduzem os custos” (p. 76). E portanto:

o sucesso e o fracasso individuais são interpretados em termos de virtudesempreendedoras ou de falhas pessoais (como não investir o suficiente emseu próprio capital humano por meio da educação) em vez de atribuídos aalguma propriedade sistêmica (como as exclusões de classe que se costu-mam atribuir ao capitalismo) (HARVEY, 2008, p. 76).

A Terceira Via, aqui entendida como a atual social-democracia, não rom-pe com esse diagnóstico, assim o Estado não deve ser o executor das políticas,como era na antiga social-democracia, mas também não deve ser o Estadomínimo do neoliberalismo: “uma Terceira Via no sentido de que é uma tenta-

6 No livro “O neoliberalismo: história e implicações”, Harvey faz um balanço do neoliberalismona prática, o que chama de neoliberalização.

PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

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tiva de transcender tanto a social-democracia do velho estilo quanto o neolibe-ralismo” (GIDDENS, 2001, p. 36). A proposta então é reformar o Estado, mascomo tem o diagnóstico de que o Estado é ineficiente, essa reforma deve ter omercado como parâmetro de qualidade. E com esse diagnóstico, o Estadonão deve ser mais o principal executor das políticas sociais, que devem estarsob o protagonismo da sociedade civil através do terceiro setor.

Assim, o terceiro setor é uma das alternativas propostas pela TerceiraVia, tanto para que o Estado não seja mais o principal executor das políticassociais como para que o conteúdo mercantil possa, através das parcerias,aprofundar a lógica de mercado nas políticas públicas, “qualificando-as”. Éo que Giddens chama de sociedade civil modernizada, empreendedora:

O empreendedorismo civil é qualidade de uma sociedade civil moderniza-da. Ele é necessário para que os grupos cívicos produzam estratégias criati-vas e enérgicas para ajudar na lida com problemas sociais. O governo podeoferecer apoio financeiro ou proporcionar outros recursos a tais iniciativas(GIDDENS, 2007, p. 26).

Entendemos que nessa perspectiva os sujeitos ora são entendidos comoos filantropos, que se responsabilizarão pelos destinos da sociedade, masnão qualquer sociedade, nem qualquer sociedade civil, já que prega o em-preendedorismo e a concepção de mercado no conteúdo da política. As-sim, se em alguns momentos a sociedade civil parece ser uma abstração, jáque cidadãos de boa vontade em um pacto pelo bem comum seriam osresponsáveis pela execução das políticas sociais através do terceiro setor,em outro momento ele define qual é a concepção de política e de sociedadecivil. A sua concepção de política social está vinculada ao gerencialismoem uma lógica de mercado, que nada tem de “bem comum” ou de ummundo sem inimigos para além da direita e da esquerda (GIDDENS, 2001).

Já alertávamos em trabalho anterior para a imprecisão do tema ter-ceiro setor:

A primeira observação a fazer refere-se à imprecisão com que a literatura daárea trata o termo terceiro setor, ora aproximando-o de uma também gené-rica definição de sociedade civil, ora referindo-se a um formato específicojuridicamente definido de instituição privada, ora, ainda, identificando-ocom as tradicionais entidades de caráter assistencial ou filantrópico. Segue-se que o cerco à sua definição dá-se então por exclusão: o terceiro setorrefere-se a esferas da sociedade que não se encontram no mercado ou noEstado (PERONI; ADRIÃO, 2005, p. 142).

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O terceiro setor, para Carlos Montaño (2002), modifica inclusive a ques-tão social. Primeiro, com a transferência da responsabilidade da questão socialdo Estado para o indivíduo, que a resolverá através da autoajuda, ajuda mútuaou, ainda, adquirindo serviços como mercadorias. Segundo, as políticas soci-ais passam a ser focalizadas, perdendo, assim, seu princípio universalista.Terceiro, com a descentralização administrativa, as políticas tornam-se aindamais precarizadas, entre outros problemas, porque são transferidas as com-petências sem os recursos correspondentes e necessários para executá-las.

Para Harvey (2008), as ONGs vêm preencher o vácuo de direitosdeixado pelo Estado; isso “equivale a uma privatização via ONGs. Em al-guns casos, isso ajudou a acelerar o afastamento ainda maior do Estado dosbenefícios sociais. Assim, as ONGs funcionam como ‘cavalos de troia doneoliberalismo global’” (HARVEY, 2008, p. 190).

Outro aspecto bem importante que o autor ressalta é a falta de demo-cracia: “[...] as ONGs não são organizações inerentemente democráticas.Tendem a ser elitistas, a não dar satisfação a ninguém (a não ser a quem asfinancia)” (HARVEY, 2008, p. 190).

E, ainda, tem-se a falsa ideia de que a genérica sociedade civil estáparticipando quando parte de suas instituições representativas, como sindi-catos, movimentos sociais e partidos de esquerda, estão sendo arrasadascomo parte da estratégia neoliberal, enquanto a sociedade civil vinculadaao mercado tem o protagonismo e o incentivo público para interferir e ela-borar ou executar políticas sociais.

Terceira Via e Neodesenvolvimentismo

É importante ressaltar que a questão do desenvolvimentismo retornaao debate na América Latina7. Para Castelo (2009), é com a primeira elei-ção do Partido dos trabalhadores8 que inicia o debate acerca do novo-de-senvolvimentismo no Brasil:

7 Ver a Tese de Aloísio Mercadante Oliva: “As bases do Novo-desenvolvimentismo no Brasil:Análise do governo Lula (2003-2010)”; tese defendida na UNICAMP em 2010.

8 O Partido dos Trabalhadores esteve no governo brasileiro com Luis Inácio Lula da Silva em doisgovernos (2003-2010) e atualmente permanece com a presidente Dilma Roussef (2011-2014).

PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

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O objetivo dos novo-desenvolvimentistas nos parece claro: entrar, como umaespécie de Terceira Via, na disputa pela hegemonia ideo-política para a con-solidação de uma estratégia de desenvolvimento alternativa aos modelos emvigência na América do Sul, tanto ao “populismo burocrático”, representa-do por setores arcaicos da esquerda e partidários do socialismo, quanto àortodoxia convencional, representada por elites rentistas e defensores doneoliberalismo (CASTELO, 2009, p. 75).

O autor ressalta ainda qual é o papel do Estado para os novo-desen-volvimentistas:

Em síntese, o Estado deve garantir condições macroeconômicas e salvaguar-das jurídicas que reduzam a incerteza do ambiente econômico, propiciandoum horizonte mais previsível do cálculo de risco do investimento privado eaumentando, por sua vez, a demanda por fatores de produção, o emprego eos ganhos dos trabalhadores. Assim, o Brasil reduzirá a pobreza e a desi-gualdade social.O projeto novo-desenvolvimentista de intervenção na “questão social”, por-tanto, baseia-se no crescimento econômico e na promoção da equidade so-cial via igualdade de oportunidades.Esta é, grosso modo, a utopia da intelligentsia novo-desenvolvimentista (CAS-TELO, 2009, p. 78).

O autor critica o novo-desenvolvimentismo, primeiro porque apresentao Estado como complementar ao mercado e promotor do bem-estar universalacima dos distintos interesses das classes sociais. Aponta que é um retorno aoantigo nacional-desenvolvimentismo, que defendia a conciliação entre capi-tal e trabalho, tendo em vista um abstrato interesse nacional. Outro pontocriticado pelo autor é a contraposição entre burguesia produtiva e burguesiarentista. E destaca ainda que as desigualdades são explicadas a partir de umasuposta natureza humana. Para o autor, os novo-desenvolvimentistas:

ao se guiarem pelo conceito de equidade social, defendem a promoção daigualdade de oportunidades entre os indivíduos via educação. A educação,portanto, antes uma forma de emancipação humana, fica, de acordo comessa perspectiva, inteiramente subordinada aos requisitos de habilidades ne-cessárias aos processos de produção de mercadorias comandado pelo capi-tal. Neste sentido, o novo-desenvolvimentismo se assemelha, e muito, aoplanejamento econômico, em particular, e aos policy makers, em geral (BRAN-CO, 2009, p. 84).

Outro autor que contribui para a análise do tema é Mattei (2011);para o autor, o papel do Estado mudou. Para o antigo desenvolvimentismo,ele era o protagonista; no novo-desenvolvimentismo, o setor privado deve“disponibilizar recursos e suas capacidades gerenciais a favor dos investi-

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mentos produtivos” (MATTEI, 2011, p. 11). O papel do Estado no novo-desenvolvimentismo, conforme estudos do autor, é:

a) ter capacidade para regular a economia, estimulando um mercado forte eum sistema financeiro a serviço do desenvolvimento e não das atividadesespeculativas; b) fazer a gestão pública com eficiência e responsabilidadeperante a sociedade; c) implementar políticas macroeconômicas defensivase em favor do crescimento; d) adotar políticas que estimulem a competitivi-dade industrial e melhorem a inserção do país no comércio internacional; e)adotar um sistema tributário progressivo, visando reduzir as desigualdadesde renda (MATTEI, 2011, p. 11). (Grifo da autora)

O autor conclui analisando algumas inconsistências nas análises so-bre o novo-desenvolvimentismo brasileiro, que considero muito proceden-tes, como a ausência de uma discussão conceitual sobre o desenvolvimen-to, ausência de discussão sobre o envolvimento das classes sociais no novoprojeto desenvolvimentista, ausência de uma discussão política mais con-sistente de como implementar a justiça social em uma sociedade tão desi-gual e ainda dominada pelo coronelismo, autoritarismo e corrupção e, porfim, a ausência de uma discussão do cenário global no atual contexto.

É interessante observar a semelhança com o ideário da Terceira Via eimportante destacar que, enquanto os países que tinham uma correlação deforças mais propícias aos trabalhadores, discutiam o Estado de Bem-estarSocial, nós, os latino-americanos, vivemos ditaduras e o Estado nacionaldesenvolvimentista. Nesse momento, a discussão do novo-desenvolvimen-tismo retoma a proposta de desenvolvimento, mas, mais uma vez, sem muitasconexões com os direitos materializados em políticas sociais.

Em um contexto histórico recente de abertura política e dos primei-ros passos para a construção de um projeto societário democrático, pergun-tamo-nos, diante dessas discussões, acerca de neoliberalismo, Terceira Via,neodesenvolvimentismo: e a democracia? Tendo em vista o conceito dedemocracia apresentado no início deste artigo, passaremos a debater osconceitos de democracia para a teoria neoliberal e para a Terceira Via e asimplicações para a democracia da retirada do Estado como executor depolíticas sociais universais e também do protagonismo do mercado comoparâmetro de qualidade para as políticas sociais.

O neoliberalismo tem profundas críticas à democracia, pois crê queela atrapalha o livre andamento do mercado ao atender a demanda dos

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eleitores para se legitimar, provocando o déficit fiscal. A prescrição é elimi-nar o voto, o que é mais difícil, ou restringir o seu impacto através da priva-tização, desregulamentação ou repassando o poder de decisão às institui-ções privadas parceiras do Estado (PERONI, 2003).

Conforme Harvey (2008), os teóricos neoliberais têm

uma profunda suspeita com relação à democracia. A governança pelo regi-me da maioria é considerada uma ameaça potencial aos direitos individuaise às liberdades constitucionais. A democracia é considerada um luxo que sóé possível em condições de relativa afluência, associado a uma forte presen-ça da classe média para garantir a estabilidade política. Em consequência,os neoliberais tendem a favorecer a governança por especialistas e elites.

É o que verificamos em nossas pesquisas sobre a relação público-privada em que as instituições privadas cada vez mais influenciam as políti-cas nacionais em todos os níveis, desde a política nacional até a escola.

Assim, enquanto para o neoliberalismo a democracia atrapalha o li-vre andamento do mercado, para a Terceira Via a democracia deve ser for-talecida. Giddens (2001) argumenta que é preciso democratizar a democra-cia. Mas a democracia é concebida pela Terceira Via como a participaçãodo terceiro setor na execução de tarefas que deveriam ser do Estado, princi-palmente as políticas sociais. O que não difere da proposta de neodesenvol-vimentismo, como vimos no item anterior.

Wood destaca que o conceito de democracia em uma sociedade sob ahegemonia do capitalismo não pode ser visto em abstrato, pois afinal: “É ocapitalismo que torna possível uma forma de democracia em que a igualda-de formal de direitos políticos tem efeito mínimo sobre as desigualdades ousobre as relações de dominação e de exploração em outras esferas” (WOOD,2003, p. 193).

Essa análise de Wood encaminha as discussões de como, nesse perío-do particular do capitalismo, por um lado, avançamos na tão batalhadademocracia, mas, por outro, há um esvaziamento das políticas sociais en-tendidas como direito universal. Aumentou, portanto, a separação entre oeconômico e o político, historicamente presente no capitalismo, e o esvazia-mento do conteúdo da democracia. Perdeu-se a discussão das políticas so-ciais como a materialização de direitos sociais. No Brasil, as lutas e con-quistas dos anos 1980, de direitos universais, deram lugar à naturalização

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do possível, isto é, se um Estado “em crise” não executa políticas, repassapara a sociedade civil (PERONI, 2009).

Mészáros, ao discutir a necessidade do controle social, alerta que “pro-gramas e instrumentos de ação sociopolíticos verdadeiramente adequadossó podem ser elaborados pela própria prática social crítica e autocrítica nocurso de seu desenvolvimento” (MÉSZÁROS, 2002, p. 1008).

Conforme Vieira (2007), na América Latina, o Estado de direito ouas democracias formais estão se instalando em sociedades muito pouco de-mocráticas, o que é um problema, já que “o que garante Estados de direitosão sociedades democráticas” (VIEIRA, 2007, p. 104). Para o autor,

O Estado de direito democrático, funda-se na sociedade, e suas raízes se achamnela. Se é uma sociedade fortemente democrática, tende a construir um go-verno democrático, mas se é extremamente autoritária, discriminatória, vio-lenta, não tende a sustentar essa espécie de governo (VIEIRA, 1998, p. 12).

Nesse sentido, ressaltamos que não é possível tratar a sociedade civilcomo uma abstração em uma sociedade de classes. O autor adverte que:

Quando dizem que a sociedade civil deve se organizar, pressupõe-se que amaioria dela se encontra desorganizada, porque uma parte, a classe dirigen-te ou a chamada elite, se organiza e se reorganiza desde o surgimento dopaís, mantendo-o no atraso e na inércia, apesar das alegações de fazê-locontemporâneo do seu modo ou da sua época” (VIEIRA, 1998, p. 13).

E complementa sua reflexão ressaltando que “não há estágio demo-crático, mas há processo democrático pelo qual a vontade da maioria ou avontade geral vai assegurando o controle sobre os interesses da administra-ção pública” (IDEM, p. 12). Nesse sentido, “quanto mais coletiva a deci-são, mais democrática ela é. Qualquer conceito de democracia, e há váriosdeles, importa em grau crescente de coletivização de decisões” (IDEM).

O caso brasileiro

No Brasil, além das características históricas de pouca cultura demo-crática, o país viveu várias ditaduras, sendo que a última foi um golpe mili-tar iniciado em 1964, que perdurou até 1985. Os anos 1980 foram marca-dos por um processo de abertura política, com grande participação populare de organização da sociedade na luta pelos seus direitos.

PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Mas a construção da democracia no país viveu um processo de aber-tura pactuado com as forças da ditadura. E, quando estava avançando al-guns passos na participação popular e na luta por direitos sociais, sofreu oimpacto das estratégias do capital para superação de sua crise, que já estavaem curso no resto do mundo e vinha em sentido contrário a esse movimen-to em um processo de minimização de direitos conquistados.

Evaldo Vieira (1997) faz essa discussão quando analisa que em nossopaís as políticas sociais percorreram três momentos políticos no último sé-culo: o primeiro é o “controle da política”, período que corresponde à dita-dura de Getúlio Vargas e ao populismo nacionalista; o segundo é chamadopelo autor de “a política do controle”, que corresponde ao período da dita-dura militar em 1964 até o final do período constituinte em 1988; e o tercei-ro, denominado pelo autor de “política social sem direitos sociais”, iniciou-se em 1988 e está em plena vigência.

A política social que, por um lado, nunca havia recebido tanto acolhi-mento por parte de uma Constituição no Brasil, como ocorreu na de 1988,por outro, esses direitos em parte foram minimizados ou nem chegaram ase concretizar.

Assim, na primeira eleição direta para presidente da República em1989, foi eleito Fernando Collor de Melo, do Partido da Renovação Nacio-nal (PRN), partido de pouca expressão política e que colocou em prática asua proposta de minimização do papel do Estado para com as políticassociais e de privatização e mercantilização do público. Mas é o governoFernando Henrique Cardoso que propõe em 1995 o Projeto de Reforma doEstado, apresentado pelo MARE (Ministério da Administração e Reformado Estado), que permanece em vigor no governo atual. De acordo com odocumento, a “reforma do Estado deve ser entendida dentro do contextoda redefinição do papel do Estado, que deixa de ser o responsável diretopelo desenvolvimento econômico e social pela via da produção de bens eserviços, para fortalecer-se na função de promotor e regulador desse desen-volvimento” (BRASIL, 1995, p. 12).

As estratégias apontadas pelo plano são: a privatização, a publiciza-ção e a terceirização. Terceirização, conforme Bresser Pereira, é o processode transferência para o setor privado dos serviços auxiliares ou de apoio. Aprivatização é entendida como a transferência de empresas estatais para a

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propriedade privada, e a publicização consiste “na transferência para o se-tor público não-estatal dos serviços sociais e científicos que hoje o Estadopresta” (BRESSER PEREIRA, 1997, p. 7).

Conforme o então ministro Bresser Pereira, a educação está incluídanessa forma de propriedade: “Incluem-se nesta categoria as escolas, asuniversidades, os centros de pesquisa científica e tecnológica, as creches, osambulatórios, os hospitais, entidades de assistência aos carentes (...)” (BRES-SER PEREIRA, 1997, p. 12). Ainda conforme esse autor, “essas são ativi-dades competitivas e podem ser controladas não apenas através da admi-nistração gerencial, mas também e, principalmente, através do controle so-cial e da constituição de quase-mercados” (IDEM). O plano propõe aindaa gestão gerencial, visando ao atendimento do cidadão cliente (BRASIL;MARE, 1995).

Os parâmetros da administração gerencial têm como base teórica aPublic Choice, escola neoliberal que estuda a diferença entre o mercado e oquase mercado, de modo a aproximá-las. Para Buchanan (1984), tanto omercado como o Estado são mundos de escolhas. No mercado, o referendoé permanente, e na política ocorre principalmente através do voto. A pro-posta é que o “cidadão cliente” faça as suas escolhas. Portanto, mesmo nãomudando a propriedade, a administração gerencial minimiza as correla-ções de forças, próprias do período democrático.

Destacamos, portanto, que o Plano de Reforma do Estado no Brasilteve influências do neoliberalismo, tanto no diagnóstico de que a crise estáno Estado como na estratégia de privatização, que é parte do plano, mastambém sofreu influências da Terceira Via. Tanto o presidente da época, Fer-nando Henrique Cardoso (PSDB), como o ministro da Reforma do Estado,Bresser Pereira (PSDB), eram intelectuais orgânicos da Terceira Via.

É importante destacar que o presidente Fernando Henrique Cardoso(Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB) participou dos encontrosda Governança Progressista9 e que o seu sucessor Luis Inácio Lula da Silva,do Partido dos Trabalhadores (PT), manteve sua presença nas reuniões.10

PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

9 Como era chamada a Terceira Via desde o seu início.10 (http://alainet.org/active. Acesso em: 20 ago. 2011).

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Verificamos que, no governo atual, as parcerias foram intensificadas,assim como o processo de gestão gerencial proposto no plano, como pode-mos verificar, por exemplo, no Plano de Gestão do Governo Lula “Gestãopública para um país de todos”, do Ministério do Planejamento, Orçamen-to e Gestão (BRASIL, 2003), com princípios do gerencialismo.

A relação entre o poder público e o terceiro setor no Brasil11 cada vezavança mais; em 2009, foi criada uma comissão de juristas para acrescentarformalmente o terceiro setor na estrutura da administração pública no Bra-sil através da denominação “entes de colaboração”:

Esta proposta estabelece a possibilidade da inserção das entidades do Ter-ceiro Setor na estrutura da Administração Pública a partir do estabeleci-mento de uma nova estrutura para o seu funcionamento e das suas relaçõescom aquelas entidades que passariam a denominar-se Entes de Colabora-ção. Até o presente momento, não houve o encaminhamento para a aprova-ção do Anteprojeto de Lei Orgânica da Administração Pública12 (PERONI;PIRES, 2013, p. 10).

As políticas sociais e, em particular, as políticas educacionais materia-lizam esses processos de redefinição do papel do Estado, reorientando arelação entre público e privado.

No Brasil, historicamente o setor privado influenciou os governos.Desde 1821, o Decreto de D. João VI já “permite a qualquer cidadão oensino e a abertura de escolas de primeiras letras” (CURY, 2005, p. 3). Curydestaca que o:

erário público, considerado impotente para universalizar esse indispensávelestudo das primeiras letras, autorizava o repasse parcial para a iniciativaprivada.A partir daí, a legislação brasileira sempre reconheceu a liberdadedo ensino como legítima, por outro lado, sempre firmou o Estado comopoder fundante, concedente ou autorizatório da educação escolar (CURY,2008, p. 19).

Ou seja, desde o Império até hoje, a justificativa da não universaliza-ção pública do ensino é o erário público insuficiente.

11 Sobre os aspectos jurídicos da relação entre o terceiro setor e o sistema público ver PIRES2009, 2011.

12 De acordo como o site: http://www.gespublica.gov.br/anteprojeto-de-lei-organica/consulta-publica-sobre-o-anteprojeto-de-lei-organica, o Anteprojeto de Lei Orgânica da AdministraçãoPública Federal está na fase de consulta pública. (Acesso em: 13 mar. 2013).

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Para analisar a relação entre o público e o privado na educação brasi-leira, é importante destacar as nossas características históricas de poucacultura democrática. O país viveu várias ditaduras, sendo que a última foium golpe militar, iniciado em 1964, que perdurou até 1985. O período deabertura política foi marcado por movimentos em busca de direitos sociaise busca de participação efetiva na construção de uma sociedade e um Esta-do mais democráticos. É nesse processo de correlação de forças que as lutaspor democracia se materializaram em alguns direitos educacionais consa-grados na legislação, principalmente através do capítulo da educação naConstituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional (LDBEN 9394/1996) e também no Estatuto da Criança e do Ado-lescente (Lei Federal 8.069/1990).

Dentre outros, ressaltamos a concepção de educação básica13 abarcan-do a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, a gestãodemocrática como princípio constitucional14, a inclusão de alunos portado-res de deficiência na rede regular de ensino, além da gratuidade nos estabele-cimentos públicos em todos os níveis. Ressaltamos ainda o ingresso dos pro-fissionais da educação por concurso público, o piso salarial nacional do ma-gistério, a construção de um Sistema Nacional de Educação, entre outros.

Apesar de a educação brasileira estar organizada em dois níveis, edu-cação básica e superior, apenas em 2009, com uma emenda à ConstituiçãoFederal, a obrigatoriedade que era apenas do ensino fundamental é esten-dida para alunos de quatro a dezessete anos. Ressaltamos que, para um paísque historicamente não teve no horizonte a universalização da educaçãopública, é um grande avanço do direito à educação a ampliação da obriga-

13 A educação brasileira está organizada em dois níveis: educação básica e superior. A educaçãobásica é composta de três etapas: educação infantil, fundamental e média. E as modalidadeseducação especial, educação de jovens e adultos e educação profissional.

14 Houve também alguns avanços na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBen/1996) no que se refere à construção da gestão democrática; por exemplo, o art. 14 determina aparticipação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e aparticipação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. E o art. 15determina que “os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educaçãobásica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestãofinanceira, observadas as normas gerais de direito financeiro público” (BRASIL, 1996).

PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

toriedade, que atualmente abarca parte da educação infantil, o ensino fun-damental e o ensino médio.15

A educação infantil16 passou a fazer parte da educação básica na CF/88, como resposta à reivindicação de pais, educadores e pesquisadores daárea. Antes ela estava vinculada à Assistência Social, e a oferta era histori-camente feita em parcerias com instituições caritativas. A luta dos educa-dores foi para que saísse dessa condição e passasse a ter oferta pública, comprofissionais formados e oferecida em uma instituição educativa, passandoinclusive a fazer parte da educação básica.

A lei que materializou os princípios constitucionais, LDBEN/96, dis-tribuiu competências entre os entes federados, ficando a educação infantilsob responsabilidade dos municípios, que buscaram como alternativa, emmuitos casos, as parcerias com instituições privadas.

Como já mencionamos anteriormente, os anos 1990 no Brasil forammarcados por políticas restritivas ao papel do Estado na educação, pelo focodo financiamento no ensino fundamental estabelecido pelo Fundo de Manu-tenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização doMagistério – FUNDEF, regulamentado pela Lei n.º 9.424/96. O FUNDEFteve duração de dez anos, tinha abrangência estadual, o que era um proble-ma, pois estados com mais recursos continuaram tendo mais financiamentopara a educação, apesar da complementação prevista para os estados muitocarentes que não atingissem a média nacional fixada como custo/aluno/ano. Assim, a desigualdade regional permaneceu, apesar de dentro do mes-mo estado os recursos serem redistribuídos. O Fundo captava 60% da receitadestinada à educação para a universalização do ensino fundamental, não in-cluindo aí as modalidades de ensino como a educação de jovens e adultos e aeducação especial, o que trouxe consequências para a efetivação do direito àeducação básica, tanto na etapa da educação infantil como no ensino médio.

Em 2007, o FUNDEF foi ampliado para toda a educação básica pelaLei n.º 1.494/2007, que institui o FUNDEB, abarcando todas as etapas emodalidades da educação básica.

15 Emenda Constitucional n. 59/2009. Obrigatoriedade de 4 a 17 anos e inclusive aos que nãotiverem acesso na idade própria.

16 Sobre os convênios com creches comunitárias ver o texto de FLORES e SUSIN neste livro.

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O ensino fundamental, etapa da educação básica, é considerado obri-gatório e direito público subjetivo desde a Constituição Federal de 1988.Tinha oito anos de duração e foi ampliado para nove anos através da Lei nº11.274, de 6 de fevereiro de 2006. Conforme a Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional (LDBEN), a responsabilidade principal da oferta estádividida entre estados e municípios em regime de colaboração.

O ensino médio, apesar de fazer parte da educação básica, foi consi-derado obrigatório apenas em 2009 com a Emenda Constitucional n. 59,que expandiu a obrigatoriedade dos quatro aos 17 anos. Pela LDBEN, écompetência do estado o atendimento a essa etapa do ensino básico.

Sobre o ensino médio, destacamos a parceira do Instituto Unibancocom escolas públicas através do Projeto Jovem de Futuro17. Conforme o ins-tituto, o projeto “reúne ações, métodos e tecnologias que proporcionam àsescolas de ensino médio um modelo de gestão abrangente e participativo,focado em resultados”. O instituto pretende influenciar a proposta pedagógi-ca do ensino médio, incorporando uma concepção de trabalho e educaçãoempresarial à educação pública. O projeto iniciou em 2007 e, em 2012, con-forme o instituto, “os resultados do Projeto Jovem de Futuro deixarão de serdas escolas e passarão a ser de todo o Sistema de Educação. Isso será deter-minante para os estados melhorarem seu IDEB e poderem redimensionarsuas políticas públicas” (http://www.unibanco.com.br acesso em 6/12/2011).

A educação básica, além das três etapas (infantil, fundamental e mé-dio), tem também como modalidades de ensino a educação profissional, aeducação de jovens e adultos e a educação especial.

Sobre a educação profissional destacamos o programa proposto pelogoverno federal em 2011: o PRONATEC18 (Programa Nacional de Acessoao Ensino Técnico e Emprego), que visa à “melhoria da qualidade do ensinomédio público por meio da articulação com a educação profissional; ampliaras oportunidades educacionais dos trabalhadores por meio do incremento daformação e qualificação profissional” (BRASIL, 2011, art. 2). Para e execu-ção do programa está prevista a participação de instituições privadas: “O

17 Sobre a parceria do Instituto Unibanco com escolas públicas de ensino médio ver o texto deMONTEIRO neste livro.

18 Sobre o PRONATEC ver o texto de SANTOS e RODRIGUES neste livro.

PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

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PRONATEC poderá ainda ser executado com a participação de entidadesprivadas sem fins lucrativos, devidamente habilitadas, mediante a celebraçãode convênio, acordo, contrato, ajuste ou instrumento congênere” (idem art.8). Questionamos a concepção de trabalho proposta pelo governo federal,que, ao repassar recursos também para instituições privadas para execuçãodo programa, abre mão de uma proposta de formação profissional.

A educação de jovens e adultos (EJA) é muito importante, já quehistoricamente não tivemos a universalização da educação básica. No en-tanto, principalmente os programas de alfabetização de adultos sempre fo-ram tratados como filantropia, em condições precárias de funcionamento,através de parcerias ou, mesmo quando público, com atendimento terceiri-zado feito por voluntários que ganham uma bolsa simbólica, sem exigênciade formação adequada para atuar.19

A educação especial20 é considerada uma modalidade que abrange tantoa educação básica como superior. O poder público historicamente desres-ponsabilizou-se da educação especial, e no momento em que estava inician-do a ser entendida como um direito, a nova conjuntura de racionalização derecursos dificultou a implementação com qualidade das políticas de inclusãoe restringiu a ampliação de escolas públicas de educação especial. E a práticade repasses de recursos públicos, que já eram destinados às instituições públi-cas não governamentais, como APAE, Pestalozzi, etc., para a execução detarefas que seriam do poder público, atualmente é fortalecida pelo movimen-to em que o Estado se retira ou diminui a sua atuação na execução de políti-cas, passando-as para a sociedade civil (PERONI, 2009).

Desde meados da década de 1990, pesquisamos as redefinições dopapel do Estado e sua materialização nas políticas públicas de educação.

Iniciamos a abordagem desse tema em 1995 com a tese de doutoradoque estudou as redefinições no papel do Estado e as políticas educacionaisdos anos 1990, onde apontamos que o Estado vinha repassando para asociedade suas tarefas, esvaziando as instituições públicas de seu poder, noque se refere à elaboração de políticas como os Parâmetros Curriculares

19 Ver texto de COMERLATTO, MORAES sobre Alfabetização Solidária (Alfasol) e ProgramaBrasil Alfabetizado neste livro.

20 Sobre a educação especial ver o texto de BOROWSKY neste livro.

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Nacionais e os projetos de Avaliação Institucional, que foram terceiriza-dos. Mas a hipótese inicial de Estado mínimo não se concretizou; ao anali-sarmos o movimento do real, encontramos, ao contrário, um Estado muitoatuante, ao mesmo tempo em que descentralizava, tanto entre os entes fe-derados como do Estado para a sociedade. Estava em andamento a concre-tização de um determinado tipo de Estado e de políticas públicas para opaís, que tinham como base teórica e política a Terceira Via.

Constatamos aqui, mais uma vez, a contradição centralização/descentrali-zação, já que os PCN e a Avaliação foram centralizados, como já menciona-mos, como uma forma de controle, mas ao mesmo tempo eles foram descen-tralizados, entendendo descentralização como terceirização e não como par-ticipação e controle social dos setores representativos da área da educação.Apontamos, ainda, para o risco de que os próximos estágios sejam a publici-zação e a privatização no sentido estrito (...) (PERONI, 2003, p. 179).

Verificamos que, no período seguinte, tanto a publicização, entendi-da no Plano Diretor da Reforma do Estado (BRASIL, 1995) como públiconão estatal, também conhecido como Terceiro Setor, como a privatização,entendida como lucro e mercado, avançaram no Brasil e, mesmo com atroca de governo em nível nacional, continuam em processo.

Pesquisamos o Programa Dinheiro Direto na Escola21, que instituiua obrigatoriedade para o recebimento dos recursos da criação de UnidadesExecutoras de direito privado nas escolas públicas; iniciou no governo Fer-nando Henrique Cardoso e não foi modificado no atual governo, mesmohavendo estudos e um certo movimento para que as escolas continuassemrecebendo o recurso público, sem que para isso tivessem que depender dorepasse para APM ou que o conselho escolar tivesse que se tornar de direitoprivado. Esse programa foi objeto de estudo de uma pesquisa nacional, “OPrograma Dinheiro Direto na Escola: uma redefinição do papel do Estadona educação”22 (PERONI, ADRIÃO, 2007).

21 O PDDE foi objeto de uma pesquisa nacional realizada nas cinco regiões brasileiras, publica-da pelo INEP (PERONI, ADRIÃO, 2007).

22 Projeto nacional coordenado por esta autora e financiado pelo CNPq para a reunião dos gru-pos de pesquisa das cinco regiões brasileiras. O relatório foi publicado pelo INEP (PERONI,ADRIÃO, 2007).

PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A questão inicialmente estudada da tensão entre centralização e des-centralização também foi uma contradição verificada no programa, assimcomo as consequências para a gestão democrática da educação:

Também no programa analisado percebe-se esse deslocamento, quando, aomesmo tempo em que descentraliza recursos para as UEx, o programa exigeum único formato para sua constituição sem sequer ouvir os sistemas deensino analisados. É provável que essa imposição tenha desrespeitado o pactofederativo, já que a União por meio de um programa redefiniu o formato degestão de todas as redes públicas de ensino, por vezes desconsiderando polí-ticas em vigor (ADRIÃO; PERONI, 2007, p. 264).

Por fim, vale destacar o “fluxo” do dinheiro, que é público, mas quepassa por uma instituição privada (Unidade Executora) para ser gasto pelopoder público, o que parece estar de acordo com o diagnóstico de que oprivado é mais eficiente.

Continuamos as pesquisas verificando a parceria entre sistemas pú-blicos e o terceiro setor. Por entendermos a importância da atuação do Ins-tituto Ayrton Senna (IAS) nas redes públicas de ensino em todo o país.

A pesquisa foi realizada por um grupo nacional com coletivos emdez estados brasileiros e diferentes regiões. O Brasil é um país federado23

com muitas diferenças regionais, tanto socioeconômicas como culturais.Assim buscamos analisar como uma política ou uma parceria em nível na-cional tem diferentes implicações no contexto local.24

A pesquisa envolveu a análise da proposta de gestão educacional doInstituto Ayrton Senna, em especial dos Programas Escola Campeã e Ges-tão Nota 10; dos sistemas/redes educacionais de cada município seleciona-do e de uma escola municipal em cada grupo.

Verificamos que, entre as principais implicações da parceria para agestão democrática da educação, está a diminuição da autonomia do pro-fessor. Que entre outros fatores fica minimizada, desde quando recebe omaterial pronto para utilizar em cada dia na sala de aula e tem um supervi-

23 A divisão político-administrativa no Brasil é constituída pela União, pelo Distrito Federal epelos estados e municípios, todos autônomos segundo os termos da Constituição Federal de1988. Os estados brasileiros, em número de 26, encabeçam a hierarquia na divisão político-administrativa do país, sendo subdivididos em 5.565 municípios. (Disponível em: <http://www.angelfire.com/al/Geografia/estados.html>. Acesso em: 14 set. 2010.)

24 Ver relatório final: Adrião, Theresa; Peroni, Vera (2010) em www.ufrgs.br/faced/peroni.

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sor que verifica se está tudo certo até a lógica da premiação por desempe-nho, que estabelece valores como o da competitividade entre alunos, pro-fessores e escolas. Como se a premiação dos mais capazes induzisse a qua-lidade via competição. A outra questão diz respeito às metas estabelecidas,que passam a dar mais ênfase ao produto final e não mais ao processo,como é característica da gestão democrática, que visa construir uma socie-dade democrática e participativa.

Destacamos que as parcerias que inicialmente estavam no âmbitoestadual e municipal atualmente também ocorrem com a Presidência daRepública para a elaboração de políticas nacionais de educação. Destaca-mos interlocução dos Institutos Unibanco e Ayrton Senna com o governofederal, mais especificamente a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Pre-sidência da República, para que seus programas sejam transformados empolíticas de alcance nacional:

O Instituto Unibanco e a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidênciada República (SAE) firmam (...) o acordo de Cooperação Técnica para odesenvolvimento de estudos, projetos, pesquisas e avaliações em conjunto.O foco das ações que serão desenvolvidas por meio do acordo será a área deeducação, com ênfase nos jovens do Ensino Médio público. (Disponível em:<http://www.sae.gov.br/site/?p=7567>. Acesso em: 02 ago. 2012.)O ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), Moreira Franco,assina, (...), acordo de cooperação técnica com o Instituto Ayrton Senna,para realizar, de forma conjunta, projetos e programas de interesse comum,voltados para a educação.(...) O objetivo dos trabalhos conjuntos será subsi-diar a Secretaria na formulação de políticas públicas com foco na educação.(http://www.sae.gov.br/site/?p=8130, acesso em 2 de agosto de 2012)

Assim, o controle social e a coletivização das decisões, tão importan-tes para a construção da democracia no país, acabam cedendo lugar aocontrole externo de instituições privadas, que determinam o conteúdo daspolíticas públicas de educação, desde o âmbito da legislação e da organiza-ção do sistema educacional nacional até as práticas escolares cotidianas.

Atualmente, o projeto produtividade de pesquisa “Parcerias entre sis-temas públicos e instituições do terceiro setor: Brasil, Argentina, Portugal eInglaterra; implicações para a democratização da educação” visa estudar arelação entre o público e o privado através da análise das parcerias entresistemas públicos e instituições do terceiro setor e as consequências para ademocratização da educação no Brasil, Argentina, Inglaterra e Portugal. E

PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

buscar entender como países com trajetórias distintas em termos de papeldo Estado na consecução do direito à educação vivenciam esse períodoparticular do capitalismo e as consequentes mudanças na relação entre opúblico e o privado e a intervenção da lógica do privado na educação públi-ca. Este livro apresenta essa pesquisa tanto através de textos dos interlocu-tores dos países que compõem a pesquisa como através dos textos do gruponacional envolvendo as etapas e modalidades da educação básica, além dohistórico da relação público-privada no Brasil.

Algumas considerações

No Brasil, por um lado, avançamos na tão batalhada democracia,mas, por outro, há um esvaziamento das políticas sociais, principalmentedas políticas sociais como um direito universal, nesse período particular docapitalismo de privatização do público.

Destacamos também as diferenças entre Terceira Via e neoliberalis-mo, e aqui particularmente o que as duas teorias entendem por democra-cia, principalmente porque o neoliberalismo tem sua teoria de classe explí-cita, mas na Terceira Via com o discurso de democratizar a democracia,aprofundar a participação da sociedade civil e suas teorias e estratégias deação têm sido implementadas por governos de direita, centro e esquerdaem nível internacional. A parceria entre o público e o privado acaba sendo“a política” pública, com grandes implicações para as relações federativasna consecução do direito à educação.

É importante, ainda, ressaltar que a relação público/privado não ini-cia nesse período particular do capitalismo e com a Terceira Via ou o neo-liberalismo. Ao contrário, historicamente foram muito tênues as linhas di-visórias entre o público e o privado em nosso país. Assim, a democratiza-ção da educação pública ainda é um longo processo em construção.

Questionamos por que as redes públicas têm buscado as parceriascom as instituições privadas: se é uma forma de atingir a tão almejada “qua-lidade da educação”, mais uma vez tendo como parâmetro a lógica mer-cantil.

Afinal, tanto lutamos contra o Estado e a sociedade da ditadura, naconstrução de um Estado mais transparente, com maior controle social e

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no qual as prioridades seriam amplamente discutidas, de forma participati-va. É claro que a democracia envolve relações de poder, de classe e que éconflito, mas a questão é que a lógica do produto em detrimento da lógicademocrática parece ser novamente um consenso.

Também com a parceria público-privada e o fortalecimento do ter-ceiro setor, o privado acaba influenciando ou definindo o público, não maisapenas na agenda, mas na execução das políticas, definindo o conteúdo e agestão da educação, com profundas consequências para a democratizaçãoda educação.

É o que Harvey (2008) chama de “mercadificação de tudo”, comconsequências graves para a desigualdade social, já que os direitos sociaismaterializados em políticas universais acabam cedendo lugar a políticasfragmentadas e focalizadas. Com as mudanças no conceito de igualdadeficam reforçadas também as políticas individualizadas, focadas em desen-volver habilidades e capacidades, com o retorno à teoria do capital huma-no, à meritocracia, onde o sucesso e o fracasso são por conta e risco dosclientes no mercado, e não de sujeitos com direitos materializados em polí-ticas sociais.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A ‘nova’ filantropia, o capitalismo sociale as redes de políticas globais em educação*

Stephen J. BallAntonio Olmedo

Um novo grupo de conceitos e métodos é necessário para lidar comas contínuas mudanças em governança educacional dentro de uma estrutu-ra global. As formas como a política educacional, as empresas, a filantro-pia e o desenvolvimento internacional se organizam e se inter-relacionamestão mudando em função dos métodos daquilo que pode ser entendidocomo “capitalismo social global”. Dentro dessa nova configuração, solu-ções inovadoras e velhas soluções para problemas sociais e de desenvolvi-mento ‘baseadas no mercado’ estão sendo privilegiadas e fortalecidas atra-vés do surgimento de uma nova elite global, conectada em rede, formadapor promotores de políticas e ‘novos’ filantropos. O que há de ‘novo’ na‘nova filantropia’ é a relação direta entre a caridade e os ‘resultados’ e oenvolvimento direto dos doadores nas ações filantrópicas e nas comunida-des de políticas.

Estamos agora oficialmente na era dos “filantro-empresários”, onde a dife-rença entre um fundo de capital de risco e uma fundação, uma startup pro-missora e um empreendimento social torna-se totalmente turva.1

Essas novas sensibilidades da caridade têm levado a um crescenteuso de modelos de práticas comerciais e empresariais como uma nova for-ma genérica de organização, prática e linguagem filantrópica – filantropiade risco, investimentos e portfólios filantrópicos, due diligence (o termo in-glês é usado correntemente no mercado financeiro no Brasil, mais que “di-ligência devida”, soluções empresariais, etc. Os ‘novos’ filantropos querem

* Texto traduzido por Lisa Gertum Becker e revisado por Jaqueline Marcela Villafuerte Bittencourt.1 http://marmoogle.blogspot.com/2007/04/global-philanthropy-forum-that-is.html.

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ver impactos claros e mensuráveis e resultados de seus ‘investimentos’ detempo e dinheiro. A nova filantropia está trazendo novos jogadores à arenado desenvolvimento internacional, estabelecendo novos papéis e relaçõesde políticas e desenvolvimento, criando novos terrenos de políticas e retra-balhando as redes de políticas existentes. Ainda que aparentemente bemrecebidas em círculos filantrópicos, empresariais e políticos, essas mudan-ças trazem consigo boa dose de controvérsias e problemas. As organiza-ções envolvidas apresentam uma variedade de identidades e compromissosdiferentes e cambiantes. Financeiramente, organizacionalmente e moral-mente, seu status e posição são muitas vezes, à primeira vista, obscuros.Essa reconfiguração se apoia sobre uma dupla mudança moral na concep-ção da relação entre caridade, auxílio e lucro. De um lado, as fundaçõescorporativas e familiares e os indivíduos filantrópicos estão começando a‘assumir deveres sociomorais que até agora eram da responsabilidade deorganizações da sociedade civil, entidades governamentais e agências esta-tais’ (SHAMIR, 2008). De outro lado, esses novos filantropos não renunciamtotalmente à possibilidade de lucro; de fato, como eles próprios dizem, épossível ‘fazer o bem e ter lucro também’2. Ted Turner, o fundador da CNN,argumenta que ‘certas áreas do construir um mundo melhor se adaptammuito comodamente a operações com fins lucrativos. Por que devemos termedo disso?’3. Tudo isso re-situa o escopo e os objetivos da filantropia tra-dicional. Isso indica uma mudança em três etapas: da caridade paliativa(ou seja, a filantropia tradicional ou a ‘filantropia 1.0’) à caridade para odesenvolvimento (‘filantropia 2.0’) e, finalmente, à caridade ‘lucrativa’, cons-tituindo aquilo que é chamado de ‘filantropia 3.0’. Essa tomada de respon-sabilidades por parte de uma nova filantropia e do capitalismo social tam-bém levanta questões fundamentais sobre a participação democrática e aresponsabilidade dos governos e outras instituições públicas na provisão deserviços sociais e direitos civis. A vinda de interesses morais, ideológicos eeconômicos para o campo de atividade da caridade cria novos espaços edinâmicas na ‘governança filantrópica’, conforme se sugere abaixo.

2 http://www.nytimes.com/2006/11/13/us/13strom.html?pagewanted=print.3 http://www.nytimes.com/2006/11/13/us/13strom.html?pagewanted=print.

BALL, S. J.; OLMEDO, A. • A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social e as redes de políticas globais em educação

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Em tudo isso, o perigo é que o governar seja entendido e analisado emtermos daquilo que pode ser novo e diferente, sem tratar adequadamentedaquilo que permanece igual, e também que acontecimentos que não “seenquadram” no mundo de acordo com a governança sejam subestimados ouignorados. Este capítulo é parte de um programa emergente e exploratóriode investigação, através do qual pretendemos abordar essas questões. O focoprincipal da agenda da nossa pesquisa é substancial e analítico. Nós estamosinteressados em explorar como e por quem a governança educacional estásendo realizada, e se isso é indicativo e ilustrativo de deslocamentos e mu-danças mais gerais nos métodos e mecanismos de governança. Sabemos queas questões e temas aqui levantados necessitam de análises e discussões maisprofundas. Por essa razão, este texto deve ser considerado uma tentativa ini-cial de entender o intricado caráter desse novo fenômeno, e ele será elabora-do mais substancialmente em outras publicações, ainda que já tenhamos co-meçado a desenvolver algumas dessas ideias em trabalhos anteriores (verBALL, 2012; BALL e JUNEMANN, 2011; OLMEDO, 2013).

Este capítulo apresenta um breve esboço de alguns conceitos-chavearticulados nessas novas sensibilidades de políticas e caridade e apresentaexemplos que ilustram a complexidade e a interconexão das novas formasde filantropia dentro das redes de políticas globais, o papel desses novosagentes e seus impactos nos campos da educação e do desenvolvimento.Para fazer isso, trabalhamos na direção de um método de pesquisa quepode ser chamado de ‘etnografia de redes’, uma combinação da Análise deRedes Sociais (ARS) com métodos etnográficos (ver HOWARD, 2002). Nos-so interesse é identificar e analisar a criação e a operação dessas redes, as-sim como as conexões que as constituem. Também investigamos as trocas etransações entre os participantes e os papéis, ações, motivações, discursos erecursos dos diferentes atores envolvidos. Em termos mais gerais, esse ‘mé-todo’ surge dentro de um amplo conjunto de deslocamentos epistemológi-cos e ontológicos através da ciência política, da sociologia e da geografiasocial, que envolve uma diminuição do interesse nas estruturas sociais euma ênfase crescente em fluxos e mobilidades (de pessoas, capital e ideias,ex.: ‘políticas em movimento’) – que às vezes é chamado de ‘virada da mobi-lidade’. Em outras palavras, um foco na ‘espacialização’ das relações sociais,em viagens e em outras formas de movimento e de socialidade e interações

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transnacionais. Tudo isso é, obviamente, concomitante com o interesse ex-traordinário nos processos de ‘globalização’ dos anos recentes. A rede é ummecanismo analítico e um tropo-chave dentro desse redirecionamento daatenção, como se fosse um tipo de tecido conectivo que une e oferece algu-ma durabilidade a essas distantes e fugazes formas de interação social. Paraatingir essa extensa e ‘profunda’ rede, buscas foram realizadas em múlti-plas fontes (documentos de políticas, relatórios oficiais, comunicações pes-soais, etc.). A internet oferece um vasto potencial de materiais relevantes,que podem ser obtidos em websites governamentais e de empresas, assimcomo em blogs pessoais, serviços de vídeo e da rede social (como Twitter,YouTube, Facebook, etc.), e relatórios de reuniões, conferências e eventos epáginas da web. Reiterando, a pesquisa realizada aqui é inovadora e explo-ratória, seus dados e análise são projetados de forma a gerar um conjuntode questões para pesquisas posteriores, focalizadas nos complexos efeitos econsequências sociais e políticas da mudança de governo para governançanas políticas globais de educação.

A ‘nova’ filantropia, os grandes desafiose a política educacional

Em 2008, Bill Gates, o terceiro homem mais rico do mundo4, esbo-çou sua visão de filantropia como ‘capitalismo criativo’. Num discurso noFórum Econômico Mundial em Davos, ele apresentou-a como ‘uma abor-dagem onde governos, empresas e organizações sem fins lucrativos traba-lham juntos a fim de expandir o alcance das forças do mercado para quemais pessoas possam ter lucro ou ganhar reconhecimento, realizando umtrabalho que diminua as desigualdades no mundo’5. Sua mensagem foi ine-quívoca e unidirecional: onde os estados, as multilaterais e as ONGs tradi-cionais fracassaram, o mercado pode ter sucesso. Gates disse então: ‘O de-safio aqui é projetar um sistema onde incentivos de mercado, incluindo olucro e o reconhecimento, impulsionam esses princípios para fazer mais

4 http://www.forbes.com/2008/03/05/richest-people-bil l ionaires-bil l ionaires08-cx_lk_0305billie_land.html.

5 http://www.microsoft.com/presspass/exec/billg/speeches/2008/01-24wefdavos.mspx.

BALL, S. J.; OLMEDO, A. • A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social e as redes de políticas globais em educação

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pelos pobres’. Essa nova concepção de filantropia e ajuda borra intencio-nalmente a linha divisória entre negócios, empreendimento, desenvolvimen-to e o bem público e levanta questões fundamentais sobre os métodos e ofuturo papel das agências de desenvolvimento tradicionais. De um pontode vista semelhante, a Clinton Global Initiative (CGI) afirma que:

As formas tradicionais de ajuda não são suficientes para lidar com os gran-des desafios globais da nossa era. Soluções baseadas no mercado mostramuma incrível promessa para resolver esses imensos problemas num nível sis-têmico e amplamente difundido. Essas abordagens, no entanto, ainda estãonum estágio nascente. As empresas estão pesquisando e desenvolvendo me-lhores práticas de negócios que produzem resultados sociais e ambientais e,ao mesmo tempo, geram lucro. As organizações sem fins lucrativos estãoencontrando modelos inovadores baseados em empreendimentos, que ofe-recem potencial de sustentabilidade a longo prazo. Os governos estão con-tribuindo com seus recursos para estimular e apoiar abordagens baseadas nomercado.6

Esses discursos propositalmente deixam de tratar das causas da desi-gualdade – como aponta Zizek (2008, p. 20); para dar, o capitalista tem queantes tirar. O mercado é apresentado de forma acrítica como um espaço com-pensatório e como uma nova fonte de soluções alternativas para problemasde desenvolvimento. Esse novo modelo de filantropia é aquilo que Edwards(2008) chama de ‘filantro-capitalismo’, uma combinação de filantropia em-preendedora com empreendedorismo social, como uma nova ‘racionaliza-ção econômica da doação’ (SALTMAN, 2010, p. 70). Esses ‘novos’ filantro-pos ganharam suas fortunas bilionárias por meio de suas atividades nos mer-cados capitalistas e acreditam que a sua filosofia empresarial pode ser tradu-zida e posta a serviço da caridade. Sua atividade filantrópica é impulsionadapor sua intenção de ‘fazer mais com menos’7. Essa é uma mistura intencionalentre o importar-se e o calcular, ou, como dizem Bronfman e Solomon (2009)no subtítulo de seu livro The Art of Giving [A Arte de Dar], é aqui que ‘a almaencontra um plano de negócios’. Há uma reconfiguração do campo do de-senvolvimento internacional e um deslocamento do foco de ‘corrigir para’para ‘conectar-se ao mercado’ (BROOKS et al., 2009, p. 10).

6 http://www.clintonglobalinitiative.org/ourmeetings/2010/meeting_annual_actionareas.asp?Section=OurMeetings&PageTitle=Action%20Areas.

7 http://blogs.wsj.com/financial-adviser/2010/03/08/not-your-parents-philanthropy/tab/print/.

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A outra característica-chave da abordagem dos ‘novos’ filantroposglobais é sua ambição de assumir ‘grandes desafios’, recorrendo a ‘receitasmágicas’ (BROOKS et al., 2009). As receitas mágicas estão centradas emsoluções genéricas e escaláveis, projetadas de forma que possam ser imple-mentadas independentemente do contexto em níveis diferentes (local, na-cional e internacional). Os grandes desafios levam mais longe a ideia dareceita mágica e implicam a criação de toda uma agenda motivada por ob-jetivos políticos, que enfatiza a escalabilidade rápida de tecnologias especí-ficas. Eles envolvem o uso de ‘todas as ferramentas, todos os métodos parafinanciar mudança social’8. Entretanto, conforme sugerem Brooks et al.(2009, p. 7), ao escolher a solução ‘mais rápida e barata’ e ignorar as poten-ciais consequências de tais decisões, o modelo do grande desafio está ‘su-plantando questões cruciais sobre ‘de que forma’, ‘por que’, ‘para quem’ e‘quem diz’ com a preocupação prévia e predominante com ‘quanto’, ‘comque rapidez’ e ‘quando’. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio(ODM) da ONU são um dos focos dos grandes desafios e receitas mágicas,mas atualmente existem outros exemplos em que fundações e organizaçõesfilantrópicas reorganizam suas agendas e portfólios de investimento de acor-do com esse modelo. Por exemplo, a Fundação Bill & Melinda Gates ado-tou essa abordagem no campo da saúde com o programa Grand Challengesin Global Health9 [Grandes Desafios da Saúde Global] e, mais recentemente,também no campo da educação. A Fundação declara em seu website:

Nosso foco principal é prover educação pública. (...) Também usamos oativismo para promover conscientização a respeito das questões que enfren-tamos, informamos políticas governamentais e desenvolvemos formas no-vas e inovadoras de financiar iniciativas que melhoram os resultados.10

Em educação, as Charter Schools dos Estados Unidos tornaram-se oparadigma da receita mágica e constituem atualmente a principal referên-cia para as políticas educacionais inglesas do governo de coalizão britânico

8 Jane Wales, President and CEO World Affairs Council of Northern California and Global Phi-lanthropy Forum in the 2007 Sixth Annual Global Philanthropy Forum. Available in: http://www.philanthropyforum.org/images/forum/PastConferences/2007/GPF_2007Transcripts_FINAL.pdf.

9 http://www.gatesfoundation.org/global-health/Pages/grand-challenges-explorations.aspx.10 http://www.gatesfoundation.org/united-states/Pages/program-overview.aspx.

BALL, S. J.; OLMEDO, A. • A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social e as redes de políticas globais em educação

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(ver BALL e JUNEMANN, 2011) e, de forma similar, para o governo con-servador espanhol (ver OLMEDO, 2013). Elas são apresentadas como umasolução baseada-no-mercado adaptável, confiável, eficaz e ‘rápida’11 para osubdesempenho educacional e as desigualdades concomitantes, e que tam-bém é portátil e escalável. Essa abordagem pressupõe uma concomitanteestandardização da avaliação, dos métodos de ensino e do currículo (SALT-MAN, 2010) e rejeita formas alternativas de intervenção educacional e trans-formação social:

As escolas charter de alto desempenho – e as redes charter que apoiam seucrescimento em nível nacional – desempenham importante papel na nossaestratégia de preparação para a universidade, pilotando, acelerando e ex-pandindo a inovação em educação. (...) E dada a flexibilidade das escolascharter em comparação com outras escolas públicas, elas podem pilotar eimplementar projetos com rapidez e fidelidade.12

Em resumo, o que é diferente aqui é a relação direta entre a caridadee a política, o envolvimento mais aparente dos doadores com comunidadespolíticas e uma abordagem mais ‘prática’ ao uso das doações. Os novosfilantropos operam numa ‘esfera parapolítica’ (HORNE, 2002), dentro daqual eles podem criar sua própria agenda de políticas. De fato, na últimadécada, quatro fundações filantrópicas dedicaram um total de $4,4 bilhõesa diferentes programas relacionados com a reforma educacional nos Esta-dos Unidos13. Dada a dimensão da situação, Michael Petrelli, do InstitutoThomas B. Fordham, recentemente reconheceu que ‘não é incorreto dizerque a agenda da Fundação Gates tornou-se a agenda educacional do país’14.O que estamos enfrentando aqui não é apenas o fato de doadores estarem‘votando com seus dólares’ (SALTMAN, 2010), mas uma intervenção di-reta da ação filantrópica no campo da política educacional. Essa nova situa-ção tem implicações conceituais e práticas em relação ao conceito de de-mocracia e à fonte e agência da formulação de políticas na esfera pública. É

11 Embora as escolas charter sejam, em princípio, escolas sem fins lucrativos, e não estejam autori-zadas a cobrar mensalidades, algumas empresas com fins lucrativos, EMOs Educational Mana-gement Organization, têm funcionado como Escolas charter e o caráter não-lucrativo do progra-ma tem sido questionado.

12 http://www.gatesfoundation.org/college-ready-education/Pages/charter-schools-networks.aspx.13 http://www.newsweek.com/2011/05/01/back-to-school-for-the-billionaires.html.14 http://www.bizjournals.com/seattle/stories/2009/05/18/story2.html.

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a isso que nos referimos como ‘governança filantrópica’, enfatizando como,através de sua ação filantrópica, esses atores são capazes de modificar sig-nificados, mobilizar ativos, gerar novas tecnologias de políticas e fazer pres-são ou até mesmo decidir sobre a direção da política em contextos específi-cos. Ainda que seja difícil demonstrar e expor as conexões entre os interes-ses econômicos, ideológicos, políticos e filantrópicos, é preciso elaborar mai-ores considerações e discussões sobre as implicações e consequências des-sas novas formas de filantropia dentro dos campos do desenvolvimento in-ternacional e da política educacional em geral.

Conectando as partes: a ‘nova’ filantropiae os negócios educacionais edu-businesses

A Filantropia 3.0 faz parte de uma nova configuração e lógica deações de ajuda e desenvolvimento e de um novo conjunto de relações liga-das a problemas de desenvolvimento e aos grandes desafios. Chamamosessa lógica e relações de ‘filantropia de rede’. Ao usar esse termo, estamossugerindo que, para entender o trabalho das ‘novas’ organizações filantró-picas e seus ‘parceiros’, precisamos considerá-los não sob uma perspectivaindividual, como atores isolados, mas sim como nós interconectados queoperam de acordo com lógicas de rede e configuram suas agendas e ligaçõesde formas mutantes e fluídas. Essas redes retrabalham e repovoam a comuni-dade de políticas de ajuda e desenvolvimento, conectando de novas maneirasos interesses e as atividades de empresas, governos, filantropia e agências nãogovernamentais. Nesse sentido, trazer interesses filantrópicos e empresariaisao campo do desenvolvimento internacional envolve um prolongado e sofis-ticado trabalho de ativismo e interação em rede. Durante a última década, aação de atores-chave, como Bill Clinton e Bill Gates, remodelou as redesinternacionais existentes, constituindo novos locais e possibilidades de ex-pansão do ‘capitalismo criativo’. Esses novos locais poderiam ser entendidoscomo ‘nós geradores,’ que visam facilitar novas conexões e oportunidades deligação. Eles são ‘novos locais de mobilização de políticas’ e ‘microespaçosglobalizantes’, que operam entre e além das áreas de formulação de políticastradicionalmente definidas, tais como localidades, regiões e nações. Um exem-plo de um desses nós é o Fórum Global de Filantropia, que:

BALL, S. J.; OLMEDO, A. • A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social e as redes de políticas globais em educação

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

visa construir uma comunidade de doadores e investidores sociais compro-metidos com causas internacionais, e informar, possibilitar e fortalecer anatureza estratégica do seu trabalho. (…) o FGF conecta doadores a problemas; a estratégias eficazes; a potenci-ais parceiros co-financiadores; e a agentes de mudanças emblemáticos nomundo inteiro. Construindo e continuamente renovando uma comunidadede aprendizado duradoura, o FGF busca expandir o número de filantroposque serão estratégicos na busca de causas internacionais.15

A principal atividade desses nós geradores é facilitar parcerias, novosprojetos e agendas de investimento. Eles criam ‘redes dentro de redes’, ba-seadas no capital simbólico e econômico dos participantes que conseguemmobilizar. Esses são canais para a promoção de políticas e o compartilha-mento epistêmico através dos quais o modelo e as ideias delineados notrecho anterior se formam e são colocados em prática. Além disso, ao pos-sibilitar conexões sociais, políticas e econômicas globais, esses nós gerado-res se tornam espaços-chave no campo do desenvolvimento internacional.A Clinton Global Initiative (CGI) é mais um exemplo desses ‘nós geradores’.Conforme declara seu website, a ‘CGI atua como mercado para uma diver-sificada comunidade de agentes transformadores para criar compromissosque se adequem a seu negócio principal e seus objetivos filantrópicos’ esegue enfatizando o caráter específico de seu campo de operação:

A Clinton Global Initiative (CGI) é diferente de qualquer outra organizaçãoou evento. Ao invés de diretamente implementar projetos, a CGI facilitaparcerias entre diferentes setores que, por sua vez, criam e realizam projetosque eles mesmos escolhem. Os membros da CGI vêm de uma ampla gamade profissões, origens culturais e religiosas, e regiões geográficas. Chefes deestado, executivos de companhias com e sem fins lucrativos, acadêmicos,representantes da mídia, líderes religiosos, estudantes universitários e cida-dãos globais se unem dentro da comunidade CGI para criar soluções singu-lares para alguns dos desafios mais urgentes do mundo.16

A CGI trabalha facilitando parcerias, em sua própria terminologia,Commitments to Action [Compromissos para a Ação], em torno de proble-mas educacionais, saúde, sustentabilidade e igualdade sexual, entre outrasáreas. Cada novo membro da rede deve ‘desenvolver um novo modelo de

15 http://www.philanthropyforum.org/forum/About_Us.asp?SnID=743149094.16 http://www.clintonglobalinitiative.org/aboutus/ourmodel.asp?Section=AboutUs&PageTitle=

Our%20Model.

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negócios que gere valor social, ambiental e econômico; iniciar, escalar oure-direcionar um projeto de negócios ou serviços; ou prover apoio financei-ro ou em espécie para uma organização de sua escolha’17. Vamos fazer umbreve esboço de compromissos que ilustram a ação dessas redes no campoda educação.

Na reunião da CGI em 2001, a Opportunity International18 compro-meteu incialmente $10m19 em parceria com a Sutter Family Foundation e aGray Matters Capital, para expandir suas já existentes iniciativas de micro-financiamento em educação na África, Ásia e América Latina20. O microfi-nanciamento é outro exemplo de ‘receita mágica’, atualmente onipresentena nova agenda de desenvolvimento internacional (STEWART et al., 2010).Como resultado do compromisso, foram feitos empréstimos para a criaçãode grupos de escolas particulares em duas redes sob as marcas: Microschoolsof Opportunity e IDP Rising Schools.

Inspirada e informada pela pesquisa de James Tooley’s21, a Opportu-nity International, em parceria com o Sinapi ABA Trust22 e a Ghana Mi-crofinance Institution Network, lançou o programa Microschools of Opportu-nity [Microescolas de oportunidade] em 2007. Tooley constitui um claroexemplo da ligação entre esses grupos filantrópicos e o trabalho de ativistasdo mercado. Ele é citado e trabalha intimamente com um significativo nú-mero de fundações, entidades filantrópicas e organizações internacionais, esua pesquisa é tratada como o elo perdido entre as agendas dessas organi-zações e as realidades locais que necessitam de financiamento. A iniciativa

17 http://www.clintonglobalinitiative.org/aboutus/ourmodel.asp?Section=AboutUs&PageTitle=Our%20Model.

18 Opportunity International é uma organização não-governamental cristã internacional com sedeem Chicago. Ela trabalha em mais de 20 países e é financiada por contribuições de caridade esubsídios do governo. Ela também reúne recursos de outras fontes (por exemplo, da FundaçãoGates Bill & Melinda e Omidyar Network). Seus escritórios estão estrategicamente situados emEUA, Austrália, Canadá, Alemanha e Reino Unido. Sua principal atividade é o microcrédito(empréstimos, poupança, microsseguros e treinamento) de projetos em diferentes áreas.

19 http://www.clintonglobalinitiative.org/commitments/commitments_search.asp?Section=Commitments&PageTitle=Browse%20and%20Search%20Commitments.

20 Initially in Colombia, Dominican Republic, Ghana, India, Malawi, Mozambique, Rwanda andUganda.

21 http://www.communityintl.com/documents/Microschools_Opportunity_092407.pdf.22 Sinapi é uma organização sem fins lucrativos, cristã e membro do Opportunity Rede Internacio-

nal. Tem base em Gana e seu principal foco de ação é microfinanças e treinamento.

BALL, S. J.; OLMEDO, A. • A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social e as redes de políticas globais em educação

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das Microschools oferece empréstimos a ‘edupresários’ para abrir escolas pri-vadas em áreas pobres. O programa começou em Gana com um programapiloto envolvendo 50 bairros e cidades, mas foi rapidamente exportado paraUganda, Malaui e Índia. Nos próximos três anos, o Opportunity Internatio-nal visa atingir um milhão de crianças, os “futuros Heróis Econômicos quevivem em cada comunidade”23. Citando um estudo interno, eles afirmamque suas escolas estão superando o desempenho das escolas públicas locaisem suas áreas, o que levou Christopher A. Crane, presidente e CEO da orga-nização, a declarar que eles estão “confiantes que esses ‘edupresários’ conti-nuarão a oferecer educação de qualidade a seus estudantes” e, portanto, “fa-remos todo o possível para oferecer a eles e a milhares como eles serviçosfinanceiros e outros tipos de apoio”. Até hoje, eles concederam 350 emprés-timos a escolas privadas, atingindo 87.000 crianças24.

Seguindo o mesmo padrão, a IDP Rising Schools é uma associaçãoentre a IDP Foundation Inc, a Opportunity International US e o SinapiAba Trust. O objetivo desse programa é ‘construir um modelo educacionalsustentável que pode ser apoiado através de empréstimos de microfinancia-mento e capacitação para ser posteriormente replicado em Gana, na Áfricasubsaariana e por todo o mundo em desenvolvimento’25. De acordo com owebsite da IDP Foundation, em 2010 eles esperam ter 120 escolas inscritasno programa, alcançando uma população de 31.000 crianças. Além disso,a IDP Rising Schools também se associou ao Ministério da Educação e aosServiços Educacionais de Gana e criou um conselho consultivo para a for-mação de professores, que será presidido pelo Dr. Josiah A. M. Cobbah,professor no Ghana Institute of Management and Public Administration, umainstituição que visa promover “o entendimento e a cooperação entre insti-tuições dos setores público e privado no que tange a administração públicae obrigações de gerenciamento”26.

A nova filantropia também requer novas ferramentas e ‘informação’para impulsionar decisões de investimento e medir o retorno sobre os inves-

23 http://www.opportunity.org/wp-content/uploads/2010/06/Impact-2007-Fall.pdf.24 http://www.opportunity.org/blog/meeting-ugandan-students-reflections-of-an-american-teenager/.25 http://globalpf.org/strategic-advisors.html?show=8.26 http://www.gimpa.edu.gh/index.php?option=com_content&view=article&id=56&Itemid=54.

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timentos. Essa necessidade de claros indicadores de desempenho levou àcriação de um conjunto de companhias e organizações internacionais comfins lucrativos (ex.: Geneva Global, Rockefeller Philanthropy Advisors e o Proje-to do Milênio da ONU) e empreendimentos sociais (ex.: New PhilanthropyCapital), que oferecem consultoria a organizações filantrópicas e avaliaçãode seus portfólios. Como investidores, consultores e conselheiros de entida-des quase governamentais, esses transatores passaram a envolver-se direta-mente nos processos de formulação de políticas, tomada de decisão e im-plementação de políticas:

A Geneva Global foi fundada por um grupo internacional de investimentoschamado Legatum (anteriormente conhecido como Sovereign Global), que bus-cava uma assessoria filantrópica profissional que satisfizesse os padrões ban-cários a que estava acostumado. A ausência de tais serviços levou-o a fundaro Geneva Global em 1999. O grupo equipou a nova firma internacional deassessoria filantrópica para oferecer pesquisa e assessoria de classe interna-cional para indivíduos, empresas e fundações.

Ao lado desses intermediários vem sendo desenvolvidos outros ti-pos de análise dos mercados sociais. Por exemplo, a School Ventures, umaempresa de informação mercadológica, em colaboração com o EconomistIntelligence Unit criou o African Private Schools Investment Index (APSI) [Índi-ce de investimento em escolas privadas africanas] em 200727, destinado aavaliar as possibilidades de investimento privado em trinta e seis países afri-canos, baseando-se na análise do “potencial de crescimento de cada paíscom base na existência de condições favoráveis”. De acordo com a SchoolVentures, o índice “oferece uma avaliação totalmente nova do cenário daeducação privada na África subsaariana e é projetado especificamente paraavaliar o atual ambiente de investimentos em educação privada na Áfri-ca”28. A crescente emergência de tais empreendimentos e ferramentas é re-toricamente direcionada a informar as decisões de formuladores de políti-cas, investidores potenciais e existentes e grupos filantrópicos. No entanto,se poderia argumentar que a implementação dessas tecnologias de políticastambém introduz novas formas de competição entre países e regiões e no-

27 http://www.prnewswire.com/news-releases/silent-revolution-of-african-education-markets-fin-ds-expression-in-the-new-apsi-index-58736087.html.

28 http://schoolventures03.goodbarry.com/FAQRetrieve.aspx?ID=35960&Q=.

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vas classificações comparativas baseadas em sua “atratividade (…) comodestinos para investimentos privados”29.

A fonte e o motor dessas novas formas de conhecimento para o de-senvolvimento dentro das iniciativas e movimentos delineados acima cla-ramente não são os atores individuais, mas sim a comunidade discursiva –e esse discurso e seus sujeitos e práticas poderíamos denominar de neolibe-ralismo. Aqui existem claramente aspectos daquilo que Peck e Tickell (2002)chamam de normatização da lógica neoliberal, mas frequentemente de for-mas ‘impuras’ e como híbridos confusos e em parcerias diversas.

As redes são locais e domínios para a lógica neoliberal e produzemnovos tipos de objetos de políticas através de um duplo processo de como-dificação e financialização e empreendedorismo moral (SHAMIR, 2008).As ideias das políticas não se movimentam num vácuo elas são criaçõessociais e políticas que são contadas e recontadas em microespaços e redesde políticas. Os participantes desenvolvem e negociam com várias formasde capital social e de redes, que se traduzem no direito de falar e na neces-sidade de ser ouvido. Esses são os ‘novos espaços de possibilidades emara-nhadas’ (ONG, 2006, p. 499), os novos espaços do neoliberalismo e da‘economização do social’. Os processos aqui envolvidos não só agem ‘so-bre’ como também agem ‘contra’ o Estado e a educação estatal. Resumin-do, problemas arraigados de desenvolvimento e de qualidade e acesso edu-cacional estão agora sendo tratados através envolvimento de empresas so-ciais e do negócio educacional na provisão de serviços educacionais tantode forma privada como em nome do Estado.

Observações finais

As mudanças e os movimentos aqui envolvidos são formados e im-pulsionados por um complexo conjunto de processos políticos e econômi-cos implicando o ativismo (por Empreendedores de Políticas e Redes dePromoção Transnacionais), interesses empresariais (novas oportunidades

29 http://www.prnewswire.com/news-releases/silent-revolution-of-african-education-markets-fin-ds-expression-in-the-new-apsi-index-58736087.html.

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de lucro), a ‘nova’ filantropia e mudanças na forma e modalidades do Esta-do – e isso é uma transição de governo a governança; de burocracia a redes,da provisão de serviços ao estabelecimento de metas, monitoramento e re-gulação. Cada um desses elementos precisa ser contemplado na análise danova filantropia e das novas formas de política educacional. De forma maisgeral, para os governos nacionais, principalmente aqueles de Estados pe-quenos e frágeis, isso tudo pressagia uma diminuição da sua capacidade deconduzir seus sistemas educacionais. Agências multilaterais, ONGs e in-fluências e interesses comerciais podem, separada ou conjuntamente, cons-tituir uma alternativa potente ao ‘fracasso’ do Estado.

Cada vez mais, a ajuda internacional e a filantropia deixam de ser‘doadas’ como subvenções a governos e ONGs e passam a ser ‘investidas’em negócios educacionais e no desenvolvimento de soluções baseadas nomercado para problemas educacionais. Os métodos empresariais e as ini-ciativas de empreendedorismo social são vistos como formas mais efica-zes de oferecer acesso mais amplo à educação e uma educação de melhorqualidade do que, argumenta-se, aquilo que os governos ou a ajuda oucaridade tradicional podem oferecer.

O que estamos tentando capturar e transmitir nesta análise – um tan-to insatisfatória e superficial – de algumas formas de ‘empreendimento’ ede indivíduos empreendedores da nova política social e educacional são oscruzamentos, obscurecimentos, interlaçamentos e hibridismos cada vez maiscomplexos, que constituem e animam esse cenário de ‘doação’ e empreen-dimento. Pessoas, dinheiro e ideias movem-se através dessas redes e organi-zações e através dos limites que elas abarcam. Linhas e demarcações tradi-cionais, o público e o privado, o mercado e o Estado, estão sendo rompidase misturadas em tudo isso, e elas deixaram de ser analiticamente úteis. Ospesquisadores precisam de uma nova linguagem e de novas técnicas paraque sejam capazes de acompanhar as novas formas em que as políticaseducacionais e as soluções educacionais estão sendo geradas e aplicadasdentro dessas redes de políticas globais.

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Referências

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Autonomia das escolas:entre público e privado1

João Barroso

Introdução

As políticas de reforço da autonomia das escolas inserem-se numanarrativa comum que tem marcado as recentes alterações na organizaçãodo Estado e da sua administração e que, nesse caso, se polarizou, sobretudoem torno de dois movimentos ou correntes de opinião: (a) os que viam, naspolíticas de definição e reforço da autonomia das escolas, uma maneira depreservar e de modernizar o ensino público, ajustando as suas característicasà diversidade dos contextos e das populações escolares; (b) os que considera-vam que o reforço da autonomia das escolas constitui um instrumento para aintrodução de uma lógica concorrencial no interior do serviço público, essen-cial para promover a “liberdade de escolha” entre ofertas educativas diferen-ciadas (pelo projeto e pelos resultados), contribuindo assim para a criação deum quase mercado educativo que abrange, em idênticas condições de provi-são e de financiamento, a escola pública e a escola privada.

No primeiro caso, a “autonomia das escolas” é defendida, principal-mente, por suas “virtudes” para resolver alguns dos graves problemas da “es-cola pública”. Nomeadamente, porque permite ultrapassar os constrangimen-tos resultantes da rigidez da sua organização, do caráter homogêneo da suaoferta, do modo centralizado da sua coordenação, através do recurso à terri-torialização das políticas educativas, ao desenvolvimento de projetos educa-tivos próprios, ao reforço da participação e à diversificação da oferta.

1 O presente artigo baseia-se parcialmente na intervenção que fiz no Conselho Nacional de Edu-cação, em Lisboa (Portugal), no dia 5 de maio de 2012, no Seminário “Serviço Público deEducação”.

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No segundo caso, verifica-se que o discurso da “autonomia das esco-las” tem vindo a ficar refém dos que pretendem, por essa via, introduzir nosistema público alguns dos elementos mais característicos da oferta priva-da, como seja a regulação pela concorrência, a hierarquização das escolas,a segmentação e segregação dos públicos.

É com base nesses pressupostos e na investigação que tenho realiza-do sobre as políticas de reforço da autonomia (ver entre outros, BARROSO2004a, 2011) que irei utilizar, neste artigo, essas políticas como analisado-ras da relação entre público e privado em educação.

O “público” e o “privado” em educação:uma questão política

O debate sobre as questões da autonomia, incluindo as suas implica-ções nos modos de provisão, de organização e de gestão escolar, é um deba-te essencialmente político sobre o papel do público e do privado em educa-ção e não um debate técnico sobre a melhor forma de organizar e gerir aescola. As opções em jogo inserem-se numa reflexão mais vasta sobre osprocessos de recomposição do papel do Estado na administração da açãopública e nas suas formas de governo. Essa recomposição pode ter váriossentidos, desde formas mais extremas de privatização dos serviços públicosou de criação de “quase mercados” educativos, baseados na concorrência e“livre escolha”, a formas mais mitigadas que, preservando o intervencio-nismo estatal, substituem “a regulação da oferta pela regulação da procu-ra” e flexibilizam as suas modalidades de controle através da contratualiza-ção e da avaliação de resultados.2

Por isso a questão da privatização é hoje, em tempo de crise econô-mica e de declínio do Estado Providência, uma questão que está na ordemdo dia. Contudo o conceito de “privatização”, apesar de ser frequentemen-te utilizado, é fracamente definido, o que faz com que, muitas vezes, comodiz Donnison (citado por WHITTY, 2000), ele sirva “não para clarificaruma análise … mas para dramatizar um conflito e mobilizar apoios”. Ape-

2 Para uma análise da situação no Brasil, nomeadamente no que se refere às parcerias público-privadas, consultar entre outros Adrião e Peroni (orgs.), 2008; Peroni e Rossi (orgs.), 2011.

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sar das várias perspetivas com que esse conceito é utilizado (e que não ireidiscutir aqui), a privatização envolve, em geral, como afirma Whitty (2000),um declínio da “provisão estatal”, uma redução dos “subsídios com di-nheiros públicos”, uma maior “desregulação” e uma “transferência de ser-viços para o sector privado”.

Essas características comuns podem dar lugar a diferentes variantesde privatização, tendo em conta a relação entre o financiamento e a gestão(ver a esse propósito CHAKRABART e PETERSON, 2009, p. 4). Num dosextremos encontra-se o “grau zero de privatização” – financiamento públicoe gestão pública, e, no outro extremo, o “grau máximo de privatização” –financiamento privado e gestão privada. Entre esses dois extremos encon-tram-se diversas modalidades de parcerias público-privadas, caracterizadaspelo financiamento público e gestão privada (como, por exemplo, escolas sobcontrato, os cheques-ensino, as “charter-schools, o “franchising” escolar), ouo financiamento privado e a gestão pública (bolsas, por exemplo).

Convém sublinhar que a adoção dessas diferentes modalidades deorganização e de financiamento resulta de opções políticas sobre a nature-za pública ou privada da educação. É o que procuro ilustrar no quadroseguinte com a configuração de quatro “modelos” explicativos da maior oumenor intervenção do Estado, definidos em função das variáveis “bem co-mum – bem de consumo” e “monopólio estatal – mercado livre”.

BARROSO, J. • Autonomia das escolas: entre público e privado

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– A educação é um bem essencialmente público, e nesse sentido justifica-sea preponderância da intervenção do Estado (no financiamento e na opera-cionalização da oferta do serviço educativo), que pode ir até a forma extre-ma do “monopólio estatal” com a supressão ou grande limitação do ensinoprivado.

– A educação é um bem essencialmente privado, e nesse sentido não sejustifica qualquer intervenção do Estado, devendo a oferta educativa serassegurada por um mercado inteiramente livre e desregulado e às expen-sas dos indivíduos interessados (ainda que admitindo a existência de be-nefícios fiscais para as despesas com a educação).

– A educação é um bem predominantemente público, que produz benefíciosprivados, e, nesse sentido, cabe ao Estado uma grande parte do financia-mento, regulação e prestação do serviço educativo, com a coparticipação(ao nível do financiamento e da definição da oferta educativa) dos outrosbeneficiários do sistema (em particular, os alunos e suas famílias, os futurosempregadores, etc.).

– A educação é um bem predominantemente privado, que produz externali-dades públicas, pelo que, embora cabendo ao Estado contribuir de maneirasignificativa para o financiamento do serviço educativo (tendo em contaessas externalidades), ele deve reduzir a sua intervenção ao mínimo parapermitir o funcionamento de um “quase mercado” educativo, baseado naconcorrência e autonomia dos prestadores de serviço e na livre escolha dosconsumidores.

A hibridação do público e do privado

Desde a última década do século passado que se manifestam, emmuitos países da OCDE, políticas de incentivo ao privado, com o fim depermitir um alargamento da base social dessa modalidade de ensino e umaumento do recrutamento de alunos, visando, segundo os seus promotores,obter ganhos de competitividade, eficiência e redução de custos. Essas polí-ticas resultam, muitas vezes, de “coligações de causas” (SABATIER eJENKINS-SMITH, 1993) as mais diversas, organizadas em função de inte-resses ideológicos, religiosos, econômicos, utilitários e outros. Contudo, ape-sar desses incentivos, a maior parte dos países ainda tem uma rede privada

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pouco expressiva. Acresce ainda que o crescimento do ensino privado nãose tem dado por iniciativa própria, mas, sobretudo, pelo impulso das auto-ridades públicas, que continuam a ser o “principal regulador”3. Por isso,embora a justificação do alargamento do ensino privado seja feita com re-curso a uma retórica concorrencial, o certo é que, em geral, essa concorrên-cia se desenvolve sob a égide e o controle das autoridades públicas. NatalieMons (2011) diz mesmo que a privatização se tornou, nesses casos, umaespécie de “clonização” do público, uma vez que as escolas privadas sãosubmetidas, na maior parte dos países, aos mesmos programas escolares, aavaliações semelhantes, a regras de recrutamento de professores idênticas ea consições materiais similares e acrescenta:

Apoiado cada vez mais pelos financiamentos públicos, aberto a classes soci-ais que ele não acolhia tradicionalmente, assumindo objetivos de interessegeral, submetido a uma regulação pública mais constrangedora, o privadomudou de aspeto nestas duas últimas décadas. Mais do que uma privatiza-ção da educação nacional, a expansão deste novo privado é marcada sobre-tudo pela instrumentalização deste sector pelos poderes públicos (MONS,2011, p. 35).

Pode dizer-se, por isso, que as relações entre público e privado estão amudar na educação, sem que isso signifique forçosamente uma privatiza-ção global do sistema. Ao contrário do que as teses radicais querem fazercrer, hoje em dia, na maior parte dos países, os dois sistemas sobrepõem-seem muitos domínios, as suas fronteiras diluem-se, a sua especificidade di-minui. Em vez de um jogo de soma nula entre dois setores estanques, veri-fica-se (como foi referido) uma hibridação do público e do privado e umacomplexificação das suas relações.

Para essa “hibridação” muito tem contribuído a progressiva diluiçãodas fronteiras éticas, filosóficas e religiosas, que tradicionalmente separa-vam, do ponto de vista institucional, esses dois sistemas. Como assinalaMaroy (2011), a propósito da situação na Comunidade Francófona da Bél-gica, onde a “liberdade de escolha” (por motivos religiosos) é bastante am-pla: o ensino público e o ensino privado passaram a estar submetidos à

3 Carlos Estêvão fala a esse propósito de “providenciação pública do privado na educação portu-guesa” (ESTÊVÃO, 2012, p. 33-65). Ver igualmente Estêvão (1998).

BARROSO, J. • Autonomia das escolas: entre público e privado

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

mesma mudança de paradigma (emergência de um paradigma economicis-ta ou gerencialista), em função do qual as diferenças são vistas mais emtermos de “eficácia organizacional e pedagógica” do que ao nível de “valo-res e modelos pedagógicos de referência”. Contudo, como o mesmo autorafirma: “essa evolução da leitura das relações entre privado e público nãosignifica, bem entendido, o desaparecimento das diferenças institucionais,mas o seu esbatimento no debate das políticas escolares” (idem, p. 70).

A atração que as escolas privadas exercem sobre as famílias pode ter,assim, diferentes justificações: elevação do capital social (fruto de uma sele-ção dos alunos); filiação religiosa (nas escolas confessionais); imagem demaior eficácia (pela “qualidade” dos resultados escolares dos seus alunos).Contudo, hoje em dia, e sobretudo nas famílias urbanas da classe média,essa atração resulta, muitas vezes, da perceção que têm da capacidade orga-nizacional dessas escolas, considerando que elas podem responder melhore de uma maneira mais individualizada (pelas suas estruturas, recursos emodos de funcionamento) às expectativas dos utilizadores. Como assinalaa esse propósito Yves Dutercq (2011):

Enquanto a oferta de ensino público, assumindo-se como indiferenciada einscrevendo-se numa lógica cívica e acadêmica, encontra a sua justificaçãono currículo oficial, onde são valorizados os saberes disciplinares, a procu-ra, por parte dos utilizadores, é marcada cada vez mais por uma lógica do-méstica que privilegia a proximidade e a disponibilidade em relação aosalunos e que se focaliza na individualização da relação com a escola (DU-TERCQ, 2011, p. 176).

Isso significa, como salienta Maroy (2011), que “a concorrência en-tre o público e privado se faz hoje, sobretudo, no domínio instrumental enão, como antigamente, no domínio axiológico e normativo” (p. 70). Ou,como afirmam Desjardins, Lessard e Blais (2011), falando da situação noCanadá – Quebeque:

Podemos perguntar-nos se a escola privada é um sintoma da crise da escolapública, ou se, pelo contrário, ela é a sua causa. Talvez seja um pouco das duascoisas: os pais optam pelo privado devido a razões cuja legitimidade é difícilde contestar (…), mas ao mesmo tempo o que parece ser uma solução indivi-dual legítima provoca, quando multiplicada em larga escala, consequênciasinquietantes para a rede pública (DESJARDINS et al., 2011, p. 121).

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Que lugar para a escola pública?

A constatação dessa hibridação entre público e privado não deve pôrem causa a “defesa de uma escola pública” enquanto expressão de um “idealcoletivo” de uma escola democrática e não segregativa, baseada na univer-salidade do acesso, na igualdade de oportunidades, na partilha de uma cul-tura comum e na continuidade dos percursos escolares. Contudo a defesada escola pública não pode estar prisioneira de qualquer tipo de ortodoxiasobre o modo como se concretizam os seus ideais e se organizam as suasestruturas e atividades4.

No caso presente, isso significa, como tenho referido em vários mo-mentos, que a opção não pode estar limitada entre, por um lado, preservara escola pública, impedindo as famílias de fugirem dela, e, por outro, ani-quilar a escola pública com a criação artificial de um mercado educativosustentado com dinheiro público (BARROSO, 2003).

Por isso defendo que, no contexto atual da crise do Estado Providên-cia (e do modelo social a que deu origem), torna-se necessário reforçar adimensão pública da escola pública, o que obriga a reafirmar os seus valo-res fundadores perante a difusão transnacional de uma vulgata neoliberal,que vê no serviço público a origem de todos os males da educação e na suaprivatização a única alternativa (BARROSO, 2004b).

Mas defendo, igualmente, que a falência atual do modelo de regula-ção burocrático-profissional, que serviu de base à expansão da escola públi-ca no passado, obriga a procurar novas formas organizativas (pedagógicase educativas) e novas modalidades de regulação e de intervenção que impli-quem:

– A recriação da escola como espaço público de decisão coletiva, ba-seada numa nova concepção de cidadania “que vise criar a unidade semnegar a diversidade” (WHITTY, 2002).

– Que o Estado continue a assegurar, como lhe compete, a “manu-tenção da escola num espaço de justificação política” (DEROUET, 2003),

4 Retomo aqui as posições que defendi em 2004 a propósito da Escola da Ponte (BARROSO,2004b).

BARROSO, J. • Autonomia das escolas: entre público e privado

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

sem que isso signifique ser o Estado o detentor único da legitimidade dessajustificação.

– Que a intervenção do Estado não perca em legitimidade o que temde ganhar em eficácia e, simultaneamente, não perca em eficácia o que temde ganhar em legitimidade.

Numa lógica de serviço público, a autonomia constitui, assim, uminstrumento fundamental para ajustar a oferta educativa às característicasdos territórios e às dinâmicas locais no respeito pelas orientações gerais deum sistema público nacional de ensino. Desse ponto de vista, a autonomiadas escolas não é um processo de “fechamento social” nem um instrumen-to para promover a oferta das escolas privadas e a concorrência entre asescolas, mas sim uma condição para abrir a escola à diversidade dos seuspúblicos, reforçando a participação, a democracia e a flexibilização na suaorganização.

A autonomia das escolas (juntamente com o reforço das competên-cias das autarquias) pode, por isso, contribuir decisivamente para a cria-ção de uma nova ordem no domínio educativo, que concilia interessesindividuais e ideais coletivos, a regulação nacional com a regulação local.Para que assim seja, a autonomia obriga ao reforço da dimensão cívica ecomunitária da escola pública na busca de um compromisso entre a fun-ção reguladora do Estado, a participação dos cidadãos e o profissionalis-mo dos professores, tendo em vista a construção do “bem comum”, que éa educação das crianças e dos jovens” (ver BARROSO, 2000).

Nesse contexto, o alargamento dos poderes de decisão dos atores es-colares (sobretudo na gestão pedagógica) e o reforço dos correspondentesinstrumentos e recursos podem contribuir para introduzir “públicas virtu-des” na educação privada e “virtudes privadas” na educação pública. Noprimeiro caso, através da contratualização de um serviço público comumque preserve a universalidade, a equidade e a democracia na oferta escolar.No segundo caso, através da diversificação e flexibilização da organizaçãoe da gestão. É nessa alteração das relações entre público e privado que épreciso encontrar um novo princípio de justiça que combine a satisfaçãodas necessidades individuais e das expectativas dos alunos e suas famílias(subjacente à privatização) com a justiça escolar (subjacente ao ideal deescola pública), garantindo a equidade no acesso a uma educação de quali-

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dade, minimizando a hierarquização dos estabelecimentos de ensino e re-duzindo o fosso existente entre os níveis de eficácia das escolas.

A requalificação do ensino público é, nesse contexto, uma exigênciada sua sobrevivência. É preciso intervir para combinar a satisfação das ne-cessidades individuais e das expectativas dos alunos e suas famílias (subja-cente à escolha da escola) com a necessária justiça escolar (subjacente aoideal de escola pública), que garanta a todos uma educação de qualidade,minimize a hierarquização dos estabelecimentos de ensino e reduza o fossoexistente entre os níveis de eficácia das escolas. Isso só é possível, comoafirma Levin (2001, 2003), se a “escolha da escola” e a “busca da eficiên-cia” não se fizerem à custa da “equidade” e da “coesão social”.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

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Diretor(a) de escola pública:unipessoalidade e concentração do poderno quadro de uma relação subordinada1

Licínio C. Lima

Introdução

O presente texto incide sobre a emergência, ainda recente em Portu-gal, da figura de diretor(a) de escola pública, instituída pelo Decreto-Lei nº75/2008, numa dupla perspectiva de análise: por um lado, como possível“analisador” da política educativa, considerando a centralidade que lhe foiatribuída como elemento da reforma da administração das escolas atravésda consagração jurídica de um novo modelo que, genericamente, se inscre-ve nas tendências internacionais das chamadas “gestão centrada na escola”ou “escola autogerenciada”, marcadas por vários traços da “Nova GestãoPública” e daquilo a que, criticamente, tenho chamado de cânone gerenci-alista; por outro lado, enquanto elemento de possível ruptura com o princí-pio da gestão democrática, da colegialidade e da participação, que conti-nua, todavia, formalmente em vigor, mas agora em acentuada erosão e sobuma distinta concepção de organização escolar e da sua administração,mais dependente da liderança unipessoal e da respectiva concentração depoderes no interior das escolas.

Não obstante a alteração jurídica operada e as correspondentes mu-danças em curso no plano da ação, já objeto de múltiplas investigações,embora a maioria ainda em curso e sem resultados publicados, parte-se da

1 Versão adaptada para publicação no Brasil do texto inicialmente incluído em A. Neto-Mendes,J. A. Costa & A. Ventura (Orgs.). A emergência do diretor da escola: questões políticas e organiza-cionais (p. 47-63). Atas do VI Simpósio de organização e gestão escolar. Aveiro: Universidadede Aveiro.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

hipótese de trabalho que assenta no carácter recentralizador do poder polí-tico e da administração escolar. Nesse quadro de interpretação, a figura dediretor inscreve-se não num movimento de reforço efetivo da autonomia daescola, de que seria o respectivo “rosto”, segundo a expressão do legislador,mas antes num movimento de desconcentração algo radicalizado, não ape-nas capaz de assegurar o tradicional predomínio do centro sobre as perife-rias, mas até de o dotar de maior eficácia em termos de controlo, situaçãoem que o cargo de diretor mais tipicamente representaria o “rosto” do po-der central, do ministério da Educação, junto de cada escola.

A linha interpretativa que aqui será apresentada e justificada, maiscomo hipótese de trabalho a desenvolver do que como conclusão já empiri-camente sustentada, em todo o caso assente em análises e argumentos quese deixarão à consideração do leitor e de investigações futuras, aponta paraa relativamente nova e contraditória condição de diretor escolar: por umlado, a de sujeito que concentra novos poderes sobre os subordinados naorganização escolar, dessa forma alongando e verticalizando o respectivoorganograma e reforçando as prerrogativas de uma liderança formalmenteunipessoal; mas, por outro lado e em simultâneo, a de objeto de um maisprofundo processo de subordinação e dependência face ao poder central,concentrado e desconcentrado, sobre quem recaem, individual e imediata-mente, todas as pressões políticas e administrativas e, de acordo com o le-gislador, a quem enquanto “primeiro responsável poderão assim ser assa-cadas as responsabilidades pela prestação do serviço público de educação epela gestão dos recursos públicos postos à sua disposição” (do preâmbulodo Decreto-Lei nº 75/2008).

A referida dualidade não é inédita na história da administração esco-lar portuguesa, desde o “chefe do liceu”, de finais do século XIX, sobretu-do observada a longa tradição de órgãos unipessoais nomeados governa-mentalmente, interrompida durante o período republicano por ação do entãoconselho de escola, que elegia o reitor, para voltar à nomeação pelo gover-no entre 1928 e 1974, tendo o carácter eleitoral sido estabelecido e desdeentão mantido, a partir da revolução democrática de 25 de abril de 1974,embora com importantes variações no que concerne aos respectivos pro-cessos e âmbitos de participação eleitoral (BARROSO, 2002). Desde maiode 1974, em termos jurídicos, a direção das escolas portuguesas passou a

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ser assumida por órgãos colegais eleitos democraticamente, nalguns casosespecificando certas competências próprias do presidente do órgão, o qualfoi mudando de designação: “comissão de gestão”, entre 27 de maio de1974 (Decreto-Lei nº 221/74) e 21 de dezembro daquele ano (Decreto-Leinº 735-A/74); “conselho diretivo”, a partir de dezembro de 1974, emboracom arquitetura formal estabilizada através do Decreto-Lei nº 769-A/76,de 23 de outubro, que vigorou até 1998; “conselho executivo”, a partir doDecreto-Lei nº 115-A/98, de 4 de maio até 22 de abril de 2008, com apublicação do Decreto-lei nº 75/2008, o qual consagra a figura de diretor,assim retornando, trinta e quatro anos depois do 25 de abril de 1974, a umórgão unipessoal, embora eleito pelo agora designado conselho geral.

Com efeito, reitores dos liceus e diretores das escolas técnicas foramsubstituídos por comissões de gestão eleitas em várias escolas do país, logoa partir dos primeiros dias após o 25 do mês de abril de 1974, evidenciandoprocessos eleitorais e composições variados. Em investigação realizada so-bre essa questão (LIMA, 1992), designei esse período como sendo a “1ªedição” da gestão democrática, mais ou menos espontânea, sem legislaçãoque lhe desse cobertura, à margem de qualquer projeto do I Governo Provi-sório, o qual cedo procurou enquadrar a iniciativa, legalizando-a a posteriorie generalizando-a às escolas de todo o país (Decreto-Lei nº 221/74, de 27de maio). De autonomia, curiosamente, não se falava à época, durante operíodo revolucionário, enquanto categoria presente no discurso político enormativo, mas era o que, nas escolas, em graus variados, se praticava (au-tonomia de facto).

Emergia, então, de forma algo fragmentada e contraditória, a cha-mada “gestão democrática das escolas”, só mais tarde constitucionalizada(em 1976), reunindo três características principais: a colegialidade, atravésda criação do conselho diretivo enquanto órgão máximo da escola; a de-mocraticidade, presente no processo de constituição do conselho diretivo,através da eleição dos seus membros pelos respectivos corpos representa-dos (docentes, alunos do ensino médio e funcionários); a participação nagestão das escolas por parte dos representantes dos corpos já referidos e,mais tarde, também de pais e encarregados da educação dos alunos e, pos-teriormente, do poder local e de instituições da comunidade.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

À medida que a gestão democrática das escolas foi sendo institucio-nalizada, sobretudo a partir de 1976 e da ação do I Governo Constitucional(que designei por “2ª edição” da gestão democrática), foi também sendopoliticamente adaptada ao retorno do poder ao centro político-adminis-trativo e à correspondente perda de certas margens de autonomia antes en-saiadas, embora na maioria das casos nunca legalmente autorizadas. Coma reconstrução do paradigma da centralização em torno do ministério daEducação (note-se que as escolas portuguesas não se integram em redesestaduais ou municipais, mas são dependentes do governo nacional), a ges-tão democrática das escolas foi-se revelando muita gestão, enquanto execu-ção local das políticas e das injunções administrativas centrais, para poucademocracia, se entendermos essa como a prática da participação no proces-so de decisão, ou seja, como autonomia em ação, em direção a certos grausde autogoverno (LIMA, 2011a, p. 12-55).

Ia, porém, resistindo, por vezes com dificuldade, o carácter colegial eeletivo do conselho diretivo/executivo, crescentemente subordinado a umaadministração centralizada de feição desconcentrada, cujos novos protago-nistas passavam a ser as direções regionais de educação, disseminadas pelopaís. Nesse contexto de centralização desconcentrada, embora politicamenteapresentada, desde finais da década de 1980, sob o signo da descentraliza-ção e do reforço da autonomia das escolas, algumas contradições vieramao de cima no que concerne a um conceito, e respectivas práticas, de gestãodemocrática em contexto de governação heterônoma das escolas, designa-damente: uma gestão, em cada escola, formal e processualmente democrá-tica e colegial, mas com margens de autonomia extremamente reduzidas, oque contribuiu para a emergência de práticas de participação passiva e denão participação por parte dos atores escolares (ver as investigações portu-guesas que referencio em LIMA, 2011a); a eleição dos membros dos conse-lhos diretivos ou executivos, sobretudo dos docentes e, dentre esses, do pre-sidente do órgão, entendidos pelos membros da escola como os seus pri-meiros representantes junto aos serviços centrais e desconcentrados do mi-nistério da Educação, mas, inversamente, por esses últimos frequentementetratados como subordinados, que, em primeira instância, representavam opoder central junto a cada escola.

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O caráter colegial do conselho diretivo/executivo, constituindo fre-quentemente um importante contraponto ao centralismo e uma espécie deamortecedor de certas tendências mais diretivas e até autoritárias, por parteda administração central e regional, revelou-se, porém, à margem de umapolítica efetivamente democrática e de signo descentralizador e autonômi-co, incapaz, isoladamente, de alterar a face centralizadora da administra-ção escolar. Colegialidade, democraticidade e participação na organizaçãoescolar, embora indispensáveis a uma governação democrática e à realiza-ção substantiva da autonomia da escola, revelaram-se, contudo, insuficien-tes. Exigia-se, para além daqueles elementos e de uma visão insular e proce-dimentalista sobre a sua natureza, uma política educativa comprometidacom a descentralização democrática e com a construção de um sistema deadministração escolar de características policêntricas. É especialmente numtal contexto que o carácter eletivo do órgão de direção da escola não é dis-sociável da sua natureza colegial, sem dúvida constituindo, em conjunto,um reforço da governação democrática e uma solução também teoricamentemais congruente, isso por referência à teoria da democracia como partici-pação, embora outras soluções sejam possíveis e democraticamente aceitá-veis. A colegialidade democrática, porém, é aquela modalidade que teori-camente mais se afasta da liderança monocrática não eletiva, eventualmen-te autocrática, convém recordar.

Vários autores têm destacado as complexas relações entre os elemen-tos antes apontados. Referindo-se à longa experiência brasileira em tornodo diretor, e também por isso insistindo na indispensável articulação entregestão colegial e processo eletivo, a ponto de há muito propor a substitui-ção do diretor por um órgão colegial chamado “conselho diretivo”, VitorParo (1996, p. 132) observa que “[…] de pouco adianta, como tem mostra-do a prática, um conselho de escola, por mais deliberativo que seja, se afunção política de tal colegiado fica inteiramente prejudicada pela circuns-tância de que a autoridade máxima e absoluta dentro da escola é um diretorque em nada depende das hipotéticas deliberações desse conselho e quetem claro que este não assumirá em seu lugar a responsabilidade pelo (mau)funcionamento da escola”. Em Portugal, também as investigações realiza-das por Sanches em torno da liderança colegial das escolas (cf., entre ou-tros, SANCHES, 2000 e 2009) têm destacado as relações entre colegialida-

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de, descentralização, dependências mútuas e autonomia democrática, afir-mando a autora: “[…] uma liderança colegial de escola só se torna possívelnuma comunidade escolar descentralizada, cuja autonomia partilhada dêorigem a formas de comunicação entre vários parceiros educativos e permi-ta a institucionalização de espaços e tempos profissionais orientados para acriatividade pedagógica e curricular” (SANCHES, 2000, p. 46). Destacan-do ainda o carácter incontornável da natureza e do alcance das delibera-ções tomadas nas escolas, por mais colegial e formalmente democráticoque seja o respectivo processo de decisão, também concluí a esse propósito:“O problema crucial não reside na quantidade de decisões e microdecisões,ou sequer no carácter colegial e formalmente democrático de muitos pro-cessos deliberativos que ocorrem nas escolas. Reside, sim, na natureza eno alcance dessas deliberações e na indispensável distinção entre decidirorientações políticas e regras ou decidir apenas sobre procedimentos ge-renciais para a sua execução em conformidade, mesmo assim fortementecondicionada por um extensíssimo corpus de regras e procedimentos im-postos aos atores periféricos” (LIMA, 2007, p. 53). É, contudo, esse sentidopredominantemente instrumental que tem imperado nas relações entre ocentro e as periferias, sob uma concepção que tenho designado por autono-mia heterogovernada, numa aparente contradição que, porém, se exprime noscotidianos escolares através dos apelos a uma certa diversidade na execu-ção periférica (autonomia operacional restrita) das decisões políticas cen-trais, inteiramente decididas a priori, fora e acima de cada escola concreta(heterogoverno).

Sob influência do gerencialismoe da “gestão centrada na escola”

Em meados da década de 1980, as práticas de gestão democrática dasescolas portuguesas revelavam sinais de erosão, atravessando, de resto, umacrise eleitoral, consubstanciada, entre outros aspectos, por um decréscimosubstantivo na apresentação de listas concorrentes ao conselho diretivo. Asubstituição do decreto de 1976 foi anunciada por diversas vezes e por di-versas vezes foi adiada, mesmo após as propostas apresentadas nesse senti-

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do no âmbito dos trabalhos realizados em 1987-1988 pela Comissão deReforma do Sistema Educativo, de que se destacava a criação de um “conse-lho de direção” em cada escola, justificado à luz de uma perspectiva so-ciocomunitária que exigia a efetiva descentralização do Ministério da Edu-cação (FORMOSINHO, et al. 1988 e CRSE, 1988).

Em sentido diverso, antes assumindo uma lógica de desconcentraçãoque viria a revelar-se um poderoso instrumento de controle sobre as esco-las, num quadro mais geral de feição modernizadora e eficientista, que, decerto modo, introduzia pela primeira vez em Portugal alguns dos elemen-tos emblemáticos do gerencialismo na educação, seria publicado, para vi-gorar a título experimental e em pouco mais de cinco dezenas de escolas, oDecreto-Lei nº 172/91, de 10 de maio. Aqui surge a figura de “diretor exe-cutivo”, designado através de um processo concursal, com seriação de can-didatos, seguido de eleição pelo conselho de escola, de resto uma modali-dade discutida e criticada pelo conselho de Acompanhamento e Avaliaçãono seu relatório final (CAA, 1997). O estudo realizado por João Barroso(1995a) para aquele conselho, para além de uma caracterização do perfildos novos diretores executivos, concluía pela sua acrescida visibilidade epela intensificação das suas relações externas, ao mesmo tempo que desta-cava a sua maior concentração em tarefas de gestão operacional, com umareduzida intervenção pedagógica e uma relativa desvalorização da funçãoeducativa do diretor junto aos alunos (ibid., p. 66-67).

Não generalizado o modelo de 1991, por proposta daquele conselhoe decisão do poder político, um novo estudo viria a ser produzido (BAR-ROSO, 1997), a que se seguiu, não sem registar importantes descontinuida-des face às propostas antes apresentadas, o Decreto-Lei nº 115-A/98, de 4de maio, instituindo uma assembleia e um conselho executivo em substitui-ção ao conselho diretivo criado pela legislação de 1976, bem como a cate-goria “contrato de autonomia” em duas distintas fases. O legislador, embo-ra cautelosamente evitando impor a figura de diretor, pela qual exprimiaimplicitamente a sua preferência, decidiu admiti-la em pé de igualdade como conselho executivo, concedendo a cada escola a possibilidade de optarpor um ou por outro, opção que só em raros casos veio a incidir no órgãounipessoal. Ficava legalmente consagrada, embora em regime opcional, afigura do diretor, apoiado por dois adjuntos, para todas as escolas e agrupa-

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

mentos de escolas, por iniciativa de um governo do Partido Socialista (par-tido de centro-esquerda): um marco jurídico que não deixaria de ter conse-quências no futuro e que, de novo, remetia a certas concepções de liderançaescolar e de autonomia das escolas inspiradas na “Nova Gestão Pública” enalgumas de suas mais conhecidas apropriações no âmbito da administra-ção escolar. Elementos igualmente presentes, embora com maior clarezade propósitos, nos programas eleitorais do Partido Social Democrata (par-tido de centro-direita) e do Centro Democrático Social (partido de direita)às eleições legislativas de 2002, bem como nos programas dos XV e XVIGovernos.

Dez anos passados, de novo um governo do Partido Socialista (XVIIGoverno) viria a intervir no modelo de gestão das escolas e agrupamentosde escolas, mantendo assim uma tradição que remonta a 1976, uma vezque nenhum governo de outro partido político consagrou ainda qualquermodelo de administração e gestão generalizado às escolas dos ensinos bási-co e médio. Dessa feita se consagrará a figura de diretor através do Decreto-Lei nº 75/2008, de 22 de abril, num quadro de referência que, ao longo detrês décadas, evoluiu politicamente desde a celebração das virtudes da ges-tão democrática e da colegialidade, enquanto expoentes máximos da de-mocracia representativa nas escolas (ver preâmbulo do Decreto-Lei nº 769-A/76), até o elogio das virtudes das lideranças boas, fortes e eficazes, segundoas palavras do legislador, concretizadas “pela criação do cargo de diretor,coadjuvado por um subdiretor e um pequeno número de adjuntos, masconstituindo um órgão unipessoal e não um órgão colegial” (ver preâmbu-lo do Decreto-Lei nº 75/2008).

Sem estudos prévios, sem investigação que lhe desse respaldo e, ain-da, sem elaboração política e ideológica capaz de contribuir para a legiti-mação daquela medida, a centralidade conferida à figura de diretor como“rosto” e primeiro responsável por cada escola ou agrupamento inscreve-senum racional que aproveita a erosão, já referida, da gestão democrática eda sua associação à colegialidade, que, historicamente, representava umdos mais importantes símbolos da ruptura com a liderança unipessoal dereitores e diretores nomeados pelos governos, para contribuir para o seuocaso. Essa ruptura é ainda, no entanto, parcial, uma vez que, afastando acolegialidade do órgão de administração e gestão, a mantém relativamente

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ao conselho geral, até como resposta ao respectivo princípio constitucio-nal. Inscreve-se, porém, na lógica da superioridade da gestão unipessoal,da visão do líder e do seu respectivo projeto para a organização, o qualexige o direito de gerir e de constituir uma equipe de gestão com pessoas da suaconfiança e por si nomeadas, podendo mais tarde responder e ser responsa-bilizado pelos resultados obtidos, em primeira instância pelo conselho ge-ral, mas sobretudo através de novos processos de accountability e de avalia-ção externa, ou seja, segundo algumas das mais relevantes dimensões pro-postas pela “Nova Gestão Pública” e pelas ideologias gerencialistas de tipoempresarial. Mas talvez ainda mais importante do que a quebra do princí-pio da colegialidade terá sido o fenômeno de concentração de poderesno(a) diretor(a) e a prerrogativa que lhe foi concedida de escolher pratica-mente todos os detentores de cargos de gestão na organização, a que sedeve juntar a possibilidade de, em certas circunstâncias, se poder vir amanter no cargo até o limite de dezesseis anos, em ambos os casos confi-gurando uma situação que não tem paralelo noutras organizações educati-vas, como universidades e politécnicos, bem como noutras organizações daadministração pública em Portugal. Concentração de poderes, livre nome-ação e demissão de gestores intermédios e outros, período tendencialmentebastante alargado de manutenção no cargo, representam elementos quepoderão remeter para um período de transição a que se seguirá, eventual-mente, um novo ordenamento assente na profissionalização do(a) diretor(a)escolar, com base em formações prévias certificadas e baseadas em padrões,bem como em processo concursal ou, mesmo, em processo de nomeação.Em tal caso, passando a coincidir mais tipicamente com os postulados da“Nova Gestão Pública”, que adota como referencial considerado mais ra-cional, eficaz e eficiente a gestão privada de tipo empresarial, essa vistacomo regeneradora da administração pública, cujo carácter burocrático seriaimanente, e como capaz de vencer as resistências à mudança, que seriamtípicas do corporativismo dos seus profissionais.

Recusando as perspectivas da burocracia profissional, enquanto ali-ança no contexto do Estado-providência e de políticas de índole social-de-mocrata, bem como as abordagens sociocomunitárias, agora representadascomo radicalmente democráticas e autonômicas, típicas de modelos de po-líticas sociais de inspiração crítica, emerge como alternativa a defesa da

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“teoria da escolha pública”, que necessariamente assenta na competitivida-de entre escolas, induzida por novos processos de avaliação enquanto ins-trumentos privilegiados de regulação de tipo mercantil e de metarregula-ção por parte de um Estado neoliberal, também designado por Estado-su-pervisor ou mesmo por “Estado gerencial” (CLARKE; NEWMAN, 1997).Este referencial político-ideológico, que vem sendo investigado há mais deduas décadas, remete a uma constelação de elementos de que sobressaem:a cultura e o ethos de tipo empresarial; a defesa da privatização, seja emsentido pleno ou como modo de gestão a introduzir nas organizações pú-blicas, designadamente através da criação de mercados internos no seu seio;o elogio da liderança individual e da respectiva visão e projeto, como ex-pressão do direito de gerir, da livre iniciativa e do empreendedorismo naadministração pública; a eficácia e a eficiência definidas segundo a racio-nalidade econômica; a livre escolha, em ambiente de mercado ou quase mer-cado competitivo, num quadro de referência que coloca o cliente e o consu-midor no centro das opções consideradas racionais; a clareza da missão daorganização e a definição objetiva e passível de mensuração dos seus objeti-vos, escrutináveis através de complexos e rigorosos processos de avaliação.

As reformas gerencialistas da educação pública em diversos países,embora com impactos variados e apropriações diversas, têm, de acordo coma investigação disponível, destacado um vasto conjunto de dimensões, en-tre as quais: centralização da formulação das políticas educativas e dos pro-cesso de decisão sobre o currículo e a avaliação, embora invocando siste-maticamente a descentralização, a devolução e a autonomia da escola; adescentralização de certas competências, embora principalmente de cará-ter técnico e operacional e, por vezes, financeiro, alargando as fontes definanciamento a entidades privadas e responsabilizando de forma crescen-te as famílias dos alunos; menor relevância atribuída a processos de contro-lo democrático e de participação nos processos de tomada das decisões,bem como crescente desconfiança relativamente a órgãos colegiais, geral-mente vistos como fontes de desresponsabilização, de composição conside-rada numerosa e paralisante, de funcionamento pesado e lento; reforço dopoder dos gestores, assessores e outras tecnoestruturas em prejuízo da in-fluência dos profissionais, educadores e professores, bem como da comuni-dade e da diversidade das suas organizações e dos seus interesses, em geral

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substituídos pela intervenção de representantes restritos dos stakeholders, pelocontrole dos clientes, pelas parcerias com o poder econômico e empresarial;governação e decisões políticas baseadas na evidência, instituindo formasde regulação de tipo mercantil; reforço das estruturas de gestão de tipo ver-tical e concentração de poderes no líder formal.

Apresentado e legitimado como uma alternativa de tipo pós-burocrá-tico, o gerencialismo revela-se, com frequência, mais gestão para menosdemocracia, sendo responsável por um aumento exponencial de certas di-mensões da burocracia racional, estudadas por Max Weber, mas tambémmesmo de dimensões menos racionais e mais coincidentes com a aceçãopejorativa e de senso comum. Fenômeno visível nas escolas portuguesas, oexagero dos traços da burocracia weberiana resulta numa burocracia esco-lar radicalizada, ampliada ou, como prefiro chamar-lhe, numa hiperburo-cracia (Lima, 2012), aliás induzida e reforçada pelas novas tecnologias dainformação e comunicação, que emergem como uma espécie de nova fontede controle centralizado, eletrônico e aparentemente difuso, contudo pode-roso e onipresente.

Entre as dimensões teoricamente associáveis à hiperburocratizaçãoescolar, a merecer estudo empírico, podem referir-se: a substituição da lide-rança colegial pela liderança unipessoal, a que falta a perda do caráter ele-tivo para se aproximar do que Weber designou por “burocracia monocráti-ca” (WEBER, 1984, p. 176-178); a centralização e a concentração de pode-res de decisão; o regresso à organização em linha, à maior hierarquização eà divisão do trabalho entre gestores e professores; a crescente relevância dosaber pericial e do poder da tecnoestrutura, dos adjuntos e assessores, dasinstâncias especializadas na prestação de serviços técnicos; a obsessão pelaeficácia e eficiência, pela escolha ótima e pela performance competitiva; acentralidade dos processos de gestão da qualidade, de avaliação e de men-suração sob inspiração neopositivista (rankings, escolas de excelência, ava-liação externa, testes estandardizados, padrões, etc.); os processos de cen-tralização informática e de taylorismo on line, com a difusão de novas cate-gorias mentais, reproduzidas sem disputa, e de conceitos mais ou menosnaturalizados.

Admite-se, assim, que o gerencialismo vigente se revele incapaz delutar contra a burocratização da realidade escolar e de, pelo contrário, po-

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der engendrar uma radicalização burocrática capaz de invadir o cotidianodos professores e de alterar profundamente as escolas enquanto locais detrabalho, de ensino e de aprendizagem.

Em qualquer caso, o padrão de gestão democrática, ou de tipo cole-gial-participativo, que é ainda o referencial normativo da Constituição daRepública (de 1976) e da Lei de Bases do Sistema Educativo (de 1986), vemsendo afastado e substituído por um padrão de gestão de tipo tecnocráticoe racionalista, que concebe as organizações escolares como instrumentostécnico-racionais em busca de objetivos certos e consensuais, de resto indu-zido por várias organizações transnacionais e supranacionais (da OCDE àUnião Europeia, por exemplo). Nesse contexto político e organizacional, agestão democrática das escolas, que nunca se constituiu como uma modali-dade de governação avançada em termos de autonomia e participação de-mocráticas, revela-se agora uma espécie de utopia política, uma ilusão ge-nerosa, mas enganadora, herdada da revolução, que deve ser abandonadapor uma democracia madura e em esforço de modernização. Em termos degestão, é representada como constituindo uma irresponsabilidade ao diluirpoderes por um coletivo, desresponsabilizando os atores individuais e ad-mitindo lógicas colegiais entre professores. Depois de uma longa fase deerosão, e agora em plena fase de ocaso, a gestão democrática das escolasarrisca-se a dar lugar a uma pós-democracia gerencial.

O racional político e administrativo, explícito e implícito, do Decre-to-Lei nº 75/2008, não é compreensível fora da influência da “gestão cen-trada na escola” ou “escola autogerenciada”, embora com a especificidadeportuguesa de manter incólume uma administração fortemente centraliza-da, de feição desconcentrada e de orientação frequentemente autoritária etecnocrática. Contexto em que o repetido discurso da autonomia da escolanão pode deixar de assumir contornos retóricos, mas onde, não obstante,emerge o discurso da importância do líder unipessoal, agora dotado de um“self ” empresarial que vem sendo objeto de elogio e promoção, em certospaíses, há mais de três décadas (SMYTH, 2011). Com diferenças aindaconsideráveis, é no entanto visível, entre nós, a crescente defesa do protago-nismo do(a) diretor(a) como pivot de uma visão que se baseia no elogio dosetor privado e empresarial, de um estilo empreendedor semelhante ao deum “diretor geral” ou de um “chief executive officer” numa empresa, agen-

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te de um processo de re-hierarquização das relações de poder, profissionaise pedagógicas, em prejuízo da ampliação da agência e autonomia dos pro-fessores, em boa parte resultante da introdução de mecanismos de controleinspirados pela educação baseada na evidência (cf., entre outros trabalhosrecentes, relativos a diversos países, ARREMAN & HOLM, 2011; COURT& O’NEILL, 2011; O’NEIL, 2011; SHAHJAHAN, 2011). E mesmo quan-do a realidade empírica das escolas portuguesas e, talvez, a maioria dosdiretores de escolas e agrupamentos se revelam ainda algo distantes, quan-do não em situação de resistência, face ao modelo politicamente induzidode liderança hierarquizante, isso não significa que tal modelo deixe de serpromovido, como tem sido, por exemplo, através dos relatórios de avalia-ção externa (cf. TORRES & PALHARES, 2009; LIMA, 2011b), em que asculturas fortes e integradoras tendem a ser elogiadas e atribuídas, comoproduto ou artefato, à ação esclarecida e competente do líder, qual gestorcultural que, em pouco tempo, já faria sentir a sua influência enquanto agentede socialização, integração e estabilização, rumo a metas consensualmenteestabelecidas e funcionalmente perseguidas por todos os subordinados.

Do organograma achatado a seu alongamento vertical

Analisemos, ainda que brevemente, alguns dos mais relevantes aspe-tos que marcam o processo de re-hierarquização e concentração de pode-res, introduzidos pelo Decreto-Lei nº 75/2008, por comparação com o an-terior Decreto-Lei nº 115-A/98. Esse foi marcado pelo conceito de escola“enquanto centro das políticas educativas” e, ainda, pela proposta de assi-natura de contratos de autonomia, em duas distintas fases, muito limitadoem termos da sua realização efetiva e, apenas, de primeira fase. Em termosde liderança escolar, o conceito central adotado foi o de “direção executi-va”, designação ampla e suficientemente ambígua para compreender as duasmodalidades previstas: o conselho executivo (colegial) e o(a) diretor(a) (uni-pessoal). O mandato do conselho executivo, ou diretor, era de três anos, e opresidente daquele órgão, ou o(a) diretor(a), não assumia por inerência defunções a presidência do conselho pedagógico, embora pudesse vir a sereleito dentre os seus membros docentes. O processo de designação dos titu-lares de cargos de gestão pedagógica intermédia não sofria alteração e, como

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tal, com a tradicional exceção dos “diretores de turma” (classe), os restan-tes continuavam a ser eleitos pelos pares, e a coordenação dos estabeleci-mentos de ensino agrupados, quando prevista, era assumida por docenteseleitos em cada escola agrupada, em representação dessa.

O organograma resultante permaneceu semelhante ao que era naanterior legislação de 1976, naturalmente com a exceção significativa daintrodução de um órgão superior, a assembleia, embora muito longe deconstituir um órgão de direção estratégica da escola, o que exigiria a refor-ma da administração central e regional em direção à sua progressiva des-centralização. Porém a ação política e administrativa do Ministério da Edu-cação introduziu, de facto, alterações substanciais à prática desse modelo,isto é, embora, numa primeira fase, mantendo formalmente inalterado omodelo decretado, iniciou mudanças de fundo no modelo praticado, espe-cialmente no que concerne às relações com as escolas. Não apenas atravésdo conselho das escolas, criado pela nova lei orgânica do Ministério, masespecialmente através de um crescente protagonismo atribuído aos presi-dentes dos conselhos executivos, na prática tratados já, avant-la-lettre, comoresponsáveis pelas escolas, como órgãos unipessoais, e não como presiden-tes e representantes dos órgãos colegiais que presidiam. O diálogo maispersonalizado, os contactos políticos mais estreitos e, quando necessário,menos dependentes da mediação administrativa dos departamentos cen-trais e das direções regionais, um discurso político mais responsabilizantedaqueles atores escolares foram criando uma prática, um discurso e umambiente que indicavam a emergência da figura de diretor escolar. Tam-bém o fenômeno de reificação das escolas destacou a imagem do novo lí-der, simultaneamente reforçado no discurso político e tomado por esse comointerlocutor privilegiado e legítimo, embora, na prática da administração,tratado como um subordinado administrativo e, por essa via, despolitiza-do. Recorde-se que, não obstante os conflitos e as manifestações docentescontra o modelo instituído de avaliação de desempenho de professores, opoder político procurava tranquilizar o país, assegurando que as escolas jáestavam a cumprir a legislação, que as escolas prosseguiam as reformasencetadas e que, em suma, os respectivos responsáveis contradiziam, naprática, os discursos e as ações sindicais e associativas dos docentes. Asescolas eram representadas como entidades mais ou menos homogêneas,

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para além da maioria dos seus membros e, especialmente, dos docentes,não habitadas por atores em conflito e por agendas divergentes, antes coin-cidindo com a ação, política e administrativamente subordinada, de direto-res executivos pessoalmente pressionados e responsabilizados pelo gover-no. Sem dúvida, um processo, poucas vezes tão claro e intenso, de governa-mentalização da administração das escolas.

Iniciava-se, por via informal, um reforço da verticalização externa einterna da administração das escolas através de duas vias aparentementecontraditórias, mas articuladas: por um lado, na sequência de um novo pro-tagonismo atribuído aos líderes formais das escolas, induzindo formas dehierarquização e de administração mais fortemente articuladas entre supe-riores e subordinados escolares, mas, por outro lado, isolando os líderes ouremetendo-os para relações debilmente articuladas em termos de represen-tatividade das escolas junto ao poder central e, por essa via, enfraquecendo-os do ponto de vista político e denegando-lhes o verdadeiro estatuto delíderes quando em relação com o ministério. Um ministério que, apesar donovo discurso de valorização das lideranças individuais, continuava, e con-tinua hoje, a não tratar os diretores escolares como líderes das escolas. Acada problema, dúvida ou dificuldade, o Ministério da Educação assume,numa espécie de horror ao vazio, a função de controle e de normativizaçãodos mais elementares aspectos do cotidiano de cada escola, lembrando acada instante que a direção de cada escola portuguesa reside no centro dosistema e não no interior de cada escola concreta. Essa natureza atópica dadireção da escola, fora de seu lugar, que seria cada escola, deslocalizadapara as estruturas centrais e pericentrais do ministério, embora tradicionale formalmente consagrada desde 1976, foi mais ou menos tornada invisívelatravés de um organograma ilusoriamente achatado, com poucos níveishierárquicos, devido sobretudo à natureza colegial e eletiva dos órgãos dasescolas. Considerando, contudo, a sua direção externa e, agora, o protago-nismo concedido ao órgão unipessoal diretor e à sua concentração de pode-res, outrora limitada pela ação de outros órgãos colegiais e pela eleição dostitulares da maioria dos cargos, o organograma da escola não apenas revelamais facilmente a condição falsa do seu tradicional achatamento, mas tam-bém deixa mais claro o seu recente alongamento vertical.

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A tradução normativa e estrutural da referida mudança é a aprova-ção do Decreto-Lei nº 75/2008, consagrando um diretor mais solitário emais poderoso sobre o interior da escola, embora possivelmente numa situa-ção igualmente mais solitária e mais subordinada perante o poder político ea administração, até porque mais insular e à margem da dinâmica colegialdo anterior conselho diretivo ou executivo. Um diretor potencialmente maisforte para dentro (espaço sempre representado como significando para bai-xo), mas mais fraco para fora ou para cima. Teoricamente, uma espécie de“elo-de-ligação” (“linking-pin”, na terminologia clássica de Rensis LIKERT,1979), simultaneamente mais poderoso e mais subordinado, concentrandosobre si mais atribuições e competências no plano do funcionamento daorganização e da supervisão da execução das políticas educativas centrais,embora ao mesmo tempo concentrando sobre si todas as atenções da admi-nistração central num estatuto de grande ambiguidade. Uma espécie delíder hierárquico, interno, mais poderoso, embora externamente subordi-nado, de quem se exige um padrão de liderança executiva eficaz – umaliderança forte e boa, capaz de ser aceita como o “rosto” da escola, talvezmais ainda pela hierarquia do ministério do que, propriamente, pelos ato-res escolares.

A estreita articulação entre liderança individual, liderança boa, lide-rança forte e liderança eficaz é consideravelmente frágil em termos de argu-mentação, não remetendo para princípios teóricos, para dados de investiga-ção ou argumentos que possam ser observados e debatidos. Particularmen-te face a uma realidade histórica e cultural de signo autoritário, muito mar-cada, também nas escolas, por lideranças individuais fortes e eficazes, masnão necessariamente boas do ponto de vista democrático.

As abordagens gerencialistas, no entanto, pretendem compensar emganhos de eficácia e eficiência aquilo que perdem em termos de legitimida-de democrática, uma vez que essa se encontra em plena crise. Numa análi-se de literatura recente sobre liderança escolar de feição gerencialista em vá-rios países, Towsend (2011) observou a centralidade do uso da terminolo-gia de mercado, dos processos de prestação de contas, da competição entreescolas, alunos, recursos e resultados obtidos, da importância do marke-ting e da projeção da imagem de cada escola, da recolha de evidências eprovas, da construção de narrativas de interpretação e legitimação de cer-

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tos fatos, do conhecimento detalhado da legislação escolar e das injunçõesdo governo e da administração. Em geral, também as lideranças intermédiastendem a não ser concetualizadas enquanto tal, mas antes como correias detransmissão da visão e das regras do líder, isto é, obtendo legitimidade indi-reta ou delegada em função da sua articulação funcional e dependente daliderança formal, mas já não a partir de processos democráticos e colegiais,que exprimem as orientações e a autonomia pedagógica dos profissionaisou os interesses legítimos dos atores periféricos.

Isso significa que as lideranças democráticas colegiais, tanto ou maisainda do que as lógicas de tipo social-democrata de feição burocrático-re-presentativa, tal como todas as formas de uma certa colegialidade subordi-nada e dependente, têm vindo a perder adeptos políticos a favor de lideran-ças de tipo hierárquico e gerencial. Muito longe, portanto, do conceito de“liderança distributiva” em contexto de uma escola que ensaia a democra-cia deliberativa, o comprometimento cívico e a participação ativa, a parti-lha de poderes, a comunidade de decisores numa perspectiva sociocomuni-tária (cf. FUSARELLI, KOWALSKI & PETERSEN, 2011), para algunsum modelo de governação não apenas mais democrático, mas, possivel-mente, o único capaz de responder às exigências que hoje se colocam auma escola mais autônoma e deliberativa, capaz de responder positivamentea toda gama de novos problemas que enfrenta e à diversidade social e cultu-ral, sem precedentes, do seu público.

Diretor(a): líder executivo eficaz?

À luz do Decreto-Lei nº 75/2008, o(a) diretor(a) concentra sobre sivinte e cinco competências, preside o conselho pedagógico por inerência,tudo parecendo girar em seu torno, fragilizando as estruturas colegiais exis-tentes e pondo fim à quase totalidade dos processos de escolha democráticanas escolas, salvo aqueles que respeitam ao conselho geral, embora tam-bém aqui existam já indícios de que faz sentir, estrategicamente, a sua ação,especialmente no que concerne à representação docente. O diretor passa,agora, a nomear e a demitir livremente o(a) subdiretor(a), assessores, coor-denadores dos departamentos (embora de forma mediada), coordenadoresdos estabelecimentos agrupados, numa lógica gestionária de um perfil, um

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projeto, uma equipe de gestão, remetendo para algo semelhante ao princí-pio da “unidade de comando”, proposto no início do século XX por HenriFayol (1984). Sobretudo os professores correm o risco de ficar reféns do(a)diretor(a), sem órgãos próprios e autônomos, sem intermediação de tipocolegial, no quadro de uma estrutura interna extremamente centralizadana figura de diretor.

O processo de eleição do(a) diretor(a) retorna parcialmente ao outro-ra estipulado no Decreto-Lei nº 172/91 através do então muito criticadoprocesso concursal, seguido de eleição, assente entre outros aspectos naapresentação de um “projeto de intervenção” para a escola, em potencialtensão com o projeto educativo já existente. Do ponto de vista das perspec-tivas gerencialistas, a combinação de um processo concursal e de um pro-cesso eleitoral pode ser vista como uma cedência, eventualmente transitó-ria, a um dos elementos da gestão democrática. Apenas o processo de con-curso e/ou, a nomeação ministerial seriam teoricamente mais congruentescom aquelas perspectivas, ainda que se deva observar que mesmo o proces-so eleitoral do(a) diretor(a) é já limitado a um pequeno colégio eleitoral,constituído pelos membros do conselho geral, não sendo o(a) diretor(a)eleito pela generalidade dos membros da escola ou dos professores. Emtodo caso, a não ser por imperativo constitucional, a eleição do diretor po-deria ser dispensável, sobretudo à luz da história da administração escolarportuguesa. Recordem-se as críticas do ministro Cordeiro Ramos, em 1933,à eleição dos reitores durante a I República, ou seja, nas suas palavras, à“subordinação do reitor aos professores, corolário inevitável da eleição”,situação em que os reitores “não eram, nem podiam ser, responsáveis peladireção do liceu”, pois, esclarecia, “como era natural, os professores maiscapazes de defender os direitos do ensino ficavam não raras vezes arredadosdas reitorias, sendo preferidos aqueles que, com maior docilidade, cediamaos chamados direitos adquiridos dos seus eleitores” (cf. BARROSO, 1995b,p. 281). O nosso apego aos ideais democráticos não é, realmente, um ele-mento característico da cultura e educação portuguesas, e hoje aquele tipode argumentos ressurge, embora com menos frontalidade política e maissob a aparência da razão técnica e dos imperativos da gestão eficaz. Comosucede com o já referido processo de combinação entre eleição do(a)diretor(a) e sua possível recondução pelo conselho geral, sendo apenas im-

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pedido de se candidatar ao exercício de “um quinto mandato consecutivoou durante o quadriênio imediatamente subsequente ao termo do quartomandato consecutivo” (artigo 25, nº 4), numa formulação algo crítica, quetem escapado a muitos observadores, especialmente depois de se poder ler,no mesmo artigo, nº 1, que “o mandato do diretor tem a duração de quatroanos”. Em qualquer caso, uma medida destinada, segundo o legislador, agarantir, para além do “dinamismo”, a “continuidade” das boas lideran-ças.

Foram criadas condições formais para uma alteração profunda dasrelações de poder nas escolas, sem alterar a subordinação da escola, e mes-mo do(a) diretor(a), enquanto órgão de administração e gestão, face ao podercentral. O diretor pode revelar-se extremamente fraco, especialmente pe-rante a tutela, representado por essa como o escalão último da administra-ção desconcentrada do ministério, agora com acrescida capacidade parapenetrar no interior de cada escola e daí encontrar o seu primeiro represen-tante, uma espécie de administrador delegado, ainda que incongruentemen-te, para já, porque eleito pelo conselho geral.

Identificar o(a) diretor(a), como faz o legislador no Despacho nº 9744/2009, com a função de “direção superior” parece um equívoco, mesmo queseja apenas por contraste com os coordenadores dos estabelecimentos agru-pados e os coordenadores dos departamentos, cujas funções seriam, segun-do aquele normativo, de “direção intermédia”. Que restaria, em tal qua-dro, para o conselho geral? E se o(a) diretor(a) exerce a “direção superior”,o que exerceriam os serviços centrais e pericentrais do ministério? E o go-verno?

Mas o cânone gerencialista insiste no protagonismo do líder executi-vo eficaz, de acordo com a teoria organizacional, desde a Escola das Rela-ções Humanas, a partir da década de 1930. Chester Barnard (1979), no seulivro As funções do Executivo, de 1938, identificava a liderança com a “superio-ridade individual” (ibid., p. 251) e com a “capacidade pessoal relativamentealta” (ibid., p. 274), atribuindo ao executivo a coordenação da ação, a for-mulação de propósitos e objetivos e o controle e a supervisão.

Peter Drucker, em 1967, no seu conhecido livro intitulado O ExecutivoEficaz, acentua a capacidade de o executivo tomar decisões, não podendoesse apenas cumprir ordens. Porém admite que o gestor possa encontrar-se

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numa posição de subordinação, afirmando: “O gestor mais subordinado,sabemos como, pode fazer o mesmo tipo de trabalho que o presidente daempresa ou o administrador da agência governamental; isto é, planejar, or-ganizar, integrar, motivar e mensurar. O seu âmbito pode ser bastante limita-do. Mas, dentro da sua esfera, ele é um executivo” (DRUCKER, 1967, p. 9).

Em nosso caso, o diretor escolar poderá, portanto, ser um executivosubordinado, no contexto de uma administração centralizada, embora, poroutro lado, mais poderoso perante a generalidade dos atores escolares, ago-ra vistos como seus subordinados. Curiosamente, o livro de Chubb e Moe(1990, p. 56) – Políticas, Mercados e as Escolas da América –, obra seminal dogerencialismo, admite aquilo mesmo, afirmando os seus autores: “Talvezseja melhor pensar no diretor de escola pública como um gestor do nívelmais baixo enquanto líder. No setor público, o diretor é um burocrata comresponsabilidade de supervisão perante uma agenda pública. A maior partedas decisões importantes acerca da política foi tomada já pelas autorida-des; elas definem os objetivos e espera-se que o diretor os administre”. Con-cluem, por isso, logo a seguir (ibid.): “Os verdadeiros líderes da escola pú-blica são as autoridades, não o diretor”.

Por referência à educação superior e à Lei nº 62/2007, comparam-seagora reitores de universidades e presidentes de institutos politécnicos achief executive officers (CEO) ou diretores-gerais, remetendo-lhes o encargode definir a visão e a estratégia, de exercer o poder de decisão e de alocar osrecursos, de definir os projetos prioritários. Uma liderança eficaz, em ter-mos políticos e administrativos, servida por uma competente tecnoestrutu-ra. No caso das escolas básicas e do ensino médio, embora sob um discursopolítico e gerencial semelhante, o contexto de autonomia é absolutamentedistinto. Aqui, o diretor parece assemelhar-se a um COO, mais do que a umCEO, isto é, a um chief operating officer ou executivo-chefe de operações. Ouseja, a um gestor do dia a dia, a um gerente-geral que executa a estratégiasuperior, implementa, informa a hierarquia, mesmo detendo alguma dis-cricionariedade técnica e uma certa capacidade de supervisão do pessoalque se encontra sob sua gestão direta. Trata-se de alguém, nos termos doDecreto-Lei nº 75/2008, que é responsável por “executar localmente asmedidas de política educativa” e, por isso, de alguém a quem, individual-mente, se pode passar a “assacar responsabilidades”; uma garantia de que

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ele, ou ela, passará a ser muito mais exigente com os seus subordinados,passando, igualmente, a assacar-lhes as responsabilidades que lhes caibam.Cenário em que a escola, como referia um dos professores entrevistadospor Ferreira (2010, p. 191), se pode transformar “numa ditadura com umacara de democracia. Porque tudo se centra na figura do diretor”.

Também o predomínio da linguagem económica tem sido destacado,no que concerne à caracterização das funções do executivo escolar e à suaformação, destacando as competências de ordem técnico-gestionária e aimportância das “boas práticas” (cf. EACOTT, 2011), em geral baseadasnuma visão descontextualizada da liderança e na hegemonia da razão ins-trumental, ignorando uma dimensão central da liderança escolar: aquelaque, transcendendo uma visão mecanicista, admite não se tratar apenas deum meio para atingir determinados fins ou resultados, mas também de umaação intrinsecamente pedagógica, isto é, de um testemunho educativo (COS-TA, 2000, p. 27).

O que a focalização da administração das escolas nessas dimensõestécnico-instrumentais e hiperburocráticas, por um lado, e de concentraçãode poderes, por outro, pode significar, não só em termos de governaçãodemocrática das escolas, mas também em termos educacionais, é muitomais do que tem sido admitido e, entre outros elementos, pode incluir: per-da do que resta da (reduzida) autonomia pedagógico-didática dos professo-res, maior escrutínio e controle da sua ação na sala de aula, menos seguran-ça e confiança para o risco, a tentativa-erro e, em suma, para a sua inscriçãoeducativa e pedagógica, fora de um regime de medo, de vigilância e dealienação.

As investigações em curso e outras a realizar no futuro incidirão, cer-tamente, quer sobre as invariantes estruturais antes referidas e sobre as lógi-cas induzidas pelos diversos atores políticos e administrativos centrais, quan-to sobre as lógicas próprias, e igualmente divergentes, dos atores escolaresperiféricos; sobre os macropoderes da administração e sobre as micropolíti-cas e os micropoderes em contexto organizacional; sobre o plano das orien-tações para a ação, segundo distintos níveis e processos de decisão e o pla-no da ação efetivamente atualizada em contextos escolares específicos.Admitindo, assim, as influências das reformas políticas e organizacionais

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

empreendidas, mas também as capacidades, organizacionalmente ancora-das, de os atores escolares produzirem orientações e regras próprias, nãonecessariamente convergentes com as primeiras, confirmando empiricamen-te a condição teórica da escola não apenas enquanto locus de reprodução,mas também como locus de produção.

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Reforma do Estado e políticas públicas:a governação em ação

Notas de um estudo no campo daEducação e Formação de Adultos em Portugal

Fátima Antunes

Introdução

Numa pesquisa anterior, sugerimos que, pelo menos desde a criaçãodo subsistema de Escolas Profissionais em 1989, encontramos o estabeleci-mento de novas modalidades de provisão da educação, envolvendo altera-ções no papel do Estado, no que constitui a educação e no direito social ehumano que lhe é aplicável (ANTUNES, 2001, p. 190; 2004, p. 235). Com-preender as políticas públicas enquanto formas de intervenção (do Estado)na sociedade para responder, condicionar e impulsionar mudanças sociais,eis a questão que nos move ainda hoje a estudar certas dimensões e movi-mentos de políticas de educação; atentamos em particular para modalida-des de provisão que se distanciam do que tipicamente consideramos ser osistema educativo, público, gratuito, com um corpo profissional específico(de docentes) e uma distribuição geográfica relacionada com a demografiado território nacional considerado.

Desde há várias décadas, com ritmos distintos de acordo com as lati-tudes consideradas, intensificou-se a atividade do Estado na criação dessasnovas modalidades de provisão de educação (e outros bens e serviços quecorporizam direitos sociais) (cf., entre outros, ADRIÃO & PERONI, 2005;BALL & YOUDELL, 2007). Em Portugal, são os anos 1990 e as áreas daeducação profissional, da educação de infância e, posteriormente, da edu-cação de adultos que vêm suceder-se nessa reordenação da governação acom-panhada, no primeiro e no último casos, de formas de intervenção do Esta-

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do assumidamente temporárias, compaginadas com programas viabiliza-dos por financiamentos da União Europeia. Também nos dois casos assis-timos a um apelo bem-sucedido do Estado à mobilização social em tornoda educação, quer em termos das entidades envolvidas na realização daspolíticas no terreno, quer em termos dos destinatários. Ainda nos dois ca-sos e a uma distância de 10 anos, pretendeu-se expandir a oferta educativae as populações abrangidas, sem ampliar o perímetro do Estado de Bem-estar. As vias adotadas seguem os traços gerais de políticas de âmbito bas-tante alargado, muito diversas, conhecidas e analisadas desde os anos 1990sob a designação de nova gestão pública, gerencialismo ou Estado gestionário.Nesse sentido, essas medidas políticas revelam uma agenda política nacio-nal estruturada por processos, dinâmicas e pressões globais – por exem-plo, a constituição da governação neoliberal como nova matriz de regula-ção social num quadro de reorganização do capitalismo1 –, frequente-mente mediados (impulsionados e filtrados) pela União Europeia (UE).

Num estudo recente, sugerimos que, em Portugal e com intensidadecrescente durante a primeira década do século XXI, o campo das políticaspúblicas vem sendo modelado por movimentos gerados “no seio de ten-sões, disputas, derrotas e contradições”, de “evasão do Estado à obrigaçãode garantir o direito social e humano das populações adultas” à educação,enquanto amplia para patamares inéditos a oferta pública de educação e apopulação abrangida. Defendemos então que o arranjo institucional de go-vernação da Educação e Formação de Adultos (EFA), de matiz neoliberal,favorece a precarização, a viabilização e o condicionamento conjunturaisde direitos sociais e humanos de produtores e destinatários da medida polí-tica. Nesse sentido, exploramos a hipótese de trabalho de estar peranteum processo de assimilação estratégica entre setores e esferas públicos eprivados, que permite: (i) “o controle centralizado do desenvolvimentode um programa de oferta pública através do dispositivo de RVC de adquiri-

1 Na União Europeia (UE), essa reorganização foi tematizada em torno de agendas políticascomo a Estratégia de Lisboa, voltada para a capacitação da ‘Europa’ na competição por mercadosmundiais, sustentada pela aprendizagem ao longo da vida na sociedade/economia doconhecimento (cf. HODJAN, 2009).

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dos experienciais2 e de outras modalidades de EFA”; (ii) “avançar os objec-tivos estatais da política” e (iii) “corroer tradições, processos e procedimen-tos indesejados, em vigor, quer no setor público estatal, quer no setor priva-do, cívico, solidário ou sociocultural” (ANTUNES, 2011, p. 25).

Assim, nos casos das políticas públicas de educação acima mencio-nados, assistimos ainda, em Portugal, à atuação do Estado como decisor,regulador, financiador, apelando, para a execução das políticas, a uma for-te mobilização e envolvimento de entidades oriundas quer do domínio domercado, quer dos setores solidário, cívico ou cultural. Nesse sentido, oEstado, ao mesmo tempo em que delega a execução direta das políticas noterreno, alarga a sua influência por dentro da sociedade civil. Para a políti-ca de EFA, a expansão da oferta pública e da população abrangida, semalargar o perímetro do Estado, mesmo quando a maioria das entidades en-volvidas na execução são públicas (escolas e centros de formação), foi al-cançada através da contratualização dos serviços e da criação de organis-mos temporários (Centros Novas Oportunidades, CNO) no âmbito de umprograma a termo certo; é nesse quadro que tem lugar a assimilação estra-tégica entre público e privado. É esse modelo sui generis de política públicaque vamos procurar discutir em seguida, considerando as dimensões dagovernação, da intervenção através de programas e da expansão da influên-cia do Estado, pelo envolvimento da sociedade civil na execução política.

1. Governação e respostas às crises do capitalismoe da democracia: tensões e lutas em torno

do sentido político da ação

A governação veio condensar alguns dos debates políticos e teóricosrecentes, ao mesmo tempo em que se tornou um tema naturalizado, quan-do as questões que levanta e o conhecimento das práticas sociais que envol-ve são ainda controversos e pouco consolidados.

2 Trata-se do dispositivo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC),lançado em Portugal em 2000.

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Lançado no bojo das crises do capitalismo e da democracia e na se-quência das críticas e propostas, de sinal contrário, em torno da legitimidadeou da governabilidade, o programa da governação, entendido como matriz deregulação sociopolítica de orientação hegemônica, é tematizado a partirdesta última. É esse o sentido das tendências e propostas de mudança deregime, em torno da privatização, mercantilização e liberalização, domi-nante entre meados dos anos 1980 e 1990 (SANTOS, 2005). Por seu lado,também as reivindicações de participação popular, inclusão e justiça sociaismarcam a agenda política da governação, promovida por atores e processoscomprometidos com a interpelação do capitalismo e da democracia emtermos de redistribuição e emancipação social e protagonizada por umapluralidade de sujeitos e de projetos. Os processos em torno dos FórunsSociais Mundiais da última década constituem experimentações e constru-ções que expressam, alimentam e são alimentados por esse veio de açãosociopolítica. Alargar o círculo da governação, em termos de interesses, benefí-cios, participação e projetos, é um horizonte de práticas e lutas políticas emaberto para aprofundar o vínculo dessa inovação com a emancipação social(SANTOS, 2005).

Assim, a genealogia da governação, inscrita nas transições, quer doregime de acumulação, quer do sistema político, situa os desenvolvimentosem discussão na gestação de formas políticas alternativas, em que capitalis-mo e democracia se interpelaram no bojo da instabilização do regime for-dista de Estado de Bem-Estar. As dinâmicas de globalização inscrevem-se nes-ses processos, modelando-os e sendo alimentadas por eles.

Por seu turno, as agendas em torno da autonomia e da autorregula-ção identificam também os questionamentos do contrato social do Estadode Bem-Estar em termos de crise de governabilidade. Esse posicionamentorevela-se, de forma mais ou menos clara, por um lado, quando aquelas exi-gências surgem acopladas às regras promovidas pelo consenso de Washing-ton (liberalização, mercantilização, privatização) e, por outro, pelas ausên-cias do Estado e dos excluídos e pelos flagrantes silêncios em torno das trans-formações sociais, das relações de poder e conflitos sociais, da justiça social eparticipação popular. São essas omissões propositivas e de ação que maisincisivamente colocam aquelas interpelações numa agenda de instauraçãoda governação como projecto de viabilização de um novo regime de acumula-

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ção, assente num contrato social favorável ao reforço da acumulação (e à mini-mização da distribuição de recursos socialmente produzidos), à polarizaçãoe exclusão sociais e à limitação da democracia daí derivadas.

No entanto, como adiante será testemunhado, aquelas aspirações deautonomia e autorregulação são também partilhadas por atores e experi-mentações sociais mobilizados à volta do reconhecimento e da participa-ção popular, pelo que o seu sentido político depende em primeira mão dasvisões do mundo, conceitos e práticas com que são formulados e prossegui-dos. A ambivalência pode então assomar no terreno das lutas e das práticassociopolíticas, dependendo os seus sentidos e consequências das correla-ções de força e das conjunturas em que têm lugar3 (cf. SANTOS, 2005;ANTUNES, 2008, p. 163ss.).

Desse modo, o campo da governação apresenta-se como uma constru-ção conflitual e desequilibrada que envolve agudas tensões quanto à redis-tribuição social e ao reconhecimento da diferença. Aí, políticas, discursos epráticas manifestam-se sob versões neoliberais hegemônicas ou segundoconcretizações contraditórias, fragmentárias ou ambivalentes. Nessas últi-mas, podemos encontrar dinâmicas de ação e sentidos políticos conflituais,enfrentamentos de interesses e compromissos, tensos e/ou precários. Comoinsistentemente sublinha Cardoso, “importa refletir sobre os interesses quesão promovidos e sobre o que esses interesses estão fazendo à relação Esta-do-mercado-sociedade civil (…) e fazê-lo num quadro em que os resultadosde qualquer iniciativa ou desenvolvimento são avaliados pela forma comoos padrões de igualdade e de justiça social se manifestam em cada local”(CARDOSO, 2005, p. 113). Então as propostas e modalidades de governa-ção podem ser posicionadas, em termos do significado político e das conse-quências sociais que produzem, em torno de vetores como: a presença/ausência do Estado e dos excluídos, os problemas silenciados ou tematiza-

3 Partindo da experiência na coordenação de um programa das chamadas escolas comunitárias noRio de Janeiro, Márcio Costa discute criticamente certos elementos contraditórios de processosde democratização através da gestão local de serviços públicos que sustentam direitos sociais(como a educação). O autor sugere, nesse debate, que as condições socioculturais efetivas departicipação obrigam a questionar as práticas sociais que dão corpo a fórmulas de governação deaspiração contra-hegemônica (COSTA, 2005).

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dos, as respostas construídas ou ausentes, a prioridade ao enfrentamentoda crise de legitimidade ou a desqualificação dos déficits que produz, emfavor das preocupações em termos de governabilidade.

Nesse sentido, a matriz sociopolítica de governação neoliberal vincula-se àação política tendente a transformar os sistemas políticos e a instituir arran-jos institucionais alternativos. Nesse contexto, as reivindicações de partici-pação, inclusão, autonomia e autorregulação são traduzidas e respondidasnum quadro de: (i) prossecução da coesão social; (ii) através de políticascompensatórias; (iii) assentes na coordenação, na parceria e autorregula-ção; (iv) envolvendo interesses reconhecidos; (v) para a resolução de pro-blemas. Nesses desenvolvimentos, salientam-se as questões contempladasquando contêm aspirações democráticas cuja relevância se reconhece, avul-tando, no entanto, as respostas silenciadas e as ausências cultivadas: astransformações sociais, a participação popular, o contrato social, a justiçasocial, as relações de poder e a conflitualidade social, por um lado, bemcomo o papel do Estado e o lugar dos excluídos, por outro (SANTOS, 2005).

Nesse debate, a proposta teórica de consideração do Estado gestioná-rio/gerencial (the managerial state) permite escrutinar o sentido de alguns dosnexos entre as opções políticas e os arranjos institucionais privilegiados.Aquela problemática propõe o debate sobre o impacto do gerencialismo (ma-nagerialism), enquanto ideologia e projeto político, nas relações “entre oEstado e o cidadão, entre público e privado, entre os fornecedores e os uten-tes do bem-estar social e entre ‘gestão’ e ‘política’”. Analisa-se a reforma doEstado, impulsionada para responder às crises dos pactos económico, políti-co e social que sustentaram o Estado de Bem-Estar, observando a reestrutura-ção alimentada pelo gerencialismo (CLARKE & NEWMAN, 1997, IX). Poressas vias, temos testemunhado e participado na experimentação de for-mas alternativas de aprendizagem e de criação do laço social. Não obstante,e mais frequentemente, também temos coletivamente percorrido caminhosde precarização de direitos sociais e humanos que a modernidade consa-grou e o Estado de Bem-Estar prometeu garantir e o projecto de governaçãovem tornando contingentes à correlação de forças, aos resultados de lutas,ao xadrez de interesses em presença num dado contexto sócio-histórico.

As noções de combinação institucional (DALE, 1997, 2005), welfare plu-ralism (MISHRA, 1996), Estado contratual (KRAMER, 1998 apud FERREI-

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RA, 2009, p. 170), novos híbridos de bem-estar (AFONSO, 2001), indistinçãode fronteiras entre público e privado (ANTUNES, 2001), ethos de contratua-lismo (SEDDON, BILLET & CLEMANS 2005, p. 570) constituem algunsdos desenvolvimentos analíticos que vêm procurando captar vias e instru-mentos assumidos pela reforma do Estado e formas de intervenção e demobilização coletivas que (a) alimenta(m?), emergentes desde há cerca trêsdécadas, sob a égide de partenariados (RODRIGUES & STOER, 1997), as-sociados ou não à criação de quase mercados (LE GRAND & BARTLLET,1993) e frequentemente cultivados como extensões e realizações da matrizsociopolítica do projeto de governação.

Desse modo, ganham clareza o abandono de princípios normativos eprocessuais, típicos de compromissos formais centralmente negociados noquadro do Estado de Bem-Estar, e a orientação “para resultados específicos”“explícitos e prescritivos”, cuja regulação, “formalmente contratualizada”,assenta em “requisitos de desempenho” dos participantes (SEDDON, BIL-LET & CLEMANS, 2005, p. 570). A adoção dessa ordem de mandamen-tos da chamada nova gestão pública (NGP) vem frequentemente acompa-nhada da colocação sob contingência de direitos sociais e humanos, querde produtores, quer de beneficiários dos serviços públicos.

A discussão que segue ensaia compreender alguns desenvolvimentosdo arranjo institucional de governação, impulsionado com a implantação dodispositivo de RVCC no quadro da política de EFA em Portugal, observan-do, através de testemunhos de responsáveis de CNO, práticas que o reali-zam4.

4 O estudo consistiu em oito entrevistas, com a duração de mais de uma hora cada, comresponsáveis de CNO de instituições diferentes. Procurou-se abranger um leque amplo deentidades envolvidas com o dispositivo de RVCC e a política de EFA. Foram entrevistados osresponsáveis de CNO promovidos por: (i) uma escola pública secundária; (ii) um centro deformação profissional de gestão participada; (iii) uma escola profissional privada; (iv) umaassociação industrial; (v) uma câmara municipal; (vi) três associações de desenvolvimento local.As entrevistas foram transcritas, totalizando cerca de 200 páginas de texto. Procedeu-se à análisedo conteúdo das entrevistas através da categorização dos enunciados e desenvolvendo o conjuntode procedimentos de construção de uma grelha de análise do conteúdo das entrevistas (MAROY,1997; ANTUNES, 2004). Neste texto ensaia-se a análise exploratória de uma parte dos dadosconstruídos até este momento da pesquisa.

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2. O desenvolvimento da política de EFA:a governação em ação

2.1 Explorações teórico-metodológicas de análisede políticas educativas

Num texto anterior, procuramos contribuir para uma análise de traje-tória (BALL & SHILLING, 1994, p. 2) do dispositivo de RVCC, lançadoem 2000 no quadro da política de EFA em Portugal. Como propomos emdiversos trabalhos, admitimos o potencial heurístico de, na análise de polí-ticas educativas, articular uma abordagem focada nos centros de poder edecisão (o Estado, a UE) com uma abordagem do ciclo político (DALE,1989; BOWE, BALL & GOLD, 1992); desse modo, cremos tornar-se possí-vel construir itinerários de pesquisa que prossigam análises de trajetória deinovações sociopolíticas. Esses estudos procuram compreender os proces-sos de elaboração e desenvolvimento de políticas de educação e formação eelucidar os textos e as práticas que dão corpo àquelas. Procura-se mobilizaruma perspetiva analítica de compreensão da realidade como relação social,estrutura e ação com sentido, estruturada e estruturante (BOURDIE, 1979).Propõe-se, desse modo, o exercício de articular e entender quadros de açãoe apreender o seu sentido político; de discutir as omissões, tensões e media-ções, que tecem conflitos, compromissos e alianças provisórios de atores,interesses e poderes (cf., por exemplo, ANTUNES, 2004).

Assumimos, assim, a necessidade de adotar estratégias, percursos einstrumentos teóricos e metodológicos vocacionados para apreender e com-preender tanto a estrutura como a dinâmica interativa dos processos de de-senvolvimento de políticas educativas. Desse prisma, a noção de implemen-tação como realização fiel ou controlada pelas instâncias de decisão (a UniãoEuropeia e/ou o Estado nacional ou outra) é redutora e equivocada, talcomo qualquer abordagem que suponha a ausência de vincadas assimetriasnas estruturas de poder e influência envolvidas nesse processo. Nessa ótica,as autoridades públicas que protagonizam os processos de elaboração daspolíticas instâncias da UE, plataformas intergovernamentais como as quevêm dinamizando os Processos de Bolonha e de Copenhaga, o Estado detémuma capacidade incontornável e incomensurável de influência sobre o pro-

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cesso de desenvolvimento das políticas que amplamente justificam a per-manência de estudos nelas centrados. No entanto, tais incursões constitui-rão explicações parcelares e parciais se desacompanhadas das necessáriasexplorações de outras dimensões, ‘momentos’ ou ‘níveis’ de ação do pro-cesso de desenvolvimento das inovações sociopolíticas.

A relevância de tal esforço avoluma-se se tivermos em conta que, comoobservam Lingard, Rawolle & Taylor, “um novo espaço global na políticaeducacional” convive com “práticas de política educacional [que] tambémpermanecem nacionais e muito localizadas, com o habitus dos actores situa-dos em diversas posições no interior do campo, também reflectindo e afec-tando diferentes disposições locais, nacionais e globais”. No mesmo senti-do, aponta a ideia de que os textos não transportam consigo o seu contextode produção e, nessa medida, são reinterpretados de acordo com a estrutu-ra do campo social de receção (nesse caso, o campo educacional), que nãocoincide com aquele de onde o texto é originário (o campo político) (LIN-GARD, RAWOLLE & TAYLOR, 2005, p. 774 e 766).

Assim se propõe a adoção de formas de análise de trajetória “ensaian-do articular abordagens centradas nas instâncias públicas (ou outras) depoder5 com perspectivas de ciclo político” e se procura expressamente subli-

5 No momento actual de imposição da governação neoliberal, como matriz sociopolítica de regulaçãosocial, na UE, há instâncias de poder efectivo que não parecem concentrar-se em autoridadespúblicas legítimas nem atuar no quadro de sistemas políticos democráticos. Hoje, na UniãoEuropeia, é mais vincado do que nunca o défice democrático e ainda mais verificável do queoutrora a afirmação de um cientista social de que “pela bitola dos critérios da democraciarepresentativa, a União tem uma tendência deplorável para pôr legitimidade lá onde não hápoder, e poder lá onde há falta de legitimidade” (NESTOR, 2004, p. 131). Do mesmo modo,revela-se brutalmente verdadeira a constatação, atribuída a um conhecido sociólogo, duranteuma conferência (quer a história seja verídica ou não): “Se a União Europeia se candidatasse àadesão a si mesma, não seria aceita, por falta de um sistema político democrático”. A democraciaé hoje na UE uma aspiração e uma construção instável, e em muitos aspectos sob assalto. Estaé uma evidência sustentada quer pela existência de uma troika de credores (Comissão Europeia,Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) que impõe políticas de ajustamentoestrutural, sob o signo da austeridade, em diversos países, quer pela dominação na União, deforma gritante até há alguns meses, de um directório germano-francês (Merkel e Sarkozy, ouMerkozy, na designação adotada pela comunicação social), à revelia do sistema político europeuinstituído. Para múltiplos efeitos, é como se a tímida e débil democracia existente tivesse, defacto, sido suspensa na UE, realizando a proposta de uma governante, para Portugal, um parde anos atrás. Daí que, pese embora a vincada insuficiência, no contexto atual, da propostaconcetual de análise de políticas educativas que aqui discutimos, ela constitui, mesmo assim, a

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nhar a preocupação de: (i) por um lado, estudar as políticas educativas eu-ropeias nas suas dimensões de delimitação e capacitação de ação6; e (ii) poroutro lado, analisar as práticas nos contextos educacionais, nas suas intera-ções com os quadros de constrangimento e capacitação institucionais epolíticos de níveis nacional e supranacional.

Dito de outro modo, uma perspectiva teórico-metodológica de análi-se de trajetória de inovações sociopolíticas permite conceber o ciclo políticocomo articulação de distintos e específicos quadros de ação povoados deatores situados (por exemplo, supranacional/europeu; nacional; regional/local; institucional; profissional); cada um desses cenários se constitui comofonte de poder e influência que delimita e capacita em sentidos próprios aação de outros contextos. Essas relações sociais constituem-se como moda-lidades de autonomia/dependência relativas a caracterizar e analisar empi-ricamente. Considera-se, assim, qualquer medida de política de educação eformação como um processo multidimensional, em que a ação política temlugar em todos os ‘níveis’, ‘dimensões’, ‘momentos’ considerados. Comose constituem e caracterizam as diversas dimensões ‘europeia’, ‘nacional’,‘regional’ ou ‘local’, ‘institucional’ ou ‘profissional’ é matéria de análise

ferramenta analítica mais consolidada e com mais potencial heurístico de que dispomos hoje.Com ela trabalhamos, tendo consciência de que dimensões significativas da dinâmica darealidade nos escapam.

6 Mesmo admitindo a hipótese de trabalho de Roger Dale de que um dos resultados possíveis deestruturas e processos associados com a constituição do Espaço Europeu de Educação e dapolítica europeia de educação pode ser “a emergência de novos sectores de ‘educação’ distintose paralelos” ao nível da UE e dos Estados-membros, com diferentes mandatos, capacidades eformas de governação” (DALE, 2009: 15), uma e outra realidades relacionam-se estreitamentee envolvem implicações recíprocas (ANTUNES, 2004; 2005). Consideramos importante achamada de atenção sobre o viés do pressuposto de relações hierárquicas e de influênciaunidirecionais entre aquelas instâncias (DALE, 2009); julgamos que é igualmente indispensávelentender que, muito concretamente, os Estados-membros são expressamente convocados aresponder às políticas europeias (agora mais incisivamente através de planos de acção e metasnacionais específicos; cf., por exemplo, Conselho da União Europeia, 2009 e EuropeanCommission, 2010), são estreitamente monitorizados, formal e publicamente posicionados emlistas ordenadas em função do seu desempenho face aos objectivos, indicadores e parâmetrosdaquelas políticas europeias. Neste quadro, tornam-se também objecto obrigatório de pesquisaas relações de poder entre os países, que definem vincadas assimetrias quanto à capacidade denegociação e autonomia, por parte das instâncias nacionais, em casos tão díspares quanto, porexemplo e face a políticas diversas, a Inglaterra, a Eslovénia, Portugal ou a Alemanha (cf.,entre outros, ALEXIADOU, FINK-HAFNER & LANGE, 2010; NEVES, 2010).

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teórica e observação empírica a construir em cada investigação. Na sequên-cia de Ball (2009), entendemos que essas dimensões expressam apropria-ções dos atores que rececionam, apropriam e traduzem a política em ques-tão na sua interpretação, na sua forma de ação e nas suas práticas institu-cionais e profissionais próprias.

Nesse sentido, se qualquer intervenção ou prática é globalmente es-truturada (no sentido antes definido), ela tem lugar nos contextos de açãocom os recursos, meios, possibilidades institucionais e atores disponíveis erealmente existentes ou possíveis. Daí que a globalização e a europeizaçãodas políticas são sempre, e não podem deixar de ser localização, contextuali-zação e mediação, pois qualquer política só é realizada através das práticasque, no terreno, for possível construir com os recursos materiais e institucio-nais com as interpretações e os atores realmente existentes ou passíveis deser criados na realidade contextual. Tal não significa que não tenhamos játestemunhado o desenvolvimento de políticas sumamente agressivas face auma dada realidade, mesmo contando com a oposição ativa ou larvar dosatores em presença.

Assim, num estudo recente, propusemo-nos a combinar a aborda-gem que considera a centralidade da ação do Estado e das autoridades pú-blicas como a UE (esclarecendo a fonte, o mandato, a governação da políticapública de EFA quando do seu lançamento) com a observação de ‘dimen-sões’, ‘níveis’ (ou ‘momentos’) do ciclo político (DALE, 1989; BOWE, BALL& GOLD, 1992), sobretudo envolvendo o contexto de influência (que incluiatuações e protagonistas que constroem os propósitos, os discursos e os con-ceitos estruturantes da medida) e o contexto da produção de textos político-pro-gramáticos e de decisões traduzidas em normativos (atentando para a açãopolítica de confronto de projetos e interesses e de construção de compromis-sos provisórios expressos em contradições, silêncios e desconexões que per-meiam os textos de formulação da medida) (ANTUNES, 2011). Nesse traba-lho, a dimensão do contexto da prática (a apropriação e tradução da inovaçãoatravés da ação no terreno) não é especificamente estudada, mas apenas even-tualmente evocada enquanto reforço argumentativo ou ilustrativo, a partir depesquisas publicadas ou outros documentos de divulgação pública.

O estudo que agora se apresenta analisa a dimensão das práticas querealizam, interpretam e apropriam a inovação sociopolítica de criação do

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dispositivo de RVCC no quadro da política de EFA, considerando expres-samente o fato de estarmos perante diversas instituições de que os entrevis-tados são um rosto e uma voz. Nessa medida, discutiremos adiante ques-tões que podem ser relacionadas com distintas interpretações e apropria-ções institucionais de certos vetores da medida política em questão.

Mais concretamente, na confluência da problemática da governação edas perspectivas teórico-metodológicas de análise de trajetória, nos sentidosdefinidos, que fundamentam e orientam o estudo, desenhou-se um itinerá-rio de pesquisa para observar dimensões da realidade e recolher informa-ção empírica que permitisse analisar e discutir as seguintes questões de in-vestigação: 1. como apropriam as instituições algumas das vertentes do de-senvolvimento do dispositivo RVCC no âmbito da política portuguesa deEFA ao longo da 1ª década do século XXI? 1.1. que interpretações constroemquanto: a) à relação com o Estado no quadro da opção de intervenção pú-blica através de um programa temporário e b) à fórmula institucional (degovernação) adotada? 1.2. que orientações e práticas desenvolvem as institui-ções designadamente quanto à: a) a relação com o Estado (a forma de inter-venção pública através um programa temporário e o planeamento estraté-gico); b) às condições de contratualização, em particular, os resultados e ofinanciamento?

2.2 Discutindo a governação através das práticas:testemunhos e interpretação

No plano da governação, a opção pelo envolvimento de uma panópliaalargada de entidades para o desenvolvimento da política e provisão deeducação de adultos tem, nesse campo, um sentido particular. Isso porque,de acordo com as tradições históricas e propostas político-pedagógicas, astensões e articulações entre a ação do Estado e os movimentos cívicos esocioculturais, as organizações e projectos de educação popular constituem adinâmica geradora do sentido das políticas públicas. Nesse campo, a capa-cidade de articulação, capacitadora, participativa e não hegemônica, da açãoda administração pública com as dinâmicas socioculturais de base constituiuma coluna vertebral decisiva de modelos democrático-participativos depolíticas públicas de educação de adultos (LIMA & GUIMARÃES, 2011).

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Nesse sentido, historicamente esse é um terreno visivelmente atravessadopor reivindicações e práticas em torno do que hoje tematizamos como go-vernação em termos de participação, autonomia, redistribuição, reconheci-mento, transformações e justiça sociais. Nas palavras de Alberto Melo, emPortugal, na transição do século, como há trinta anos, a política, como dinâ-mica de base para construir a “Educação e Formação de Adultos em Portu-gal como projecto de sociedade” “com a participação de todos”, disputa olugar ao planejamento estratégico centralizado no quadro de programas maisvoltados para a instrumentalização e tutela da ação organizada dos cida-dãos (MELO, 2007)7.

Escutando os responsáveis de CNO, quisemos apreender orientações epráticas que concretizam as relações do Estado com as entidades envolvidas,o sentido da política pública assim construída, o âmbito e os termos do servi-ço contratualizado, as condições e implicações de tais desenvolvimentos.

Os entrevistados discutem e enfatizam os seguintes tópicos: (i) a rela-ção com o Estado, gestor estratégico, em particular para instituições cujaintervenção é, muitas vezes, capacitada e delimitada pelo seu papel instru-mental na execução de políticas públicas sob a forma de sociedade civilsecundária e/ou tutelada8; (ii) os constrangimentos derivados do planejamentogestionário no âmbito de políticas públicas e sociais vertidas em programastemporários; (iii) a prevalência dos termos, definidos pelo Estado, para acontratualização do serviço e as tensões daí derivadas; (iv) a delimitação daação educacional pelo financiamento; (v) a apropriação local e

7 Eis o testemunho de Alberto Melo: “E, falando de tempo, gostava de recuar trinta anos (…)[quando] pela primeira vez, assumi algumas funções de responsabilidade no campo da educaçãode adultos. O que estava na mesa era então uma campanha de alfabetização, que se propunhaerradicar o analfabetismo em três anos. Foi o meu primeiro choque, de certo modo, com umalógica de planeamento contra aquela que sempre defendi e tenho procurado adoptar: umalógica de política. Muitas vezes faz-se planeamento, porque não se quer, não se pode, ou não sesabe fazer política (MELO, 2007, p. 65)”. É nosso entendimento que esta reflexão-chave sublinhae enriquece a interpretação do mais influente estudioso das dinâmicas de mudançasocioeducacional e das realidades portuguesas, em termos de política e planeamento, num ensaiopioneiro sobre as relações entre Estado e sociedade civil entre 1926-1980, exactamente intituladoEducação, estado e desenvolvimento em Portugal (STOER, 1982, p. 82).

8 Para ampliar a discussão sobre instituições do terceiro sector envolvidas em políticas sociais eeducativas, enquanto sociedade civil secundária e/ou tutelada, consultar Santos (1993), Hespanhaet al. (2000) e Lima & Afonso (2006).

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(inter)institucional da política, descrita em termos de concorrência, cola-boração e redes.

Essas questões são em seguida discutidas nos termos de ferramentasteórico-conceituais como o mandato: qual o foco e o âmbito da ação educa-tiva? Multidimensional e integrada? Fragmentada e amputada? Propomo-nos ainda reconstruí-las na problemática da governação (na acepção propos-ta por DALE, 1997, 2005, 2009), entendida como coordenação (das fun-ções) dos serviços e atividades de bem-estar (na terminologia largamenteconvergente também com CLARKE & NEWMAN, 1997): Quem partici-pa? Em que condições? Com que efeitos/resultados? (como ficam o direitoà educação, a promoção e democratização socioculturais?); Qual o papeldo Estado, dos atores e das dinâmicas locais (que respostas aos problemasde redistribuição e reconhecimento sociais, qual o lugar dos excluídos?)9.

É, assim, possível analisar o arranjo institucional em funcionamentoe as suas implicações em termos das mudanças no serviço de bem-estar (edireitos envolvidos) e na organização e papéis do Estado e de outras insti-tuições (o mercado, o terceiro setor10). Pretende-se também entender comointerpretam e se posicionam esses responsáveis face à ausência de uma po-lítica pública global integrada e de um sistema público de EFA em Portugale que implicações decorrem dessas opções na perspectiva desses atores. Osmesmos temas são explorados procurando apreender o sentido político,

9 Estas interrogações traduzem e formulam para este objecto de estudo e campo de pesquisaempírica específicos as problemáticas da governação como matriz de regulação social,questionando o sentido político – na esteira de Santos (2005), o papel do Estado e dos excluídos,os problemas e respostas construídos quanto aos reconhecimento e redistribuição sociais –, daregulação da educação como política pública – a que educação acede quem, em que condições,com que efeitos/consequências, adoptando sugestões de Dale (2001). Sugere-se que, enquantoproblemática teórica, a regulação seja explorada quer como propriedade sistémica (que nãodepende da intenção dos actores), quer como ação com sentido, que dinamiza (produz, modificae reproduz) essa propriedade (BARROSO & CARVALHO, 2012).

10 Debatendo esta mesma problemática para o contexto Brasileiro, Peroni & Adrião analisampolíticas públicas envolvendo o chamado terceiro setor que realizam a reforma do Estado nocampo educacional (PERONI & ADRIÃO, 2005). Também Cardoso desenvolve umaelucidativa discussão em torno da “formação do terceiro setor em Portugal e na Inglaterra esobre suas repercussões na área da regulação da educação (…) enquadrada no estudo dasformas emergentes de governo, financiamento, gestão e avaliação escolares e do modo comoestas estão alterando as relações entre o Estado, o mercado e a sociedade civil, as formas e osespaços para o exercício da democracia” (CARDOSO, 2005, p. 82).

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quer das medidas promulgadas, quer, sobretudo, da sua apropriação pelosatores no terreno: nesse momento, atenta-se nas (contraditórias) práticasem construção, incluindo uma certa ambiguidade, ou mesmo potencialambivalência, de alguns desses processos e interpretações. Compreendertensões e contradições, articulações dinâmicas e conflituais que alimentama ação política no ‘chão’ das relações socioeducativas é o alvo dessa dimen-são de análise. Pretende-se ainda formular interrogações sobre os seus efei-tos e consequências, designadamente em termos de justiça social complexa(ESTEVÃO, 2008; BALL, 2009).

2.2.1. O Estado, gestor estratégico, contratualização e política no terreno da ação

A relação com a tutela é apresentada segundo pontos de vista quevariam com a natureza da instituição em que o CNO se encontra incrusta-do. Enquanto os entrevistados ligados a associações de desenvolvimentolocal colocam questões que se prendem com perspectivas sobre os seus pro-jetos político-educativos, os sujeitos ligados aos sistemas públicos e priva-dos de educação e formação, escolares e não escolares, tendem a assumiruma visão mais centrada nos termos da contratualização dos serviços e nassuas implicações no domínio institucional e no âmbito educativo. Dessemodo, as questões relativas à integração comunitária e à natureza multidi-mensional e polifacetada da educação e formação de adultos são colocadasexclusivamente pelos responsáveis de CNO enquadrados pelas três associa-ções de desenvolvimento local (ADL) quando discutem: as implicações darelação com o Estado para projectos de desenvolvimento dos territórios, aautonomia de intervenção no quadro de dinâmicas de animação comunitá-ria ou a ação das entidades circunscrita à execução de políticas públicasdesenvolvidas através de programas temporários.

Não temos mais nenhuma liberdade para termos de facto um projecto edu-cativo que correspondesse às necessidades da própria região (…) não permi-tir uma definição de políticas de intervenção das entidades (Director do CNOVila da Vitória).Neste momento, isso está um bocado a jogar contra nós, que é, estando afazer a diferença no território, mas também sentimos que, de hoje para ama-nhã, não temos qualquer tipo de possibilidade de continuar o trabalho quenão se esgota numa certificação. Então nós, como Associação de Desenvol-vimento Local, ainda mais sentimos isso, porque aquilo que nós queríamos

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era criar clubes locais de dinamização da população, promoção da cidada-nia activa, tentamos incluir nos processos de RVCC questões como igualda-de de oportunidades, a igualdade de género, o empreendedorismo, forma-ções, pequenas formações, ou pequenas reflexões em tertúlias e tudo maisnas freguesias onde trabalhamos de forma descentralizada, mas aquilo queeu sinto é: “ok, isto só faz sentido se podermos continuar a fazer, se isto seinteriorizar de alguma forma até as pessoas estarem tão autonomizadas,que depois possam elas dinamizar os seus clubes, os seus espaços de refle-xão sozinhas, isto não se faz em dois anos” (Coordenadora do CNO doTopo).11

As relações com o Estado central assomam de modo mais generali-zado quando se referem aos termos de contratualização dos serviços. Aqui,afirma-se o papel do gestor estratégico, que define as condições e os resulta-dos a alcançar. De novo, as entidades se distinguem quanto à visão sobreessa questão: os entrevistados de CNO sediados em organizações públicasou privadas dos sistemas educativo e formativo, escolar ou não escolar, en-fatizam a natureza irrealista dessas condições e metas quantitativas e astensões e contradições daí resultantes (um problema de regulação/gover-nação enquanto organização dos serviços).

Por exemplo, nós somos uma equipe – aqui no Fénix – tipo C que devería-mos ter 2000 inscrições por ano; não temos 1000 sequer, mas, se tivéssemos2000, a equipe que temos não tinha capacidade de responder; portanto aca-bamos por não ter esse problema, porque não há adultos [inscritos]. Mas,portanto, a forma como está dimensionada a equipe técnica, de acordo comas metas, há um desajustamento (Coordenador do CNO Fénix).

11 Como afirma uma outra responsável: “Muitas vezes, quando abrem várias candidaturas [noâmbito de programas do Quadro de Referência Estratégico Nacional, com financiamentocomunitário, da UE], tentamos de alguma forma articular as candidaturas entre si, não é?Muitas vezes temos ideias de projectos que de forma articulada teriam determinados resultadose o que acontece é que (…) Os tempos de aprovação são diferentes e se calhar quando oprojecto A vem aprovado, o B ainda não está e só fazia sentido os dois em conjunto. E quandoo A está a terminar é que vem o B e nem sempre é possível uma intervenção articulada eestipulada por nós como deveria ter. Isso é uma grande limitação, porque dependemos a 100%do financiamento. Outra limitação é que (…) têm limitação no tempo e não sabemos se temcontinuidade ou não e muitas vezes despertamos processos que depois morrem e nem sempreisso é bom para a nossa actividade e claro está sente-se no território. (…) é raro havercontinuidade nos projectos que se vão desenvolvendo e muitas vezes o que se nota nos projectos,e não é só nos Centros Novas Oportunidades, é que quando os vários projectos entram emvelocidade de cruzeiro e as pessoas se habituam a recorrer àqueles serviços está a terminar etermina, não é? (Coordenadora do CNO Estrela Polar).

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Claro que um dos patamares está aquém das nossas expectativas, é o núme-ro de inscritos. As inscrições têm reduzido; nós este ano que passou, em2010, só atingimos 60% das nossas metas em termos de inscrições. (…) Emtermos de percentagem de realização estamos perto dos 40%. Isto leva-nos acrer que de facto nem sempre é fácil, não é tão fácil como se diz por aí(Coordenadora do CNO do Rosal).Eu acho que nomeadamente aqui no meu Centro tenho às claras o cumpri-mento das metas, nomeadamente em temos de certificações, claramente es-tou… pronto, não tenho esse cumprimento. A contratualização que é feitacom a Agência claramente eu não a cumpro (Coordenador do CNO Vila doPorto).

Os sujeitos responsáveis de CNO promovidos por ADL destacamessas questões, mas também o fato de elas constituírem uma “política cega”face aos territórios e uma amputação da dinâmica socioeducativa local (umproblema de mandato e de redistribuição/reconhecimento sociais ou senti-do político da governação). Nesse sentido, o debate em torno da política deeducação de adultos, nas suas dimensões políticas e concetuais, para alémdas questões relativas ao seu desenvolvimento, tende a ser assumido de mododistinto pelos diversos responsáveis.

Considero que o Estado fez uma política cega, não é? (…) Isso é o que inte-ressa ao Estado, as metas e falar na qualidade, mas esquecem-se que as ins-tituições trabalham num determinado contexto, e esse contexto é específico.No nosso caso, este vínculo à dinâmica local, nós teimamos sempre e atéagora também não tivemos grandes problemas com isso. Ah, teimamos sem-pre que abrimos, tentar continuar a implementar essa dinâmica, a tentaracrescer aqui algum valor àquilo que são os processos de RVCC, não sóenquanto processos de reconhecimento, mas também enquanto processosde valorização da própria pessoa; mas não temos qualquer forma de registarisso no SIGO. É obrigatório registrar todas as sessões, não tenho qualquerforma de fazer chegar isso ao Estado, ao poder. Portanto, isso é feito porquesomos teimosos e só nos deixam fazer porque cumprimos metas; porque nodia em que não cumprirmos metas, o corte é imediato (Coordenadora doCNO do Topo)12.

12 E continua a mesma responsável: “Eu posso dizer-lhe por exemplo que o SIIFSE teve… oPOPH contou mal as nossas… os nossos resultados relativos a 2008/09 e tínhamos, de acordocom aquilo que foi o levantamento inicial deles para o saldo final, nós tínhamos cumpridoapenas 70%, 60% dos indicadores, 60% e qualquer coisa. E eles cortaram logo em 40% daquiloque era o saldo final, quer dizer, é completamente cego. Para já, nós reclamamos e provamosque tínhamos cumprido as metas e o dinheiro afinal já não foi todo cortado, mas isto mostraque é completamente cego, não interessa tudo aquilo que andamos a fazer e a diferença quemarcamos na comunidade. O que interessa são os números finais que são aqueles que atribuemdinheiro” (Coordenadora do CNO do Topo).

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(…) podemos naturalmente ter políticas diferenciadas para o próprio país,mesmo em termos de metas: eu não admito – não é não admito, não é umaquestão de admitir –, melhor, não concebo que as metas sejam iguais paraLisboa e iguais para o interior e interior profundo, despovoado, desertifica-do, etc., etc. (Director do CNO Vila da Vitória).

Para além da contratualização dos serviços em termos de metas quan-titativas relativas a determinados itens de realização e da constituição dasequipes correspondentes a esses patamares de resultados, os entrevistadosrevelam considerar as regras de financiamento muito constrangedoras e li-mitativas e que a definição de categorias de despesas elegíveis tem implica-ções redutoras nas atividades desenvolvidas. De novo, a leitura mais políti-ca do financiamento, sinalizando as suas consequências pedagógicas, mastambém no âmbito da intervenção educacional, tende a ser destacada porresponsáveis de CNO situados no campo das ADL. Todos os sujeitos semanifestam, no entanto, de forma unânime para considerar que o financia-mento restringe os contornos da ação que desenvolvem. Desse modo, ecomo seria de esperar, o alcance da política de educação de adultos, natensão entre mandato e capacidade (DALE & OZGA, 1991), é vincadopelas regras do financiamento.

Por exemplo, tenho uma turma de vinte e cinco alunos de EFA tipo C e quenão posso abrir neste momento. (…) Porque implica eventualmente contra-tação de pessoal e não posso fazer contratações. (…) A escola não podefazer. A partir do dia 23 de dezembro [de 2010], a Direcção Regional temindicações, não pode haver contratação de pessoal para novos cursos (Coor-denador do CNO Vila do Porto).Em termos de financiamento, eu penso que a grande lacuna para a iniciativaé nós não podermos englobar nesse financiamento atividades de âmbito cul-tural que possamos fazer com os nossos formandos ou os nossos adultos. Oque já aconteceu é querermos fazer algumas iniciativas de âmbito cultural edepois chegarmos à conclusão de que não eram despesas elegíveis (…) Emtermos de público também, porque sabemos que nos dirigimos a um públicoe isso está muito bem definido: a população com mais de dezoito anos que,portanto, não tem as habilitações mínimas de 12º ano. E aí à partida sabe-mos logo que as pessoas que já completaram o 12º ano, por muito que nósquiséssemos continuar a acompanhá-las, não está previsto em termos deprojecto… (Coordenadora do CNO do Rosal). Esse é um dos problemas, que no fundo eu já vinha a dizer em relação àstertúlias, aos clubes de leitura que nós fazemos nas freguesias, por exemplo,que é: ou eu chamo aquilo uma sessão de RVCC, ou eu não tenho como lhespagar, porque eu tenho formadores em prestação de serviços e tenho quelhes pagar aquelas horas de trabalho (Coordenadora do CNO do Topo).

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De alguma forma, por que os CNO só intervêm nos RVCC e nos encami-nhamentos, não é? Agora, é claro que nós fazemos… as atividades que faze-mos que é para a comunidade ou as atividades que queremos fazer (…) sãosustentadas pela equipe de formadores que faz… que trabalham para alémdas horas. E que têm gosto em mostrar e motivar os adultos que estão afazer o processo… (Coordenadora do CNO de Lages)

Se, nos testemunhos recolhidos, aparece sublinhada a crítica fundadanessa experiência de uma relação desigual com a tutela na execução de umapolítica cujos objetivos, condições e resultados se afiguram mais impostos doque negociados, ficam igualmente claras, por um lado, a adesão e a avaliaçãopositiva de outras dimensões da política, por parte dos entrevistados, bemcomo a afirmação de opções, mesmo se em contramão daquelas favorecidaspela tutela e ainda um vivido envolvimento e apropriação da ação no terreno.

Por exemplo a Urbanus tem uma ideia que o adulto deve entrar no processode RVCC, que o adulto parte do seu percurso em RVCC. Eu tenho, por exem-plo, a política de “forçar” que as pessoas façam, e que as suas opções sejam,a formação e tenho percentagens de encaminhamento para o RVCC, que é ooposto à média nacional: tenho para RVCC do secundário à volta de 25% ea média nacional anda à volta dos 75%; para formações, para EFA, à voltade 70 a 80%. E faço essa opção (Coordenador do CNO Vila do Porto).

Essas experiências obtêm uma expressão particular em relatos de cons-trução de dinâmicas locais e/ou comunitárias de intervenção educativa,mas também de relações interinstitucionais, frequentemente descritas emtermos de cooperação e concorrência e de experimentação de modos dearticulação que designam ‘em rede’.

Eu acredito que as coisas tenham começado por aí, olharam para a estatísti-ca e: “Como é que é possível, como vamos resolver isto?” Eu penso quetalvez tenha começado por aí, mas penso que já não está só aí e já não estásó aí há algum tempo. Eu acho que o facto de se ter percebido que as pessoasestavam disponíveis para apostar nelas próprias, que tinham interesse, ti-nham conhecimentos, tinham saberes e que queriam reconhecer esses sabe-res, isto de facto faz-nos pensar na educação de adultos, mas que de factoainda estamos muito longe da verdadeira educação de adultos ainda esta-mos, mas podemos caminhar para aí, acho que podemos, é preciso é daraqui o toque certo (Coordenadora do CNO do Rosal).E nós acreditamos um bocado numa coisa, que é a tal história de irmosbuscar as pessoas não para o processo de qualificação, mas tirá-las de casa,dar-lhe novas competências para trabalhar essencialmente com a comunida-de delas. Começamos por grupos, sei lá, o grupo das catequistas, dos esco-teiros, do grupo coral, que são grupos que já estão constituídos e às vezes émais fácil começar por esses e esses depois disseminam aquilo, seja junto

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dos jovens, seja das crianças. É mais fácil começar por aí, a dificuldade àsvezes é imputar esses custos ao trabalho do Centro (Coordenadora do CNOdo Topo).Nas empresas é extremamente difícil, ou seja, é necessário andar muitosmeses a batalhar numa empresa para conseguir um grupo de meia dúzia depessoas, que influencia muito pouco as metas a atingir. Portanto, é um tra-balho difícil, demorado e que resulta pouco em números, mas é esse o traba-lho principal a fazer, agora difícil como disse; (…) o segundo trabalho, que éo das instituições, é um trabalho que se tornou complexo, porque os CNOestão todos a fazer isso, e portanto quando eu vou a alguma instituição, já láforam quatro ou cinco CNO e portanto é um trabalho de concorrência mui-to grande. (…). Portanto, trabalhar com as instituições é difícil. Depois, es-tar aberto ao público-alvo e ter um cartaz ali fora, ‘CNO Fénix’, estamosaqui para isso, mas (…) coloco em primeira linha as empresas, que é maisdifícil, mas é obviamente a única forma de ter um projecto sustentável (Co-ordenador do CNO Fénix).Nós temos uma plataforma, temos uma rede informal onde os centros reú-nem periodicamente, e quando digo os centros… a diversos níveis, desde oscoordenadores, as equipes profissionais e cada uma delas naturalmente porsetores, também os profissionais de RVCC e os formadores, portanto reú-nem, fazem também alguma formação ou autoformação, e há um espíritosalutar que move [enuncia quatro concelhos limítrofes]. (…) mas esta redeinformal permite aqui haver este diálogo, não há ninguém de costas voltadase portanto há (…) interligação em termos da intervenção no território (Di-rector do CNO Vila da Vitória).Portanto, a concorrência aí sente-se no dia-a-dia. Felizmente, aqui em [con-selho] chegamos a um acordo, a um trabalho de rede. Então, para trabalharem rede, distribuímos os territórios. Cada um tem o território definido eportanto tornamo-nos não só concorrentes … é certo que todos temos me-tas a atingir e queremos atingi-las, portanto somos concorrentes. Mas pelomenos não há aquela concorrência feroz, ainda bem que trabalhamos e co-laboramos uns com os outros, não é? Distribuímos o tempo e os sítios edesta forma ficamos com todos abrangidos de forma coerente13 (Coordena-dora do CNO Estrela Polar).

13 Um outro responsável destaca desta forma o potencial promissor de consolidação de dinâmicasde cooperação educativa nos territórios: “Os territórios estão-se a organizar no que diz respeitoàs qualificações, têm sido dados passos nos últimos anos naquilo que é o trabalho em rede,parceria entre centros e isto vai ter resultados no futuro. Ainda não está a ter propriamente nopresente, portanto está, passo a passo, de uma forma lenta, estão-se a produzir realmentenovas formas de transferência de conhecimento e de experiências e os territórios num futuropróximo vão ter claramente um sistema organizado no terreno que coopera entre si, solidificadonaquilo que são as necessidades reais de cada região, as respostas efectivas a dar às pessoas.Portanto, este modelo está a ser construído, aquilo que se teme é que no momento que omodelo estiver afinado possa deixar de existir e portanto vai-se criar este problema às regiões”(Coordenador do CNO Fénix).

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2.2.2. O público e o privado em educação e política social. Parcerias e localizaçãodos problemas sociais

Alguns dos vetores importantes do debate sobre governação tomamcomo mote o reposicionamento do Estado face ao mercado e ao chamadoterceiro setor14 e a redistribuição de papéis e tarefas entre esses domínios ins-titucionais. Esse constituirá, aliás, um dos processos em curso na constitui-ção da governação como nova matriz de regulação social, quer na sua ver-são hegemônica de tônica neoliberal, quer na sua expressão contra-hege-mônica de experimentação social com sentido político de construção deprocessos participativos, em ordem a responder a aspirações de reconheci-mento e redistribuição sociais. De acordo com Santos (2005), os papéis doEstado e dos excluídos nos arranjos de governação em análise proporcio-nam pistas de exploração desse ‘sentido político’; na perspectiva de Clarke& Newman (1997), a dispersão do poder do Estado para a periferia é organi-zada por, e efeito de, “cálculo estratégico” de um “centro estratégico” que“procura manter o comando”. Desse modo, propõem os mesmos cientistassociais: “A dispersão foi uma estratégia política para reconstruir quer o Es-tado quer a coordenação das suas funções de bem-estar”. De acordo comas propostas teóricas que seguimos, esses processos envolvem a delegaçãoda autoridade do Estado para entidades “subalternas”, que atuam em seunome, configurando uma distribuição da “agência” (CLARKE & NEW-MAN, 1997, p. 25 e 29). Nas palavras de Peroni, “a responsabilidade pelaexecução das políticas sociais deve ser repassada para a sociedade: para osneoliberais, através da privatização (mercado), e para a Terceira Via, peloterceiro setor” (PERONI, 2012, p. 22). Por outro lado, no atual cenário detransformações, os espaços nacional, local e global são recriados como pro-cessos e relações sociais e como dimensões do mundo educativo.

Num estudo recente, argumentamos que a política pública de EFAna primeira década do século XXI em Portugal ilustra “a expansão do po-der estatal em conjunção com a sua retração e evasão”, que acompanham areestruturação de “o ‘público’ e o ‘privado’, bem como as relações do Esta-

14 Para alargar o debate em torno dessa problemática, a partir de um foco particular na constituiçãoe em desenvolvimentos do terceiro setor, consultar ainda, por exemplo, Ferreira (2009).

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do com cada um dos setores e domínios da vida”, que tipicamentecaracteriza(ra)m as reformas do Estado gestionário constituintes da nova ma-triz de regulação social neoliberal, afirmada em práticas de governação. Ostestemunhos de responsáveis de CNO, que a seguir apresentamos, sublinhamprocessos e relações sociais e de poder que alimentam os “realinhamentosinstitucionais” experimentados na governação do setor e dessa política deEFA. As leituras que constroem a política sinalizam, a nosso ver:

(i) as consequências contraditórias da dispersão “como uma caracte-rística estrutural” “e um processo que é enquadrado pelo poder centraliza-do do Estado” (CLARKE & NEWMAN, 1997, p. 31);

(ii) a diversidade de perspectivas, interesses e experiências em intera-ção no terreno das práticas;

(iii) a ambivalência potencial desses processos de reestruturação doEstado e da coordenação do bem-estar.

Dispersão e centralização do poder do Estado na matriz de governação:consequências contraditórias

Encontramos referências críticas, pela voz de responsáveis ligados aassociações de desenvolvimento local, ao movimento, ocorrido entre 2006/2009, de envolvimento massivo de instituições públicas (escolas e centrosde formação) na rede de CNO, que integrou o dispositivo de RVCC, e deEducação e Formação de Adultos; esse processo é apresentado como dedesconfiança e menorização da sociedade civil, acompanhadas de controle ecentralização crescentes por parte do Estado. Questionam-se a ‘estatiza-ção’ e a ‘escolarização’ das práticas e do setor e reivindicam-se participaçãoe autonomia na construção de uma política local e institucional regulada esupervisionada, mas não imposta ou manietada, pela autoridade pública.

Por outro lado, na mesma argumentação, são operadas duas redu-ções: (i) os campos e as relações socioinstitucionais público/privado sãoconvertidos na oposição estatal/não estatal, simplificando e homogenei-zando cada um dos termos; (ii) as entidades privadas, em particular, sãoconsideradas em abstrato como se esse estatuto institucional e jurídico cons-tituísse uma propriedade clara e estática, uniforme e positiva em si mesmo.São, assim, ignorados os realinhamentos institucionais (CLARKE & NEW-

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MAN, 1997) e os processos de miscigenação que de há muito desafiam erefazem em novos moldes as fronteiras, as distinções e as relações sociaisque criam os domínios em causa (cf., por exemplo, SANTOS, 1993;MISHRA, 1996; ANTUNES, 2001, 2004; ADRIÃO & PERONI, 2005;CARDOSO, 2005; BALL & YOUDELL, 2007).

São ainda omitidos, por um lado, a complexidade e heterogeneidadeinternas dos universos formalmente organizados como público (na sua plu-ralidade estatal, periférica, central, regional, local) e privado (nas suas com-ponentes lucrativa, cívica, social, cultural), bem como os múltiplos interes-ses potencialmente contraditórios que sustentam. Desse ponto de vista, olocal e a região são olhados como o espaço de ação e de desenvolvimento,em torno do qual os consensos e mobilizações têm lugar ou são obstruídos;desse modo, são silenciados outros contrastes e distinções (quem define obem público? que interesses legítimos pode acolher? como se articulam ointeresse público e geral com interesses privados e particulares? quem re-presenta e realiza uns e outros?). Nessa perspectiva, o referencial de leiturada governação do dispositivo de RVCC e da EFA é focalizado nos valoresda ação e desenvolvimento locais. A essa luz, o envolvimento na execuçãoda política é experimentado como uma relação insatisfatória (que inclui,mas pode não ser dominada por tensões) por parte de atores para quem adependência do Estado central é uma condição, tantas vezes inevitável ouprocurada, da capacidade de influenciar a vida local; por esse prisma, fi-cam visíveis fragilidades dessa sociedade civil organizada (secundária e tute-lada) face à dispersão – distribuição da agência e delegação – do poder pelocentro estratégico do Estado nos termos de Clarke & Newman (1997).

Devíamos caminhar neste momento para uma descentralização do poder,confiar mais na sociedade civil e a sociedade civil já deu provas que é capazde gerir bem e que é capaz de gerir a mesma coisa com muito menos recur-sos financeiros e que é capaz de gerir muito bem com menos recursos huma-nos e que é capaz de gerir, com a mesma ou se não com mais qualidade queo Estado, algumas das iniciativas que são importantes para as políticas dopróprio Estado (Director do CNO Vila da Vitória).

Em contradição com esse ponto de vista, outros testemunhos, de ato-res de entidades públicas, como o responsável pelo CNO do Fénix, Centrode Formação de Gestão Participada, descrevem a governação do dispositivoRVCC, com contratualização do serviço envolvendo as entidades privadas

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nos moldes em que ocorreu, como “um erro” “cruel”. Nessa perspetiva,são sublinhadas implicações da reorganização do campo da educação eformação de adultos segundo um modelo institucional e de regulação vol-tado ao fomento do mercado da educação/formação e que descarateriza aintervenção dos serviços públicos para os posicionar como um operadorentre outros. Nessa narrativa, a perspetiva de referência é o desenvolvimen-to sobretudo econômico da região, assente no planeamento e na consolida-ção da política pública de Educação e Formação de Adultos, como via dequalificação de recursos humanos, que não se compagina com os interessesparticulares de instituições movidas por perspetivas de negócio.

(…) porque as entidades formadoras apresentam planos de formação mui-tas vezes de acordo com as suas conveniências, de acordo com o modelo denegócio que criaram e não de modo interligado com o interesse regional eisso tem que estar concertado, o interesse regional com o interesse da enti-dade. (…) é uma questão que eu acho que é fundamental, é que foi dadaabertura para qualquer tipo de instituição poder ser Centro Novas Oportu-nidades, poder ter um Centro Novas Oportunidades e eu entendo que isso éum erro crasso do sistema de educação e formação de adultos, porque clara-mente quem tem o domínio desta matéria e o domínio histórico e tem valên-cias e qualidade de trabalho são as escolas, porque toda a vida fizeram tam-bém a formação de adultos e são os Centros de Formação da rede do IEFP.(…) A educação de adultos não pode ser tratada como uma matéria de ne-gócios, não há negócio, é uma matéria estrutural, é uma matéria que exigeinvestimento e não pode ser visto como um negócio e, portanto, como nãopode ser visto como um negócio, vejo de forma cruel entregue ao setor pri-vado. (…) O Estado aproveitou o facto de existir setor privado na formaçãoe deu-lhes mais uma oportunidade para o seu negócio (…) Portanto houveaqui um desresponsabilizar (…) o que acho é que o setor público tem umamaturidade diferente (…) enquanto que o setor privado tem um negóciomomentâneo, não dá, fechou (Coordenador do CNO Fénix).

A formulação desse entrevistado simplifica também as relações sociaisde coordenação institucional estatal, mercantil e do terceiro setor e consti-tuintes dos domínios público e privado, ainda que com preocupações e sen-tidos diferentes daqueles identificados no posicionamento anterior. Argu-menta-se agora a favor da ‘estatização’ (formalização e escolarização) docampo da educação e formação de adultos. Desse modo, a oposição aoenvolvimento da componente do ‘negócio da formação’ alicerça-se na con-vicção de que tal constitui um desvio de recursos e bens públicos comunspor interesses particulares, permitido pela fórmula de governação adotada

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para essa política pública. Essa posição omite, no entanto, os agentes deEFA oriundos e envolvidos com dinâmicas, intervenções e movimentosculturais, cívicos e sociais. E a história da Educação de Adultos em Portu-gal e pelo mundo mostra (tanto através de exemplos negativos como positi-vos) que, numa perspetiva de participação democrática, realização de direi-tos e justiça social, o protagonismo desses atores coletivos é tão indispensá-vel como a responsabilidade, a coordenação e a construção de articulaçõesfortes entre as estruturas e políticas públicas e estatais e a ação autônoma eorganizada dos cidadãos. Essa evidência é testemunhada em Portugal pelafratura geracional verificada nos níveis de escolarização e desenvolvimentoeducativos que, na população adulta e após mais de trinta anos de demo-cracia, assumem valores baixíssimos e anômalos no contexto europeu (cf.,entre outros, MELO et al., 1998; 2002; LIMA, 2007).

Por sua vez, a coordenadora do CNO da ADL Estrela Polar visibilizao lado mais instrumental dessa mediação da política social protagonizadapelas entidades subcontratadas, “quando a sociedade civil é muito maischamada a executar tarefas do que a participar nas decisões e no controlesocial”, avultando que “a democratização seria apenas para repassar tare-fas que deveriam ser do Estado. A sociedade acaba se responsabilizandopela execução das políticas sociais em nome da democracia” (PERONI,2012, p. 22).

A ambiguidade e a ambivalência dos processos que constroem essesarranjos institucionais insinuam-se no discurso em que transparece a tenta-tiva de uma débil articulação de lógicas em tensão. Nesse caso, a derivaassistencialista e remediativa – que remete para ‘o local’ a sustentação dolaço social fragilizado e a compensação das múltiplas fraturas, geradas pelainsegurança e riscos econômicos e pelas omissões e insuficiências das polí-ticas econômicas e sociais – não chega a extinguir a afirmação de dinâmi-cas de subsidiariedade e de um espaço de ação próprio, desse modo reduzi-dos à sua mínima expressão.

Eu acho que havia consciência de que o setor público não tinha a abertura,nem a proximidade necessária às populações para conseguir mobilizá-las eatingir os objetivos de qualificação e, portanto, esta procura. Esta estratégiafoi: (…) “se eu sei que não sou capaz de chegar lá com os meus recursos, seique há entidades no terreno que são privadas e, portanto, à partida muito

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mais flexíveis e estão preocupadas em provar que conseguem”… (…) Por-que [o Estado] viu que era a única forma de conseguir responder ao máximode população possível. Por si só, pelas práticas de trabalho, pelo distancia-mento que tem das populações, pelo desconhecimento e isto leva a que nãoconheçam tão bem as mesmas, as suas necessidades e a forma para ajudá-lase o setor associativo acaba por ser…, acaba por ter que lhes responder e éisso. Eu acho que essa foi a grande estratégia do Estado (Coordenadora doCNO Estrela Polar).

Uma outra posição, pela voz da responsável de uma entidade autár-quica, valoriza a diversidade de agentes envolvidos, considerando que talalargamento potencia a capacidade de mobilização da população para aEFA e a riqueza das práticas. Na perspectiva dessa entrevistada, o desen-volvimento da política ganhou, no terreno e em certas dimensões, uma di-nâmica que vem influenciando os processos e as práticas. Nessa medida,enaltece a mobilização social em torno da educação como base para a con-solidação da política.

Se isto tivesse sido uma iniciativa confinada às escolas, na minha opiniãonão teria esta envergadura que tem hoje, penso que não tínhamos chegado atanta gente, não tínhamos uma resposta tão significativa nem um envolvi-mento tão grande da comunidade, portanto eu vejo isto como positivo. (…)Na minha opinião depois de termos aberto à comunidade é difícil voltarmosa fechar, mas fala-se de facto que os Centros se transformem em estruturasde aprendizagem ao longo da vida. Se deveríamos confinar isto a uma esco-la? Não. Se deveríamos confinar isto ao Centro de Emprego, ou ser umaextensão do Centro de Emprego? Também penso que não, porque de factoeu acho que este projeto ganha pela diversidade que tem, por envolver enti-dades tão heterogêneas e tão ricas na sua diversidade (…) pode não ser Cen-tros Novas Oportunidades, pode não ser nestes moldes, mas a educação deadultos, depois disto a que nós assistimos dificilmente será esquecida, pelomenos é essa a minha expectativa (Coordenadora do CNO do Rosal).

As argumentações contraditórias e parcelares (tal como a visível par-cialidade dos posicionamentos) testemunham bem a diversidade e a diver-gência de interesses e interpretações sustentados pelas entidades envolvidasna governação do setor. Assim, no caso vertente, a dispersão, enquanto es-tratégia de transformação da coordenação dos serviços de bem-estar, insti-tui a delegação de autoridade de Estado para agir em seu nome, terá sidobem-sucedida na manutenção do controle da política pelo centro estratégi-co estatal.

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2.3 A nova ordem educacional: centralidade económica,legitimação e expansão, sem compromisso do Estado

Se as políticas de EFA em Portugal, há cerca de 15 anos, nos apare-cem integradas na tendência global de “regresso” da educação/aprendiza-gem ao longo da vida (E/ALV), num novo contexto e num novo registropolíticos, o protagonismo da UE nesse movimento marca também a consti-tuição dessa nova ordem educacional: a E/ALV é colocada no centro daeconomia e no topo das prioridades políticas, quer na Estratégia Europeia deEmprego (1997), quer na Estratégia de Lisboa (2000). A dupla centralidade,para a competitividade e a coesão social, que a educação assume nessaspolíticas, expressa o seu reposicionamento como política econômica e deemprego na sociedade/economia do conhecimento e de riscos, minimizan-do as dimensões culturais, cívicas e de redistribuição (justiça) e reconheci-mento sociais.

A politicidade da educação como projeto de sociedade, porque en-volve a formação de sujeitos e comunidades, implica questionar a nova or-dem educacional em construção: a que educação acede quem, como, emque condições e com que consequências? A agenda oficial dominante naUE caracteriza-se, assim, pela dupla redução e centralidade da educação/aprendizagem ao longo da vida e destaca o seu valor econômico e o seufoco remediativo e compensatório; no entanto, esse é um campo de luta edebate políticos, em que o confronto de discursos, concepções e práticastem lugar.

Pode ainda apreender-se a mediação das tendências globais pela UE:por exemplo, os Quadros Comunitários de Apoio, desde os anos 90 do sé-culo XX, permitem canalizar para Portugal um volume de financiamentocujo impacto expressa a estruturação global da agenda política nacionalpara a educação. No caso em estudo, a governação do dispositivo de RVCC,no quadro da política pública de EFA, permitiu ao Estado português ex-pandir a oferta pública de educação e a população abrangida, sem ampliaro perímetro do Estado de Bem-estar e sem se comprometer com estruturaspermanentes voltadas a garantir o direito à educação das populações adul-tas. Argumentamos que essa opção de prescindir de um sistema público deEFA revela o sentido político da governação em construção (como matriz

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sociopolítica de regulação social), pela manifesta evasão do Estado, mais sa-liente ainda num quadro em que àquela política socioeducativa é atribuídaprioridade (sob compromisso limitado) (ANTUNES, 2011).

O centenário obscurantismo programado por parte das elites portugue-sas (MELO, 2004) tem no continuado sacrifício do direito à educação dapopulação adulta, mesmo no Portugal democrático, uma das mais pungen-tes revelações dos défices estruturais do semi-Estado-Providência português(SANTOS, 1990). A história social e econômica e a estrutura social que pre-sidiram a simultânea crise e consolidação daquele (cf. SANTOS, 1990; STOER& ARAÚJO, 1992; AFONSO, 1998; CANDEIAS, 2009), ao longo dos anos1970 a 1990 e na 1ª década do seculo XXI, constituem vetores da especifici-dade portuguesa, que se expressa na política de E/ALV, desenvolvida no qua-dro das políticas europeias nos últimos anos. Como sugerimos em outrostrabalhos, essa dimensão nacional das políticas de educação e formação éainda fabricada pela ação de ativistas educacionais e pedagogos progressistasque não cessaram de articular vozes, propostas e práticas a favor dos segmen-tos vulneráveis ou em risco de abandono pelas elites portuguesas, que persis-tem na reiterada ausência de políticas voltadas à concretização do direito daspopulações à educação e ao desenvolvimento (ANTUNES, 2011).

2.3.1. Governabilidade, estatização e alargamento instrumental do círculoda governação: ação e luta político-pedagógicas no terreno educacional

Os testemunhos de responsáveis permitem observar uma apropria-ção institucional diversa por parte das entidades envolvidas na política emação no terreno. Assim, uma distinção se vislumbra entre as questões colo-cadas por Associações de Desenvolvimento Local (ADL) e outros agentes,públicos e privados, escolares e não escolares. A democraticidade do mode-lo de política implementado, em termos da relação do Estado com a inter-venção local organizada dos cidadãos, a autonomia, a consistência e o im-pacto da ação colectiva desses, a integração comunitária dos processos edu-cativos, a multidimensionalidade da política de EFA são questões especifi-camente colocadas pelos responsáveis oriundos de ADL. Os relatos suge-rem que o envolvimento dessas entidades na execução de políticas públicasrealiza uma versão de subsidiariedade em que não é rara a experiência de

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instrumentalização, de dependência e de amputação da capacidade de ação.O discurso articulado por esses entrevistados dá voz a uma interpretaçãosensível à politicidade da ação educativa e organizada dos cidadãos.

O mesmo ponto de vista distingue a leitura construída pelos diversossujeitos quanto a uma questão comum: a contratualização do serviço como Estado. Se o caráter unilateral e as limitações da ação educativa decorren-tes das condições impostas são verbalizadas em uníssono, os agentes dasADL tendem ainda a questionar essa ‘cegueira’ da política quanto a seusimpactos nas dinâmicas socioeducativas locais e de desenvolvimento dosterritórios. Emergem assim, nas leituras por eles articuladas, reivindicaçõesde reconhecimento, pelos responsáveis políticos, da especificidade dos ter-ritórios, das necessidades das suas populações e das demandas aí formula-das também pela voz desses coletivos organizados de cidadãos.

A regulação da intervenção educativa através de resultados mensurá-veis e quantitativos e a delimitação da ação pedagógica pelas regras de finan-ciamento contribuem para conformar a política em ação, desencorajando odesenvolvimento de atividades que extravasem a focalização oficial nas va-lências formais com certificação e equivalência escolar e profissional.

Por último, os testemunhos sobre a panóplia de entidades envolvidaspara executar a política mostram, talvez de modo mais evidente, a políticaem ação como ação política, num quadro em que se afirmam narrativas,pontos de vista e interesses, disputam-se a legitimidade, os recursos e a in-fluência no contexto local: para construir e distribuir oportunidades, parafortalecer ou criar capacidade de ação individual e coletiva, para incluir ouexcluir, para categorizar, criar ou destituir identidades e coletivos. Se o qua-dro de ação descrito pelos sujeitos é clara e fortemente delimitado pelascondições e estruturas em presença, pelas disposições da política, tambémparece claro que aquela ação dentro de limites representa um certo poderque os entrevistados não negligenciam ou desvalorizam e que constitui umacapacidade delegada do Estado para agir em seu nome. Por isso os termos,condições e horizontes que acompanham essa delegação são interpretados,disputados e contestados de modos distintos pelas diversas categorias deagentes entrevistados.

Em suma, encontramos relatos que frisam a subalternização dos agen-tes contratados e reivindicam autonomia para desenvolver políticas e proje-

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tos, afirmando ainda legitimidade e competência alternativas à ação de agen-tes estatais. Não são, no entanto, evocadas ações fundadas em formas depoder social alternativas ou separadas do Estado, para lá da provável influên-cia, assim alicerçada, em certos processos e domínios da vida local. Sinali-za esse silêncio a fragilidade da ação organizada – de base, autônoma esustentada – dos cidadãos, reiteradamente observada em Portugal (SAN-TOS, 1993; HESPANHA et al., 2000; LIMA & AFONSO, 2006)?

Numa argumentação em sentido diferente, é apontada a submissãodo bem público comum e do interesse geral15 a lógicas privadas de obtençãode lucro, associadas ou não à influência de interesses particulares dos desti-natários da formação, assim convertidos em consumidores. A posição sus-tentada sugere que o setor evidencia sinais de cooptação por formas depoder social, cujas fontes são quer o mundo comercial/empresarial local,quer a procura individual. O processo assim referido evoca a instabilidadeestrutural associada à dispersão do poder do Estado nas formas de coordena-ção do bem-estar social, postas em marcha pelas reformas do Estado gestio-nário (CLARKE & NEWMAN, 1997).

Outras leituras dão conta quer da expectativa da consolidação dapolítica através da mobilização social potenciada pelo envolvimento de umamiríade de entidades heterogêneas, quer da ‘localização’ da gestão dos pro-blemas e do controle sociais, convocando para esse fim as organizações decidadãos. Essas, mesmo quando capacitadas pelo envolvimento com as rea-lidades das populações, encontram-se assim como braços subsidiários deagendas políticas (assistencialistas, paliativas e remediativas), que não deci-dem, mas executam em favor da legitimação do Estado e da sustentação daordem social. Por essa via, permite-se o Estado distanciar-se de compro-missos e demandas vinculados a direitos sociais da população mais desfa-vorecida e abandonada em virtude do centenário obscurantismo programadodas elites portuguesas e agora também excluída – em resultado dos déficesdo recente semi-Estado-Providência português e dos fracassos das atuais

15 O bem público comum e interesse geral, do ponto de vista desse entrevistado, relacionam-secom o desenvolvimento econômico dos territórios e consolidação da política de educação equalificação das populações.

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políticas econômicas, sociais e de emprego voltadas à criação da governa-ção neoliberal.

Coloca-se, assim, a questão de interpelar entendimentos, discursos epráticas sobre as lógicas da ação e desenvolvimento locais: Em que medidaas reivindicações e valorizações em seu nome se constroem numa lógica de‘localização’ dos problemas, fracassos e contradições, aliviando a carga delegitimação e responsabilidade do Estado central? Como procuram abrir ca-minhos para a redefinição dos problemas e a recriação das relações sociais(CORREIA & CARAMELO, 2003)? Em que termos logram contribuir paracapacitar os excluídos, aumentar o seu controle sobre as próprias vidas e asua influência e participação nas decisões que afetam a sua existência e adas suas comunidades?

A governação implementada como matriz de regulação social de ma-tiz neoliberal apresenta-se como um realinhamento institucional na natu-reza, papel e forma de organização do Estado, na coordenação do serviçopúblico de educação, com implicações para a natureza desse e do direito aque se encontra vinculado.

Essa nova matriz de regulação social pode ser compreendida obser-vando as dimensões em que se constitui como propriedade do sistema – (i)mediações sociais: para coordenar comportamentos individuais e coleti-vos, institucionalizar conflitos sociais e conter ameaças à coesão social e(ii) sentido político: o lugar do Estado e dos excluídos; os efeitos em termosde reconhecimento e redistribuição (justiça) sociais – e como espaço deação e luta política que realiza, mantém e modifica aquela.

Nesse sentido, encontramos nesses relatos da governação em açãoexpressões da institucionalização da reforma gestionária de dispersão (retra-ção e expansão) do poder do Estado: observamos que esse se assume comogestor estratégico, monopoliza o centro de decisão da política, convoca asorganizações da sociedade civil e contratualiza a execução para nelas dele-gar parcelas de poder, responsabilidades e funções do Estado.

Encontramos ainda disputas em torno da institucionalização dessamodalidade de provisão de serviços educativos, ilustrativas da governação/regulação como espaço de luta e ação política. Assim, nos testemunhos sãodesfiados: (i) a contestação da democraticidade da política em termos departicipação e autonomia, de reconhecimento da voz e do espaço de inter-

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venção próprios das comunidades e entidades locais; (ii) o desafio persis-tente aos limites impostos ao âmbito da ação educativa e o esforço de enri-quecimento da ação pedagógica e dos espaços e processos de aprendiza-gem; (iii) a dinâmica de construção de relações interinstitucionais de coo-peração local. Lado a lado, assomam ainda: a preocupação em produzirresultados e conquistar espaço e ‘clientes’ no ‘mercado’ da educação e for-mação de adultos; a adesão a visões espartilhadas, instrumentais e parcela-res do setor ou a colonização do mesmo por perspectivas e linguagens hojehegemônicas e importadas da economia e da gestão ou mesmo, e não rara-mente, uma conceção política autoritária, desqualificante e carencialistadas populações e destinatários da ação pública.

3. Apontamentos finais

A exploração das questões de investigação permitiu observar algunsaspectos da dimensão nacional da política de E/ALV na primeira décadado século XXI, agora apreendida através dos testemunhos recolhidos sobreperspetivas, orientações e práticas sustentadas por responsáveis institucio-nais16. A análise de cursos de ação e pontos de vista sugere os contornos dedelimitação e de capacitação de ação, colocados pelos termos da políticado Estado gestionário. Assim, em síntese, queremos salientar certos traços deapropriações locais e institucionais do dispositivo de RVCC no quadro dapolítica de EFA:

(i) a mobilização social muito significativa, quer de entidades, querda população adulta, para processos de educação e formação de adultos;

16 Num outro trabalho, a partir da análise de documentos programáticos, de estudos e de outroselementos empíricos de âmbito limitado, sobre o desenvolvimento da política de EFA,propusemos que em Portugal essa verificou: (i) a ambivalência entre uma política socialmultidimensional e uma política para/segundo a economia, reduzida às vertentes formais daEFA; (ii) a omissão e o compromisso limitado do Estado com o direito à educação da populaçãoadulta portuguesa, por um lado, ampliando a oferta pública e a população abrangida e, poroutro lado, prescindindo de uma política global e de um sistema público de EFA; (iii) odesenvolvimento da política no quadro de programas temporários e estruturas provisórias,baseados na precarização inflexível de direitos sociais da população e dos trabalhadoresenvolvidos (ANTUNES, 2011).

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(ii) interpretações críticas, por parte das associações de ADL, da po-lítica de dispersão (delegação e expansão) do poder do Estado, assinalando asua ‘cegueira’ quanto ao desenvolvimento e às dinâmicas socioeducativaslocais;

(iii) a valorização da prioridade política atribuída à EFA, mesmo sereduzida a valências formais certificadoras;

(iv) adesão a conceções e formulações importadas da economia e dagestão, que empobrecem o universo, a política e a prática educacionais epedagógicas, silenciando e negligenciando o seu patrimônio de pensamen-to, experiências e linguagem próprios;

(v) perspetivas divergentes (estatização e privatização) quanto à fór-mula institucional adotada para o desenvolvimento do dispositivo de RVCC,relevando interesses e projetos em disputa no terreno da ação educativa;

(vi) estatização parcial alargada, sem estrutura pública permanente,e desenraizamento comunitário e local do dispositivo de RVCC e da redede EFA;

(vii) fortalecimento de lógicas concorrenciais de quase mercado e demercado da formação, criando e sustentando agentes operadores e fornece-dores e processos de regulação que chegam a gerar fenômenos de substitui-ção do bem-comum pela cooptação dos serviços em favor de interesses par-ticulares;

(viii) esforços e práticas embrionárias e intermitentes de constituiçãode dinâmicas e redes de cooperação interinstitucional e de atuação coorde-nada, bem como de ampliação do âmbito da intervenção socioeducativa epedagógica, que, não podendo ser ignoradas, dificilmente chegam a conso-lidar-se como alternativas;

(ix) em consequência, a subsidiariedade instrumental e dependenteda ação organizada dos coletivos de cidadãos em favor da coesão e do con-trole sociais, na execução da política segundo os objetivos traçados peloEstado, concorrendo ativamente para a sua legitimação;

(x) criação de uma fórmula de coordenação (governação) de financia-mento, fornecimento, regulação e propriedade das atividades e estruturasde educação e formação, segundo um modelo de programa temporário, orga-nismos provisórios, vínculos precários e contratualização: amplia a oferta públi-ca, sem responsabilizar e comprometer o Estado; precariza os direitos de

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produtores e de destinatários dos serviços e não garante o direito humano esocial básico da população adulta à educação.

Em suma, a governação em ação revela uma política pública de Educa-ção e Formação de Adultos, cujo sentido responde sobretudo e em primei-ra mão a preocupações de governabilidade, com a evasão do Estado face acompromissos com direitos e demandas das populações, mesmo se subal-ternizadas e fragilizadas. A débil presença dos excluídos – através da atua-ção de organizações e ativistas educacionais e pedagogos progressistas noterreno – revela-se insuficiente como fonte de poder para vincular a políticaàs suas necessidades e interesses. A mudança educacional impulsionadanessa política pública integra elementos de privatização, mercantilização eliberalização da educação, articulados com processos de estatização e dealargamento instrumental do círculo da governação. Desse modo, a incorpo-ração da ação organizada e coletiva dos cidadãos no desenvolvimento dapolítica, segundo os termos e objetivos definidos pelo governo, e a delega-ção do poder do Estado por essa via são acompanhadas pela expansão doseu controle e capacidade de legitimação. Nesse sentido, tendem a ficar con-dicionados, desvitalizados e dificultados os esforços e as práticas de enraiza-mento comunitário e de ampliação do âmbito da intervenção socioeducativae pedagógica, que poderiam consolidar-se como alternativa na criação devínculos dessa inovação com a redistribuição e a emancipação sociais. Des-se modo, ainda que intersticiais, a ação e a luta político-pedagógicas assu-mem expressão e forma em discursos e práticas tão persistentes quanto con-traditórios.

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Paixão pela educação... privada– Educação e terceira via em Portugal:

da Revolução dos Cravos aos nossos dias

Raquel VarelaSandra Duarte

Educar na revolução

No dia 25 de abril de 1974, um golpe levado a cabo pelo Movimentodas Forças Armadas (MFA) põe fim à ditadura portuguesa. De imediato, econtra o apelo dos militares, milhares de pessoas saíram de casa, e foi comas pessoas à porta, a gritar “morte ao fascismo”, que no Quartel do Carmo,em Lisboa, o governo foi cercado; as portas da prisão de Caxias e Penicheabriram para saírem todos os presos políticos. Uma semana depois do gol-pe que põe fim a 48 anos de ditadura, a celebração do 1º de maio de 1974junta nas ruas de Lisboa meio milhão de trabalhadores e 2 milhões em todoo país, 20% da população total de Portugal. As palavras de ordem demo-cráticas já se misturavam com reivindicações sociais (salário mínimo, etc.).Um mês depois do golpe, a capital do país está paralisada com greves.

A revolução portuguesa foi marcada pelo protagonismo político deum poderoso movimento operário e social que atingiu amplos setores dasociedade portuguesa. Para além dos trabalhadores diretamente ligados àprodução de valor, e particularmente os operários industriais, a revoluçãoportuguesa caracterizou-se por conflitos sociais muito radicalizados no mo-derno setor laboral dos serviços, o setor informal, uma ampla participaçãodas mulheres e os setores intermediários e de base das forças armadas e umamplo e radical movimento que alterou as bases estruturais do ensino, in-troduzindo aquele que foi até dois anos o sistema mais democrático degestão das escolas em toda a Europa ocidental.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A escola do biênio 1974-1975 era a escola do court de tênis ocupadopelos trabalhadores para se tornar uma creche (TREFFAULT, 2004); era aescola onde foi introduzida a gestão democrática; era também a universida-de dominada pelas correntes de extrema esquerda, insufladas pelo maio de1968 e as revoluções anticoloniais. Ficaram famosas as reuniões gerais quese prolongam noite adentro, a abolição dos exames, a transformação dascantinas em embriões de soviete, onde se discutia tudo, dos conteúdos pro-gramáticos de história à libertação sexual. Em 1975, depois uma greve na-cional generalizada, o Ministério da Educação e Cultura declara nervosoque as “reuniões gerais de alunos não podem revogar decretos do Gover-no” (Jornal REPÚBLICA, 1975, p. 12). Apesar das críticas maoístas queviam na escola um lugar de reprodução social na década de 1970, a escolaem Portugal foi palco privilegiado da luta de classes.

O país que chega ao 25 de abril de 1974, em termos de instrução, nãoé, contudo, o mesmo do Portugal profundo, atrasado, de Salazar nos anos1940. A industrialização dos anos 1960 vai, mesmo no quadro de ditadura,levar a burguesia a tomar a iniciativa de introduzir alterações na educação.

Durante a década de 1960 e início da década de 1970, há alteraçõeseconômicas mundiais que modificam a estrutura de classes das sociedadesda Europa do Sul e consequentemente a educação – falamos de contrariara baixa tendencial da taxa de lucro por meio da exploração intensiva dotrabalho à escala mundial. Esse fator vai impulsionar a industrialização dospaíses periféricos e semiperiféricos com o consequente crescimento da clas-se operária industrial e do setor terciário e a diminuição da classe campone-sa em um processo de crescente urbanização e desruralização (BARRETO,2005). É num quadro de expansão do modo de produção capitalista (SAN-TOS; LIMA; FERREIRA, 1976) que se devem compreender as transfor-mações econômicas que levaram à mudança do panorama social e políticode Portugal na década de 1960. Com a intensificação da industrialização,as cidades aumentam desordenadamente e com muitos bairros de lata1,onde se albergam os que partiram dos campos. Essas alterações vão origi-nar paulatinamente uma grande concentração da classe operária portugue-

1 Favelas.

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sa nas duas margens do rio Tejo, junto a Lisboa e no distrito de Setúbal. Opaís muda. A população rural ativa passa de 44% em 1960 para 28% em1973, ao mesmo tempo em que a população industrial ativa passa de 29%para 36% (CLEMENTE, 2000). Em 1970, três quartos da população ativaé assalariada. Mais de dois terços dos trabalhadores da indústria (67,4%)concentravam-se em unidades fabris com mais de 20 pessoas. Santos, Limae Ferreira (1976) afirmam que houve um alargamento da classe operária,entre 1950 e 1970, de 768 mil para 1,020 milhão, isso em um quadro deverdadeira sangria de mão de obra com destino aos países mais ricos daEuropa Ocidental (1,5 milhão de pessoas abandonaram o país entre 1950 e1970). É também na década de 1960 que as mulheres “acedem, maciça-mente, ao trabalho industrial, agrícola e dos serviços”. Há uma mudançageracional diante do período do pós-guerra: uma classe operária jovem,que se torna adulta já na cidade, que trabalha mais e com nova organizaçãodo trabalho e racionalização do processo produtivo.

O sistema educativo sofre pequenas mudanças em 1965: alargamen-to da escolaridade obrigatória de quatro para seis anos (para alunos do sexomasculino), criação da tele-escola (escola por difusão em rádio e TV), auniformização do 5º e 6º anos de escolaridade acabando com a oferta di-versificada (ensino liceal ou ensino técnico) após realização de exame deadmissão. Em 1973, é aprovada a reforma educativa de Veiga Simão, queintroduz algumas inovações: o ensino pré-escolar é incluído no sistema deensino, a escolaridade obrigatória passa de seis para oito anos de idade, oensino secundário é reestruturado em dois ciclos, cada um deles com dura-ção de dois anos, passa a haver oferta de formação profissional e o ensinosuperior passa a ministrar cursos de curta duração (institutos politécnicos),de longa duração e pós-graduações (universidades), abrindo a possibilida-de a indivíduos maiores de 25 anos sem as habilitações acadêmicas usuais aingressar nesse tipo de ensino (CARVALHO, 1996).

Do ponto de vista da direção, a escola não muda, porém. É dirigidapor um reitor, um docente, que estava à frente da escola e que era da totalconfiança do governo e do regime.

Apesar do maior acesso à escola, feito nos anos 1960, essa é aindauma escola elitista. Só “quem tinha dinheiro”, dizia-se nos meios popula-res, podia estudar, e não existiam escolas nem professores em zonas rurais.

VARELA, R.; DUARTE, S. • Paixão pela educação... privada – Educação e terceira via em Portugal

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Apesar da obrigatoriedade do ensino ser de seis anos desde 1965, em 197426% da população é analfabeta, 85% das crianças com idades compreendi-das entre 6 e 10 anos frequentavam apenas o 1º ciclo (os primeiros quatroanos de escolaridade) e apenas 28% das crianças com idades entre os 10 e12 anos encontram-se matriculadas no 2º ciclo (os 5º e 6º anos de escolari-dade)2.

A revolução muda tudo a uma velocidade surpreendente. Alteram-seconteúdos programáticos, condições de trabalho para docentes e para pes-soal não docente e condições de estudo para alunos. São criadas redes detransporte escolar; foram construídas novas escolas, cantinas e residênciasescolares, foram estipulados subsídios para alunos carentes e houve a distri-buição do leite escolar (entre outras medidas). A oferta curricular é unifor-mizada para o 7º, 8° e 9º anos de escolaridade (a frequentar por alunosentre 12 e 15 anos de idade), deixando de haver os ramos de ensino liceal eensinos técnicos comercial, industrial e agrícola. Esse princípio do ensinounificado era uma reivindicação das correntes marxistas, que criticam aseparação, logo com 10 anos de idade, entre o ensino liceal e o ensino técni-co, abrindo assim as portas à divisão estrita entre trabalho manual e traba-lho intelectual.

Em 1974-1975, reintroduz-se o carácter laico na educação (princípioda 1ª República em 1910) com a retirada de todos os símbolos religiososdas salas de aula, com o fim da obrigatoriedade da disciplina de Religião(Católica) e Moral, entre outras medidas. Extinguem-se a Mocidade Portu-guesa e a Mocidade Portuguesa Feminina (uma estrutura de enquadramentoda juventude do antigo regime), que haviam sido criadas em 1936 e 1937 eque abrangiam todos os portugueses, estudantes ou não, com idades com-preendidas entre 7 e 14 anos de “todo o império português”. Acaba-se coma separação dos alunos em turmas por gênero sexual.

Também no plano da gestão, em 1974 e 1975 são introduzidas mu-danças que só serão alteradas em 2008. Deixa de haver o cargo de diretorou de reitor, os órgãos de gestão das escolas (Conselho Diretivo e Conselho

2 50 anos de Estatística da Educação. Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação eInstituto Nacional de Estatística, Lisboa, 2009.

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Pedagógico) passam a ser democráticos, ou seja, passam a ser eleitos pelosseus pares, e no Conselho Pedagógico há representantes dos docentes, dopessoal não docente, dos alunos, dos pais e encarregados de educação e deoutros elementos com intervenção na escola e/ou no processo educativo.São formadas as associações de pais e de encarregados de educação, associa-ções de estudantes, sindicatos de professores e sindicatos de pessoal nãodocente (alguns integrados nos sindicatos da função pública). Essa gestão,muitas vezes culpabilizada pela ineficácia da gestão escolar pelos partidosda terceira via e da direita liberal, permite-nos compreender a dificuldadeque foi introduzir as reformas neoliberais em Portugal durante os anos 1980e 1990, porque, uma vez aprovadas no governo, as reformas esbarravam defato, embora de forma desigual de escola para escola, na força dos conse-lhos diretivos das escolas e das associações de pais.

Também no ensino superior há alterações nos programas curricula-res, assim como nas condições de acesso. Nas universidades, em 1974-1975,multiplicavam-se os plenários com milhares de estudantes, saneamentos3

de professores conotados com o regime fascista e instaurava-se um climadeliberativo permanente. No dia 23 de maio de 1974 começa uma greve noensino secundário, e no dia 25 de maio de 1974 cerca de 10 mil estudantesmanifestam-se pelo fim dos exames no acesso ao ensino superior. O resulta-do foi que o governo foi obrigado a deixar entrar nas universidades todos osalunos que tivessem aprovação independentemente da nota final, o que sig-nificou um aumento para o dobro do número de estudantes universitários.Passava-se, no espaço de um mês, de 14 mil estudantes com direito a entrarna universidade para 28 mil (OLIVEIRA, 2004). São dados aos alunos doensino técnico profissional e do ensino médio condições de acesso ao ensi-no superior, assim como a pessoas com idade superior a 25 anos de idade ea trabalhadores com uma atividade comprovada de cinco anos. Os institu-tos industriais de ensino médio são convertidos em institutos superiores epassam a ter autonomia administrativa. Também as universidades passam

3 “Saneamento” foi uma palavra que nasceu na gíria popular no início da revolução, para classi-ficar os processos de destituição de dirigentes ligados ao Estado Novo de cargos de responsabi-lidade política, bem como de empresários e patrões das empresas ocupadas.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

a dispor de autonomia pedagógica, financeira e científica, e os seus órgãossão também eleitos pelos seus pares, havendo órgãos em que há representa-ção do pessoal docente, do pessoal não docente e do pessoal discente. Oensino é gratuito.

Tudo isso se passa no espaço de 19 meses.

O falhanço do neoliberalismo na privatização do ensino

No dia 25 de novembro, um golpe de Estado põe fim ao processorevolucionário. Seguem-se anos conturbados. Uma intervenção do FMI em1977 e a difícil gestão da contrarrevolução democrática que contabiliza dezgovernos com apoio parlamentar do PS (social-democratas), PSD/PPD(liberais) e CDS (conservadores) entre 1976 e 1986. Nessa altura, ninguémousa mexer na herança deixada pela revolução no Ministério da Educação.

Será precisa a adesão à então CEE (Comunidade Econômica Euro-peia) e a eleição de um governo minoritário e dois governos de maioriaabsoluta de Cavaco Silva (1985-1995), o “Reagan português”, para se co-meçar a dar os primeiros passos nas mudanças em face da revolução.

Em 1986, 100% das crianças entre os 6 e os 10 anos de idade encon-tram-se matriculadas no 1º ciclo, 63% das crianças entre os 10 e os 12 anosde idade encontram-se matriculadas no 2º ciclo e 41% das crianças entre os12 e os 15 anos encontram-se matriculadas no 3º ciclo4.

Nesse ano, é aprovada a Lei de Bases do Ensino5, que estabelece oquadro de referência da reforma do sistema educativo. No Decreto-Lei nº286, de 29 de agosto de 1989, são definidos os planos curriculares dos ensi-nos básico e secundário e onde se pode ler:

A estrutura curricular agora aprovada procura responder ao complexo deexigências que tanto no plano nacional como no plano internacional se co-locam ao nosso sistema educativo: a construção de um projecto de socieda-de que, preservando a identidade nacional, assuma o desafio da moderniza-ção resultante da integração de Portugal na Comunidade Europeia. Nessesentido se decidem as opções que fundamentam a organização curricular

4 50 anos de Estatística da Educação. Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação eInstituto Nacional de Estatística, Lisboa, 2009.

5 Lei nº 46/86 de 14 de outubro.

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dos ensinos básico e secundário: valoriza-se o ensino da língua portuguesa,como matriz de identidade e como suporte de aquisições múltiplas; é criadauma área de formação pessoal e social; procura-se imprimir ao currículouma perspectiva interdisciplinar; define-se o conceito de avaliação numaóptica formativa e favorecedora da confiança própria e reforçam-se as estru-turas de apoio educativo com a intenção de equilibrar a diversidade de rit-mos e capacidades; incentiva-se a iniciativa local mediante a disponibiliza-ção de margens de autonomia curricular na elaboração de projectos multi-disciplinares e no estabelecimento de parcerias escola-instituições comuni-tárias (PORTUGAL, 1989).

A Lei de Bases do Ensino estipula que o sistema educativo é forma-do pelo ensino pré-escolar (para crianças a partir dos 3 anos e de caráterfacultativo), ensino escolar (1º, 2º e 3º ciclos do ensino básico e ensinosecundário e ensino superior politécnico ou universitário), ensino extra-escolar (atividades de alfabetização e de educação de base, de aperfeiçoa-mento e atualização cultural e científica). O ensino obrigatório passa deseis anos para nove anos de escolaridade (entre os 6 e os 15 anos de ida-de), abrindo a hipótese da criação de escolas especializadas no ensinoartístico (para o ensino básico). Estão previstas modalidades especiais deeducação: educação especial para alunos portadores de deficiência físicaou mental; formação profissional para pessoas que ou já se encontram nomercado de trabalho ou que queiram ingressar no mercado de trabalho;ensino recorrente destinado aos indivíduos que não tenham tido oportu-nidade de se enquadrar no sistema de ensino em idade normal de forma-ção; ensino a distância; ensino de português no estrangeiro.

Em relação ao ensino particular, dão-se passos de grande impacto,abrindo as portas à transferência de recursos públicos para o sistema priva-do por intermédio de contratos de associação. Considera-se o ensino parti-cular e cooperativo (artigo 55º) como parte integrante da rede escolar desdeque se enquadrem nos princípios gerais, finalidades, estruturas e objetivosdo sistema educativo, comprometendo-se a ter, em atenção à existência deestabelecimentos de ensino privado ou cooperativo, quando do alargamen-to ou ajustamento da rede pública de ensino.

Instituem-se programas nacionais para as diferentes disciplinas e cur-rículo único para o 7º, 8º e 9º anos de escolaridade. É criada a Prova Geralde Acesso (PGA) para todos os candidatos ao ensino superior e que incidiasobre assuntos de cultura geral.

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É também contemplado nesse diploma o ensino privado universitá-rio, surgindo nessa época as primeiras escolas de ensino superior privadas.O financiamento do ensino superior foi alterado, introduzindo um valor apagar pelos estudantes (propinas).

Mas a reação social foi imensa. Essas medidas, apesar de aprovadas,chocavam com resistência nas escolas e nas populações. A contestação co-meça contra a reestruturação dos cursos (que dividia os cursos superioresem ramo educativo e ramo científico), passa para a refutação da PGA commanifestações de milhares de estudantes liceais nas ruas e finalmente ex-plode na resistência às propinas. Três ministros da Educação são obrigadosa se demitir, sem força social para governar.

Com avanços e recuos na luta estudantil, somente no século XXI aspropinas conseguem ser impostas pelos governos, sendo o ano de 2005 ocanto do cisne desse movimento estudantil, com a introdução, sem resis-tência, do Processo de Bolonha, que significou mais um passo na privatiza-ção do ensino superior.

Esses estudantes ficaram conhecidos na sociedade portuguesa como“geração rasca” (que significa geração brega, sem educação), depois de umfamoso jornalista tê-los assim chamado em um editorial em 1994 do princi-pal jornal, O Público, porque no meio de uma manifestação de milhares deestudantes em frente ao Parlamento Nacional, alguns se despem e voltam-se de costas para o Parlamento. Quase 20 anos depois, em 2011, essa gera-ção volta às ruas de Portugal, organizando uma manifestação de trabalha-dores jovens precários, que reúne 300 mil pessoas e leva à queda de umgoverno, acossado já pelas políticas pós-crise 20086. Chamaram-na a mani-festação da “geração à rasca” (trocadilho que significa geração em perigo,com problemas).

6 “300 mil nas manifestações da Geração à Rasca”. Disponível em: <http://www.esquerda.net/artigo/extraordin%C3%A1ria-mobiliza%C3%A7%C3%A3o-da-%E2%80%9Cgera%C3%A7%C3%A3o-%C3%A0-rasca%E2%80%9D>. Acesso em: 15 jul. 2012.

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Terceira via: privatização e consenso social

“Paixão pela Educação”, assim ficou conhecida a política do primei-ro-ministro social-democrata7, do Partido Socialista (PS), António Guter-res, à frente do Governo de Portugal entre outubro de 1995 e abril de 2002.António Guterres foi também nessa altura – justamente quando o termoterceira via era popularizado a partir da liderança de Tony Blair no ReinoUnido – presidente da Internacional Socialista (IS), cargo que ocupou en-tre 1999 e 2005.

Guterres, militante da ala católica do PS, é eleito e começa umasérie de reformas na educação, que visavam flexibilizar e adaptar a educa-ção à formação da mão de obra; estabelecer o alargamento do horárioescolar das crianças para prolongar os horários de trabalho dos pais8 e,finalmente, privatizar, parcialmente e de formas diversas, o sistema edu-cativo português, que em todos os graus de ensino era em geral de melhorqualidade no sistema público do que no sistema privado. Grosso modo,tratava-se de paulatinamente pôr fim à herança da escola universal, gra-tuita, unificada e de qualidade herdada da revolução dos cravos e adaptá-la às condições de redobrada exploração da mão de obra, bem como àtransferência de recursos públicos para o setor privado.

Quando António Guterres toma posse, 100% das crianças com ida-des compreendidas entre os 6 e os 10 anos encontram-se matriculadas no 1ºciclo, 88% das crianças entre os 10 e os 12 encontram-se matriculadas no 2ºciclo e 80% dos jovens entre os 12 e os 15 anos encontram-se matriculadosno 3º ciclo9. Regista-se uma alteração na atuação dessa equipe ministerialem relação à sua antecessora. Cavaco Silva, antecessor de Guterres, foi ogoverno das duras políticas neoliberais, que tiveram fortes resistências sin-dicais e colocaram a escola em “pé de guerra”. Assim, essa terceira via

7 Em Portugal, o Partido Social Democrata chama-se Partido Socialista (PS), e o Partido Liberalchama-se Partido Social Democrata (PSD). Essa esquerdização do nome dos partidos é umaherança da revolução que radicalizou o vocabulário.

8 O tempo das crianças na escola (em contexto de sala de aula) passou de 5 horas diárias em1980 para 8 horas diárias em 2010. Os adolescentes ficam em média 37 horas por semana emsala de aula, a mais alta taxa no quadro da EU.

9 50 anos de Estatística da Educação. Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação eInstituto Nacional de Estatística, Lisboa, 2009.

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liderada por Guterres mostra-se dialogante e em busca de consensos antesde legislar, faz pontes com as estruturas sindicais e recebe dessas poucaresistência, quando não um franco apoio.

Entre as reformas mais emblemáticas de Guterres estão a autonomiadas escolas (o que abre as portas à possibilidade de seleção do corpo docentee dos próprios alunos); a diversificação dos currículos no 3º ciclo do ensinobásico (7º, 8º e 9º anos de escolaridade) com a criação dos currículos alterna-tivos destinados a alunos com insucesso escolar; a criação em bairros pobresdas escolas em Terrenos Educativos de Intervenção Prioritária (Teip) – emque a avaliação é muito facilitada – e introdução no currículo de áreas curri-culares não disciplinares (estudo acompanhado, formação cívica e área pro-jeto). Nesse pacote de medidas, dá-se a substituição do termo objetivos porcompetências, alteração da duração do tempo de aula de 50 minutos para 90minutos. A avaliação dos alunos é alterada, havendo mais restrições para aretenção de um aluno em um determinado ano de escolaridade. Com essamedida conseguia-se também a diminuição rápida dos custos com a retençãode alunos, anormalmente elevada, fruto da rápida democratização introdu-zida na revolução, e evitava-se um investimento massivo que muitas dessascrianças e jovens necessitariam para ultrapassar as altas taxas de retenção.

Essas medidas são justificadas por um manancial de produção aca-dêmica na área das ciências da educação, fortemente dominadas pelas ideo-logias pós-modernas, que defendiam essas medidas de facilitismo nos con-teúdos como as únicas capazes de dar resposta a uma escola “inclusiva”,que teria que “valorizar os progressos que as crianças fazem nas suas apren-dizagens”. Assim, o sucesso é, para essas teorias, relativo se só pode avaliarolhando não para “a meta”, mas para o ponto de partida. Estava assimdado o mote para a criação de escolas de primeira e escolas de segunda,pondo paulatinamente fim ao ensino unificado, que permitia um acessomais democrático à formação superior.

O professor deveria, nesse contexto, avaliar todo o processo de ensi-no-aprendizagem, verificando se um aluno desenvolveu determinadas com-petências no final de um ciclo de estudos. Também são introduzidos osprincípios do “aprender a aprender” e “aprender a brincar”. Assim, fazem-se alterações nos currículos das diferentes disciplinas, de modo que os alu-nos deixem de fazer tarefas/exercícios repetitivos e /ou de memorização

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(por exemplo, deixa de ser obrigatório que os alunos do 1º ciclo saibam atabuada de cor) e que passem a fazer tarefas/exercícios que apelem mais àcooperação entre alunos, a pequenas investigações e/ou projetos, passandoa ser o aluno o principal elemento na construção do seu próprio conheci-mento em vez de ser o professor e passando esse a ser um orientador doprocesso de descoberta em vez de ser o debitador do conhecimento. Intro-duzem-se massivamente novas tecnologias, que não raramente implicam oabandono da exigência de determinados conteúdos científicos.

É dada outra importância aos conselhos de turma (conjunto dos pro-fessores que lecionam para uma determinada turma), sendo-lhes atribuídasoutras competências: deixam de ser um conjunto de pessoas que se reúneapenas três vezes ao ano para atribuir classificações, passando a ser umconjunto de pessoas que terá de orientar um grupo de alunos ao longo deum ciclo de estudos (dois ou três anos letivos), de modo que esse grupodesenvolva um conjunto de dez competências gerais. Para tal, terá que sereunir mais frequentemente e deverá iniciar o seu trabalho para elaborarum diagnóstico e com base nele fazer um Projeto Curricular de Turma(PCT). Ora, como a realidade de cada turma é diferente, também seus PCTsserão diferentes. Esse projeto terá de ser constantemente adaptado, pois asituação da turma vai se alterando ao longo do tempo. Na realidade, deixade haver uma planificação única para cada uma das disciplinas por ano deescolaridade e passam a existir tantas planificações quanto o número de tur-mas existentes em uma escola. Abre-se, nesta altura, também, a possibilidadede flexibilizar o currículo, ou seja, há um conjunto de matérias que devem serabordadas de modo a desenvolver competências específicas de uma determi-nada disciplina ao longo de dois ou três anos; a ordem pela qual se dão asdiferentes matérias passa a estar ao critério do Conselho de Turma.

Essas medidas tiveram como efeito em médio prazo um exponencialaumento da carga horária dos professores, que deixam de ter tempo parapreparar as aulas e passam de fato mais de 40 horas semanais nas escolas,ainda que cerca de quase metade delas em reuniões10. Essa medida acarreta

10 “Professores denunciam carga horária ilegal”, 22 de novembro de 2008. Disponível em: <http://www.jn.pt/PaginaInicial/Nacional/Interior.aspx?content_id=1037315>. Acesso em: 13 abr.2011.

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também a flexibilização do papel do docente, visto agora não só nem prin-cipalmente como professor, mas também como psicólogo, assistente social,orientador pessoal. Por outro lado, ela permite criar escolas com diferentesvalências – escolas de classe média onde se dá um curriculum clássico deHistória, Matemática, Português e outras onde se dá uma forma aligeiradade curriculum.

É com o governo da terceira via que se cria um novo órgão nas esco-las, a Assembleia da Escola, órgão consultivo em que há representantes deprofessores, funcionários, alunos, pais e encarregados de educação, autar-quias, agentes econômicos, culturais, entre outros. São também criados osconselhos municipais de educação, órgãos consultivos em que se pode en-contrar as escolas desses municípios (escolas públicas ou privadas de ensi-no pré-escolar, básico, secundário ou superior), as autarquias e agentes cul-turais, desportivos, econômicos, entre outros.

Esse governo tem também uma grande preocupação com o pré-esco-lar (ensino para crianças com menos de 6 anos de idade). De fato, tinhasido um setor do ensino esquecido pelos vários ministérios de Educação, eo ensino existente para essas crianças era assegurado por estabelecimentosprivados de ensino, uma parte ligados à igreja, pelas misericórdias11, pelasautarquias (freguesias e câmaras municipais), por entidades patronais (porexemplo, o Ministério da Educação dispunha de creches e de infantáriospara os filhos dos seus trabalhadores) ou por associações de cidadãos, quese tinham constituído pelos anos de 1974 e 1975 com o objetivo de encobriressa falha no sistema educativo português. Uma das medidas desse gover-no é integrar algumas escolas de ensino pré-escolar da responsabilidade dasautarquias no sistema nacional de ensino e estabelecer protocolos com al-gumas instituições privadas e/ou associações, de modo a financiar os cus-tos das crianças que lá se encontram matriculadas.

Todas essas medidas vão culminar na crescente privatização da esco-la pública. Visível sobretudo com os contratos de associação, que são per-mitidos pela legislação aprovada nos governos de Cavaco, mas realmente

11 Na sua origem histórica, irmandade que tem como missão o tratamento e sustento a enfermose inválidos.

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aplicados com Guterres. É de referir ainda que à frente de uma grande fatiadesses contratos está a igreja católica12, direta beneficiária dessas transfe-rências de dinheiros públicos13. Como indica a Tabela 1, a revolução de1974-1975 tem um impacto generalizado na diminuição do ensino privado,que só volta a crescer a partir da década de 1990. Continua a ser nos primei-ros anos de escolaridade que o ensino privado teve uma evolução constantede aumento de alunos. Porém, como consta do Gráfico 1, o financiamentoprivado é cada vez mais alto, quer em termos absolutos, quer em termosrelativos, dada a relação entre financiamento e número de turmas.

Tabela 1– Percentagem de alunos matriculados no ensino privado

Ano 1º Ciclo 2º Ciclo 3º Ciclo

1960 4,64 28,33 27,11

1965 5,10 28,41 24,54

1974 6,22 9,73 11,79

1986 6,13 9,27 9,93

1991 8,00 7,54 9,11

1995 8,72 8,10 8,90

1999 9,61 10,18 9,92

2002 10,06 11,19 11,32

2005 10,44 11,42 11,79

Fonte: 50 anos de Estatística da Educação. Gabinete de Estatística e Planeamento da Edu-cação e Instituto Nacional de Estatística, Lisboa, 2009.

12 Disponível em: <http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=84403>. Acesso em:11 jul. 2011.

13 Uma turma hoje de 25 alunos recebe do Estado no setor privado com contrato de associação80 mil euros. Disponível em: <http://www.ionline.pt/conteudo/95867-ensino-particular-go-verno-vai-pagar-80080-euros-turma-e-ano-partir-do-proximo-ano-letivo>. Para ver a legislaçãoacessar: <http://www.min-edu.pt/data/Portaria_1324_A_2010.pdf>.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Gráfico 1 – Evolução do Financiamento das Escolas com Contrato deAssociação

Em 1999, é reeleito um governo PS, que dá continuidade às políticasanteriormente enunciadas. Mas, no final dos anos 1990, assiste-se às pri-meiras críticas com impacto público em relação às consequências dessaspolíticas, nomeadamente no que diz respeito ao facilitismo da escola e àperda da autoridade dos professores, a que se associam os primeiros casospúblicos de violência grave.

O resultado internacional de Portugal no Programa para AvaliaçãoInternacional de Estudantes (Programme for International Student Assess-ment – Pisa) é desolador, apesar de ligeiros progressos14. Em 2011, o resul-tado dos exames nacionais mostrou que mais de 60% dos alunos reprova-ram em Matemática e 40% no Português15.

As críticas ao facilitismo científico da parte dos partidos políticossurgiram até 2007, quase exclusivamente dos setores ligados à direita con-

14 Disponível em: <http://www.oecd.org/dataoecd/11/40/44455820.pdf>. Acesso em: 4 jul. 2011.15 Disponível em: <http://www.examesnacionais.org/resultados-dos-exames-nacionais-2011/>.

Acesso em: 15 jul. 2011.

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servadora e liberal (CRATO, 2006) e desresponsabilizavam as políticas finan-ceiras para a educação, centrando-se nas questões legais, disciplinares e san-cionatórias, bem como na exigência de mais rigor nas avaliações e introdu-ção de exames nacionais no final de cada ciclo de ensino (nos 4º, 6º, 9º e 12º).

Porém, em 2007 e 2008, surge socialmente um movimento novo einesperado.

Escola de qualidade e democrática

Em 2005, é eleito um novo governo, liderado por José Sócrates, doPartido Socialista, que escolhe para titular da pasta da Educação Maria deLurdes Rodrigues, socióloga. Essa equipe ministerial vai fazer uma drásti-ca redução de salário dos professores, precarizando as suas condições labo-rais, aumentando nas escolas o número de professores com contratos a pra-zo. Vai impor um modelo de avaliação dos professores, que impede o aces-so ao topo da carreira à maioria dos professores. Até aqui, a progressão nacarreira dava-se por idade; agora passa a depender de uma avaliação pelosseus pares dentro da escola, e o acesso aos lugares de topo da carreira, logo oacesso ao máximo salarial, respeita um número de cotas muito reduzido.

Lurdes Rodrigues decreta, com sucesso, o fim da gestão democráticadas escolas com o regresso do diretor à escola e o fim dos conselhos direti-vos. Criam-se mega-agrupamentos de escolas (juntar escolas e serviços deestabelecimentos de ensino com uma proximidade geográfica) e procede-seao encerramento de “escolas de insucesso” (escolas com menos de dez alu-nos, situadas em contextos culturais desfavorecidos). Cria-se a Escola aTempo Inteiro (no 1º ciclo são criadas Atividades de Enriquecimento Cur-ricular: Inglês, Estudo Acompanhado e outras, de modo que as escolas es-tejam abertas entre as 8h e as 18h/19h ou mesmo 20h).

Essa política vai ser acompanhada por uma campanha de desvalori-zação da figura do professor, retratada em órgãos de comunicação de mas-sa como um trabalhador “preguiçoso”, que “apenas trabalha meia dúzia dehoras por semana”, que “goza de muitas férias”, que “faltava muito” e quese “aposentava muito jovem”.

A reação a esses diplomas é inesperada. Entre o final de 2007 e oinício de 2008 começam a surgir movimentos espontâneos de professores,

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

organizam-se em blogs de internet (como a Associação de Professores eEducadores em Defesa do Ensino, o Movimento de Unidade e Mobiliza-ção dos Professores, o PROmova16, entre outros) e convocam ações re-lâmpago contra o governo – em pequenas cidades a visita da ministra ou doprimeiro-ministro é confrontada com uma manifestação de professores;começam a fazer assembleias de professores noturnas ou em horário pós-laboral. Grande parte desses movimentos surge no centro e no norte dopaís, mas rapidamente se alastram para todo o território nacional. Em seismeses, Portugal olhava surpreso para um novo e pujante movimento social:o movimento dos professores.

As organizações sindicais levam tempo para dar uma reposta, masem 2008, perante o fato de que esses movimentos cresciam, aceitam convo-car uma manifestação. Dia 8 de março de 2008, o país surpreendeu-se. Emuma categoria que tem ao todo 140 mil docentes, 100 mil estavam na mani-festação. Nesse ano, uma nova manifestação é convocada para novembro ede novo junta mais de 120 mil professores. O governo estava em risco, colo-cando contra si toda uma categoria com forte impacto social.

As políticas drásticas de redução de custos tinham aberto as portas auma discussão de fundo, com alcance de massas, sobre o papel da educa-ção pública. Os professores tinham chegado a um leque de questões quediscutiam a escola pública de forma estrutural. Questionavam o papel dodiretor visto como braço político do governo, que impõe as suas ideias, queescolhe os presidentes de departamento (que coordenam os trabalhos devárias equipes disciplinares) e que avalia os docentes; questionavam umaescola onde as crianças permanecem 9, 10 ou 11 horas com atividades deacompanhamento enquanto os pais trabalham em dois ou três empregos,ficando assim a educação de uma criança entregue quase em exclusivo aosprofessores; uma escola que avalia os docentes em função dos resultadosescolares que atribui a seus alunos; uma escola que obriga crianças comidades compreendidas entre os 6 e os 10 anos de idade a deslocar-se váriosquilômetros para frequentar uma escola em uma aldeia vizinha apenas por-que a sua escola tinha menos de dez alunos; questionavam uma escola que

16 Sigla de um movimento de defesa dos direitos dos professores e da qualidade da escola pública.

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sobrecarrega os professores com reuniões e trabalho burocrático; uma es-cola que deixa cair o “ensinar” e o “aprender” como uma das funções maisimportantes e nobres do ensino. Na cabeça desses movimentos estão osprofessores titulares, aqueles que já estavam no topo da carreira e quase aaposentar-se, mas que parecem dar corpo a um sentimento de revolta con-tra o abandalhamento da escola pública.

Essa equipe ministerial começou por ter um grande apoio dos pais eencarregados da educação, tendo tido na pessoa do presidente da Confede-ração Nacional de Associações de Pais e Encarregados de Educação (Con-fap) um fervoroso adepto, mas, no final do mandato, essas políticas levam auma cisão na Confap e a um franco desgaste da ministra, substituída em2009.

Porém as manifestações e greves desses anos vão esbarrar na inérciae mesmo no boicote sindical. Os sindicatos fazem um acordo de negocia-ção mínimo, o Memorando de Entendimento, assinado em 17 de abril de200817, que obriga os professores a recuar nas posições reivindicativas, cen-trando-se na negociação salarial e abandonando qualquer discussão sobrea qualidade do ensino. Essas negociações são fortemente criticadas pelosmovimentos que, contra elas, convocam uma manifestação, em 15 de no-vembro de 2008, que junta 15 mil professores. Foi a maior manifestação desempre convocada em Portugal à margem dos sindicatos, mas não foi sufi-ciente para impedir a progressão dessa política.

Notas conclusivas

A educação pública está em uma encruzilhada em Portugal. Aindano rescaldo das mobilizações de professores de 2007 e 2008, as maiores detoda a Europa, vive-se, porém, aquilo que pode ter sido também uma der-rota significativa. Perderam-se oportunidades de trazer o debate da quali-dade do ensino para dentro da escola pública e questionar as fundações daeducação no quadro da atual fase de desenvolvimento do capitalismo por-tuguês.

17 Disponível em: <http://www.fenprof.pt/Download/FENPROF/SM_Doc/Mid_115/Doc_3337/Anexos/Memorando%20entendimento.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2011.

VARELA, R.; DUARTE, S. • Paixão pela educação... privada – Educação e terceira via em Portugal

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A escola de hoje é uma escola onde o impacto da política de impor-tantes setores da burguesia se faz sentir de forma drástica, com uma resis-tência relativamente ineficaz por parte dos setores que objetivamente ne-cessitam da escola para adquirir instrumentos de mobilidade e emancipa-ção social. Portugal, como país essencialmente de serviços e de turismo,tem adaptado a escola pública a um ensino de fraca qualidade, em que odomínio tecnológico se impõe ao saber científico, deixando bolsas de ensi-no privado (e algumas públicas) para formação de quadros altamente espe-cializados. Ela é uma escola onde as políticas de redução de custos têmefeitos drásticos: concentram-se escolas, aumenta-se a carga horária dosprofessores, aumenta-se o financiamento público das escolas privadas, au-menta-se o número de alunos por turma, aumenta-se drasticamente o nú-mero de horas das crianças em recinto escolar. Tudo isso acompanhado deresultados científicos e sociais medíocres.

Essa redução da escola a uma função, que em vez de emancipatóriareproduz socialmente os papéis sociais previamente existentes e usa a esco-la como um mecanismo de formação da força de trabalho para adequar aosistema econômico vigente, privando os alunos do conhecimento como valorhumano de per si, é o grande problema que está colocado aos movimentossociais, de professores e de pais. Esses movimentos terão de lidar aindacom um problema central das sociedades ocidentais do pós-guerra, o hiatoque existe entre os objetivos e o funcionamento das estruturas sindicais,burocratizadas, e os anseios objetivos de quem protagoniza as resistências(REGINI, 2007, p. 562).

No caso português, é patente que os sindicatos não só estão burocra-tizados, como respondem de forma distinta a governos liberais e a gover-nos social-democratas com políticas liberais, tendo deixado uma margemde atuação e mesmo apoio que levou essas políticas a serem aplicadas commais sucesso pelos governos do Partido Socialista.

Estamos perante um enorme desafio. A escola pode e deve ser umlugar de conflito social onde os trabalhadores adquirem instrumentos quelhes permitem contribuir para a sua própria emancipação. Mas para isso énecessário, entre outros fatores, estabelecer de forma clara qual o papel doprofessor – se um cientista que transmite saber, se um trabalhador que se

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desdobra em múltiplas funções de educador, assistente social, psicólogo,quase um “guardador de crianças”, um turbotrabalhador que, com tensões,tapa as feridas de uma sociedade em permanente conflito objetivo.

Em uma escola livre, pública, universal, de qualidade, o professortem o papel de, nas palavras de Demerval Saviani, “elevar os alunos donível não elaborado, do nível do conhecimento espontâneo, de senso co-mum, para o nível do conhecimento científico, filosófico, capaz de compre-ender o mundo nas suas múltiplas relações” (SAVIANI, 2008).

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

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Las actividades de extension en el marcode la “responsabilidad social universitaria”

y las politicas de “tercera via”1

Susana E. ViorLaura R. Rodríguez

La extensión y el nuevo paradigma de laresponsabilidad social universitaria

En Argentina las universidades públicas reconocieron la importanciade la cuestión social apenas iniciado el siglo XX, desarrollando acciones deextensión aun antes de la Reforma Universitaria de 1918, movimiento queconsagró a esta actividad como uno de sus principios doctrinarios. En cadaperíodo histórico las actividades extensionistas fueron cambiando su sentidoy contenido, acompañando la evolución de las concepciones sociales y delas funciones asignadas a la Universidad, así como la historia particular decada institución. La experiencia fundacional de la Universidad Nacionalde La Plata, a través de las Conferencias de Extensión Universitariaorganizadas por Joaquín V. González, estuvo inspirada en las actividadesde la Universidad de Oviedo dirigidas a los trabajadores mineros ycampesinos. La Reforma de 1918 concibió la extensión como herramientaprivilegiada de una Universidad atenta a la cuestión social, la ligó parasiempre a las preocupaciones del movimiento estudiantil2.

1 Una primera versión de este trabajo fue presentada en el XX Seminario Internacional deInvestigadores de Formación de Profesores del Mercosur/Conosur. Universidad de Concepción/Universidad Católica de la Santísima Concepción. Chile, Noviembre de 2012.

2 La extensión fue incorporada en varios proyectos de ley originados en diputados de la UniónCívica Radical en la década de 1940; uno de ellos (1946) hacía de la extensión una actividadorgánica y obligatoria tanto para profesores como para alumnos, proponiendo un organismoespecial de coordinación con la participación de sindicatos. Por el contrario, las dos leyes

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

En el plano internacional, entre 1960 y 1990, la UNESCO se constituyóen un organismo promotor, en todos los países miembro, del entoncesdenominado “servicio social universitario”, en estrecha relación con losparadigmas centrados en la promoción del desarrollo, el interés por la relaciónentre educación y trabajo, y la democratización de la educación en el mundocapitalista occidental, enfrentado a las experiencias de los países socialistas3.En 1976, la Conferencia General de la citada organización,adoptó unaresolución para promover el servicio en la enseñanza superior, y apoyó larealización de estudios sobre experiencias nacionales de servicio socialcomunitario entre 1978 y 1982. La concepción de la extensión eraconsustancial a la vigencia de la “Sociedad Salarial” y por lo tanto estabafuertemente vinculada con el trabajo como factor de realización humana ycon concepciones profesionalizantes que, reconociendo la existencia decarencias en la relación Universidad y Sociedad, valoraban positivamente lacontribución realizada por las instituciones al desarrollo económico y elprogreso de las sociedades nacionales. Esta idea de “la Extensión comoservicio”, comprendía a todas “las actividades realizadas por los estudiantesen beneficio de la comunidad, que al mismo tiempo constituyen parte de suformación profesional y cívica” (UNESCO, 1984, p.1). Se resaltabanespecialmente los beneficios del “servicio social universitario” para los paísesen desarrollo:

Como dichos países tratan de disminuir las diferencias existentes entrecomunidades urbanas y rurales, entre sectores modernos de la economía ysectores tradicionales, el servicio social universitario contribuye a reducirlas discrepancias que existen entre quienes reciben educación y quienes no

universitarias sancionadas durante el primer y segundo gobierno de Juan D. Perón ( Ley 13.031/47 y 14.297/54) no contenían apartados específicos que regularan la actividad de extensión,aunque estaba mencionada entre las funciones de las universidades, y como responsabilidad delos Consejos Directivos.

3 El interés por la cuestión social por parte de los organismos internacionales de cooperación enel contexto de “Guerra Fría” era explícito: “El servicio social universitario está unido en granparte al esfuerzo realizado para hacer participar a los estudiantes y, en términos más generales,a las instituciones de enseñanza superior en general, en el progreso de la nación, y para relacionarla teoría con la práctica. Como tendencia, comenzó a manifestarse a partir de situacionesespecíficas, por ejemplo, la de los países socialistas en un momento dado de su desarrollohistórico, como consecuencia de sus esfuerzos por transformar la sociedad y crear nuevos valoreshumanos unidos a la plena realización del individuo” (UNESCO, 1984, p. 1).

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la reciben; contribuye, además, a una mejor implantación de las institucioneseducativas dentro de la comunidad a que pertenecen. El servicio socialuniversitario puede lograr que los estudiantes que participen en esaexperiencia se integren más a la nación y se conviertan en agentes activosdel desarrollo (UNESCO, 1984, p. 6).

En ese marco general de ideas, en los ´50 y ’60 Risieri Frondizi,rector de la Universidad de Buenos Aires (UBA), renovó el compromisodoctrinario al reconocer, como misiones universitarias “la preservacióndel patrimonio cultural, investigación científica, formación deprofesionales y misión social”; impulsó las importantes experiencias delDepartamento de Extensión Universitaria de la UBA entre 1956 y 1966,cuyos proyectos lograron articular, política y metodológicamente, lospostulados de la pedagogía crítica y de la educación popular, en el marcode una crítica estructural de la sociedad vigente (BRUSILOVSKY, 2000,p. 29). Durante el tercer gobierno peronista (1973-1976), estas actividadesfueron resignificadas, el compromiso social recibió nuevos impulsosprovenientes de un inestable bloque de poder en el que tuvieronparticipación las fuerzas de izquierda, y la extensión fue un componentefundamental de las reivindicaciones y programas de las organizacionesestudiantiles, apareciendo en la definición misma de la Universidad en laLey Universitaria N° 20.654/744.

La crisis del Estado de Bienestar y la aparición del neoliberalismo enla escena internacional a partir de los ´70, combinados con el dramáticociclo de dictaduras e inestabilidad política, significaron el deterioro denuestras universidades y el desmantelamiento de las actividadesextensionistas. Como sintéticamente lo expresaba la introducción al informesobre una experiencia de Servicio Social Universitario en educación deadultos realizada a lo largo de 1986 por la Universidad Nacional de Luján(Argentina) (UNLu, 1989, p. 11):

4 Dice el art.1° de la Ley: “Las Universidades Nacionales son comunidades de trabajo que integranel sistema nacional de educación en el nivel superior con el fin de impartir enseñanza, realizarinvestigación, promover la cultura nacional, producir bienes y prestar servicios con proyecciónsocial y, haciendo los aportes necesarios y útiles al proceso de liberación nacional, contribuir ala solución de los grandes problemas argentinos”.

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Salvo el período de 1973-1974, en el que se procuró vincular a la universidadcon los sectores populares, los años de la dictadura militar la mantuvierondistanciada de este tipo de práctica. Es por eso que en este trabajo se hacereferencia a “volver a empezar”: fue posible retomar esta función, repensarlay proponer nuevas formas de trabajo pedagógico.

Así, recuperada la democracia en los ´80, los impulsos dereconstrucción de la Universidad incluyeron la demanda por recuperar elcompromiso con la problemática social. Ese “volver a empezar” se expresóen varios proyectos de ley universitaria presentados en el Congreso Nacionaldurante el gobierno Radical (UCR) de Raul Alfonsín. El proyecto de laDemocracia Cristiana (Proyecto Auyero –Gonzalez – Aramouni)denominado “Régimen de las Universidades Nacionales”, incluyó unartículo sobre el “Servicio Social”:

Los graduados universitarios deberán realizar un servicio social comunitarioorganizado por el principio de la solidaridad social. Las modalidades delmismo así como su temporalidad (que nunca será inferior a un año de laboro su equivalente en horas de trabajo –mil horas–) serán organizados en cadauniversidad por el Departamento de Servicio Social Comunitario, tomandoen cuenta las orientaciones producidas por la Coordinación InteruniversitariaNacional (DIP, 2008, p. 301).

Dicha Coordinación, asimilable al actual CIN –ConsejoInteruniversitario Nacional– tenía como una de sus responsabilidades“[p]roducir los lineamientos globales para el diseño del servicio socialcomunitario en cada universidad y coordinar los distintos programas deintervención” (idem, p. 300). En la fundamentación del proyecto, se proponíaimplementar el Servicio “desplegando un conjunto de actividades bajo laforma de diversos programas de promoción e intervención social,cuidadosamente diseñados con el concurso de los beneficiarios, losorganismos estatales pertinentes así como las representaciones comunitarias,regionales y zonales” (ídem, p. 309). El Proyecto del Diputado Freytes, delPartido Justicialista, reservó un Capítulo a la función de Extensión, y otroa la organización de un Servicio Social obligatorio para los graduados, desentido similar al proyecto demócrata cristiano, aunque con característicasorganizativas diferentes y como condición para el otorgamiento del títulohabilitante. De esa manera se esperaba formar egresados “con concienciade su pertenencia a una sociedad, que posibilitó su realización académica yprofesional”, así como también profesionales “imbuidos de vocación de

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servicio a partir del conocimiento directo de la problemática social en elámbito de su especialidad” (ídem, p. 51).

Estos debates cambiaron de rumbo cuando se inició la contrarreformaneoconservadora del menemismo. En una primera etapa, hasta mediadosde los años ’90, la responsabilidad social de la Universidad fue doblementereinterpretada: primero, vinculándola a la necesidad de modernización delas instituciones para constituirlas en promotoras de la inserción competitivadel país en los mercados globales de bienes tangibles e intangibles, líderesdel cambio tecnológico, formadoras de recursos humanos de nuevo tipo, delos “emprendedores” y “productores de conocimiento” demandados por elmercado; en segundo lugar, relacionándola con la rendición de cuentas, laeficiencia y la recuperación de costos, demandas asociadas a laprofesionalización de la gestión bajo el modelo empresarial y la introducciónde principios mercantiles y competitivos. En ese marco, la extensión quedóopacada frente a la importancia dada a los servicios de transferencia. En eldiscurso internacional sobre la responsabilidad social de la Universidad, laconcepción de la “Extensión como servicio” dio paso a la de la “Extensióncomo devolución”, ligándola –como era habitual en la explicaciónneoliberal– a la inexorable marcha del cambio técnico, la globalización y latransición hacia la “Sociedad del Conocimiento y la Información”; unadesarticulación entre esas “nuevas demandas” y la respuesta de universidades“masificadas” y poco dispuestas a rendir cuentas por el uso de recursospúblicos cada vez más restringidos, pasó a ser argumento central endiagnósticos sobre la “pérdida de credibilidad y prestigio” de lasuniversidades. Se operó un “giro copernicano”: “[e]n lugar de examinar elcarácter fundamental de la enseñanza superior desde dentro del entornouniversitario como una especie de derecho adquirido”, se debían

definir las condiciones esenciales para que las universidades puedan satisfacerlas expectativas de la sociedad. Se evaluarán las consecuencias que acarreanlos desafíos derivados de las tensiones y expectativas que están empezandoa proclamar la sociedad para la libertad académica y la autonomíauniversitaria. (NEAVE, 1998, p. 9)

Estos rasgos se acentuaron a fines de la década de 1990, cuando elneoliberalismo sufrió una readaptación a nivel internacional. La evidenciade los límites del mercado como mecanismo regulador y base de cohesión

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social, la crisis asiática y la creciente polarización y exclusión socialacarreadas por el proyecto original, impulsaron la búsqueda de una nuevaarquitectura institucional para la sociedad de mercado. El Estado volvió aser convocado para desempeñar un papel central en la “gobernanza”,entendida como instrumento para la armonización social y reducción delos conflictos por medio del diálogo y el consenso; la “sociedad civil” fuellevada al centro de la escena, como espacio plural y contrapeso necesariode los efectos negativos del mercado, lugar por excelencia de la solidaridadasociativa y la diversidad, representada por las ONG´s, y la valorización deun modelo de política social basado en el fomento de las iniciativas privadaspara resolver problemas públicos, con apoyo del Estado. En este contexto,las categorías de “inclusión / exclusión” se transformaron en el núcleo delas preocupaciones y desplazaron a la interés por la democratización. Porejemplo, para Neave (1998, p. 5)

el principal y constante desafío con que se enfrentan las universidades a partirde ahora consiste en mantener un equilibrio acertado entre la presión para elcambio que dimana del proceso de desarrollo técnico como mundializacióny las tensiones generadas en la sociedad civil debido a las repercusiones dela transformación económica y tecnológica en la estructura de la sociedad.Se trata de una labor delicada que nunca concluye. Aparece como una funciónadicional que incumbe a la universidad precisamente porque es el agente y elbeneficiario de la transformación económica y tecnológica. Pese a ello, estatarea sigue siendo delicada, ya que recubre obligaciones tradicionales al servirde medio de entendimiento entre culturas y comunidades diferentes y corregiren la medida de lo posible los desquilibrios sociales derivados de la pobreza,la exclusión y los conflictos.

El discurso internacional sobre el papel de las universidades y surelación con la sociedad acompañó esta evolución, perceptible en los cambiosconceptuales presentes en las declaraciones de distintos foros internacionalesentre la segunda mitad de los ’90 y la primera década del siglo actual. Asíen la “Declaración Mundial sobre la Educación Superior en el Siglo XXI:Visión y Acción”, dada en la Conferencia Mundial sobre Educación Superiorde la UNESCO de 1998, se afirmó que la “educación superior debe reforzarsus funciones de servicio a la sociedad, y de un modo más concreto susactividades deben ser encaminadas hacia la erradicación de la pobreza, laintolerancia, la violencia, el analfabetismo, el hambre, el deterioro del medioambiente y las enfermedades, principalmente mediante un planteamiento

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interdisciplinario y transdisciplinario para analizar los problemas y lascuestiones planteadas”. Nueve años después, la Declaración del CongresoInternacional de Rectores Latinoamericanos y Caribeños realizado en BeloHorizonte (Brasil, 2007), “El compromiso social de las universidades deAmérica Latina y el Caribe”, propuso:

Promover un salto cualitativo en el compromiso social de las Universidades,estimulando la producción de cambios estratégicos, tales como:– Del voluntariado y la filantropía, al compromiso ético con la justicia social

y el ejercicio de derechos.– De la acción coyuntural, dispersa y episódica, a las líneas programáticas

de largo alcance.– De la realización de actividades de compromiso social por áreas de bajo

nivel jerárquico de las instituciones, a su incorporación en las propiasmisiones institucionales.

– De la acción aislada y sectorial, a las sinergias en función de proyectos depaís.

– De la extensión como servicio de transferencia, a los encuentros sociales,el diálogo de saberes, la construcción de conocimiento pertinente, laparticipación en proyectos sociales no excluyentes.

La “Extensión como devolución” es coherente con los valores delparadigma neoliberal, que sustituye la “igualdad” por la “equidad” en unasociedad que naturaliza las diferencias, y que responsabiliza a la Universidady a los universitarios por “devolver” y “compensar” a los sectoresempobrecidos por ese mismo modelo. Cabe considerar que esta nueva“agenda” del compromiso social de la Universidad ha sido influenciadapor el paradigma de la Responsabilidad Social Universitaria (RSU),transferencia, a las instituciones académicas del modelo de “ResponsabilidadSocial Empresaria” (RSE) generalizado en la segunda mitad de los ’90 en elámbito corporativo5. La RSU pretende constituirse en una “línea rectora

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5 Robert Reich (2008, p. 2) sintetiza con claridad la forma en que se difundió el paradigma de laResponsabilidad Social Empresaria, actualmente “un tema candente en las escuelas de negocios[…] Hacia 2006, más de la mitad de los planes de estudio de las maestrías en administración denegocios exigían a los alumnos al menos un curso sobre la temática. Más del 80% de las agenciasde empleo afirman que los graduados de las escuelas de negocios tienen que demostrarconocimiento del asunto y reconocer su importancia. Anualmente es tratada en centenares deconferencias empresarias, y decenas de miles de ejecutivos escuchan atentamente a consultoresexplicar la importancia de la RSE y cómo las empresas pueden ofrecer evidencias de sucompromiso. Los CEOs y ejecutivos que se reúnen anualmente en el Foro Económico Mundialde Davos (Suiza) discuten y solemnemente proclaman su adhesión al nuevo paradigma”.

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que define de manera muy clara el componente ético y dirige la gestión delas funciones sustantivas en general hacia objetivos comunes, con una visióncompartida por la comunidad universitaria, que permite que lasuniversidades puedan ir construyendo, desde su planificación, ejecución deprogramas, proyectos y evaluación, directrices que respondan a un modeloeducativo con mayor pertinencia social” (TORRES PERNALETE et al,2010, p. 84).

Del mismo modo que en los ´90, los organismos internacionalesdifundieron el modelo neoliberal de Universidad, paradigma promovidoen A. Latina por el BID y la OEA, a través de la Iniciativa Interamericana deÉtica, Capital Social y Desarrollo, dirigido por de Bernardo Kliksberg,responsable entre 2005 y 2011 de la RED (Red Universitaria de Ética yDesarrollo Social), para la implementación de un Programa de Apoyo aIniciativas de Responsabilidad Social Universitaria, Ética y Desarrollo destinadoa docentes de la región. Dicho programa proveyó asistencia técnica,materiales didácticos, herramientas de diagnóstico, capacitación ycertificación. En ese marco, el Departamento de Desarrollo Humano de laOEA ofreció seis ediciones del Curso Virtual “¿Cómo Enseñar Ética, CapitalSocial y Desarrollo en la Universidad?”, dirigido a la formación de docentescomo promotores de la propuesta, no sólo “en su trabajo diario en el aula,sino también en la estrategia organizacional de Responsabilidad Social ensus centros de estudios”6. Igualmente importantes fueron las iniciativas dediversas ONG´s, como por ejemplo la española Sin Fronteras, que patrocinóla organización -en nuestro país– de una Red Nacional de Programas deVoluntariado Universitario de instituciones públicas y privadas, y organizóun Primer Encuentro en 2004. Entrelazando en forma compleja ysuperpuesta diversidad de iniciativas, grupos, personas, empresas, ONGs ygobiernos, las universidades argentinas se incorporaron a proyectos, planesy discusiones que materializaron la nueva agenda: la Red Iberoamericanade Universidades por la Responsabilidad Social Empresarial (RedUniRSE)(2006, impulsada por la Facultad de Ciencias Económicas de la UBA); la

6 http://www.educoas.org/portal/ineam/cursos_2008/ETICA-E103_08.aspx?culture=es&navid=241.

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Red GUNI (Global University Network for Innovation), creada conjuntamentepor la UNESCO, la Universidad de las Naciones Unidas (UNU) y laUniversidad Politécnica de Cataluña (UPC) en 1999; o la REDIVU, RedIberoamericana de Voluntariado Universitario para la inclusión social,constituida formalmente en el II Congreso Internacional de VoluntariadoUniversitario (2008, República Dominicana, con financiamiento de PNUD).

La difusión que estas ideas alcanzaron entre el cuerpo académico denuestro país se refleja en el crecimiento de la participación en los CongresosNacionales de Extensión de la Educación Superior (1997 y 1998), luegodenominados “de Extensión Universitaria”, (el II se realizó en la U.N. deMar del Plata en 2006; III en U.N. del Litoral en 2009, el IV en U.N. deCuyo en 2010, y el V en 2012 en la U.N.de Córdoba7). Algunos sectores delsindicalismo docente, como por ejemplo los nucleados en la Confederaciónde Docentes Universitarios (CONADU), han producido documentos dondese manifiesta el compromiso con estas nuevas concepciones, evaluando que:

En estos últimos años postneoliberales, aún cuando hay múltiples intentosde acercamiento de la Universidad a su Sociedad, continúa permaneciendomuy distante y, muchas veces, en disputa con ella; por ello, creemos quetodavía debe transitar un largo camino para convertirse en verdadero vehículoque impulse la superación de las profundas desigualdades por las queatraviesan los países que integran la región. Por lo expresado, presentamoseste trabajo como una herramienta política que contribuya a reflexionar sobrela posibilidad de transformación de la Universidad y de la Sociedad”(CECCHI et al, 2009, p. 12)

Según Vallaeys (2007, p. 2), uno de los expertos internacionales máscitados: “La Responsabilidad Social Universitaria es una nueva filosofíade gestión universitaria que pretende renovar el compromiso social de laUniversidad al mismo tiempo que facilitar soluciones innovadoras a losretos que enfrenta la educación superior en el contexto de un mundoglobalizado pero insostenible en sus patrones de ‘Desarrollo’” [la negritaes nuestra]. Una de sus características definitorias es la pretensión de“integrar transversalmente las iniciativas de responsabilidad social en el

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7 Bajo el lema “Sus aportes a los Derechos Humanos y al Desarrollo Sustentable”, este Congresoconvocó a más de 1000 participantes y 600 expositores.

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sistema de gestión de la organización”, como un enfoque que atraviesa elplan estratégico de las instituciones (VALLAEYS, 2009, p. 3). Queda asídefinida como una herramienta de gestión y, como tal, se expresa medianteconceptos tecno-empresariales tales como: evaluación de impactos, alianzasestratégicas, capital social, gestión del conocimiento, y realiza un análisisdel tejido social en términos de equipolentes “partes interesadas” (stakeholderso “públicos”). Es probable que sean estos rasgos los que generaron,prontamente, cuestionamientos y reparos: Dias Sobrinho (2008), entre otros,ha buscado despegar la RSU de la RSE, aunque el esfuerzo se ha centradoen los aspectos doctrinales, en una crítica a las aplicaciones más groseramentemercantilizadas, y en una preferencia por el uso de los términos de“compromiso social” antes que de “responsabilidad social”.

El nuevo paradigma de la RSU, la extensión ylas políticas gubernamentales en Argentina

En los últimos diez años, las políticas universitarias gubernamentalesse han ido alineando según este nuevo paradigma, mediante la inclusión deprogramas de financiamiento específicamente dirigidos a la Extensión. En2006 la Secretaría de Políticas Universitarias inició el Programa Nacional deVoluntariado Universitario, que asigna fondos de manera competitiva para laimplementación de proyectos. A partir de ese momento se han realizadoocho convocatorias, dos de las cuales (2009 y 2011) estuvieron articuladascon otros Programas del Ministerio de Educación Nacional (EscuelaSecundaria y Conectar Igualdad, respectivamente). Para su implementaciónse organizó un Banco de Evaluadores y se realizaron de EncuentrosRegionales.

Debemos aclarar que, si bien la creación del Programa es mostradacomo indicador de la importancia que ha asumido la RSU como política deEstado, sólo ha representado entre el 0,7 y el 1,2% de las transferenciastotales del Tesoro Nacional a las Universidades Nacionales.

Otro Programa con un componente dedicado a la Extensión es el dePromoción de la Universidad Argentina, cuya misión principal es “promoverlas actividades de las universidades argentinas en el exterior en consonancia

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con los intereses estratégicos de la Nación, así como el fortalecimiento dela relación Universidad-Sociedad y el ejercicio de ciudadanía”8. Incluye uncomponente destinado a lograr que “el marco filosófico de este campo detrabajo se sustente en una concepción participativa y formativa”, alentando“la presentación de proyectos relativos a temáticas ambientales, de género,de comunidades aborígenes u originarias, de circuitos culturales y turísticosy de preservación del patrimonio nacional y la conformación de mecanismosasociativos interinstitucionales”9.

La estructura de la Secretaría de Políticas Universitarias, creada en1993, así como sus responsabilidades, también fueron modificadas para suadecuación a las ́ nuevas´ concepciones. Vale recordar aquí, que la extensiónno fue mencionada en las acciones originalmente asignadas a la Secretaría.Recién el Decreto 357/02, modificatorio del organigrama del Ministeriode Educación, la menciona en uno de sus objetivos: “1. Entender en laelaboración y evaluación de planes, programas y proyectos de desarrollodel sistema de educación superior universitaria y promover la evolución ymejoramiento de la calidad de la enseñanza, la investigación y la extensión”.

Habrá que esperar a diciembre de 2011 para la creación de un espacioespecífico, la Dirección Nacional de Desarrollo Universitario y Voluntariado,dentro de una flamante Subsecretaría de Gestión y Coordinación de PolíticasUniversitarias, al que se asigna, entre otras responsabilidades, la de“Promover la vinculación de las Universidades públicas con las necesidadesde la comunidad e incentivar el compromiso social de los estudiantes através del voluntariado” y “Promover la función social de la universidad,integrando el conocimiento teórico y práctico con el desarrollo nacionalarmónico y equitativo” (Decreto 2084/2011).

También se ha transformado el tratamiento de las temáticas de laExtensión y el enfoque de la misión social de la universidad en el ConsejoInteruniversitario Nacional, organismo, con funciones de coordinación yconsulta, que agrupa a los Rectores de las universidades públicas. En los

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8 http://www.portales.educacion.gov.ar/spu/promocion-de-la-universidad-argentina.9 http://www.portales.educacion.gov.ar/spu/promocion-de-la-universidad-argentina/areas-

prioritarias/. No hemos podido acceder a información sobre los recursos asignados a proyectosespecíficos de Extensión dentro de este Programa.

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´90, la preocupación fundamental, respecto de la Extensión, fue sujerarquización, reclamo de un financiamiento acorde y discriminado delresto de las funciones universitarias, y su inclusión entre los antecedentes aconsiderar en los procesos de categorización y evaluación de docentes einvestigadores. En 2009, alineándose con las políticas oficiales, el CIN creóla REXUNI, “Red Nacional de Extensión Universitaria”, en cuyo marcose realizan relevamientos, acuerdos sobre líneas estratégicas de trabajocomún, y reclamos reiterados al Estado respecto de la necesidad definanciamiento regular, suficiente y específico (Acuerdo Plenario 711/09).En 2012, por Resol 692, el Ministerio de Educación se comprometió a

ARTÍCULO 1°.- Sugerir a las Universidades e Instituciones de EducaciónSuperior Nacionales y Privadas que integren el Sistema de EducaciónSuperior de nuestro país que en las instancias de evaluación docente para eldesarrollo de la carrera docente universitaria, otorguen una valoraciónespecífica y positiva a los postulantes que, además del dictado de clases,desarrollen tareas de investigación, extensión, vinculación y transferenciadel conocimiento; guía o acompañamiento en las acciones de voluntariadoque realicen los estudiantes.

estableciendo explícitamente que las actividades de extensión “legítimas”serían “aquellas que tengan reconocimiento por la propia instituciónuniversitaria y/o integren convocatorias de la SECRETARIA DEPOLITICAS UNIVERSITARIAS de este Ministerio”.

La Profesión Académica: los aspectos formativosy los efectos re-modeladores de las políticas

de extensión en el marco de la RSU

Si bien la que antecede constituye una apretada síntesis del estado desituación, esperamos que brinde sustento suficiente para llamar la atenciónsobre algunos efectos preocupantes de estas políticas, que se constituyeronen herramientas que re-modelan el trabajo y la profesión académica.

Procuramos mostrar que el paradigma del Compromiso SocialUniversitario ha dado lugar a acciones educativas destinadas a generarnuevos perfiles académicos y nuevas formas de pensar. La lectura cuidadosade los documentos elaborados en el país por sus promotores muestra una

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recuperación caprichosa de la rica historia de la Extensión y del debatesecular dentro de la Universidad pública respecto de la cuestión social,pretendiendo refundarla casi ex nihilo bajo nuevos códigos difundidosinternacionalmente. La interesante reivindicación de los componentespedagógicos de la Extensión, es decir, su valor en la formación de losestudiantes, es redefinida dentro de un “paradigma de la Cognición Situada”,remozando formas de enseñanza y aprendizaje de importante tradición enámbitos académicos, tales como el aprendizaje centrado en la solución deproblemas auténticos, el análisis de casos, el aprendizaje por proyectos, lasprácticas en contextos reales, el aprendizaje en servicio, las simulaciones oel aprendizaje mediado por las TICs (CECCHI et al, 2009, p. 90 y ss.). Elénfasis en el nuevo modelo de responsabilidad social de la Universidad,asimilable al concepto de “Extensión como devolución”, continúa basándoseen una crítica que, como en los ´90, denuncia la desvinculación entreuniversidad y sociedad y modelo productivo, el deterioro de los lazos socialessolidarios, el individualismo y la mercantilización, pero los como problemasque parecen haber surgido de una evolución natural del mundo, y no depolíticas muy específicas llevadas adelante por grupos concretos quedetentaron y detentan el poder del Estado.

Las políticas sectoriales implementadas han tenido y tienen un fuertecarácter formativo, incidiendo, en este caso, sobre el trabajo extensionista,la selección de sus prioridades, modalidades y contenidos y, en general,sobre la esencia misma del trabajo del docente universitario, sometido apresiones y demandas crecientes. A partir del momento en que el Estado“se apropia” de la Extensión, los proyectos que, hasta ese momento, docentesy estudiantes desarrollaban (con defectos y virtudes, por cierto), comienzana diseñarse en función del puntaje, las evaluaciones y las convocatorias olicitaciones. Sin duda, la existencia de recursos específicos (peroexcepcionales) ha incrementado la cantidad de proyectos, profesores yestudiantes involucrados. Y es justo reconocer y valorar los esfuerzos demuchos grupos y equipos que llevan a cabo un trabajo coherente con susconvicciones pedagógicas, políticas y sociales. Pero, tal como es re-modeladapor los Programas y las medidas de política, la Extensión sufre lasconsecuencias de la burocratización, la cuantificación, la competencia por

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recursos y la distorsión de sus impulsos originarios. Comienza a moverse apartir de las demandas del Estado o de determinados sectores sociales, “queasedian a las universidades” interpretando las necesidades de la sociedad“según lo dictado por la agenda del sector público y sus representantes”,más que por la comunidad universitaria, contradiciendo en la práctica lademanda de una mayor coherencia e integración con la misión y los planesinstitucionales (DUDERSTADT, 2010, p. 204).

En este contexto, los académicos perciben claramente sus efectos, entérminos de intensificación del trabajo10, retroceso en la autonomía paradefinir tiempos, contenidos y lógicas de relación entre docencia,investigación y extensión, así como en el aumento de los controles tecno-burocráticos externos que deciden cada vez más el futuro laboral. En suma,se trata de un proceso que supuestamente forma profesionales éticos ycomprometidos, pero que tiene efectos descualificantes para los docentesya que, pretendiendo la “convergencia” e integración de funciones, deterioray borra -como tempranamente advirtió Readings– las diferencias cualitativasentre investigación, docencia y extensión. La consecuencia lógica de estemovimiento es la conformación de una estructura compleja de “redes” deequipos de consultores, evaluadores y administradores del sistema,financiada por recursos que podrían volcarse directamente a proyectossurgidos de las raíces mismas de la tarea académica.

De esta manera, las funciones sustantivas de la Universidad pasan aservir a la reproducción misma del sistema antes que a cumplir genuinasfunciones culturales, científicas o sociales (READINGS, 1996). Nospreguntamos por qué razón la legítima intención de profundizar elcompromiso social de la universidad genera estas situaciones contradictorias.

Una respuesta posible es que las actuales herramientas de la políticapública devienen de la articulación entre un movimiento de recentralizaciónautoritaria para la definición de las prioridades, y una tendencia a laejecución desarticulada y fragmentadora de Programas. Esta combinación

10 Según datos de la Secretaría de Políticas Universitarias, en 2010, sólo el 12% de los cargosdocentes eran de dedicación exclusiva.

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garantiza la supervivencia de la lógica neoliberal y sigue empujando, a lasinstituciones y a los docentes, a convertirse en responsables de accionesremediales centradas en los individuos y grupos en desventaja, apelando alprincipio de equidad distributiva y la igualdad de oportunidades. Equidade inclusión son pensadas para una sociedad entendida como sumatoria deintereses particularistas, dejando atrás las ideas de igualdad y universalidaden una sociedad de ciudadanos con derechos plenos, que desarrollan suscapacidades porque tienen aseguradas las condiciones básicas de existenciaautónoma y no porque dependen de la voluntad asistencial de algúnprograma (PAUTASSI, 2000).

Por otro lado, parece necesario tener presente que este neoliberalismoreadaptado subyace en la llamada “Tercera Vía”, propuesta que creemosconforma el sustrato político ideológico del accionar gubernamental ennuestro país desde 2003. Sintetizando teorías filosóficas y sociológicasdispersas geográficamente y aparentemente desordenadas, elaboradas porintelectuales de renombre internacional, la Tercera Vía ha logradoestructurar una teoría compacta para fundamentar un cierto proyectopolítico de vida social y estimular políticas adecuadas a su consecución. Haconstruido una concepción del mundo que, sin abandonar el neoliberalismo,retoma algunos principios inspiradores del liberalismo social. Estaconcepción es difundida por acciones políticas y pedagógicas que garantizansu influencia hegemónica, conformadoras de patrones de conducta socialde organizaciones, grupos y personas. Es lo que el Colectivo de Estudiossobre Política Educacional de la Fundación Oswaldo Cruz (Brasil) denomina“nueva pedagogía de la hegemonía”. Al servicio de la relegitimación delcapitalismo actual, apunta a generar “un conformismo capaz de asegurarla cohesión social en torno de ese modelo”. La Tercera Vía ha modificadolos rasgos más conservadores de las políticas sociales neoliberales, lograndola aceptación de nuevos parámetros de protección social (MARTINS, 2009,p. 60-61). Para ello, sus ejes principales son la “redemocratización de lademocracia” para hacerla más “directa y participativa”, el estímulo a una“sociedad civil activa” capaz de evolucionar hacia una “sociedad delbienestar” en la que no exista “ningún derecho sin su correspondienteresponsabilidad”, y la asignación de un nuevo y “necesario” papel al Estado,

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como promotor de una “economía mixta” y la “socialización de los riesgos”(NEVES, 2009 y 2010). Combinando eclécticamente categorías (capitalhumano, capital social, desarrollo sustentable, ética empresarial,concertación, desarrollo local y comunitario, respeto por las particularidadesculturales, de género, etc.), tienden a la conformación de una “nuevaciudadanía” limitada a los intereses particulares, corporativos, al consensode las clases subalternas, que

sólo conducen a la perpetuación de políticas al servicio de los interesesdominantes, des-responsabilizan al capital y a la historia,…nos atribuyen ‘atodos’ la responsabilidad por el cuidado de las instituciones…y evitan, así,cuestionar los fundamentos del orden social vigente (VIOR, 2009, p. 16).

La forma peculiar en que el paradigma de la Responsabilidad SocialUniversitaria define la Extensión tiene una intención pedagógica: lograrque la Universidad acepte las críticas que apuntan a su falta de pertinencia,definida como un desajuste respecto de las ‘expectativas‘ de la sociedad,amenazada por fenómenos de exclusión (aceptados como efecto natural einevitable de la globalización capitalista). Docentes y estudiantes deben sermás responsables y activos, entre otras razones, porque se entiende que lasacciones solidarias dentro de esta “sociedad civil” idealizada, podrá resolvermejor los desajustes del mercado, e incluso hacer lo que el Estado no halogrado: garantizar la materialización de los derechos sociales.

Por el contrario, creemos que el compromiso social de la Universidaddebe ser definido en términos de denuncia y respuesta activa a los problemasderivados de la explotación y la desigualdad estructural dentro de unasociedad en la que efectivamente se juegan relaciones antagónicas y que,como toda construcción humana, puede ser sustituida por otro tipo derelaciones sociales. Para ello, entre otras cosas, es necesario que docentes yestudiantes hagan realidad la misión de la Universidad, exigiendo al Estadoque garantice las condiciones para que ello sea posible, cumpliendo a la vezsu papel principal: la transformación de la democracia formal en democraciasustantiva, para todos. Ese objetivo no puede lograrse apelando a una éticadesprovista de historia, ignorante de las mejores tradiciones de laUniversidad pública, un espacio donde, en definitiva, también se confrontanproyectos de vida en común:

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¡Que vaya, pues, la Universidad hacia el pueblo!, y de esta manera nosveremos confundidos con los miembros de la clase trabajadora, estudiandolos mismos problemas y resolviendo las mismas cuestiones!Enrique del Valle Iberlucea. La autonomía de las Facultades, 1905 (En:BECERRA, 2008, p. 57).

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

O histórico da relação público-privadano Brasil: o enfoque jurídico

Daniela de Oliveira Pires

1. Introdução

Este artigo irá analisar o histórico da relação público-privada atravésdas legislações constitucionais e infraconstitucionais brasileiras, com o obje-tivo de relacionar o conteúdo das legislações com o processo de democratiza-ção da educação e o predomínio dos interesses da esfera privada no conteúdodos textos legais. Este estudo é parte constitutiva de uma pesquisa mais am-pla intitulada: Parcerias entre sistemas públicos e instituições do terceiro setor: Brasil,Argentina, Portugal e Inglaterra e as implicações para a democratização da educação,sob a coordenação da prof. Dra. Vera Maria Vidal Peroni.

Nesse sentido, não iremos realizar uma mera descrição de fatos his-tóricos relacionados ao período em questão, tomando por base o conteúdodas Constituições brasileiras. O objetivo é aprofundar o processo de confi-guração da relação público-privada, em âmbito nacional, levando em con-sideração também o contexto internacional, buscando assim entender asrazões que levaram à consolidação das reformas promovidas no Estadobrasileiro, especialmente a partir da década de 1990, em relação à promo-ção da educação, que já estavam presentes, em certa medida, desde a Cons-tituição Imperial de 1824 (BRASIL, 1824).

O estudo está organizado da seguinte maneira. Primeiramente, ana-lisaremos alguns aspectos das Constituições brasileiras vinculados à pro-moção da educação. Em um capítulo próprio, iremos detalhar o conteúdoda Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), considerada um marcolegal na declaração dos direitos sociais.1 Em outro segmento do estudo,

1 Parte dos resultados advém da coleta de dados para a elaboração do Projeto de Tese: “O Históricoda relação público-privada no Brasil na promoção do Direito à Educação”, apresentado em

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aprofundaremos a compreensão acerca de algumas legislações ordinárias eemenda constitucional, com destaque para o Plano Diretor de Reforma doAparelho do Estado de 1995, da Emenda Constitucional n° 19/1998 e dorecente Anteprojeto de Lei Orgânica para a Administração Pública Federal(BRASIL, 2009), iniciativa do Ministério do Planejamento, Orçamento eGestão, que contou com o trabalho da Comissão de Juristas, instituída pelaPortaria MP nº 426, de dezembro de 2007, e que teve como resultado aelaboração de uma nova estrutura orgânica para o funcionamento da Ad-ministração Pública Federal e a inserção de novos órgãos, no caso, os cha-mados Entes de Colaboração.

Podemos afirmar que a pesquisa terá como base o processo históri-co da relação público-privada, que se consolidou ao longo dos anos, in-fluenciando, assim, a postura do Estado brasileiro diante da promoção dodireito social à educação até os dias de hoje.

2. As Constituições Brasileiras: implicaçõespara a promoção do Direito à Educação

O direito à educação sempre foi mencionado em todas as Constitui-ções brasileiras, entretanto, devido a uma série de fatores, dentre eles omomento histórico e as conjunturas político-sociais próprias de cada épo-ca, cada Carta Constitucional tratou da questão da educação, tendo porbase as transformações sociais inerentes a cada período. Durante a Consti-tuição do Império do Brasil de 18242, o direito à educação foi tratado deuma maneira bastante reduzida. Segundo Marcos Augusto Maliska:

O Direito à Educação na Constituição Imperial Brasileira apresentou-se deforma tímida e fortemente caracterizada pela participação da Igreja Católi-

setembro de 2012 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação da Profa. Dra. Vera Maria VidalPeroni.Os dispositivos de todas as Constituições foram retirados do site: <http://www. planalto.gov.br>.Acesso em: 28 nov. 2012.

2 De acordo como o site: <http://www.gespublica.gov.br/anteprojeto-de-lei-organica/consulta-publica-sobre-o-anteprojeto-de-lei-organica>, o Anteprojeto de Lei Orgânica da AdministraçãoPública Federal está na fase de consulta pública. Acesso em: 13 fev. 2013.

PIRES, D, de O. • O histórico da relação público-privada no Brasil: o enfoque jurídico

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ca no processo de educação do povo. Outro aspecto que merece ser ressalta-do é a centralização do ensino, em grande medida sob determinação da Coroa(MALISKA, 2001, p. 22).

Na Carta Constitucional de 1824, o direito à educação é mencionadoapenas em dois tópicos do art. 179. No art.179, nº 32, dispõe que “a instru-ção primária é gratuita a todos os cidadãos” (BRASIL, 1824), e no art. 179,nº 33, “a Constituição garantia colégios e universidades, onde seriam ensi-nados os elementos das ciências, belas-artes e artes” (BRASIL, 1824).

O direito à educação na Constituição Imperial de 1824 (BRASIL,1824) possui como principal característica a presença constante da Igrejano processo educacional e, portanto, de formação da população. O ensinoera controlado exclusivamente pela Coroa, o que evidencia o caráter extre-mamente centralizador da mesma.

A Constituição Brasileira de 1891(BRASIL, 1891) possui a peculiari-dade de ser o primeiro texto constitucional elaborado na então jovem Re-pública Federativa do Brasil. Imbuída pelo processo de independência das13 colônias norte-americanas, a República pretendia garantir a efetividadee permanência da democracia e do sistema federativo.

Uma das principais alterações que o direito à educação sofreu foidevido, em grande parte, à mudança do regime monárquico para o regimerepublicano, pois com o novo regime houve uma ruptura do Estado com aIgreja. A consequência direta foi que a educação deixou de ser função pre-ponderante daquela instituição. O art. 72, no seu parágrafo 6º da Constitui-ção Federal de 1891, dispunha que “será leigo o ensino ministrado nos es-tabelecimentos públicos, em outras palavras significou que o ensino, por-tanto, não estava submetido a ordens sacras” (BRASIL, 1891).

A Constituição de 1934, diferentemente das anteriores Cartas Mag-nas, foi a primeira Constituição a positivar os direitos sociais, além de terintroduzido no texto constitucional títulos nunca antes mencionados, den-tre eles: a família, a educação e a cultura. Inspirada em grande parte pelaConstituição Mexicana e pela Constituição de Weimar, a Constituição de1934 dedicou um capítulo inteiro para tratar exclusivamente da educação edo desporto.

De acordo com o art. 148: “Cabe à União, aos Estados e aos Municí-pios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras

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e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patri-mônio artístico do País, bem como prestar assistência ao trabalhador in-telectual” (BRASIL, 1934).

Seguindo na seara de inovações empreendidas pelo texto constitucio-nal de 1934, o art. 149 dispõe que “a educação é direito de todos e deve serministrada pela família e pelos Poderes Públicos, cumprindo a esses pro-porcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no País, de modoque possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação edesenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana”(BRASIL, 1934).

Observa-se que a Constituição de 1934 referendou o tema da educa-ção em mais de um capítulo, pois no título que trata sobre a Ordem Econô-mica e Social, no art. 138, dispõe que “incumbe à União, aos Estados e aosMunicípios, nos termos das leis respectivas”, e na alínea b “estimular aeducação eugênica” (BRASIL, 1934).

O art. 139 menciona a educação do trabalhador, dispondo que “todaempresa industrial ou agrícola, fora dos centros escolares e onde trabalha-rem mais de cinquenta pessoas, perfazendo essas e os seus filhos, pelo me-nos, dez analfabetos, será obrigada a lhes proporcionar ensino primáriogratuito” (BRASIL, 1934).

Era de responsabilidade dos Estados e do Distrito Federal organiza-rem e manterem sistemas educativos respeitadas as diretrizes estabelecidaspela União (art. 151). Aos entes federados era obrigatória a aplicação depelo menos 20% da renda resultante dos impostos na manutenção e nodesenvolvimento dos sistemas educativos (art. 156).

A Constituição de 1937 evidencia um momento político bastantedelicado para o Brasil, pois essa foi outorgada, o que caracteriza o períododo Estado Novo, que possuía uma orientação política inspirada no modelodo regime fascista. A principal característica dessa Carta é a extrema cen-tralização e a ênfase em um exacerbado nacionalismo por parte da políticaliderada pelo então presidente da República, Getúlio Vargas.

Como exemplo desse nacionalismo, podemos citar o art. 2º: “A ban-deira, o hino, o escudo e as armas nacionais são de uso obrigatório em todoo País. Não haverá outras bandeiras, hinos, escudos e armas. A lei regularáo uso dos símbolos nacionais” (BRASIL, 1937). Portanto a Constituição

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de 1937 (BRASIL, 1937) possuía vários artigos que enrijeciam a legislaçãonacionalista em vigor. Caberia à União de forma privativa fixar as bases edeterminar os quadros da educação nacional, traçando as diretrizes a quedeve obedecer a formação física, intelectual e moral da infância e da juven-tude (art. 15, inciso IX).

Entretanto, no que tange à educação, o Estado exerceria uma funçãosubsidiária, pois a função principal seria obrigação da instituição da famí-lia, conforme se pode observar no art. 125: “A educação integral da prole éo primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho aesse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para facilitara sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da educação particular”(BRASIL, 1937).

A Constituição Federal de 1946 possui como contexto histórico orecente processo de redemocratização do país após o período do EstadoNovo. Com isso foram realizados pleitos eleitorais diretos para a escolhados representantes da população. No campo da educação, competiam àUnião, segundo o art. 5º, alínea “d”, as diretrizes e bases para a educaçãonacional. Os demais dispositivos são decorrentes do capítulo II intituladoDa Educação e da Cultura. Dispõe o art. 166 que “a educação é direito detodos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liber-dade e nos ideais de solidariedade humana”. De acordo com o art. 167, “oensino dos diferentes ramos será ministrado pelos Poderes Públicos e é livre àiniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem” (BRASIL, 1946).

No artigo seguinte, encontram-se os princípios adotados pela legisla-ção para a educação, dentre eles: II – o ensino primário oficial é gratuitopara todos; o ensino oficial ulterior ao primário sê-lo-á para quantos prova-rem falta ou insuficiência de recursos; III – as empresas industriais, comer-ciais e agrícolas em que trabalham mais de cem pessoas são obrigadas amanter ensino primário gratuito para os seus servidores e os filhos desses;VII – é garantida a liberdade de cátedra.

Outro artigo da Constituição de 1946 que é relevante é o art. 169 portratar do investimento para a educação, segundo este dispositivo: “Anual-mente, a União aplicará nunca menos de 10%, e os Estados, o Distrito Fe-deral e os Municípios nunca menos de 20% da renda resultante dos impos-tos na manutenção e desenvolvimento do ensino” (BRASIL, 1946).

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Com o advento do golpe militar de 31 de março de 1964, a CartaPolítica de 1967 foi outorgada como resultado direto de uma sucessão deatos autoritários implementados pelos militares. O art. 8º, inciso XIV, daConstituição de 1967, dispunha que era da competência da União estabele-cer planos nacionais de educação, e ainda no inciso XVII, alínea “q”, domesmo artigo, ser da competência também da União legislar sobre diretri-zes e bases da educação nacional, além de normas gerais sobre desportos.

Outro dispositivo constitucional que merece destaque é o art. 168,parágrafo 1º, em que se atribuía como responsabilidade do Estado minis-trar o ensino nos diferentes graus. No art. 169 ficava estabelecido que com-petia aos Estados e ao Distrito Federal organizarem os seus sistemas deensino, e a União, os dos Territórios. Caberia à União, segundo o art. 169,parágrafo 1º, prestar assistência técnica e financeira aos Estados e ao Dis-trito Federal na manutenção de seus sistemas estaduais. A publicação daEmenda Constitucional n°1/ 1969 é considerada por alguns estudiosos comouma nova constituição em virtude das diversas alterações promovidas notexto da Constituição de 1967 (BRASIL, 1967). Nesse contexto, o direito àeducação, em particular, sofreu significativas alterações. Uma das princi-pais alterações foi a substituição da garantia da liberdade de cátedra, con-quistada com o advento das demais Cartas Constitucionais pela liberdadede comunicação de conhecimentos no exercício do magistério.

A Emenda Constitucional nº 1/1969 (BRASIL, 1969) manteve ascaracterísticas do sistema anterior e acrescentou a possibilidade de inter-venção dos Estados nos Municípios no caso de não aplicação anual, noensino primário, de 20% da receita tributária municipal. Esse percentual,aliás, terminou por ser alterado pela Emenda Constitucional nº 24/1983,que o fixou em 13% para a União e 25% para os Estados, Distrito Federal eos Municípios.

A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) institucionalizaum regime político democrático no Brasil, introduzindo considerável avan-ço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e naproteção de setores mais desprotegidos da sociedade brasileira. Os direi-tos sociais foram integrados, pela primeira vez, em uma Constituição bra-sileira como direitos fundamentais, conforme iremos analisar no próxi-mo capítulo.

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3. A Constituição Federal de 1988 e a RelaçãoPúblico-Privada na Educação

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/1988),considerada um marco no sentido de superar o nosso recente passado dita-torial, ao restabelecer as garantias constitucionais que foram suprimidasdurante o período em que vigorou a ditadura militar (1964-1985). A CF/1988 declarou em seu texto a educação como um direito social (art. 6°),sendo um direito de todos e um dever do Estado e da família em colabora-ção com a sociedade.

Em relação à sua prestação (art. 205), surge uma contradição, umavez que a sociedade, ao executar tal direito, deixa de ser uma mera colabo-radora na oferta do direito à educação. É preciso salientar que a maioroferta continua sendo da esfera pública, entretanto a sociedade passa a as-sumir cada vez mais um papel de destaque na promoção da educação. Ou-tra contradição é que a mera declaração de um direito, no caso, o direito àeducação, não se materializa no campo do real, enquanto uma conquistade fato, pois em muitas situações sequer está sendo prestado na sua integra-lidade, respeitando as condições de acesso, qualidade e permanência doensino.

Portanto não basta declará-lo; deve haver a correspondência do Esta-do no campo da promoção de tal direito a todos os cidadãos e da famíliaque não se pode excluir da obrigação de encaminhar a criança até a escola.Sobre o direito à educação, a CF de 1988 se destaca se a compararmos aostextos constitucionais que a antecederam, pois essa carta política confere àeducação, em vários dos dispositivos constitucionais, um grande destaque.

Em que pese a Carta Política de 1988, sob a análise da teoria neoli-beral, que influenciava desde a década de 1980 o contexto político inter-nacional e, no contexto brasileiro a partir da década de 1990, a constitui-ção passou a ser entendida como uma fonte de maior burocracia, inde-pendentemente da avaliação singularizada de governos passados e pre-sentes, do acirramento do aumento da crise financeira do Estado. Essasuposta crise teve como consequência direta a reforma nas estruturas es-tatais, dentre elas a administração pública, sob o argumento de que amesma se havia tornado ineficiente.

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É importante mencionar, em relação ao propósito deste artigo, que aConstituição de 1988 consagrou em seu texto, tendo em vista a correlaçãode forças daquele momento, tanto os valores e princípios da gestão demo-crática, especificamente em relação à educação pública, como os interessesrelacionados à educação privada, ou ainda, dos “setores confessionais”; ouseja, se estabelece em certa medida o embate entre a perspectiva da gestãodemocrática e a lógica privado-empresarial. De acordo com RomualdoPortela de Oliveira:

Como resultado das disputas na Constituinte, o texto final da ConstituiçãoFederal de 1988 consagrou, no capítulo da educação, uma formulação que,no essencial, contemplava o interesse dos setores confessionais: apesar demanter a identidade estatal e pública, admitiu uma diferenciação, no âmbitodas instituições privadas, entre as com fins lucrativos e as sem fins lucrati-vos, estas com direito a receber subsídios do Poder Público [...] As três no-ções de público e privado incorporadas pela CF de 1988 podem ser classifi-cadas da seguinte forma: 1) o público como estatal e 2) o privado terceirosetor; 3) o público nem estatal nem privado (OLIVEIRA, 2002, p. 156-157).

A Constituição, ao introduzir as variáveis conceituais do público edo privado no campo educacional (de acordo com Romualdo P. de Olivei-ra, o público como estatal; o privado terceiro setor e o público nem estatalnem privado), acabou por anteceder as reformas que a educação, bem comoos demais direitos sociais, iria sofrer durante a década de 1990 em relação àsua promoção. A consequência mais significativa é que a educação passa aser exercida pela esfera privada, mas sob o controle estatal, ou seja, o poderpúblico detém a esfera da fiscalização e do financiamento, mas a promoçãoé realizada pelas organizações privadas, as chamadas organizações do Ter-ceiro Setor. Segundo Theresa Adrião e Vera Peroni, “o Terceiro Setor seriacaracterizado como o público-não estatal e pressuporia a existência do Es-tado e do mercado”. Esse conceito designaria “um conjunto de iniciativasparticulares com um sentido público” (ADRIÃO; PERONI, 2005, p. 32).

Outra influência que a educação brasileira passa a enfrentar, espe-cialmente a partir da década de 1990, principalmente durante o primeiromandato do então presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-1998),foi dos organismos internacionais, dentre eles o Fundo Monetário Interna-cional – FMI, o grupo do Banco Mundial, a Organização das Nações Uni-das para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, a Organização

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Internacional do Trabalho – OIT, a Organização Mundial do Comércio –OMC e a Comissão Econômica para América Latina e Caribe – CEPAL. Ajustificativa para tal influência, que se observa na determinação de orienta-ções para a educação, foi que muitos governos estavam economicamenteatrelados a esses organismos através da realização de empréstimos finan-ceiros. É necessário ressaltar que, mesmo havendo uma dependência eco-nômica por parte dos países, essa não se configura como uma relação uni-lateral, não havendo uma imposição, mas uma consonância entre a orien-tação política dos governos e a dos organismos internacionais.

Entretanto, a influência desses organismos, em grande parte nos pa-íses da América Latina, não ocorre sem embates e correlação de forças,especificamente no campo educacional, seja por parte de uma parcela dacomunidade acadêmica ou através dos sujeitos envolvidos no processo deaprendizagem nas escolas. Nesse sentido, o “receituário” proposto por taisorganismos defende que a educação seja orientada para que se privilegie aformação, para o atendimento, essencialmente, das necessidades do merca-do, e não visando à emancipação dos indivíduos, ao protagonismo de ideiase ações. No próximo capítulo, analisaremos marcos legais que corroborama relação público-privada na educação.

4. O Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado,a Emenda Constitucional n. 19 e a “Nova” Administração

Pública Federal: marcos legais contemporâneosda relação público-privada

Neste capítulo, trataremos dos aspectos referentes ao marco legal con-temporâneo da relação público-privada, no qual destacamos primeiramen-te o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), sancio-nado no ano de 1995, que possui entre as suas premissas: “a reforma doEstado deve ser entendida entro do contexto da redefinição do papel do Esta-do, que deixa de ser o responsável direto pelo desenvolvimento econômico esocial pela via da produção de bens e serviços, para fortalecer-se na função depromotor e regulador desse desenvolvimento” (MINISTÉRIO DA ADMI-NISTRAÇÃO FEDERAL E REFORMA DO ESTADO, 1995, p. 17).

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Podemos observar que, na mesma medida em que o Estado restringesua atuação direta a seu aparelho (núcleo estratégico + atividades exclusi-vas), cada vez mais a sociedade civil é chamada para realizar “parcerias”com o mesmo, tomando para si os outros dois setores, ficando restrito oapoio estatal ao mero nível de regulação e fiscalização desses, minimizan-do o seu papel. Essa relação público-privada acaba acarretando que o Esta-do não se retira da promoção do direito à educação, mas tem a sua funçãodiminuída, restrita ao âmbito do financiamento.

Eis que nesse ponto reside o maior risco à luz da realidade brasileira:a reforma do Estado não significa uma reestruturação positiva de todos ossetores, mas acaba se transformando em uma precarização da relação Esta-do-sociedade, o que pode ocasionar a aproximação da proposta trazida peloPDRAE com o marco de um Estado mínimo excludente.

A promulgação da Constituição de 1988, considerada um marco nosentido de superar o nosso recente passado ditatorial, ao restabelecer asgarantias constitucionais que foram suprimidas durante o período em quevigorou a ditadura militar. Mas o que se observa é que algumas das con-quistas e das garantias consagradas no texto constitucional não vieram acom-panhadas de uma real efetivação.

Com base no seguinte argumento: “Diante do retrocesso burocráticode 1988, que resultou em encarecimento significativo do custeio da máqui-na administrativa, tanto no que se refere a gastos com pessoal como bens eserviços e um enorme aumento da ineficiência dos serviços públicos”(PDRAE, 1995, p. 29), o PDRAE também se contrapõe à CF de 1988 nomomento em que deixa de se referir “ao cidadão”, o que pressupõe umsujeito com direitos adquiridos constitucionalmente, e passa a usar a se-guinte denominação: “cliente privilegiado”. De acordo com o PDRAE:

É preciso, agora, dar um salto adiante, no sentido de uma administraçãopública que chamaria de “gerencial”, baseada em conceitos atuais de admi-nistração e eficiência, voltada para o controle dos resultados e descentrali-zada para poder chegar ao cidadão, que, numa sociedade democrática, équem dá legitimidade às instituições e que, portanto, se torna “cliente privi-legiado” dos serviços prestados pelo Estado (PDRAE, 1995, p. 7).

É importante destacarmos que os conceitos de “cliente privilegiado”,“público não estatal” e “quase mercado” passam a ser utilizados para legi-timar, entre outras questões, a própria reforma da Administração Pública,

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ainda em curso atualmente, conforme iremos ver quando tratarmos da novaLei Orgânica da Administração Pública Federal, organizada através daComissão de Juristas.

De acordo com Dalila Andrade Oliveira, o marco legal contemporâ-neo da relação público-privada foi a Emenda Constitucional nº 19 (EC nº19) de junho de 1998, pois, segundo a autora:

A emenda constitucional reflete a lógica racional presente na reforma doEstado assumida pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. A institui-ção das Organizações Sociais e dos Contratos de Gestão vai interferir nosrumos que tomará a gestão da educação brasileira. Nesse sentido, a autoraafirma que as reformas sociais no Estado brasileiro hoje e, em especial, nosetor educacional aliam-se às demandas de maior acesso e às questões deineficiência produtiva do sistema. Dessa maneira, têm conduzido mudançasnos aspectos gerenciais das políticas públicas, recomendando a adoção decritérios de racionalidade administrativa como meio de resolução dos pro-blemas (OLIVEIRA, 2002, p. 127-128).

A EC nº 19 reflete a lógica neoliberal, assumida pelo governo dopresidente Fernando Henrique Cardoso, caracterizada pela diminuição damáquina pública, diminuição dos gastos sociais, ênfase na racionalidadeadministrativa e busca por resultados, bem como pela criação da figura docidadão-cliente. Tanto o PDRAE como a EC nº 19 são consequências daimplantação da orientação política neoliberal no Estado brasileiro.

Para tanto, seguindo tal orientação, os dois documentos partem dapremissa de que o Estado não deve ser o principal promotor das políticassociais, devendo remeter o seu fomento à participação da sociedade civil apartir da parceria com o ente público. Com isso ocorre a alteração na exe-cução dos direitos sociais, pois esses deixam de ser uma responsabilidadeexclusiva do setor público, passando para o setor público não estatal, e aeducação, entendida enquanto um mero serviço e não mais como um direi-to social, uma garantia constitucional.

Atualmente, a nova proposta de alteração da Administração Públicafoi organizada por uma Comissão de Juristas. Essa comissão foi instituídapelo ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão Paulo Bernardo du-rante a vigência do governo do então presidente da República, Luis InácioLula da Silva (2003-2010), baseada no Relatório Final da Comissão de Ju-ristas, que foi finalizado no ano de 2009. Essa proposta estabelece a possibi-

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lidade da inserção das entidades do Terceiro Setor na estrutura da Admi-nistração Pública a partir do estabelecimento de uma nova estrutura para oseu funcionamento e das suas relações com aquelas entidades que passam adenominar-se Entes de Colaboração. Até o presente momento, não houveo encaminhamento para a aprovação do Anteprojeto de Lei Orgânica daAdministração Pública3.

O principal documento que legitima a premência da alteração na es-trutura e no funcionamento da Administração Pública e da Gestão Públicafoi a Carta de Brasília. Esse documento foi produzido, de maneira conjun-ta, entre o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e o ConselhoNacional de Secretários Estaduais de Administração – CONSAD por oca-sião do Congresso do CONSAD, que ocorreu em abril de 2009. De acordocom o documento, a justificativa para a alteração no funcionamento daAdministração Pública se baseia em alguns argumentos que já foram ex-postos por nós; entre eles destacamos:

A. Que o Estado Brasileiro precisa cumprir sua função precípua de desen-volver políticas públicas direcionadas para a garantia da igualdade de opor-tunidades, dos direitos básicos de cidadania e do desenvolvimento sustenta-do, produzindo resultados eficientes e efetivos para a sociedade.

B. Que para dar conta das demandas da sociedade no contexto atual é ne-cessário repensar a forma de organização e funcionamento do Estado.

C. Que diante das restrições de recursos públicos, de um lado, e do au-mento das demandas sociais, de outro, fica clara a necessidade de se traba-lhar de forma coordenada no âmbito dos Governos, em bases integradase cooperativas, para obter maior sinergia entre as ações, com maior efici-ência e efetividade das políticas públicas.

D. Que o arcabouço legal e institucional da administração pública é, demaneira geral, muito pesado e calcado em valores e práticas que, em mui-tos casos, estão ultrapassados.

E. Que a necessidade de se alcançar melhores resultados para a sociedadecom maior qualidade do gasto público, ou seja, com a otimização da apli-cação dos recursos disponíveis é consenso entre governo e sociedade (CAR-

TA DE BRASÍLIA, 2009, p. 01) (grifo nosso).

Esses argumentos vêm ao encontro das justificativas apresentadastanto para a edição do PDRAE como para a publicação da EC nº 19 nadécada de 1990. Resta afirmar que, mesmo se tratando de governos distin-tos, não houve uma ruptura significativa, mas sim uma continuidade emrelação ao diagnóstico da ineficiência do setor público e sobre a necessida-

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de da realização da reforma no Estado, com a alegação de atingir melhoresresultados, com mais eficiência e otimização dos recursos públicos.

O que se pode constar é que, a partir dos anos 2000, ocorre um estímu-lo ainda maior ao aprofundamento da relação público-privada, em que pesecom a inserção das entidades do Terceiro Setor, enquanto entes da própriaAdministração Pública, que passaram a ser denominados Entes de Colabo-ração, passando a figurar como parte da administração pública brasileira.

5. Considerações finais

Este estudo teve como objetivo analisar o histórico da relação públi-co-privada na promoção da educação no Brasil, tomando por base a evolu-ção da legislação constitucional e infraconstitucional.

A partir desta análise, constata-se que o Estado historicamente e demaneira gradativa não assume a função de principal promotor do direitosocial à educação, passando a um mero fiscalizador na execução da educa-ção. No caso do histórico da relação público-privada na educação, ocorreum aprofundamento a partir da década de 1990 no Brasil, primeiro atravésda promulgação do PDRAE durante o governo de Fernando HenriqueCardoso, no qual foram criados setores de ações não estatais para o atendi-mento de políticas, e mais atualmente com a proposta de alteração da ad-ministração pública federal com a inserção dos entes de colaboração. Aeducação passa a figurar como uma ação não exclusiva do Estado. Paratanto foi proposta a transferência da promoção do direito à educação parao público não estatal e o quase mercado, entendidos enquanto esferas deatuação privada dentro do espaço público.

A principal consequência para a sociedade é a sua própria desarticu-lação, pois irá gerar o esvaziamento dos espaços e locus de discussão e cons-trução de posições mais autônomas frente à realidade atual, uma vez que asociedade, ao assumir as obrigações do Estado com os direitos sociais, legi-tima a sua própria ausência.

Dessa forma, quando nos aproximamos da análise atual das políticaseducacionais, percebemos o predomínio da política do consenso e do pre-domínio dos interesses particulares em face das demandas da coletividade;preponderam, pois verificamos cada vez mais que empresários, instituições

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financeiras, bancos, redes de comunicação passam gradativamente a mani-festar o interesse em promover juntamente com a esfera pública o direito àeducação. Constata-se a existência de um interesse “particular”, materiali-zado em vantagens tributárias, financeiras, etc., mas que, oficialmente, de-fendem, a priori, os interesses da coletividade, os interesses de cunho “uni-versal”, materializados através das alterações legais relacionadas ao papeldo Estado no atendimento dos direitos sociais.

Assim, a educação acaba servindo à manutenção do status quo, ouseja, da ordem capitalista, pois as mudanças que ocorrem no contexto edu-cacional não rompem com a hegemonia e o controle social exercido poresse sistema capitalista e, sim, ao contrário, uma vez que, quando ocorremalterações, acabam beneficiando a ordem estabelecida sem alterações soci-ais profundas, tão somente aparentes ou “formais”.

Outra questão observada no final deste estudo é a importância derelacionarmos as questões relacionadas à Educação com a História e o Di-reito. Reformas são necessárias, entretanto devemos ter presente com qualintencionalidade tais reformas são realizadas, especialmente quando alte-ram significativamente a Constituição Federal, com reflexos para a socie-dade. Muitas vezes, sob o argumento de promover a modernidade das es-truturas do Estado, violam-se direitos básicos da população, pois, quando oEstado deixa de prestar diretamente os direitos sociais, entre eles a educa-ção, ficando restrito ao âmbito da fiscalização, nesse caso deve fazer deuma maneira forte, com vistas a evitar mais desigualdades sociais.

Desde a sua promulgação, vislumbramos que a CF de 1988 sofreuuma série de alterações no seu texto original, que restou demonstrado apartir da reforma empreendida na Administração Pública brasileira. Aotentar responder acerca dos avanços ou retrocessos dessas reformas, fica aseguinte reflexão: Se a Carta Política de 1988 significou um avanço no campodas garantias dos direitos fundamentais, em que pese a permanência dessasgarantias, está condicionada a outros imperativos, que muitas vezes se afas-tam do ideário do Estado Democrático de Direito. Para tanto, devemosreafirmar cada vez mais os valores contidos em nossa Carta Política comoforma de nos afastar dos valores excludentes da lógica de mercado, assegu-rando a todos os cidadãos os direitos e as garantias fundamentais.

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Devemos considerar que o presente estudo pertence a uma realidadeespecífica dentro de um contexto social, político e econômico, materializa-do na conjuntura de crise do sistema do capital, momento em que os Esta-dos, ao passarem por reformas nas suas estruturas durante a década de 1990,tendo por base, entre outras, as orientações dos organismos internacionais,como o Banco Mundial, ao descentralizar a promoção do direito à educa-ção para entes privados, entre eles a sociedade civil e o empresariado, sur-gindo com isso novos sujeitos na execução desse direito social.

Em relação ao contexto internacional, o estudo faz referência aoneoliberalismo, que irá influenciar as relações entre o público e o privado,em âmbito local e internacional. Em âmbito nacional, a consequência disso éque a promoção das políticas sociais está sendo repassada para a sociedadecivil.

O Estado, quando minimiza o seu dever em relação à promoção dosdireitos sociais, repassa-o para a sociedade, que assume tais obrigações; daídeixa-se de exigir a real prestação e proteção destes direitos por parte doEstado, que, ao contrário, legitima a sua ausência à medida que passa acumprir as suas funções, segundo Ellen Wood, transformando-se em “umálibi para o capitalismo” (WOOD, 2005, p. 205), no sentido de manuten-ção do status quo.

É importante ressaltar que a realidade atual da educação pública bra-sileira possui relação estreita com nosso passado histórico, nossas raízespolíticas, econômicas e sociais, no qual destacamos, mesmo durante a ela-boração das primeiras Cartas Políticas brasileiras, a importância da partici-pação da família, da Igreja e de outros sujeitos sociais na promoção daspolíticas sociais para a educação.

Referências

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A influência das consultorias internacionaisnas decisões das políticas educacionais no Brasil

Jaqueline Marcela Villafuerte BittencourtMaria de Fátima Oliveira

Introdução

Este artigo é parte da pesquisa “Parcerias entre sistemas públicos einstituições privadas do terceiro setor: Brasil, Argentina, Portugal e Ingla-terra: implicações para a democratização da educação”, que se propõe ana-lisar a relação entre o público e o privado e as consequências para a demo-cratização da educação no Brasil, Argentina, Inglaterra e Portugal e o quese entende em cada país por público e privado, democracia e direito à edu-cação – CNPQ, coordenado pela prof. Dra.Vera Maria Vidal Peroni, daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS. Neste espaço, pre-tendemos problematizar a influência das mediações das consultorias inter-nacionais no Brasil na elaboração das políticas educacionais. Analisamos demaneira mais atenta a consultoria McKinsey & Company. Temos como focodescrever e analisar a legitimidade, credibilidade e isenção das recomenda-ções por ela emanadas no sentido de verificar as implicações na democracia.

A contratação do trabalho das consultorias baseia-se em alguns pres-supostos que garantem aos contratantes não duvidarem dos relatórios, re-comendações e resultados emitidos. A imagem de transparência e credibili-dade é aliada à imagem e ao prestígio dos seus clientes.

Os diagnósticos das consultorias ganham poder de verdade e rara-mente são contestados. Com a McKinsey não é diferente. O fato de entrarem nosso espectro analítico é por se tratar de uma instituição privada querealiza trabalhos para empresas e governos baseados em hipóteses que nãodiferenciam contextos e onde tudo, por eles sugerido, é passível de ser repli-cado, independente do setor econômico ou social a que pertençam.

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Para entendermos esse fenômeno, analisamos dois documentos poreles elaborados: Cinco Prioridades para a Economia no Brasil (McKIN-SEY & COMPANY , 2005), para dar uma visão do plano macro; e Comoos Sistemas Escolares de Melhor Desempenho do Mundo Chegaram aoTopo? E como um sistema de bom desempenho pode atingir o nível deexcelência? (McKINSEY & COMPANY, 2007), analisando um trabalhona área de educação. Em ambos, apontamos para os resultados e recomen-dações que nada têm a ver com os conceitos de cidadania e de democracia.Ao contrário, são apelos do mercado para conseguir persuadir gestores pú-blicos na adoção de uma visão do “papel do Estado”, cuja função é contro-lar a “performance” em lugar de assumir e executar políticas sociais que seaproximem dos cidadãos. A visão por eles defendida é do mundo empre-sarial, onde as falhas corporativas na falta de resultados positivos são so-lucionadas com o fechamento das filiais ou a demissão dos empregadosincompetentes.

A consultoria McKinsey & Company

A McKinsey & Company foi fundada em 1926 por James McKinsey,o qual era advogado e professor de contabilidade na Universidade de Chi-cago. Donadone (2010) destaca que o fundador da McKinsey expunha emseu cartão de apresentação de negócios a expressão “contadores e enge-nheiros”. Com isso a organização buscava multiplicar as habilidades e aspossibilidades de atender variadas demandas das empresas. Fato esse quepode ter ajudado no seu rápido crescimento durante as décadas de 1940 e19501. Na década de 1990, já era uma das líderes mundiais no setor deconsultorias. O’Shea e Madigan (1997) destacam que a McKinsey cresceudevido ao culto ao poder e à sua imagem. Exemplo disso é o fato da empre-sa prestar serviço a governos e empresas privadas, tendo atendido as seis-centas maiores empresas do mundo. A credibilidade ocorre à medida que aMcKinsey é reconhecida como uma das “organizações líderes em todos ossetores privado, público e social. Cuja escala, escopo, conhecimento lhe

1 Histórico e detalhes: ver Julio César Donadoni (2003).

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permitem resolver os problemas que ninguém mais pode” (McKINSEY& COMPANY, 2005, grifo nosso). Ela informa em seu site2 que tem pro-fundo conhecimento funcional e industrial, bem como amplitude de alcan-ce geográfico. Destacando que são movidos pela paixão, assumindo imen-sos desafios para os seus clientes e, muitas vezes, para o mundo.

Ela consolida a sua “boa” imagem salientando que constrói suas ha-bilidades e capacidades junto e para os seus clientes. Assevera que tais ca-pacidades e habilidades lhe dão a liderança em todos os níveis e oportuni-dades em que atuam. Descreve que sua missão é ajudar a construir apoiointerno, diagnosticando questões reais e chegando a recomendações práti-cas (McKINSEY, 2012).

No site da consultoria McKinsey (2012), encontramos, em destaque,seu grande leque de atuação, cuja abrangência está em torno de 101 escritó-rios em diversas partes do mundo, conforme o mapa a seguir:

Os principais continentes onde se encontramos 101 escritórios da McKinsey & Company

Fonte: site McKinsey & Company (www.mckinsey.com)

2 Site Internacional: <http://www.mckinsey.com> e no Brasil: <www.mckinsey.com.br>. Acessoem: 05. set. 2012.

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A expansão da Mckinsey não está apenas no plano geográfico. Elaatua em diversos segmentos produtivos e sociais; exemplos de alguns delessão: a área de portos e aeroportos, energia, sustentabilidade, telecomunica-ções, petróleo e gás, tecnologia, armamentos, telecomunicações, siderur-gia, educação, entre outras. Seu volume de negócios na década de 1980 jáera em torno de 2,9 bilhões de dólares, além de um quadro de consultoresque na década de 1980 para 1990 cresceu em 650% (DONADONE, 2003).Esse crescimento de suas atividades e suas atuações deu-se nas últimas dé-cadas e se reflete na sua forma de trabalho, a qual teve mudanças profun-das, pois até meados da década de 1970, ao terminar um trabalho, ela teriaa obrigação de entregar exclusivamente um volumoso relatório. Atualmen-te, os clientes buscam não apenas recomendações, mas resultados.

No entanto, nem sempre os resultados são os melhores; exemplo dis-so foi a própria McKinsey, que trabalhou juntamente com outras consulto-rias internacionais na maior empresa americana de telecomunicações, aAT&T, a qual gastou cerca de meio bilhão de dólares com projetos de con-sultoria. A empresa deu carta branca às consultorias para reverter sua per-da de participação no mercado, porém, passada meia década, o problemada empresa ainda era o mesmo. Sobre sua forma de atuação devemos en-tender como as empresas de consultoria organizacional atuam e, especifi-camente, a McKinsey.

Como atuam as empresas de consultoria

As empresas de consultoria organizacional despontam como o setorde serviços de maior crescimento nas últimas três décadas. Elas apresen-tam um crescimento de forma indireta e direta (DONADONE, 2003).

Segundo Donadone (2003), as consultorias crescem de forma indire-ta devido à presença constante dessas empresas na mídia de negócios, emlivros de gestão voltados para executivos e em eventos corporativos. Tendea completar o quadro a associação com metodologias inovadoras de gestãocomo a Problem Solving Approach e a matriz GE – General Eletric3, ferramen-

3 Ferramenta gerencial também conhecida por matriz McKinsey. A Mckinsey desenvolveu seumodelo de ferramenta gerencial como parte de seu relacionamento com a General Eletric naimplantação do sistema de planejamento em 1970 (OLIVEIRA, 2005).

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tas estratégicas aplicadas nos diagnósticos e na análise de portfólio das uni-dades de negócio. Esse movimento constitui o acúmulo de modismos queinvariavelmente direcionam a percepção da população no seu senso comum.

De forma direta, a influência dos consultores e das consultorias ocor-re através da intervenção que normalmente provocam, isto é, as organiza-ções, ao passarem por um período de mudança, tendem a absorver os jar-gões, posturas e ferramentas praticadas pelos consultores. Quanto mais longae intensa é a relação entre as consultorias e seus clientes, mais essas sedu-zem, transferem, emprestam e contaminam os mesmos com sua cultura domanagement (PAULA; WOOD, 2008). De acordo com os autores, “as em-presas de consultoria sofrem fortes pressões por resultados e acabam porseguir as tendências mundiais em relação a temas e abordagens de traba-lho, assumindo uma postura de padronização das soluções” (PAULA;WOOD, 2008, p. 3).

O trabalho das consultorias junto às organizações materializa recei-tas para essas que ultrapassam as cifras de milhões de dólares, segundoavalia Cláudia Vassalo (1998). Uma consultoria pode chegar a custar “du-zentos e cinquenta mil dólares mensais”; no cálculo proposto, é semprecolocado um retorno de investimento equivalente a dez vezes o valor docontrato, tornando seu trabalho muito atraente. Portanto, ficam muito malexplicados o retorno e o prejuízo nas iniciativas sociais, em que os indica-dores são de difícil mensuração.

As empresas de consultoria sofrem fortes pressões por resultados eacabam por seguir as tendências mundiais em relação a temas e abordagensde trabalho, assumindo uma postura de padronização das soluções (PAU-LA; WOOD, 2008). A padronização das soluções e o modelo replicante degestão são repassados para todas as áreas econômicas, sociais dos países.Na área da educação, a questão da padronização e homogeneização demétodos, discursos e soluções são temáticas de largas discussões; logo é dese estranhar o uso dessa lógica para a área da educação.

Para a McKinsey, no tocante à educação, o seu discurso versa sobre avasta gama de clientes atendidos. Abrangendo os sistemas de ensino, for-mação profissional e educação universitária. Nos últimos cinco anos, elatem trabalhado em quase 400 projetos na área da educação em mais de 60países. Todos os seus projetos pedagógicos concentram-se em ajudar os

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clientes a construir melhorias substanciais e duradouras nos resultados dosalunos, nas avaliações de larga escala, entendendo que essas melhoras sãoos índices de desempenho escolar e não, necessariamente, a aquisição deconhecimento.

A consultoria dispõe de mais de 70 consultores, que trabalham emprojetos de educação em todo o mundo, muitos dos quais já atuaram comoprofessores, políticos, líderes institucionais, pesquisadores e empresários daeducação. Eles trabalham dentro de uma rede cujo objetivo é: “Cambiar loque sucede en los corazones y en las mentes de millones de niños – la misiónprincipal de cualquier sistema educativo” (McKINSEY 2007, p. 2).

Atualmente, o trabalho da consultoria centra-se nas seguintes ques-tões: “Transformação e desempenho do sistema; Educação para o empre-go; Talento e gestão de desempenho; Administração e operações; Aperfei-çoamento institucional” (McKINSEY, 2005). Cada uma dessas temáticasapontadas acima objetiva tornar eficiente e eficaz a educação. Estando re-lacionadas e ligadas a questões macro e microeconômicas, que desde a dé-cada de 1990 são analisadas e divulgadas pela McKinsey.

No Brasil, essas temáticas vão se efetivando através da presença daconsultoria no Palácio do Planalto e nas demais esferas do governo. Recen-temente, ela realizou trabalhos na área da educação; por exemplo, atuoujunto à Secretaria de Educação de São Paulo com a função de elaborar oplano de educação do governo paulista denominado: Compromisso de SãoPaulo. O governador Alckmin, à frente dessa iniciativa, discute o projeto acada dois meses e afirma: “Estamos trabalhando com gente apaixonadapelo tema, que quer dedicar tempo, recursos, que vibra e opina” (ALCK-MIN, 2012 apud ABDALLAH, 2012, p. 51). O projeto utilizou o modelodesenvolvido de uma escola em Pernambuco, Brasil. Interessa apontar queo nascedouro desse trabalho foi o convite de Jair Ribeiro4, que através daONG Parceiros da Educação e a Casa do Saber organizou um ciclo depalestras com 12 educadores do país. Esse trabalho, mediado pela consul-toria McKinsey, resultou num documento no qual são destacadas açõespontuais de um modelo para mudar o ensino no Brasil (ABDALLAH, 2012).

4 Empresário da área financeira (ABDALLAH, 2012).

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Para o secretário de Educação de São Paulo, Herman Woorwald, “anovidade do Compromisso por São Paulo é que o projeto aglutinou forças”(ABDALLAH, 2012, p. 51), referindo-se às parcerias público-privadas quesustentam o projeto. Tais parcerias são formadas por um conjunto de enti-dades e fundações privadas, essas financiando a empresa de consultoriaMcKinsey para que formule a política educacional do estado de São Paulo(FREITAS, 2012). Não é diferente nos Estados Unidos, onde meia dúziade fundações define a agenda educacional do país (RAVITCH, 2011).

Destacamos que a consultoria utiliza diferentes estratégias de atua-ção. Ela constrói uma rede de relações articulando governos, instituiçõesdo terceiro setor e empresas privadas, envolvendo projetos empresariais esociais nos assuntos de gestão, traduzindo todos os problemas nessa di-mensão, sempre propondo que seus resultados possam ser alcançados. Comesse fim apoia iniciativas muitas vezes individuais ou com foco na socieda-de civil organizada. Um exemplo desse tipo de inserção na área social é aparceria da consultoria com a Ashoka5, que é reconhecida no mercado comoapoiadora do empreendedorismo social. A sociedade oferece capacitação,ferramentas de gestão, transferência de planejamento do setor privado parao setor social, transpondo, como tínhamos assinalado, a visão do “merca-do” para as iniciativas sociais.

Certamente, essa rápida apresentação da Ashoka não representa maisdo que uma pincelada da complexidade do seu perfil e do complexo ideoló-gico que esse tipo de organização começou a construir. Esse é um ente quecircula sutilmente, por vezes invisível, graças à sua característica multiface-tada e a um discurso bastante racional. Os conceitos que ela emana são,provavelmente, argumentos que são transferidos e repetidos pelo senso co-mum, sem termos consciência de se tratar de um pensamento uniformiza-dor e conector de interesses definidos com os interesses do capitalismo.

No segmento seguinte, realizamos uma aproximação dos documen-tos de diagnóstico preparados pela consultoria. O nosso interesse é aproxi-mar a sua visão macroeconômica e social do Brasil e fazer relações com as

5 Em sânscrito significa: ausência de sofrimento (ASHOKA, 2012).

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ideias que permeiam e se materializam dentro das políticas sociais nestaúltima década.

Os documentos elaboradospela consultoria McKinsey

Como já destacamos, a consultoria McKinsey elabora documentosque visam analisar temáticas diversas; para esta parte do trabalho foramescolhidos dois documentos: “Cinco prioridades para as políticas públicasdo Brasil” (McKINSEY & COMPANY, 2005), que trata de uma visão macrosobre o cenário brasileiro, e o outro documento apresenta um estudo naárea da educação: “Como um sistema escolar de baixo desempenho podeevoluir para tornar-se bom? E como um sistema de bom desempenho podeatingir o nível de excelência?” (McKINSEY & COMPANY, 2007). Os do-cumentos numa pretensa “neutralidade” buscam avaliar no plano macro emicroeconômico a realidade brasileira, principalmente em relação à buscade crescimento do Produto Interno Bruto – PIB, juntamente com o desen-volvimento e a melhoria da educação.

O primeiro documento analisado: as cinco prioridadespara as políticas públicas do Brasil

Este estudo propôs cinco conjuntos de medidas prioritárias, destina-das a eliminar as barreiras à produtividade, cuja implantação tem comoretorno o crescimento do Produto Interno Bruto, PIB, para um índice sus-tentável de 7 por cento ao ano, colocando o país num patamar de rápidodesenvolvimento econômico. Para isso, o documento recomenda que o Brasilnecessita combater a grande informalidade que prejudica a concorrência;reduzir o consumo exagerado por parte do governo, que tende a manterelevado o custo de capital; tornar o sistema judicial e outros serviços públi-cos como a saúde e a educação eficientes; e desenvolver uma infraestruturaadequada. Cabe destacar que a última prioridade está vinculada ao com-prometimento do país em relação a uma visão de longo prazo para a eco-nomia e a forma de implementação das medidas indicadas.

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O estudo informa que, ao mapearem as barreiras ao crescimento daprodutividade em oito setores principais da economia brasileira: agricultu-ra, automotivo, varejo de alimentos, governo, construção civil, bancos devarejo, siderurgia e telecomunicações, foi encontrado que as barreiras es-truturais são responsáveis pela distância econômica entre o Brasil e os Esta-dos Unidos. Fazendo uma relação comparativa entre países que não pos-suem a mesma matriz econômica. Por outro lado, identifica que o Brasilapresenta uma modesta receita per capita que se reflete na produção deprodutos e serviços como baixo valor agregado, que identifica um parqueindustrial atrasado em relação aos países que utilizam a tecnologia deforma intensa. A segunda barreira é o baixo custo da mão de obra, emrelação ao investimento em bens de capital, considerado pelos economistasda McKinsey como fator determinante da riqueza de uma nação. Levandoem conta que o que se busca é maximizar o retorno dos investidores, nãosignificando que há uma preocupação com o bem-estar dos trabalhadoresou seus postos de trabalho.

A visão homogeneizada da realidade social e econômica do Brasilcom outros 17 países, onde a consultoria indicou a criação das mesmaspolíticas sociais e econômicas como garantia para o crescimento produtivo,não avaliam a história, as estruturas produtivas e laborais, bem como aprópria territorialidade. Entretanto, para a consultoria, a questão da infor-malidade é o ponto central em relação à produtividade dos países em desen-volvimento.

Informalidade

Importante constatar que esse trabalho sobre a produtividade brasi-leira não é algo novo. O mesmo fora elaborado oito anos antes, em 1998,pela própria McKinsey. Nesse período, ela informava que, em vez de traba-lhadores individuais com caixas de ferramentas, houvesse mais empresasde construção; em vez de vendedores de rua, existissem lojas de departa-mentos. O primeiro é observado no crescimento ocorrido no período de2004 a 2008, em que a construção civil cresceu a uma taxa média de 5,1%acima da economia nacional. Entretanto, o Produto Interno Bruto, PIB, nomesmo espaço de tempo foi de 4,8% (MIRANDA, 2011).

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Esse item é uma das categorias fundamentais do Programa de Acele-ração do Crescimento – PAC. Além dos cursos ministrados pelo Ministériodo Trabalho, a inserção do trabalho feminino na área da construção civil,reforçado nos programas como Cimento e Batom, desenvolvido pelas Se-cretarias de Políticas para Mulheres e o Ministério do Trabalho e Emprego,MTE.

A informalidade não está desconectada das outras prioridades, poisela está ligada à redução dos gastos governamentais, bem como está ligadaà questão educacional; segundo a consultoria, são alavancas competitivas,uma vez que incentivam a otimização dos processos e, consequentemente,a produtividade. Da mesma forma, segundo a consultoria, a redução dainformalidade diminuirá as distorções nos custos relativos ao capital e mãode obra, incentivando a automação e um maior ganho de participação demercado para as empresas mais produtivas. Finalmente, com um menornível de informalidade, há maior atratividade do país como foco de investi-mentos.

Estamos diante do que Karl Marx (2004) argumentava que o proces-so de acumulação capitalista é consequentemente a reprodução das rela-ções capitalistas de produção. A sociedade tende a se perpetuar à medidaque a produção seja renovada; isso é possível com o reinvestimento do va-lor realizado no mercado na produção (MARX, 2004). Logo a redução dainformalidade está centrada na mudança dos processos produtivos e namudança tecnológica, na qual a introdução de novos métodos de produçãofaz parte da existência do capitalismo. Pois, segundo Marx (2004) a pressãoda concorrência força os capitalistas a inovar constantemente e desse modoa ampliar as forças de produção.

Uma dessas ampliações foi realizada pela Espanha, país em profun-da crise econômica, que nos anos 1990 simplificou seu sistema de tributa-ção, introduzindo regulamentações de mão de obra mais flexíveis; alémdisso, criou um órgão para combater a sonegação fiscal, o que resultou emum aumento de 75% nos impostos arrecadados de pequenas e médias em-presas (McKINSEY, 2005). Fato que revela que o cuidado com a informa-lidade não passa de um discurso para proteger o grande capital em detri-mento do pequeno. Outro destaque anunciado pela McKinsey foi o caso doChile através da reforma do setor de serviços domésticos, inserindo um

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salário mínimo para o trabalhador doméstico menor do que os demais traba-lhadores, segundo relatório da McKinsey6. Nesse caso, a recomendação nãoindica uma busca pela equidade dos trabalhadores, porém uma distorção quea médio prazo aumenta as distorções entre os mais ricos e os mais pobres.

Gasto do governo

O segundo aspecto levantado pela consultoria diz respeito à questãodo desequilíbrio fiscal. O Brasil, segundo o relatório, gasta muito mais doque arrecada. Perfazendo gastos por parte do governo em despesas de con-sumo, que incluem gastos com seguridade social, saúde e aposentadorias esalários do setor público. Além disso, há despesas, investimentos e paga-mentos da dívida pública. Esse gasto representa mais de 40% do PIB, o quetende a aumentar, pois as despesas com bem-estar social têm aumentadonos últimos anos.

Algumas sugestões emanadas no documento para redução das des-pesas governamentais centram-se no aumento da idade mínima para apo-sentadoria, dissociação do aumento das aposentadorias pelo salário míni-mo, redução das alíquotas de impostos e redução das taxas de juros (McKIN-SEY, 2005).

A McKinsey destaca que através da redução substancial do consumodo governo como percentual do PIB possibilitará ao Brasil gerar um ciclovirtuoso em que uma despesa pública menor permitiria ao governo reduziros impostos e o peso da dívida do setor público. A primeira iniciativa gover-namental poderia auxiliar na diminuição da informalidade, e a segundainiciativa ajudaria na redução das taxas de juros; isso se refletiria no au-mento de investimentos, fazendo a economia crescer. Consequentemente,haveria um aumento da receita fiscal, o que permitiria investimentos públi-cos em infra-estrutura, incentivando a produtividade de vários setores eco-nômicos, gerando mais crescimento econômico e, quiçá, a redução maiorda dívida e dos encargos sociais no Brasil (McKINSEY, 2005, grifo nosso).

6 Leia o artigo “As Cinco Prioridades para a Economia no Brasil”. Disponível em: <http://download.mckinseyquarterly.com/BrazilMGI_Portuguese.pdf>.

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Embora a consultoria oriente para a criação de um “ciclo virtuoso”por parte do governo brasileiro na redução de seus gastos públicos, inclusi-ve em alguns momentos o relatório elogia o desempenho brasileiro, aomesmo tempo critica a aplicação dos recursos públicos nos programas soci-ais. Entretanto, em sua análise, em nenhum momento faz alusão a que boaparte desses gastos é composta por avais dados pelo governo brasileiro paraempresas privadas e para o terceiro setor.

Sistema Judiciário

A reforma do judiciário brasileiro de acordo com a McKinsey é oinício de uma mudança mais ampla para a expansão de tais mudanças emoutros serviços públicos prestados pelo Estado, como a saúde e a educação.A consultoria ainda destaca que nossa ineficiência é responsável pelo distan-ciamento da produtividade estrutural entre nosso país e os Estados Unidos.

A ineficiência não deve ser combatida com um número maior de juí-zes, pois esses já embolsam boa parte dos recursos governamentais, alémdo grande número de funcionários de apoio que os mesmos utilizam. Parareduzir e quiçá acabar com essa ineficiência, a McKinsey (2005) sugeresimplificação da legislação brasileira, racionalização do uso do judiciáriopor parte das instituições públicas e inclusão da colaboração de autorida-des financeiras e sociais para a criação de normas administrativas, indican-do quando recorrer aos serviços judiciais. Tudo isso em prol da redução donúmero de ações no judiciário.

Nesse item, a consultoria faz uma longa argumentação e sugere queas mudanças a serem implementadas no judiciário serviriam de “bom exem-plo para reformas a serem feitas nas áreas da saúde, educação e em outrosserviços públicos” (McKINSEY, 2005, p. 3).

No entanto, essa simplificação sugerida não leva em conta as profun-das diferenças entre esses setores. A educação, por exemplo, não goza detodos os benefícios sociais e salariais do judiciário. De fato, o crescimentosalarial do magistério e da saúde depende do poder executivo; o setor judi-ciário legisla por conta própria. Desse modo, a sugestão de replicar paratodo o setor público é inviável.

BITTENCOURT, J. M. V.; OLIVEIRA, M. de F. • A influência das consultorias internacionais...

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Infraestrutura

De acordo com o documento elaborado pela McKinsey sobre as Cin-co Prioridades para o Brasil (McKINSEY & COMPANY, 2005), os investi-mentos em infraestrutura decresceram assustadoramente. Isso resultou emestradas, usinas de energia elétrica, portos e saneamento inadequados. Criou-se um distanciamento da produção brasileira em relação à americana. Parareduzir tal distanciamento em relação aos países desenvolvidos, o Brasildeverá investir de US$20 bilhões a US$36 bilhões anuais. O documentoinforma que, para custear esse valor, urge a necessidade da criação de par-cerias público-privadas com regulamentações simplificadas e vantajosas paraambas as partes (McKINSEY, 2005).

Uma regulamentação clara e justa para parcerias público-privadas é igual-mente importante. Em Bogotá, capital da Colômbia, essas regras foram fun-damentais para o sucesso do novo sistema de ônibus urbanos, que reduziu onúmero de acidentes fatais em 90 por cento e a poluição em 43 por cento,criando ao mesmo tempo 18.000 novos empregos. Para isso, foi desenvolvi-do um sistema sustentável no longo prazo, evitando subsídios, delegando aosetor privado a responsabilidade pelas operações, gerenciando as receitaspor meio de um fundo administrado pelo Banco Lloyds e limitando as inter-ferências do governo (McKINSEY, 2005, p. 78).

As parcerias na realidade estimulam a participação reduzida do Es-tado, sendo esse o principal parceiro para o alcance das metas do capitalatravés de isenções, de subvenções, de empréstimos, onde o país capta osrecursos, aumentando a sua dívida, e ao mesmo tempo é o principal garan-tidor, diminuindo os riscos dos parceiros privados, entre outras vantagens.

Para que o Brasil atinja as quatro prioridades acima destacadas, faz-se necessário que a quinta prioridade venha ao encontro de outros doiselementos: o primeiro é a garantia do total comprometimento em relaçãoàs metas de longo prazo, sendo assumidas por políticos de diversos parti-dos, funcionários públicos federais, estaduais e municipais e líderes empre-sariais da iniciativa privada. A McKinsey sugere que, para o alcance dasprioridades, se fazem necessários três mandatos presidenciais para garantiadas mudanças a serem realizadas, bem como de contratos, normas e regula-mentações acordadas (McKINSEY, 2005). Desse modo, suas sugestões co-locam em risco a própria soberania do Estado brasileiro.

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O segundo elemento diz respeito à coordenação e ao monitoramen-to das implementações das sugestões colocadas pela consultoria. Elas te-riam de ser realizadas mediante políticas públicas pelos ministérios e ór-gãos competentes. Sugerem ainda a criação de um órgão de coordenaçãocentral. Segundo a McKinsey (2005), esses responsáveis pelo processodevem ser:

[...] respeitados pelos diversos setores por sua experiência e competência eoriundos de partidos políticos diversos e de outros contextos da sociedade.A unidade poderia responder diretamente ao presidente do Brasil e ser ori-entada por acadêmicos independentes, especialistas internacionais e empre-sários de destaque. Ela poderia coordenar o trabalho de subunidades especi-ais, que trabalhariam com as áreas selecionadas para reforma – uma subuni-dade de combate à informalidade, por exemplo, poderia apoiar os esforçosdos diversos segmentos, ministérios e estados, bem como do legislativo e dojudiciário. Finalmente, ela poderia propor metas, definir como acompanharo avanço dos trabalhos, monitorar os resultados e fornecer metodologias esoluções a ministérios e órgãos responsáveis pela implementação de medi-das específicas (McKINSEY, 2005, p. 70).

Novamente é retomada a questão das parcerias público-privadas, agorano ideário de que a iniciativa privada é quem administra melhor, mas so-bretudo é quem garantirá o sucesso das medidas a serem implantadas, in-terferindo no desenho da administração e estrutura do Estado. Levandoem conta que esses órgãos supragovernamentais não contribuem nem for-talecem um sistema democrático. Pois a aplicação de princípios de negócios,organização, administração, lei e marketing e o bom desenvolvimento deum sistema de coleta de dados que proporcione informações necessáriassobre elaboração, implementação e controle de políticas públicas não ga-rantem que essas assegurem o bem-estar social ou que melhorem, magica-mente, os problemas de desenvolvimento do país. Apenas verificamos quea participação desses big bosses na gestão da coisa pública não reproduzirá osucesso empresarial por eles alcançado para o âmbito do Estado, onde ocorreuma correlação de forças que não tem relação direta com ganhos de eficá-cia ou eficiência. Ou como Ravitch (2011, p. 26) afirma: “o apelo do mer-cado é a ideia de que a libertação do governo é a solução por si só”.

Cabe destacar que tais ideários são propagados para a educação, fi-cando evidenciado no documento: “Como um sistema escolar de baixodesempenho pode evoluir para tornar-se bom? E como um sistema de bom

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

desempenho pode atingir o nível de excelência?”. E é este documento queanalisaremos a seguir.

O segundo documento analisado: Como um sistema escolarde baixo desempenho pode evoluir para tornar-se bom?E como um sistema de bom desempenho pode atingir

o nível de excelência?

Neste documento aparecem claramente alguns dos pressupostos queorientam o trabalho da consultoria. Escolhemos este estudo que envolve,em primeiro lugar, o Brasil. Em segundo lugar, ele está plenamente orienta-do pela filosofia McKinsey para a educação.

A investigação, por eles coordenada, foi realizada em vinte siste-mas de diferentes partes do mundo. A amostra foi composta por sistemaseducacionais com desempenho positivo, embora não tivessem o mesmonível. A questão da pesquisa era descobrir “como cada um dos sistemaseducacionais obteve ganhos significativos, sustentados e generalizados emtermos de resultados dos alunos, medidos por exames internacionais enacionais” (McKINSEY, 2007, p. 2). O estudo utilizou entrevistas e cons-truiu uma base de dados que eles apresentam como sendo:

[...] a mais abrangente base de dados de reforma de sistemas escolares ja-mais reunida no mundo – o presente relatório identifica os elementos dereforma passíveis de reprodução em sistemas educacionais de outras partesdo mundo, em sua transição de desempenho fraco para satisfatório, e daípara bom e finalmente excelente (MCKINSEY, 2007, p. 3).

Entre os sistemas analisados se encontram alguns nacionais e outrosregionais pelos diferentes continentes; elas foram: Armênia, Aspire (siste-ma escolar dos Estados Unidos no regime de charter), Boston (Massachu-setts, EUA), Chile, Cingapura, Coreia do Sul, Eslovênia, Inglaterra, Gana,Hong Kong, Jordânia, Letônia, Lituânia, Long Beach (Califórnia, EUA),Madhya Pradesh (Índia), Minas Gerais (Brasil), Ontário (Canadá), Polô-nia, Saxônia (Alemanha) e Western Cape (África do Sul).

Essa amostra revela que os tipos de organizações nacionais são colo-cados no mesmo patamar dos sistemas locais. De modo que todos são vis-tos como casos isoláveis do seu contexto nacional ou regional.

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A parte mais relevante desse trabalho pode ser resumida nos oito acha-dos desta pesquisa: o tempo de obter ganhos com as reformas; a ênfase noprocesso; o aprendizado das experiências; o contexto não é determinante;existem intervenções comuns a fazer; o equilíbrio entre autonomia e uni-formidade da prática de ensino; as reformas são provocadas por eventosespecíficos; e a continuidade da liderança é essencial.

O tempo de obter ganhos com as reformas

O primeiro achado refere-se ao tempo necessário para obter ganhoscom as reformas educacionais. Na visão da consultoria, um sistema podeobter ganhos significativos, não importando qual seja seu ponto de partida,referindo-se ao desempenho dos alunos, verificando que em seis anos oumenos é possível imprimir reformas positivas.

Acreditamos que esse resultado alicerça a celebração de futuros tra-balhos de consultoria; de algum modo, ter essa medida lhes garante que, aoserem contratados, eles poderão apresentar resultados práticos ao longo doperíodo.

A ênfase no processo

As reformas teriam que dar ênfase ao processo – esse é o segundoachado. Eles sustentam que, quando os resultados obtidos pelos alunos fi-caram estagnados ou regrediram, verificava-se uma ênfase muito reduzidaem “processos” no debate educacional.

As melhorias no desempenho do sistema baseado na necessidade de:a) provocar mudanças nas estruturas, estabelecendo novas instituições ouimplementando novos tipos de escola, ou mesmo modificando os anos e ní-veis de escolaridade, ou descentralizar as responsabilidades dentro do siste-ma; b) provocar mudanças no financiamento na aplicação de recursos com aalocação de mais pessoal da educação (pagamento de mensalidades, por exem-plo) nas escolas ou incrementar o financiamento público dos sistemas; c)provocar mudanças nos processos, modificando o currículo e melhorando amaneira como os professores ensinam e como os diretores lideram.

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Avaliamos que esse achado resume dois tipos de raciocínio. Inicial-mente, qualquer análise simples do sistema escolar, com olhar de bom sen-so ou simples conhecimento de administração, identificaria que esses sãoos elementos de melhoria de qualquer desempenho. Finalmente, o achadoabre espaço para diversos trabalhos a serem implementados pela mesmaconsultoria.

Aprendizado das experiências

No terceiro patamar de achados está o aprendizado através de expe-riências. Esse se refere à análise que reconhece que os sistemas em transi-ção, o desempenho satisfatório para o bom, têm como foco o estabeleci-mento dos alicerces de coleta de dados, organização, financiamento e ges-tão pedagógica. Enquanto os sistemas de bom desempenho a caminho doótimo buscam estruturar a profissão de professor, de modo a definir os re-quisitos, as práticas e os planos de carreira com a mesma clareza encontra-da nas carreiras de medicina e direito.

A melhoria dos sistemas educacionais não avança quando se faz apenaso que fora sucesso no passado. Os exemplos apontados são as intervençõesrealizadas por Madhya Pradesh (Índia), Minas Gerais (Brasil) e Western Cape(África do Sul) em sua trajetória do baixo desempenho para o desempenhosatisfatório, destacando que eles mostram semelhanças surpreendentes.

Pensamos que não cabe dúvida; existem sistemas em que há maioresdificuldades em gerir bem seus sistemas de informação, que valorizam poucoseus profissionais, e principalmente sistemas que não valorizam o conheci-mento acumulado historicamente. Ou seja, que estão sempre iniciando, re-formando e reorganizando, não podem ter um desempenho positivo de lon-go prazo. De fato, o conhecimento acumulado nas ciências sociais, particu-larmente na educação, nos orienta para que se aposte em políticas de Estado– de longo prazo – em detrimento de políticas de governo – de curto prazo.

O contexto não é determinante

O quarto resultado encontrado refere-se ao contexto. Para os consul-tores, esse elemento não é determinante. Para eles, todos os sistemas que

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apresentam melhorias implementaram conjuntos semelhantes de interven-ções para avançar de um determinado nível para o nível seguinte, indepen-dentemente da cultura, geografia, política ou história. “O contexto do siste-ma pode não determinar o que precisa ser feito, mas determina, isto sim,como deve ser feito” (McKINSEY, 2007, p. 3). Embora cada etapa de de-sempenho esteja relacionada a um conjunto comum de intervenções, verifi-caram substancial variação na maneira como o sistema implementa taisintervenções em termos de sua sequência e de tempo necessário.

Ponderamos que esse é sem dúvida o achado que vai contra o ideáriode heterogeneização e de respeito às diferenças étnico-culturais. Não levarem conta os aspectos contextuais nega a grande parte da riqueza que aprópria humanidade tem percebido nas suas diferenças entre os diversossistemas.

Existem intervenções comuns a fazer

Eles verificaram, no quinto ponto, que existem intervenções comunsa fazer. A recomendação é resumida em seis tipos de intervenções, queocorreram igualmente em todos os estágios de desempenho dos sistemas.Aparecem de forma clara: a capacitação dos professores (em termos dehabilidades de ensino) e de gestão dos diretores; a avaliação dos alunos; oaperfeiçoamento dos sistemas de dados; a facilitação das melhorias medi-ante a introdução de documentos de política e leis sobre educação; a revi-são de normas e currículos; e a garantia de uma estrutura adequada derecompensa e remuneração para professores e diretores. Para nós, esse émais um dos conjuntos de recomendações que não superam o senso co-mum ou o bom senso na gestão escolar na atualidade.

O equilíbrio entre autonomia euniformidade da prática de ensino

O sexto achado refere-se ao equilíbrio entre autonomia e uniformi-dade da prática de ensino. Afirmam que os sistemas de desempenho consi-derados “fracos” e/ou “satisfatórios” avançam por meio de um centro que

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intensifica e determina a prática de ensino das escolas e professores, porémessa abordagem não funciona para sistemas que já se encontram no pata-mar de desempenho “bom” ou um nível acima. Nesses sistemas, ao contrá-rio, observaram que o avanço decorre do aumento das responsabilidades eflexibilidades proporcionadas pelos gestores centrais para que escolas e pro-fessores modelem a prática de ensino. Verificou-se que, para um terço dossistemas educacionais, que avançam de “bom para ótimo”, tanto como parapouco menos de dois terços dos que estão na jornada de “ótimo para excelen-te”, houve um movimento de descentralização nas funções pedagógicas, de-legando-as para o escalão médio (por exemplo, distritos) ou para as escolas.

Do nosso ponto de vista, esse item parece que é o mais importanteachado dentro da questão pedagógica. De fato, esse estudo demonstra quesistemas de baixo rendimento requerem tutela na equalização do desempe-nho dos alunos. Obviamente, essa atitude provoca um sufoco em sistemasmais organizados, já que a interferência e a regulação estremadas geram aperda de autonomia, que provoca atitudes negativas, baseadas na frustra-ção e no tolhimento da criatividade.

As reformas são provocadas por eventos específicos

O sétimo achado de pesquisa verificou que as reformas são provoca-das por eventos específicos. Esses episódios foram agrupados por circuns-tâncias comuns, que foram responsáveis por gerar as condições, quais se-jam: o impacto da crise socioeconômica nos sistemas; um relatório crítico,de grande repercussão, sobre o desempenho do sistema; e uma mudança deliderança. Esse último evento traz benefícios aos líderes que iniciam as re-formas. Parece-nos que a grande utilidade desse achado é que ele identificaos melhores momentos para as atividades de consultoria.

A continuidade da liderança é essencial

O oitavo achado constata que a continuidade das lideranças imple-mentadoras das reformas garantem que as mudanças se efetivem. Por esseargumento, as lideranças não são fundamentais apenas para desencadear a

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reforma, mas também para sustentá-las. Dois aspectos destacam-se nos lí-deres de sistemas educacionais com melhorias: a longevidade e o cuidadocom a formação da geração seguinte de líderes. Esse aspecto garante a con-tinuidade em longo prazo dos objetivos de reforma. Supomos que nada émais verdadeiro do que reconhecer que a permanência de lideranças à fren-te de sistemas garante a implementação e o realinhamento de ações e polí-ticas educacionais.

O resumo executivo na versão em português do relatório dessa pes-quisa finaliza afirmando:

O desafio fundamental a ser vencido pelos líderes dos sistemas de ensino écomo conduzir o sistema rumo a melhores resultados dos alunos. Essa jor-nada é ainda mais complexa porque os pontos de partida são diferentes, oscontextos variam e os líderes se defrontam com múltiplas escolhas e combi-nações de ações a tomar ao longo do caminho – um passo inadequado podeinadvertidamente levá-los a ingressar em um curso não desejado. É certoque não existe um percurso único para melhorar o desempenho dos siste-mas escolares; contudo, a experiência dos vinte sistemas em melhoria queanalisamos mostra que a natureza do caminho trilhado por eles têm fortesaspectos comuns. O presente relatório descreve os aspectos dessa trajetóriaque são universais, aqueles que são específicos ao contexto, e a interaçãoentre ambos. Esperamos que essas experiências possam trazer benefíciospara sistemas escolares do mundo todo, cada qual em seu percurso própriorumo à melhoria (McKINSEY, 2007, p. 4).

Interpretamos que esse período revela a grande contradição que re-presenta esse trabalho, primeiro por ele não se reconhecer como descritivoe sim propositivo. Reconhece que há grandes diferenças contextuais, aomesmo tempo como sustenta que seus achados são passiveis de replicarpara o mundo todo.

Considerações finais

Diante dos documentos analisados, podemos verificar que essa con-sultoria, como qualquer outra, sutilmente preserva seu espaço de trabalho ede abrangência. No entanto, os achados da consultoria não são novidades.De fato, os governos, se bem intencionados e com estrutura institucional,conseguem elaborar suas políticas e ações no espectro apontado na pesqui-sa. A questão que fica visível é a forma como eles vendem as ideias, algu-

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mas vezes consagradas, como inéditas e legítimas, mas construídas fora doespectro democrático esperado.

Os trabalhos realizados não possuem neutralidade como querem fa-zer parecer; o serviço oferecido aos governos amarra de maneira sutil ofornecimento de soluções para as empresas da sua carteira; na realidade,eles trabalham fazendo as costuras, contatos, ou seja, eles fazem o meio decampo.

O foco da educação baseada na performática e na avaliação de de-sempenho dos alunos afasta as políticas do verdadeiro objetivo da educa-ção, qual seja, formar cidadãos capazes de adquirir e produzir conhecimen-to que garanta a sua cidadania. De acordo com Ravitch (2011, p. 252), “asnossas escolas não irão melhorar se nós continuarmos a focar apenas naleitura e na matemática [...] não produzirão egressos que estejam prontospara a universidade e o mercado de trabalho moderno”. O sistema escolarque os defensores do capital estão a louvar, atualmente, não reproduz emcurto prazo e muito menos a longo prazo uma educação compreensiva deaspectos como as artes, nem equipa os alunos para tomar decisões basea-das em conhecimento, refletido de debate e razão. Muito menos estão apreparar os estudantes para responsabilidades de cidadania em uma demo-cracia (RAVITCH, 2011). O objetivo da educação é “educar as criançaspara que elas se tornem pessoas responsáveis com mentes bem desenvolvi-das e um bom caráter” (RAVITCH, 2011, p. 254). Portanto as consultorias,antes de replicar suas sugestões e ideias aos quatro ventos, deveriam redefi-nir o que entendem por aprendizagem.

Desse modo, é importante diferenciar qual o conceito defendido paraa educação, para a função da escola em cada sociedade. O conhecimentoacumulado nessa área mostra-nos que os fenômenos sociais possuem parti-cularidades, características, propriedades locais que sofrem influências ex-ternas, mas que se alteram de forma particular em cada contexto históricoe cultural em cada região e estado.

Com este trabalho tentamos de forma sucinta alertar para esse movi-mento silencioso das consultorias como meio para adaptar o capitalismovigente ao trabalho dos governos na elaboração de políticas públicas. Nessesentido, Peroni (2012, p. 6) alerta para o avanço da “tão batalhada demo-

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cracia”, ao mesmo tempo em que se verifica o esvaziamento das políticassociais, ao verificarmos que os governantes ficam influenciados pelas reco-mendações dessas consultorias que possuem legitimidade controversa eambígua.

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Relação público-privada noPrograma de Desenvolvimento da Educação:

uma análise do plano de ações articuladas

Alexandre José RossiLiane Maria Bernardi

Lucia Hugo Uczak

Introdução

Este artigo é parte de uma pesquisa realizada pelo grupo de pesquisa-dores vinculados ao Programa de Pós Graduação em Educação da Univer-sidade Federal do Rio Grande do Sul, que trata das “Parcerias entre siste-mas públicos e instituições do terceiro setor no Brasil, Argentina, Portugale Inglaterra: implicações para a democratização da educação”, coordena-do pela professora Vera Maria Vidal Peroni.

Abordaremos a política educacional implementada pelo governo deLuiz Inácio Lula da Silva e mantida por Dilma Rousseff a partir do Planode Metas Compromisso Todos pela Educação e da implantação do Progra-ma de Desenvolvimento da Educação (PDE). O programa materializou-se,entre outras formas, no instrumento chamado PAR – Plano de Ações Arti-culadas, que, partindo de um diagnóstico da realidade educacional local,apresentou ações e subações de assistência técnica e financeira aos municí-pios e estados com baixo Índice de Desenvolvimento da Educação – IDEB.

A questão norteadora do texto indaga como o setor privado adentrae influencia o setor público e quais as implicações para a democratizaçãoda educação. A base material da pesquisa traz os dados coletados nos docu-mentos disponibilizados pelo MEC: Decreto nº 6.094/07, Guia de Ações2011-2014, Guia de Tecnologias Educacionais e os próprios instrumentosde elaboração do diagnóstico e do planejamento disponibilizados atravésdo Sistema Integrado de Monitoramento Execução e Controle (SIMEC).

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A sustentação teórica do estudo está nos argumentos de Ellen Wood (2003),Carlos Montaño (2005), Nalú Farenzena (2012), Vera Peroni (2011) e Chris-tian Laval (2004).

Esse plano já está em sua segunda edição, sendo que a primeira ocor-reu de 2007 a 2011 e a segunda de 2011 até 2014. Envolvendo a sociedadecivil nesse processo de elaboração do diagnóstico, da escolha das ações apartir de defasagens ou dificuldades apresentadas e do acompanhamentoda execução do programa, o governo propôs autonomia para a escolha deações e a possibilidade de todos os municípios aderirem ao programa, rom-pendo com práticas clientelistas e publicizando os critérios de atendimentode assistência. Ao mesmo tempo, propôs uma série de ações em que apre-senta parcerias privadas como alternativa para equacionar problemas apre-sentados. Destacaremos essas parcerias dentro do PAR, analisando as con-tradições apresentadas pela política.

O artigo está organizado em três seções: (i) Plano de Desenvolvimen-to da Educação, em que apresentamos o Plano de Metas CompromissoTodos pela Educação, mostrando como se constituiu a política do PDE; (ii)Plano de Ações Articuladas, em que evidenciamos a materialização do PDEna educação básica através do PAR e destacamos o diagnóstico e a elabora-ção do plano onde demonstramos a relação público-privada proposta pelomesmo; (iii) Guia de Tecnologias Educacionais, que é uma das ações pro-postas pelo PAR, que exemplifica como se realizam as parcerias, destacan-do as possibilidades de parcerias pré-qualificadas pelo MEC. Por fim, faze-mos algumas considerações preliminares sobre a política do PDE/PAR.

1. Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE

O Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação é uma políti-ca pública que integra o Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE.Como o próprio nome já diz, é um plano que prevê o desenvolvimento daeducação no Brasil com o objetivo de investir na educação básica através deprojetos que envolvam toda a comunidade escolar por meio de iniciativasque garantam o sucesso e a permanência com qualidade do aluno na escola.

O Compromisso Todos pela Educação apresenta propostas alinha-das com as reformas educacionais implementadas em vários países euro-

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peus e latino-americanos a partir da década de 1990, cujo objetivo centralreferia a melhoria da qualidade da educação, o que inclui ampliação dejornada escolar, universalização do atendimento, propostas de avaliaçãoem larga escala, incentivos à realização de parcerias externas, buscandoapoio às atividades educacionais, investimento em formação inicial e conti-nuada e valorização dos profissionais da educação, entre outras questões(BARÃO, 2009).

O Plano de Desenvolvimento da Educação foi criado e lançado em2007 pelo Ministério da Educação (MEC). Tal plano segue as recomenda-ções contidas no Decreto nº 6.094/07, que tem como objetivo a melhoriada qualidade da educação básica no Brasil. O decreto é constituído de 28diretrizes, as quais englobam aspectos relacionados ao acesso e à perma-nência dos alunos na escola; também trata da organização do trabalho pe-dagógico, bem como sobre a formação e a carreira dos profissionais daeducação, a gestão da escola e das redes de ensino, a valorização dos profis-sionais da educação, entre outras questões. O Plano de Metas trata-se deuma política intergovernamental que foi proposta pelo governo federal e,de acordo com Farenzena (2012, p. 11), “conta com sua intervenção napromoção e na implementação das ações e envolve, igualmente, com asmesmas funções, as redes estaduais e municipais de ensino, mediante a ade-são dos perspectivos poderes executivos”.

Entre as 28 diretrizes, destacamos as diretrizes XXVII e XXVIII, poisnos chama a atenção a questão de sugerir parcerias público-privadas.

XXVII - firmar parcerias externas à comunidade escolar, visando a melho-ria da infraestrutura da escola ou a promoção de projetos socioculturais eações educativas;

XXVIII - organizar um comitê local do compromisso, com representantesdas associações de empresários, trabalhadores, sociedade civil, MinistérioPúblico, Conselho Tutelar e dirigentes do sistema educacional público, en-carregado da mobilização da sociedade e do acompanhamento das metasde evolução do IDEB (BRASIL, Decreto Nº 6.094, de 24 de abril de 2007).

Como podemos perceber, entre as 28 diretrizes do Decreto nº 6.094/07, duas delas pressupõem que os entes federados, ao aderir ao PDE, de-vem firmar parcerias com entidades externas à escola. Na diretriz XXVIIcoloca como meta que os entes federados firmem parcerias externas à co-munidade escolar, com vistas à melhoria da infraestrutura da escola e à

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

promoção de projetos socioculturais. Aqui observamos uma prerrogativade desobrigação do papel do Estado com o provimento e a manutenção daeducação, repassando o que é de sua responsabilidade às escolas.

Na diretriz XXVIII, o que nos chama a atenção é o fato de que ocomitê local1 deve ser composto, entre outros, por representantes das asso-ciações de empresários. Entendemos que essa sugestão proposta pelo de-creto sugere que se envolvam entidades com uma lógica de mercado dentroda escola pública, influenciando a elaboração e acompanhamento de polí-ticas educacionais. Também sugere parceria com a sociedade civil, sem no-mear o que ou quem é.

Segundo Camini (2008), as informações veiculadas através do site doMEC e nas entrevistas concedidas aos veículos de comunicação na data delançamento do programa definiam o PDE como uma “proposta de aliançade organizações sociais, gestores públicos, secretarias da educação e repre-sentantes da sociedade civil e da iniciativa privada com o fim de garantirEducação Básica de qualidade para os brasileiros” (HADDAD apud CA-MINI, 2008, p. 86).

Percebemos que, na fala do então ministro da Educação, sociedadecivil e iniciativa privada, estão postas como realidades distintas, quandoessencialmente não o são; conforme explicitado por Montaño (2005), arealidade não se divide em primeiro, segundo e terceiro setores, “paraalém do campo das ideias” (MONTAÑO, 2005, p. 181). No movimento doreal, as linhas que dividem esses setores são tênues, de modo que esses sãoconceitos em disputa e, portanto, serão utilizados de acordo com os interes-ses daqueles que os manuseiam. Para o autor em questão, o termo terceirosetor “é carente de rigor teórico” (Ibidem) e traduz-se em um conceito de-sarticulador do social, pois ele pressupõe a existência de um primeiro e deum segundo setores na esfera social.

Amparados na discussão teórica de Montaño sobre o terceiro setor,parece-nos que para o Estado organizações sem fins lucrativos e não gover-namentais (ONGs), movimentos sociais, organizações e associações comu-

1 Ver seção ii.

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nitárias, instituições de caridade de cunho religioso ou de atividades filan-trópicas, fundações/associações empresariais, todas essas instituições cons-tituem o chamado terceiro setor, ou seja, tudo aquilo que estaria fora doprimeiro setor (Estado) e do segundo (mercado). Essa gama de instituiçõese organizações estariam localizados na sociedade civil (MONTAÑO, 2005,p. 182).

De acordo com Rossi (2010), à medida que o terceiro setor é identifi-cado pelo princípio da diferença, ou seja, aquilo que não é nem primeironem segundo setor sucumbiria ao arcabouço do terceiro setor e colocariaem pé de igualdade movimentos sociais antagônicos. Nesse sentido, é fun-damental, ao discutirmos sociedade civil, não perdermos de vista o atraves-samento da perspectiva de classe; senão corremos o risco de homogeneizá-la do ponto de vista das lutas sociais.

Aqui dialogamos com Ellen Wood (2003), a qual afirma que socieda-de civil se tornou uma expressão “mágica e adaptável” a qualquer situação,melhor dizendo, a situação que interessa àqueles que estão no poder, usadopara identificar uma “arena fora do Estado” (WOOD, 2003, p. 208) e setornando um conceito tão amplo capaz de abranger todas as instituições erelações da economia capitalista, do sindicato à própria empresa capitalis-ta, ou seja, coloca a sociedade burguesa como a sociedade civil. De certomodo, “trata-se da privatização do poder público que criou o mundo histo-ricamente novo da sociedade civil” (Idem, p. 127), esvaziando assim a de-mocracia como luta.

O PDE foi pensado com o propósito de agrupar todas as ações eprojetos no âmbito da educação que já vinham sendo desenvolvidos atravésdas secretarias do MEC, como, por exemplo, Secretaria de Educação Con-tinuada, Alfabetização e Diversidade, Secretaria de Educação Básica, Se-cretaria de Educação Profissional e Tecnológica, bem como agrupar açõese projetos desenvolvidos no âmbito da educação por outros ministérios.Nas palavras do ex-ministro Fernando Haddad, o PDE também pode serentendido “como plano executivo, como conjunto de programas que visamdar consequência às metas quantitativas estabelecidas no Plano Nacionalde Educação” (BRASIL, MEC, Plano de Desenvolvimento da Educação,2007, p. 07).

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Lucia Camini (2008) também relata em seu trabalho que “o PDE seapresenta como um enorme guarda-chuva para um conjunto de ações pre-existentes no Ministério da Educação e algumas ações novas ou remode-ladas” (ARAUJO apud CAMINI, 2008, p. 58). E ainda destaca algumaspecto da fala do secretário executivo do MEC, José Henrique Pain, oqual define o PDE como “um conjunto de ações estratégicas que temcomo objetivo melhorar a qualidade da educação” (PAIN apud CAMINI,2008, p. 59).

No âmbito do Plano de Metas, estados e municípios foram “convo-cados” pelo então ministro da Educação a aderir ao Compromisso Planode Metas – Compromisso Todos Pela Educação. A adesão habilitou os mu-nicípios e estados a elaborar o Plano de Ações Articuladas (PAR). O Planode Desenvolvimento da Educação é materializado através do PAR. Tal pla-no possui em certa medida uma proposta que visa garantir a qualidade daeducação quando anuncia que pretende acabar com as desigualdadessocioeducacionais construídas historicamente no Brasil, propondo a assis-tência técnico-financeira a todos os entes federados que aderiram ao plano.

Em 2007, os municípios e todos os estados estavam habilitados a ela-borar o PAR. Deu-se então início ao processo de implementação da políti-ca, que apresentaremos na sequência.

2. Plano de Ações Articuladas – PAR

O Plano de Desenvolvimento da Educação condicionou a assistênciatécnica e financeira do Ministério da Educação à assinatura, pelos estadose municípios, do plano de metas Compromisso Todos pela Educação. Depoisda adesão ao Compromisso, os municípios deveriam elaborar o Plano deAções Articuladas, um instrumento para os estados e municípios se conec-tarem aos programas federais. Quase a totalidade dos 5.563 municípios etodos os 26 estados e Distrito Federal aderiram ao Compromisso, portantopoderiam elaborar o PAR.

Antes de explicitarmos o processo do PAR, faz-se necessário retomaros conceitos de assistência técnica e financeira já mencionados. SegundoNalú Farenzena (2012), é preciso considerar a autonomia dos sistemas deensino e o que significa dar assistência às redes escolares:

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[...] o caráter de amparo, apoio, suporte, ajuda ou auxílio parece ser o quemais se adéqua à atribuição da União de assistir técnica e financeiramenteaos estados, Distrito Federal e aos municípios. O apoio e o auxílio – querdizer, a assistência – são posicionados como o modo concreto, o instrumen-to que viabiliza o exercício das funções redistributiva e supletiva da União,de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrãomínimo de qualidade do ensino. Já o termo técnica, que adjetiva a assistên-cia, encaminha para a compreensão de que os apoios ou suportes são estea-dos num conhecimento especializado – o qual tem uma base referencial téc-nico científica – e visam atingir determinado resultado (FARENZENA, 2012,p. 14).

Desse modo, a assistência passa a ser um apoio capaz de suplemen-tar as capacidades dos estados e municípios, oferecendo recursos técnicos efinanceiros com efeito redistributivo (Ibidem). Para o PAR, tudo o que nãoseja transferência de recursos é considerado assistência técnica e compreen-de, entre outros, a oferta de assessorias, cursos, avaliações, estudos. As parce-rias vão se dar no âmbito da assistência técnica, não financeira. Porém,mesmo não havendo repasses diretos de recursos para estados e municípios,a assistência técnica pressupõe custos que são sustentados através de recur-sos públicos federais.

O PAR é o planejamento multidimensional da política de educaçãoque cada rede pública de educação deve fazer para um período de quatroanos – 2007 a 2011 –, e recentemente foi elaborado um novo plano que vaide 2011 a 2014.

O roteiro oferecido pelo MEC para ajudar na elaboração do PAR éconstituído de três etapas: o diagnóstico da realidade da educação e a ela-boração do plano são as primeiras etapas e estão na esfera do municípioou estado. A terceira etapa é a análise técnica, feita pela Secretaria deEducação Básica do Ministério da Educação e pelo Fundo Nacional deDesenvolvimento da Educação (FNDE). Depois da análise técnica, oFNDE emite um termo de cooperação com as ações de responsabilidadede execução dos entes federados e do MEC, no qual constam os progra-mas aprovados e classificados segundo a prioridade municipal. O termode cooperação detalha a assistência técnica do MEC – que pode ser porum período de até quatro anos do PAR, não constando nesse termo asações de assistência financeira, pois essas são assinadas e detalhadas emoutro acordo específico.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Na etapa de diagnóstico e elaboração do PAR, os municípios chama-dos prioritários2 contaram com a assessoria de técnicos do MEC e de uni-versidades públicas conveniadas com o Ministério e também de ONGs etécnicos da UNESCO para a discussão e elaboração do plano no processode implementação da política. Depois de elaborado o plano, ele deveria serenviado ao MEC, onde passou por uma análise técnica, feita por consulto-res, e o plano poderia sofrer alterações e adequações nas ações cuja respon-sabilidade de execução fosse do MEC.

No âmbito dos estados e municípios, o PAR é coordenado pela secre-taria municipal e estadual de educação, devendo ser elaborado com a parti-cipação de gestores, de professores e da comunidade educacional local, or-ganizações governamentais e não governamentais. Assim ficava determi-nada a existência de uma Equipe Local com membros da própria secreta-ria, do sistema de educação e convidados para elaborar, implementar emonitorar a execução do PAR. Essa pluralidade deveria garantir a partici-pação dos diversos segmentos para a elaboração do diagnóstico da realida-de do município e a lisura do processo. Após o plano ser aprovado peloMEC, iniciava a sua execução, e um novo grupo deveria ser nomeado atra-vés de ato legal, publicado no Diário Oficial do Município para ser o Comi-tê Local Compromisso Todos pela Educação, encarregado de mobilizar asociedade e acompanhar as metas de evolução do IDEB. Na prática, mui-tas Equipes Locais tornaram-se Comitês Locais de Acompanhamento eAvaliação do Plano de Ações Articuladas em cada município3.

Destacamos que a constituição das Equipes e dos Comitês Locais seconfiguram num instrumento de controle social e do exercício da democra-cia, pois a diretriz 28ª do Plano de Metas sugere que sejam consideradosem sua composição os representantes da sociedade civil – associação deempresários e trabalhadores –, Ministério Público, Conselho Tutelar, Câ-

2 Para o MEC, municípios prioritários são os que apresentaram o pior desempenho na avaliaçãodo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) nos anos de 2005 e 2007 e que,portanto, seriam prioritariamente atendidos pelo Programa PAR. Na prática, porém, todos osmunicípios brasileiros puderam aderir ao Compromisso e ter acesso ao PAR.

3 Essa afirmação é oriunda de dois membros do grupo dessa pesquisa terem trabalhado comoassessores técnicos do PAR em diversos municípios, acompanhando sua implantação e moni-toramento.

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mara Legislativa e dirigentes do sistema público, ou seja, “entidades oucidadãos que têm compromisso com a construção da educação” (BRA-SIL/MEC, 2013). Por outro lado, essa identificação é realizada pelo prefei-to ou governador, que nomeia o comitê através de portaria e que pode man-ter praticas clientelistas de convocar seus apoiadores, restringindo a atua-ção desses no controle e ou críticas à execução do plano. Isso, no entanto,não desmerece a criação de um órgão fiscalizador e de acompanhamentosocial que poderia ter critérios mais claros de composição e eleição porseus pares de alguns membros, especialmente os ligados aos setores públi-cos e associações.

O PAR pode ser considerado também um instrumento de diagnósti-co que os estados, municípios e Distrito Federal fazem dos seus sistemas deensino. Esse diagnóstico da situação educacional que vem sendo realizadonos municípios brasileiros está estruturado em quatro grandes dimensões4:gestão educacional, formação de professores e dos profissionais de serviçode apoio escolar, práticas pedagógicas e avaliação, infraestrutura física erecursos pedagógicos.

Para auxiliar os municípios e estados na elaboração dos seus planos,o MEC disponibilizou um Guia Prático de Ações5 com o objetivo de orien-tar a definição das ações que farão parte do PAR, o qual se encontra estru-turado a partir das quatro dimensões acima citadas.

No PAR 2007-2011, cada dimensão é composta por áreas6 de atua-ção, e cada área apresenta uma série de indicadores específicos que repre-sentam algum aspecto ou característica da realidade a ser avaliada e expres-sam algum aspecto da realidade a ser observada, medida, qualificada e ana-lisada. Os indicadores são quantificáveis e estão distribuídos da seguinteforma: dimensão 01 – 05 áreas e 20 indicadores, dimensão 02 – 05 áreas e

4 São agrupamentos de grandes traços ou características referentes aos aspectos de uma institui-ção ou de um sistema sobre os quais se emite juízo de valor e que, em seu conjunto, expressama totalidade da realidade local (BRASIL/MEC, Instrumento de Campo, 2007, p. 12).

5 O Guia Prático de Ações, assim como a política, vem sofrendo transformações desde o inícioda implementação do PAR.

6 Conjunto de características comuns usadas para agrupar, com coerência lógica, os indicadores.Entretanto, não são objetos de avaliação e pontuação (BRASIL/MEC, 2007).

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10 indicadores, dimensão 03 – 02 áreas e 08 indicadores e dimensão 04 – 03áreas e 14 indicadores, totalizando 52 indicadores7 (BRASIL, MEC, Ins-trumento de Campo, 2007).

No PAR 2011-2014 são mantidas as 4 dimensões assim distribuídas:dimensão 01 – 05 áreas e 28 indicadores, dimensão 02 – 05 áreas e 17 indi-cadores, dimensão 03 – 03 áreas e 15 indicadores e dimensão 04 – 04 árease 22 indicadores, totalizando 72 indicadores8 (BRASIL, MEC, 2011).

Quadro 1 - Dimensões do diagnóstico do PAR

Dimensões PAR 2007/2011 PAR 2011/2014

Área Indicador Área Indicador

Gestão Educacional 5 20 5 28

Formação Professores e profissionais de apoio 5 10 5 17

Práticas pedagógicas e avaliação 2 8 3 15

Infraestrutura física e recursos pedagógicos 3 14 4 22

Total 15 52 17 72

Quadro elaborado a partir dos dados do site do SIMEC.

Esses indicadores serão pontuados segundo critérios9 cuja descriçãocorresponde a quatro níveis e foram construídos a partir das diretrizes esta-belecidas no Decreto 6.094/2007. O município ou estado, no momento derealizar o seu diagnóstico da situação educacional, terá que pontuar os in-dicadores propostos nos instrumentos de campo. Esses critérios de pontua-ção valem para as quatro dimensões acima explicitadas nas duas ediçõesdo PAR. Essa pontuação corresponde a quatro níveis, sendo:

Critério de pontuação 4 – a descrição aponta para uma situação positiva,ou seja, para aquele indicador não serão necessárias ações imediatas;

7 Para maiores detalhamentos referente às áreas e indicadores, ver Guia Prático de Ações doMEC de 2007.

8 Para maiores detalhamentos referente às áreas e indicadores, ver Guia Prático de Ações doMEC de 2011.

9 Critérios são os padrões que servem de base para comparação, julgamento ou apreciação deum indicador (CAMINI, 2008, p. 116 ).

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Critério de pontuação 3 – a descrição aponta para uma situação satisfató-ria, com mais aspectos positivos que negativos, ou seja, o município desen-volve, parcialmente, ações que favorecem o desempenho do indicador;

Critério de pontuação 2 – a descrição aponta para uma satisfação insufi-ciente, com mais aspectos negativos do que positivos. Serão necessárias açõesimediatas que poderão contar com o apoio técnico ou financeiro do MEC;

Critério para a pontuação 1 – a descrição aponta para uma situação críti-ca, de forma que não existem aspectos positivos, apenas negativos ou inexis-tentes. Serão necessárias ações imediatas que poderão contar com apoiotécnico e/ou financeiro do MEC (BRASIL/MEC, Instrumento de Campo,MEC, 2007)

Como podemos observar, os itens pontuados pelo município com osnúmeros 1 (um) e 2 (dois) representam suas maiores prioridades, e paracada um deles o MEC apresenta uma ação para ser cadastrada, que, porsua vez, se desdobra em um conjunto de subações que poderão auxiliar osmunicípios a melhorar a situação do indicador. As pontuações 03 e 04 indi-cam que a descrição é positiva ou satisfatória; nesse caso, não era disponibi-lizada nenhuma ação. Na versão do PAR 2011-2014, é possível cadastrarações independentes do critério de pontuação.

Vamos nos deter na versão atual do PAR para destacar a possibilida-de de parcerias público-privadas no diagnóstico e nas estratégias de ações.Ao observarmos a Dimensão 1 – Gestão Educacional –, identificamos apresença de parceria externa para a realização de atividades complementa-res aos alunos, já no diagnóstico:

Indicador 2: Existência de parcerias externas para realização de atividadescomplementares que visem à formação integral dos alunos.

(1) Quando não existem acordos com parceiros externos (ONGs, institutos,fundações, etc.) para o desenvolvimento de atividades complementares, nemplanejamento da secretaria municipal de educação para fazer parcerias.(2) Quando existem acordos, por parte de algumas escolas e/ou da secreta-ria municipal de educação, com parceiros externos (ONGs, institutos, fun-dações, etc.) para o desenvolvimento de atividades complementares, que vi-sem à formação integral dos alunos. Não há iniciativa da secretaria e dasdemais escolas para ampliar o atendimento.(3) Quando existem, por parte de algumas escolas, acordos com parceirosexternos (ONGs, institutos, fundações, etc.) para o desenvolvimento de ati-vidades complementares às realizadas nas escolas que visem à formaçãointegral dos alunos. Esses acordos são de conhecimento da secretaria muni-cipal de educação, que apoia e busca formas de expandir o atendimento àsdemais escolas da rede.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

(4) Quando existem, por parte da secretaria municipal de educação e detodas as escolas, acordos com parceiros externos (ONGs, institutos, funda-ções, etc.) para o desenvolvimento de atividades complementares às realiza-das nas escolas, visando à formação integral dos alunos (BRASIL, MEC.Instrumento de Campo PAR, 2011-2014) (grifo nosso).

Na questão de diagnóstico destacada acima, pressupõe-se que os es-tados e municípios possam ter parcerias externas para a realização de ativi-dades complementares que visem à formação integral dos alunos ou, casonão as tenha, abre a possibilidade de uma ação que sugere a realizaçãodessas parcerias, conforme podemos ver na citação abaixo:

Ação: 1.5.2.3 - Implementar parcerias externas (outras secretarias e ór-gãos governamentais, ONGs, fundações) para a realização de atividadesnas escolas nos finais de semana.

Estratégia de Implementação: Instituição de comitê encarregado de conta-tar instituições – governamentais e do terceiro setor – com vistas a ofereceratividades educativas, culturais, esportivas e de qualificação profissional paraatendimento da comunidade nas escolas abertas nos finais de semana (BRA-SIL, MEC. Instrumento de Campo PAR, 2011-2014) (grifos nossos).

Na dimensão 3 – Práticas pedagógicas e avaliação –, também encon-tramos a indicação de parcerias para a correção do fluxo escolar no instru-mento.

Estratégia de implementação:

Estudos, seminários e palestras para os professores e gestores sobre corre-ção do fluxo escolar.

Identificação e localização dos alunos da rede municipal de ensino emsituação de distorção idade-série e elaboração de um plano para imple-mentação de ações com vistas à regularização do fluxo escolar.

Seleção e implementação de programa de correção de fluxo escolar, pré-qualificado pelo Ministério da Educação e disponibilizado no Guia de Tec-nologias Educacionais/SEB (BRASIL, MEC. Instrumento de Campo PAR,2011-2014) (grifos nossos).

Na dimensão 4 – Infraestrutura Física e Recursos Pedagógicos, nova-mente encontramos no diagnóstico o destaque de ferramentas e materiaispré-qualificados10:

10 São tecnologias pré-selecionadas pelo MEC. Ver maiores detalhes na seção iii.

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Indicador: 4. Utilização de processos, ferramentas e materiais de naturezapedagógica pré-qualificados pelo MEC (Guia de tecnologias educacionais).

1. Quando a secretaria de educação desconhece os processos, ferramentase materiais de natureza pedagógica pré-qualificados pelo MEC (tecnolo-gias educacionais constantes do Guia de Tecnologias Educacionais) e nãosabe se essas tecnologias são implementadas em suas escolas.

2. Quando a secretaria de educação conhece e implementa, em menos de50% das escolas da rede, processos, ferramentas e materiais de naturezapedagógica pré-qualificados pelo MEC (tecnologias educacionais constan-tes do Guia de Tecnologias Educacionais). As tecnologias educacionais pos-suem coerência metodológica com as diretrizes da secretaria de educação esão implementadas considerando, em parte, as especificidades de cada esco-la e seu projeto pedagógico (PP).

3. Quando a secretaria de educação conhece e implementa, em mais de50% das escolas da rede, processos, ferramentas e materiais de naturezapedagógica pré-qualificados pelo MEC (tecnologias educacionais constan-tes do Guia de Tecnologias Educacionais). As tecnologias educacionais pos-suem coerência metodológica com as diretrizes da secretaria de educação esão implementadas considerando as especificidades de cada escola e seuprojeto pedagógico (PP).

4. Quando a secretaria de educação conhece e implementa, em todas asescolas da rede, processos, ferramentas e materiais de natureza pedagógicapré-qualificados pelo MEC (tecnologias educacionais constantes do Guiade Tecnologias Educacionais). As tecnologias educacionais possuem coe-rência metodológica com as diretrizes da secretaria de educação e são im-plementadas considerando as especificidades de cada escola e seu projetopedagógico (PP) (BRASIL, MEC. Instrumento de Campo PAR, 2011-2014)(grifos nossos).

Como fica visível nos destaques acima, já se pressupõe que as secre-tarias de educação conheçam e façam uso das ferramentas e materiais denatureza pedagógica indicados no Guia de Tecnologias Educacionais, quese constitui em uma das ações do Guia Prático de Ações, que apresenta asações e subações que poderão se dar em forma de apoio técnico ou finan-ceiro do MEC.

O apoio técnico do MEC caracteriza-se principalmente pela distri-buição de kits pedagógicos, cursos de formação inicial e continuada, emnível de graduação, aperfeiçoamento ou especialização, melhoramento daestrutura física das escolas, distribuição de equipamentos de informática emateriais pedagógicos, melhoria de acervo bibliográfico, etc. O apoio fi-nanceiro caracteriza-se como repasse direto de recursos financeiros para

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

construção de centros de educação infantil, ampliação de quadras esporti-vas, melhoria e ampliação do espaço físico, etc.

Relembrando que o foco deste artigo é apresentar e analisar as parce-rias público-privadas no PDE/PAR, nos dedicaremos a olhar para o Guiade Tecnologias Educacionais, em que encontramos a oferta de maior nú-mero de parcerias.

3. Guia de tecnologias educacionais11

Elaborado o Plano de Ações Articuladas e indicadas as ações ondesão necessárias intervenções, surge outra ferramenta que visa oferecer op-ções para as escolas adquirirem materiais e tecnologias para o desenvolvi-mento da educação. Trata-se do Guia de Tecnologias Educacionais, do-cumento elaborado pelo MEC e disponibilizado aos municípios brasilei-ros. Segundo o Aviso de Chamamento Público 01/2009, o MEC conside-ra Tecnologias Educacionais: “processos, ferramentas e materiais de na-tureza pedagógica que estejam aliados a uma proposta educacional queevidencie sólida fundamentação teórica e efetiva coerência metodológi-ca”.

O Guia é um documento que contém a descrição de diversas tecno-logias e informações suplementares acerca de materiais pedagógicos ela-borados por instituições ou empresas públicas e/ou privadas e que sãopré-qualificadas pelo MEC. Cabe destacar que o MEC avalia e pré-quali-fica aquelas tecnologias e materiais que considera inovadores e capazesde promover a qualidade da educação básica em todas as etapas e moda-lidades. Com objetivo de disseminar tecnologias inovadoras essa pré-qua-lificação se realiza a partir de critérios próprios e, após a avaliação daimplantação e implementação, podem ser certificadas pelo MEC caso seconstate que tenham “gerado impacto positivo na evolução dos indicado-

11 O MEC considera Tecnologias Educacionais: “processos, ferramentas e materiais de naturezapedagógica que estejam aliados a uma proposta educacional que evidencie sólida fundamen-tação teórica e efetiva coerência metodológica” (Aviso de Chamamento Público 01/2009 – ).

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res da qualidade da educação básica” (BRASIL, 2009). Todo esse proces-so agrega valor às tecnologias sugeridas; esse fator pode ser usado pelasempresas privadas como uma espécie de ‘selo de qualidade’ ao referir nascampanhas publicitárias que determinado produto foi ‘certificado’ peloMEC. Podemos encontrar esse ‘selo’ no projeto de Robótica e Mecatrôni-ca Educacional desenvolvido pela PETe12 – empresa de planejamento emeducação tecnológica, que consta no site “Tecnologia recomendada peloMEC”. Ou ainda em peças publicitárias do Grupo Positivo, que tem maisde 54% da linha de informática destinada ao mercado de governo, linhaessa responsável pelo gigantesco crescimento alcançado pela empresa nosúltimos anos.

O Guia tem como objetivos:

– disseminar padrões de qualidade de tecnologias educacionais que orien-tem a organização do trabalho dos profissionais da Educação Básica;

– estimular especialistas, pesquisadores, instituições de ensino e pesquisa eorganizações sociais para a criação de tecnologias educacionais que contri-buam para elevar a qualidade da Educação Básica;

– fortalecer uma cultura de produção teórica voltada à qualidade na área daeducação básica e seus referenciais concretos (BRASIL, MEC. 2011/2012,p. 15).

Na primeira versão do Guia em 2009, constavam seis categorias.Na versão seguinte de 2011/2012, houve o acréscimo de outra categoria:a Educação Infantil. É importante notar que a da Emenda Constitucional59 de 2009 estende a oferta obrigatória e gratuita da educação básica apartir dos 4 anos de idade, o que, por um lado, avança na extensão doatendimento do direito à educação, por outro, também amplia um seg-mento com grande crescimento no mercado educacional, o que é maisum fator a possibilitar a realização de parcerias, dada a inexistência deestrutura do setor público para o pleno atendimento dessa demanda. Noquadro a seguir, fizemos o comparativo entre o número de tecnologiasexternas e as desenvolvidas pelo MEC e a variação desses números nasduas edições do Guia.

12 WWW.pete.com.br

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Quadro 2

Tecnologia TecnologiaItem Categoria desenvolvida externa Total

pelo MEC ao MEC

2009 2011 2009 2011 2009 2011

1 Gestão da Educação 09 11 06 07 15 18

2 Ensino-Aprendizagem 04 09 51 51 55 60

3 Formação dos profissionais da educação 10 12 14 15 24 27

4 Educação Inclusiva 06 11 01 01 07 12

5 Portais Educacionais 04 05 12 11 16 16

6 Diversidade e Educação de Jovens e Adultos 10 17 07 11 17 28

7 Educação Infantil – – – 08 – 08

8 TOTAL 43 65 91 104 134 169

Quadro elaborado a partir dos Guias de Tecnologias Educacionais, 2009 e 2011/2012.

O primeiro dado que chama nossa atenção no quadro é o númerobem superior de tecnologias desenvolvidas por iniciativas externas ao MEC.Segundo o Aviso de Chamamento Público do MEC 01/2009, poderiamapresentar propostas de tecnologias “quaisquer pessoas físicas ou jurídicasnacionais, de direito público ou privado, tais como: institutos de ensinosuperior, centros e museus de ciências, instituições educacionais, organiza-ções não governamentais, fundações, organizações empresariais e centrosde pesquisa”.

Obervando o Guia, constata-se a presença do setor privado em quasetodas as categorias, porém se destaca a concentração predominante numaárea estratégica para a educação, que é o Ensino-Aprendizagem. Das 60tecnologias pré-qualificadas, 51 são externas ao MEC, e dessas, 06 são deentidades públicas, 01 de pessoa física, 31 de empresas com fins lucrativos e13 do terceiro setor, ou seja, entidades públicas não estatais. Nesse segmen-to estão incluídas as organizações não governamentais (ONGs), as asso-ciações como GEEMPA e CENPEC e institutos como Alfa e Beto, Ayr-ton Senna e Unibanco. O gráfico abaixo mostra a quantidade de tecnolo-gias indicadas, agrupadas conforme o tipo de empresas.

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Gráfico 1 - Tipos de empresas que ofertam tecnologias pré-qualificadas

Gráfico elaborado a partir dos dados do Guia de Tecnologias Educacionais do MEC 2011.

A parceria público-privada na categoria ensino-aprendizagem repre-senta mais do que a oferta de serviço ou material pedagógico. Ela pode vira ser determinante para o currículo escolar, influenciando a concepção deeducação da escola; afinal, definir o que se ensina é uma das atribuições docoletivo de cada unidade escolar através da elaboração do Projeto PolíticoPedagógico da escola e dos planos de estudos. Já a escolha das tecnologiasé uma decisão dos gestores da escola, o que pode ou não envolver a consul-ta aos pares. Associamo-nos ao questionamento proposto por Peroni (2011,p.37) quando pergunta “o que significa o sistema público abrir mão dassuas prerrogativas de ofertar educação pública de qualidade e comprar umproduto pronto, o que se dá desde o currículo escolar, já que as aulas vêmprontas e os professores não podem modificá-las [...]”?

As tecnologias são ofertadas para o todo o país, sem considerar asdiferenças regionais, pois os materiais são padronizados e replicáveis. To-memos por exemplo a alfabetização em que foram pré-qualificadas as se-

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guintes tecnologias, entre outras: o Método das boquinhas13; o ProgramaAlfa e Beta, que oferece um conjunto de materiais ao aluno e manuais deorientação para o professor, utilizando-se do método fônico14; o CircuitoCampeão do Instituto Ayrton Senna, que traz um conjunto de materiaispara o aluno e todo o planejamento do professor, que precisa ser seguidorigorosamente. Consideramos que todos os materiais citados trazem limi-tações enquanto proposta pedagógica e minimizam a autonomia pedagógi-ca da escola e do professor e, em alguns casos, com implicações na gestãoda escola e do sistema de ensino. Podemos evidenciar essa situação na par-ceria com o Instituto Ayrton Senna, em que se verifica nos termos do con-trato15 que desde o professor até o secretário de educação todos têm as tare-fas determinadas e monitoradas pelo Instituto. Essas condicionalidades alte-ram as funções dos gestores, pois transformam “os sujeitos responsáveis pelaeducação em burocratas que preenchem muitos papéis, o que, inclusive, con-traria a LDB/96, no que se refere à gestão democrática da educação” (PE-RONI, 2011, p. 37).

Ao adotar métodos padronizados e replicáveis, entendemos que es-tamos ferindo o princípio constitucional da gestão democrática no que serefere à autonomia pedagógica da escola e do professor, conquistado atra-vés de duras lutas, ainda recentes em nossa história, princípio esse que asse-gura o direito de autoria do currículo e metodologia adequada ao contextoda escola e reconhece professores e alunos como sujeitos históricos.

Outro aspecto que chama nossa atenção no Guia é na categoria deeducação inclusiva, em que aparece apenas uma tecnologia externa ao

13 Consta no material que se trata do método fonovisuoarticulatório, embasado teoricamente noconstrutivismo, porém o conteúdo do livro do aluno destaca a memorização e a silabaçãocomo nos exemplos de frases: O sapo pula. O pirulito tem um palito. O piloto pegou um lápis.Ou no texto que traz a orientação ao professor: “Leia junto com as crianças, pois há letras queainda não foram aprendidas”. Paulo é piloto da polícia. Ele pilota avião, jato e pula de para-quedas. Outro dia, ele passou por cima de São Paulo e pôde ver pessoas pulando no trampolimde uma piscina. Ele levou sua família para passear de avião, e todos pediram para ele pousar elevantar bem ligeiro. Paulo acha muito legal ser piloto da polícia.

14 Exemplo de texto no livro do aluno: O melão mela. E o mamão mela? A lama é mole e mela.A lama é mole e mela? A mamãe mia? A mamãe da Mimi mia. Miau! A meia da Ema. Meiada ema? Ema de meia? Melou? Melou!

15 Para um estudo detalhado sobre a parte jurídica das parcerias, ver PIRES, Daniela (2009). A confi-guração jurídica e normativa da relação público-privada no Brasil e na promoção do direito à educação.

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MEC. Cabe perguntar o motivo da pouca procura de parcerias externasnesse segmento.

O MEC legitima através do Guia de Tecnologias a entrada do setorprivado na educação, fortalece a ideologia e a lógica de mercado, estabele-cendo as parcerias, o que, em nossa compreensão, contradiz os princípios efins da educação nacional estabelecidos na lei de diretrizes e bases. Concor-damos com Laval (2004, p. 111): “Essa intervenção mais direta e mais ativadas empresas em matéria de pedagogia, de conteúdos e de validação dasgrades curriculares e dos diplomas constitui uma pressão da lógica do mer-cado de trabalho sobre a esfera educativa”.

Algumas considerações

Neste artigo, abordamos o PDE/PAR, evidenciando as possibilida-des de parcerias público-privadas que se abrem a partir da elaboração doPlano de Ações Articuladas aos estados e municípios ao realizar o plano,buscando destacar os caminhos pelos quais o setor privado adentra e influ-encia o setor público nas políticas educacionais e as implicações para ademocratização da educação.

No estudo em questão, observamos desde o Decreto nº 6.094/07,passando pelo diagnóstico, Guia de Ações e Guia de Tecnologias que asparcerias são mapeadas e estimuladas caso os sistemas não as tenham.

Ao mesmo tempo que a política avança na questão da oferta de assis-tência técnica e financeira com critérios de conhecimento público e de umdiagnóstico da realidade local, rompendo com práticas clientelistas e desi-guais entre sistemas, qualificando a participação democrática entre os en-tes federados, possibilitando exercer o controle social através dos ComitêsLocais e chegando onde nunca antes o Estado esteve presente na educaçãobásica, contraditoriamente, o conteúdo da proposta apresenta elementosque desresponsabilizam o Estado como executor da política, transferindo aqualificação da educação para as parcerias com entidades do setor privado,que se pautam pela lógica de mercado. Coincidentemente, o Estado apre-senta um discurso que referenda a gestão democrática estabelecida consti-tucionalmente, defendendo a participação de todos na construção da quali-

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

dade da educação, colocando-se a partir do setor público como promotordesse processo e ao mesmo tempo escolhe como interlocutores para a cons-trução dessa proposta parceiros cujas práticas são gerenciais, sustentadaspor concepções mercadológicas.

Também entendemos que, ao comprar tecnologias e serviços do se-tor privado, o Estado deixa de investir na educação pública, repassando aresponsabilidade da qualificação do atendimento para o mercado e des-responsabilizando-se da sua função. Tal estratégia fortalece um nicho demercado onde os “empresários da educação” têm no Estado o seu princi-pal cliente.

Aos analisarmos a história da educação brasileira, constatamos queo governo federal historicamente esteve pouco presente na oferta da educa-ção básica, pois quem predominou foi o setor privado sobre o público. Coma política do PDE/PAR, percebemos que o Estado tem chamado para si aresponsabilidade de garantia da universalização da educação básica públi-ca e de qualidade; podemos dizer que ele está presente, porém de formacontraditória, pois ao mesmo tempo em que ele promove a política pública,ele também sugere as parcerias com o privado, como ficou evidente na aná-lise do instrumento do PAR e no Guia de Tecnologias. Nesse sentido, ques-tionamos que modelo de Estado é esse que está presente na oferta de políti-cas educacionais. O que se percebe é que o Estado se faz presente, porémmuitas vezes essa presença se materializa através da parceria com o setorprivado, que aplica a gestão gerencial, observada em partes do conteúdo doPAR e do Guia de Tecnologias Educacionais.

As tecnologias e os produtos ofertados pelas parcerias privadas che-gam até as escolas com a promessa de qualificação da educação, influencian-do a ação pedagógica, como vimos na seção iii, onde analisamos o Guia deTecnologias; a maior oferta de parcerias está no ensino-aprendizagem. OEstado oferece assistência técnica anunciando a qualificação da educação,porém constatamos um retrocesso pedagógico, como exemplificamos naquestão da alfabetização, pois as novas tecnologias de uso educativo oferta-das podem ser consideradas “ilusões pedagógicas” (LAVAL, 2004, p. 127),pois são instrumentos prontos, replicáveis e padronizados, que afirmamresolver os problemas com pouca ou nenhuma participação do professor

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no processo, comprometendo a autonomia da escola e a formação do sujei-to histórico, uma vez que permite ao mercado construir o conteúdo da edu-cação pública.

Referências

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BRASIL, MEC. Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), 2007.

______. Instrumento de Campo PAR, 2011-2014. Brasília: Ministério da Educação,2011.

______. Planos de Metas Compromisso Todos pela Educação: Instrumento de campo.Brasília, 2007.

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ROSSI, A. J. et al. • Relação público-privada no Programa de Desenvolvimento da Educação

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensi-no público. Londrina: Planta, 2004.

MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente deintervenção social. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

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Expansão da Educação Infantilatravés da parceria público-privada:

algumas questões para o debate (quantidadeversus qualidade no âmbito do direito à educação)

Maria Luiza Rodrigues FloresMaria Otília Kroeff Susin

Introdução

Este artigo analisa implicações da política de conveniamento entre opoder público e instituições privadas sem fins lucrativos para a oferta deEducação Infantil no Brasil, integrando-se a uma pesquisa maior, que ana-lisa as parcerias público-privadas no âmbito da Educação Básica brasileira.A pergunta norteadora do estudo indaga até que ponto a política de parce-rias público-privadas (PPP) democratiza a educação para as crianças de zeroa seis anos, considerados os princípios da Constituição Federal de 1988 –CF/88 e a realidade social, econômica, cultural e educacional de nosso país.

A metodologia do estudo envolveu uma análise da legislação vigentepara a educação nacional e seu financiamento, incluindo documentos ofi-ciais produzidos no âmbito do governo federal que orientam a oferta edu-cacional. O documento intitulado “Orientações sobre convênios entre se-cretarias municipais de educação e instituições comunitárias, confessionaisou filantrópicas sem fins lucrativos para a oferta de Educação Infantil” (BRA-SIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009b) teve uma análise específicapor ser esse o documento orientador para acordos firmados entre o poderpúblico e instituições da sociedade civil, emitido pelo Ministério da Educa-ção/Secretaria da Educação Básica/Coordenação Geral da Educação In-fantil/COEDI. Além desse documento, analisamos a Medida Provisórianº 562 (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 2012a), de 20 de março de

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2012, convertida na Lei 12.695 (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL,2012b), de 25 de julho de 2012.

A década de 1990 constituiu-se em um momento político-econômicoespecífico de crise do capital e minimização do Estado, cujas consequênciasse expressaram de maneira mais radical em cortes efetivados nas políticassociais, promovendo a expansão da política de parcerias entre o poder públi-co e entidades privadas. Sendo assim, a base teórica do estudo incluiu apro-fundamento sobre a configuração do Estado na perspectiva da crise do capi-tal (HARVEY, 1989; MÉSZÁROS, 2002; PERONI, 2010) e estudos sobre aspolíticas públicas de Educação Infantil, incluindo as concepções atuais dessecampo de atuação na Educação Básica (CAMPOS, 2012; BARBOSA, 2009).

Para atender o objetivo proposto, o artigo está organizado a partirdas seguintes seções: (1) a reconfiguração do Estado e suas implicaçõespara o financiamento educacional, abordando desde a reconfiguração dopapel do Estado a partir da década de 1990 às legislações e documentosoficiais vigentes que dão sustentação a políticas de parceria público-priva-da para a oferta de educação; (2) novos conceitos, velhos dilemas: a Edu-cação Infantil entre o avanço das concepções e os riscos de retrocesso naspráticas, na qual essa etapa é apresentada por meio dos documentos le-gais que a normatizam e do avanço conceitual que hoje constitui o acú-mulo da área, situando alguns dilemas de seu panorama político-educaci-onal na atualidade; e (3) repercussões do panorama macroeconômico nocontexto da expansão da oferta de Educação Infantil, abordando de ma-neira analítica as condições de financiamento e os arranjos realizados entreo poder público e entidades da sociedade civil para a oferta dessa etapanas últimas décadas.

Nas considerações finais, retomamos a pergunta inicial sobre as re-percussões do conveniamento entre o poder público municipal e entidadesdo terceiro setor para a ampliação da oferta de vagas na faixa etária daEducação Infantil no que se refere à sua democratização. A partir das aná-lises produzidas, apontamos algumas implicações dessa política no que serefere à garantia do direito à educação para as crianças pequenas, conside-rando os aspectos quantidade versus qualidade na oferta dessa etapa educa-cional.

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A reconfiguração do Estado e suas implicaçõespara o financiamento educacional

A política de atendimento à infância, baseada na participação dasociedade civil em conjunto com o Estado, é uma prática que remonta aoperíodo em que as políticas voltadas às crianças pequenas, principalmen-te àquelas destinadas às crianças mais pobres, eram vinculadas à Assis-tência Social. No Brasil, essa política foi desenvolvida por várias décadaspela Legião Brasileira de Assistência/LBA, entidade extinta pelo Gover-no Federal no início da década de 1990, período em que se inicia a imple-mentação das práticas neoliberais de minimização do Estado em relaçãoàs políticas sociais, amparada em argumentos acerca da necessidade depriorização dos recursos financeiros para a alavancagem da economia ede um prometido desenvolvimento do país.

A política de minimização do Estado, iniciada na gestão do presidenteFernando Collor de Mello (1990/1992), cujo programa de governo apontavaa busca de uma estabilização econômica do país, confiscou a poupança, con-gelou salários, demitiu funcionários públicos e extinguiu autarquias, funda-ções e empresas públicas com a argumentação de “enxugamento da máqui-na estatal”. Essa política de caráter neoliberal, iniciada pelo Governo Collor,teve prosseguimento no Governo Fernando Henrique Cardoso (1995/2002)por meio do Ministério da Reforma do Estado – MARE, sob a responsabili-dade do ministro Luiz Carlos Bresser Pereira. É de autoria desse ministro oPlano de Reforma do Aparelho do Estado (BRASIL, MARE, 1995), cujasbases políticas estavam ancoradas nos pressupostos da terceira via.

Tanto a terceira via como o neoliberalismo têm o Estado como pres-suposto para as crises enfrentadas pelo capital, alegando que aquele se tor-nou gigante e ineficiente. As duas correntes identificam-se em um diagnós-tico conservador para as crises, mas diferem no “tratamento” indicado. En-quanto a terceira via prega a reforma do Estado por meio de uma “siner-gia” com a sociedade civil, o neoliberalismo afirma a necessidade de suaextinção, defendendo a liberdade da economia e a regulação dessa pelomercado. O principal criador do conceito de terceira via, o sociólogo An-thony Giddens foi um dos teóricos do nNovo Trabalhismo Britânico, basede sustentação teórica do primeiro-ministro britânico Tony Blair.

FLORES, M. L. R.; SUSIN, M. O. K. • Expansão da Educação Infantil através da parceria público-privada

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Nesse período particular do capitalismo que vivemos nas últimas dé-cadas (PERONI, 2010), ficam evidentes as relações entre a política econô-mica global e a minimização do Estado, manifestas através da redução decrescimento, do elevado nível de desemprego e da degradação das condi-ções de vida de grande parte da população. Essa realidade torna as popula-ções pobres cada vez mais carentes de serviços públicos, que precisariamser ampliados e assegurados através de políticas sociais.

Nessas últimas décadas, a política econômica brasileira tem seguidoos ditames da política econômica global, apoiada em um diagnóstico con-servador das causas da crise fiscal do Estado. Assim são adotadas práticasde corte de recursos nos investimentos em políticas destinadas às camadaspopulares, justificadas por uma necessidade de desoneração do Estado, paraque esse possa vir a impulsionar o crescimento econômico.

A parceria com organizações da sociedade civil para operacionaliza-ção de serviços do Estado é uma das formas indicadas pelo Ministério daReforma do Aparelho de Estado/MARE, definindo essa prática como umapublicização dos serviços públicos, havendo ainda utilização de outras es-tratégias, como a terceirização e a privatização, também recomendadas.Para Bresser Pereira (BRASIL, MARE, 1995), diferentemente do consensoaté então, não existiriam somente duas propriedades no Brasil: a pública ea privada. Haveria, ainda, a propriedade pública não estatal, onde se dariaa publicização dos serviços de responsabilidade estatal.

Na propriedade privada, a regulação é feita pelo mercado, sem o exer-cício do poder do Estado. Na propriedade estatal, financiada com recursospúblicos, é onde se cumpre o poder do Estado. Na publicização de serviçosde responsabilidade do Estado, proposta pelo Plano de Reforma do Apare-lho do Estado (BRASIL, MARE, 1995), há investimento de recursos públi-cos, mas a regulação desse serviço, o controle propriamente dito, seria dasociedade civil.

É nessa última forma de propriedade proposta pela terceira via, a“publicização”, que se insere a possibilidade de parceria entre o poder pú-blico e as organizações sem fins lucrativos da sociedade civil, que passam aassumir determinados serviços de responsabilidade do Estado. Para Mon-taño (2002), a publicização seria, de fato, uma privatização disfarçada.

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Atualmente, o conveniamento para a oferta de Educação Infantil noBrasil caracteriza-se como uma parceria entre o poder público e entidadesprivadas sem fins lucrativos, que podem ser comunitárias, confessionais oufilantrópicas, administradas por associações de moradores, entidades reli-giosas ou beneficentes, instaladas em comunidades que necessitem dessesserviços.

Nesse contexto, tais convênios, ao ampliarem a oferta da EducaçãoInfantil, garantem, em muitos municípios brasileiros, uma ampliação devagas necessárias, seja pela demanda social, seja pelas exigências legais deexpansão da oferta. Em certos casos, essa opção se dá na contingência deofertar mais vagas; nem sempre considerando todos os critérios legais paraessa oferta. Essas novas vagas, mesmo que não sejam de responsabilidadeintegral do poder público, às vezes são consideradas pela população, erro-neamente, como educação pública, quando se trata, em verdade, de umavaga em instituição privada não particular, com financiamento total ouparcial a partir de recursos do poder público municipal.

Nesse sentido, é importante destacarmos algumas questões sobre ofinanciamento da educação como condição fundamental para a efetivaçãodesse direito. Esse financiamento tem sua história marcada por fundos con-tábeis criados através de Emendas Constitucionais – EC a partir de recur-sos previstos no artigo 212 da CF/88 (BRASIL, CONGRESSO NACIO-NAL, 1988) para investimento na educação básica pública. Esses fundossão de abrangência diferenciada, constituídos pelos recursos dos estados emunicípios, cuja redistribuição se dá de acordo com o número de matrícu-las declaradas nos censos escolares. Em sua origem, essa política previa,também, a disponibilização de recursos da União, de maneira suplementarà capacidade de investimento dos municípios e estados.

O primeiro desses fundos, o Fundo de Manutenção e Desenvolvi-mento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – FUN-DEF, regulamentado pela Lei nº 9.424/96 (BRASIL, CONGRESSO NA-CIONAL, 1996b), teve origem na EC nº 14/96 (BRASIL, CONGRESSONACIONAL, 1996a) e destinava-se apenas ao Ensino Fundamental, nãoincluindo as matrículas da Educação Infantil, do Ensino Médio e nem doEnsino Fundamental na modalidade educação de jovens e adultos – EJA.É fato que, durante sua vigência, o FUNDEB representou uma limitação

FLORES, M. L. R.; SUSIN, M. O. K. • Expansão da Educação Infantil através da parceria público-privada

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

objetiva para a realização de investimentos em Educação Infantil para cer-tos municípios, que deixaram de atender à demanda social crescente.

Em 2007, foi emitida a EC 53/2006, abrindo a possibilidade da exis-tência do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação BásicaPública e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, regu-lamentado pela Lei Federal nº 11.494 (BRASIL, CONGRESSO NACIO-NAL, 2007), de 20 de junho de 2007, sendo esse destinado a toda a Educa-ção Básica e suas modalidades (educação especial, de jovens e adultos, in-dígena e no campo). A criação do FUNDEB regulamentou o repasse derecursos públicos para toda a Educação Básica, estendendo essa prerrogati-va para as vagas existentes em instituições privadas sem fins lucrativos, for-talecendo, em certo sentido, a manutenção e inclusive a ampliação da polí-tica de conveniamento com financiamento público.

A despeito da exigência legal quanto à integração das instituições deEducação Infantil aos sistemas de ensino para ocorrer o repasse de verbaspúblicas, em certos contextos, tem-se observado haver estabelecimentosconveniados que não se encontram autorizados para funcionamento e, por-tanto, ainda não integram o sistema educacional, fato que impediria essasmatrículas de serem declaradas no Censo Educacional do Instituto Nacio-nal de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, de ondesão retirados os dados para a remuneração das matrículas ofertadas pelosmunicípios. A obtenção de uma autorização de funcionamento pressupõeo atendimento aos critérios exigidos nas normativas nacionais, estaduaise/ou municipais, contribuindo para essa observância o montante de recur-sos repassados pelo poder público em troca das vagas conveniadas.

As dificuldades para que uma instituição conveniada se adeque àsexigências do respectivo sistema de educação podem estar na remuneraçãoper capita da matrícula, quando essa é feita por um valor inferior àquelenecessário para uma oferta de qualidade. Um dos argumentos dos gestoresmunicipais para um repasse de valor aquém daquele de referência do FUN-DEB em seu estado é o Art. 22 do Capítulo V da Lei n.º 11.494/2007, quedefine: “Pelo menos 60% (sessenta por cento) dos recursos anuais totaisdos Fundos serão destinados ao pagamento da remuneração dos profissio-nais do magistério da educação básica em efetivo exercício na rede públi-ca” (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 2007). Carreira e Pinto (2007)

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desenvolvem estudos sobre o custo-aluno-qualidade-inicial – CAQi, eviden-ciando que o recurso destinado à educação básica na atualidade, considera-dos os valores do FUNDEB, é insuficiente para um financiamento adequa-do dentro dos padrões de qualidade (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO,2006; 2009), considerando-se as especificidades da Educação Infantil.

Em 2009, o Ministério da Educação produziu o documento “Orien-tações sobre convênios entre secretarias municipais de educação e institui-ções comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos para aoferta de Educação Infantil”, visando oferecer uma “[...] referência para osmunicípios na construção da política de conveniamento” (BRASIL, MEC,2009b, p. 7). O documento foi elaborado de forma coletiva e contou com aparticipação de representações de diversas entidades em âmbito nacional einternacional, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, aCiência e a Cultura-Unesco. Quanto ao aspecto legal, o documento con-templa, além do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (BRASIL,CONGRESSO NACIONAL, 1990) e da Lei de Diretrizes e Bases da Edu-cação – LDBEN 9394/96 (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 1996),as normativas nacionais do Conselho Nacional de Educação, bem comosalienta aquelas definidas pelos sistemas de ensino e seus órgãos normati-zadores.

Composto de três partes, na primeira delas intitulada “ConceituaçãoBásica”, o material apresenta os aspectos legais “[...] e as concepções quefundamentam a Educação Infantil, sua estrutura e funcionamento nos sis-temas de ensino” (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009b), abor-dando aspectos referentes ao componente pedagógico da Educação Infan-til, enfatizando a construção coletiva de um projeto político pedagógicopara orientar as práticas pedagógicas cotidianas, com professores habilita-dos para atuar em espaços institucionais e não domésticos, que poderão serpúblicos ou privados, submetidos ao controle social.

No que se refere ao direito das crianças e das famílias, o documentoenfatiza a CF/88 bem como a responsabilidade dos entes federados, semomitir a função prioritária do município nessa oferta, pautando a atribui-ção compartilhada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Muni-cípios na garantia desse direito. Na primeira parte do documento, afirma-se que o convênio é uma forma de descentralização, por tempo determina-

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

do, da execução de programas ou projetos, em que o poder público se com-promete a repassar recursos a uma instituição privada que mediante planode trabalho executa determinado serviço e presta contas do uso da verbapública.

A segunda parte do documento em análise orienta para a realizaçãode um diagnóstico da realidade de cada município, destacando a importân-cia da atuação integrada de outros setores do governo municipal na imple-mentação de uma política municipal de Educação Infantil que considere asituação de cada uma das instituições. Para a realização do diagnóstico,são sugeridos temas como o cadastro no Censo Escolar do Instituto Nacio-nal de Estudos e Pesquisa Anísio Teixeira/INEP; o número de criançasatendidas na instituição por faixa etária em jornada integral ou parcial; aexistência de crianças aguardando vaga na instituição; seu quadro de recur-sos humanos; a formação de professores em exercício, ressaltando ser in-dispensável que os profissionais que atuam com as crianças sejam habilita-dos para o exercício do magistério. Há, ainda, os quesitos sobre o respeitoaos direitos trabalhistas dos profissionais das instituições; a formação con-tinuada daqueles que atuam com as crianças; a formação dos profissionaisnos cargos de coordenação pedagógica e administração; a existência de pro-jeto político-pedagógico; a situação do espaço físico e infraestrutura; auto-rização da instituição pelo respectivo conselho de educação; a existência dealgum tipo de conveniamento no município.

Por fim, a terceira parte do documento, “Formulação da política mu-nicipal de Educação Infantil”, tem por objetivo esclarecer as dúvidas dosmunicípios relacionadas à aplicação da Lei do FUNDEB, bem como suge-rir “[...] procedimentos para organização do processo de conveniamento”(BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009b, p. 9). O texto sugereque os municípios se apropriem dos conteúdos da lei e se familiarizem como cálculo dos repasses; as contribuições do Fundo para as instituições con-veniadas; e as exigências legais a serem cumpridas por essas para que asmatrículas a serem por elas oferecidas sejam consideradas na distribuiçãodesses recursos. Trata, ainda, do período em que essas serão consideradasna distribuição dos recursos do Fundo; as exigências quanto à aplicaçãodesses; o percentual dos recursos do Fundo que podem ser repassados paraas instituições comunitárias, pelo município, entre outros tópicos.

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Ainda nesta terceira parte, constam informações sobre a responsabi-lidade da Secretaria Municipal de Educação no que se refere às questõespedagógicas relacionadas ao conveniamento e quanto ao acompanhamen-to e avaliação do mesmo por meio das diversas secretarias municipais en-volvidas, incluindo-se a gestão financeira e legal de funcionamento das ins-tituições.

No que se refere à definição de critérios para as entidades serem in-cluídas no convênio, o documento orienta as Secretarias de Educação paraque estabeleçam um “[...] padrão de conveniamento para ação conjunta comas instituições educacionais privadas sem fins lucrativos, comunitárias, filan-trópicas e confessionais, com vistas a um atendimento educacional” (BRA-SIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009b, p. 27). Nos itens finais destaterceira parte, é destacada a importância de ampla divulgação do convênio,dos padrões, critérios e requisitos exigidos, podendo ser utilizado o chama-mento público para a formalização do convênio, depois de selecionadas pelaSecretaria de Educação as instituições contempladas, as quais devem ser “[...]convocadas para firmar convênio” (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCA-ÇÃO, 2009b, p. 28). Como partes integrantes de um documento de convê-nio, o texto destaca como indispensáveis: obrigações mútuas; aplicação derecursos; gerenciamento; documentação exigida; prestação de contas; re-tenção de recursos; saldos financeiros; dotação orçamentária; vigência; res-cisão; publicação e foro.1

Em que pese a possibilidade desse documento ser visto como umincentivo à prática do conveniamento como estratégia de expansão da ofer-ta de Educação Infantil, trata-se de um material que vem atender uma ne-cessidade, na medida em que a prática da parceria público-privada no terri-tório nacional já era, à época, uma realidade.2 Considerando que esse tipode convênio se efetiva com recursos públicos que deveriam ser fiscalizados

1 Nesse documento do MEC, há, ainda, diversos anexos disponibilizados aos municípios comoreferências para a elaboração de termos de convênio.

2 Como exemplo dessa expansão, podemos citar Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul,onde a expansão das vagas nos últimos anos se deu prioritariamente através de convênios. Em1996, a capital tinha 5.125 crianças em creches conveniadas e 5.955 em Escolas Municipais deEducação Infantil. Em 2011, esses números passaram respectivamente para 13.574 e 5.759crianças.

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não só pelo poder público, mas pela sociedade civil, impõe-se a necessidadeda publicidade das exigências legais e sociais para a efetivação dessas par-cerias com mais qualidade, é, sem dúvida, do MEC esse papel indutor.

A proliferação das práticas de conveniamento em detrimento da apli-cação de recursos públicos exclusivamente em educação pública tambémencontra apoio legal na Medida Provisória nº 562, de 20 de março de 2012,convertida na Lei nº 12.695/12, que, entre outros, altera o artigo 8º da Leinº 11.494/2007, do FUNDEB, permitindo o que segue:

§ 1º Será admitido, para efeito da distribuição dos recursos previstos noinciso II do caput do art. 60 do ADCT, em relação às instituições comunitá-rias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com opoder público, o cômputo das matrículas efetivadas:

I - na educação infantil oferecida em creches para crianças de até 3 (três)anos;

II – [...]

§ 3º Será admitido, até 31 de dezembro de 2016, o cômputo das matrículasdas pré-escolas, comunitárias, confessionais ou filantrópicas, sem fins lucra-tivos, conveniadas com o poder público e que atendam às crianças de 4 (qua-tro) e 5 (cinco) anos, observadas as condições previstas nos incisos I a V do§ 2o, efetivadas, conforme o censo escolar mais atualizado até a data de pu-blicação desta Lei (Lei nº 11.494/2007, art. 8º – BRASIL, CONGRESSO

NACIONAL, 2007).

Com essa modificação na Lei do FUNDEB, foi estendida a possibili-dade de atendimento de matrículas da Educação Infantil em creches e pré-escolas através da parceria público-privada até o ano de 2016, quando fin-dará o prazo legal para a implementação universal da Emenda Constitucio-nal 59/09 – EC 59/093 (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 2009).Ressalvando-se a importância dessa restrição legal, para que o poder públi-co venha a assumir a totalidade das matrículas da primeira etapa da Educa-ção Básica, é necessário que nos próximos anos sejam previstas metas erecursos orçamentários para tal no Plano Nacional de Educação e nos res-pectivos planos estaduais e municipais de educação. Os planos orçamentá-rios plurianuais devem prever, ainda, novas fontes de recursos, de maneira

3 A Emenda Constitucional 59/09 – EC alterou a CF/88, tornando obrigatória a matrícula napré-escola para as crianças de 4 e 5 anos, dando como prazo para sua efetivação o ano de 2016.

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a garantir a ampliação do per capita atual, condição indispensável para oaumento da oferta de vagas e para a garantia de padrões de qualidade.

Na seção seguinte, abordaremos o atendimento às crianças até 6 anosno Brasil, buscando evidenciar os avanços legais existentes nas últimas dé-cadas. Destacaremos que as políticas públicas para a oferta dessa etapa edu-cacional ainda carecem de efetiva consolidação em termos de equidade equalidade na garantia do direito à educação, em consequência de fatoresdiversos, incluindo-se as questões de natureza macroeconômica que reper-cutem diretamente no financiamento dessa etapa educacional.

Novos conceitos, velhos dilemas: a Educação Infantil entreo avanço das concepções e os riscos de retrocesso nas práticas

A necessidade de políticas públicas voltadas à criança acompanha ahistória da própria infância no mundo como um todo. Desde o surgimentodas Rodas de Expostos no Brasil4, no século XVIII, as crianças mais vulne-ráveis e desvalidas recebiam um atendimento social diferenciado, com umamistura de filantropia e assistencialismo, configurando-se aí a vivência deuma infância limitada à origem socioeconômica das mesmas.

Quando do surgimento de estabelecimentos educacionais específicospara crianças menores de 7 anos, essa dicotomia se mantém, pois eram ascrianças das classes mais favorecidas que tinham acesso aos jardins de in-fância. O atendimento institucional às crianças pobres a partir de meadosda década de 1950 continuava ocorrendo através da filantropia, por meioda assistência social, com foco no atendimento à necessidade da mulhertrabalhadora, sendo esse direito da mãe trabalhadora inscrito em legislaçãoespecífica na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (BRASIL, CON-GRESSO NACIONAL, 1960) na década de 1960.

A construção dos documentos legais que reconhecem a criança pe-quena como sujeito de direitos vem acontecer na década de 1980, como

4 “As Rodas de Expostos eram asilos administrados pelas Santas Casas, possuindo um mecanis-mo giratório que garantia sigilo na entrega das crianças, através do qual eram recebidos osexpostos, crianças recém-nascidas, abandonadas por suas famílias” (FLORES, 2007, p. 42).

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decorrência dos movimentos de luta pela cidadania, após a ditadura militarno Brasil (1964-1984). A produção teórica e legal das últimas décadas de-monstra a preocupação cada vez maior sobre a temática da infância e sina-liza para um avanço conceitual que foi arduamente construído com o em-penho da sociedade e dos grupos de estudiosos desse campo. Contudo omaior desafio na atualidade é unir o texto legal e o avanço teórico à realida-de, materializando os avanços havidos. Ou seja, garantir os direitos sociaisa todos, com equidade, incluída a dimensão da qualidade, independente-mente da origem socioeconômica das crianças.

Quando falamos em educação infantil hoje, pode ser consenso entrealguns grupos a compreensão de que essa etapa é um tempo/espaço devivência da infância enquanto fase diferenciada do ser humano. A vivênciada cidadania para todas as crianças, aqui e agora, exige espaços de educa-ção coletiva, devidamente adequados ao ordenamento legal vigente e sub-metidos à supervisão e ao acompanhamento tanto pelos órgãos competen-tes como pela sociedade civil.

Do ponto de vista jurídico, a partir do texto do Art. 208 da CF/88,podemos afirmar o direito de todas as crianças até 6 anos à educação: “Odever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: IV– atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos deidade” (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 1988). Mais adiante, oArt. 227 da Lei Maior vai afirmar: “É dever da família, da sociedade e doEstado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, odireito à vida, à saúde, à alimentação, à educação” (BRASIL, CONGRES-SO NACIONAL, 1988). Daí afirmarmos que o direito à educação para ascrianças pequenas foi apenas recentemente adquirido.

Dois anos depois da aprovação da CF/88, o Estatuto da Criança e doAdolescente – ECA/90, em seu Art. 4° (BRASIL, CONGRESSO NACIO-NAL, 1990), ratifica esse direito, que mais adiante, na Lei de Diretrizes eBases da Educação Nacional nº 9.394, de 1996 – LDBEN 9394/96, seráapresentado como responsabilidade prioritária da esfera pública municipalem regime de colaboração com os estados. É então que a Educação Infantilpassa a ser reconhecida como primeira etapa da Educação Básica, pois oartigo 29 afirma: “A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Bási-

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ca, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anosde idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, comple-mentando a ação da família e da comunidade” (BRASIL, CONGRESSONACIONAL, 1996).

Entendemos que o arcabouço jurídico elencado é fortalecido com aaprovação da Resolução CNE/CES nº 01/2006 (BRASIL, CONSELHONACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2006), que institui as Diretrizes Curricu-lares Nacionais para os Cursos de Pedagogia. Em seu Art. 5º, essa normaafirma a dimensão educacional dessa etapa da Educação Básica, quandopreconiza que a educação e o cuidado das crianças pequenas matriculadasna Educação Infantil devem ser efetivados por profissionais do Magistériocom habilitação em nível superior, curso de licenciatura: “O egresso docurso de Pedagogia deverá estar apto a: [...] II - compreender, cuidar e edu-car crianças de zero a cinco anos, de forma a contribuir para o seu desenvol-vimento nas dimensões, entre outras, física, psicológica, intelectual, social”(BRASIL, CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2006).

Nas últimas décadas, o Ministério da Educação, a partir da criaçãode uma coordenação própria para a Educação Infantil, a COEDI/MEC,contribuiu para a consolidação do campo a partir da formulação e divulga-ção de inúmeros documentos. Destacamos a seguir alguns deles: Referen-ciais Curriculares Nacionais – 1998 (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDU-CAÇÃO, 1998a); Parecer 022/98 do CNE/CEB (BRASIL, 1998b); Dire-trizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) estabele-cidas pela Resolução CNE/CEB nº 01/1999 (BRASIL, CONSELHO NA-CIONAL DE EDUCAÇÃO, 1999). Aquilo que veio se consolidando en-quanto concepção de Educação Infantil nesses documentos é representati-vo do avanço da área, resultado do acúmulo construído em termos de pes-quisas e práticas de educação e cuidado das crianças pequenas, como afir-ma Barbosa (2009):

Apesar de as instituições de atendimento para crianças pequenas, como osjardins de infância e creches, já estarem presentes na sociedade brasileiradesde o século 19, a sua inserção nos espaços de gestão da educação é bas-tante recente. Estas conquistas iniciaram-se nos debates da ConstituiçãoFederal, nas deliberações da LDB e do PNE, com a inclusão da EducaçãoInfantil como parte da Educação Básica do país, e continuaram com a deci-são da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação de

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estabelecer Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil, definindo clara-mente a especificidade deste nível de educação (BARBOSA, 2009, p. 170).

Dando continuidade a esse processo de consolidação da dimensãoeducacional da Educação Infantil nos planos teórico e legal, outros docu-mentos foram produzidos, afirmando a importância da formulação e daefetivação de políticas para a área, bem como estabelecendo parâmetros ecritérios norteadores dessa oferta. Entre esses, destacamos: a Política Nacio-nal de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos àeducação (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO MEC, 2006a), osParâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (BRASIL,MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2006b) e Indicadores da Qualidade naEducação Infantil (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009).

Daremos aqui especial ênfase à última publicação citada, por doismotivos. Em primeiro lugar, podemos encontrar nesse documento a siste-matização de um avanço teórico importante na área, construído nas últi-mas décadas, pois o mesmo propõe parâmetros e indicadores atualizados epróprios de uma instituição de Educação Infantil que respeita os direitosdas crianças pequenas; em segundo lugar, configura-se em um “[...] instru-mento de autoavaliação da qualidade das instituições de Educação Infantil[...]” por meio de “[...] um processo participativo e aberto a toda a comuni-dade”, oportunizando que as instituições identifiquem seu próprio cami-nho em direção a uma educação de qualidade, oferecendo parâmetros deanálise das condições de atendimento aos seus familiares (BRASIL, MI-NISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 9).

Como esse documento encontra-se disponível para download no sitedo Ministério da Educação, qualquer creche ou pré-escola pode utilizá-lo,assim como uma rede municipal que deseje avaliar a qualidade da Educa-ção Infantil ofertada. O referido documento propõe a análise da qualidademediante sete dimensões e vários indicadores entendidos como “[...] sinaisque revelam aspectos de determinada realidade e que podem qualificar algo[...]”, considerados como elementos importantes em instituições de Educa-ção Infantil que respeitam os direitos fundamentais das crianças (BRASIL,MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 15).

Cada uma das sete dimensões presentes nesse documento aborda umaspecto essencial na organização da oferta ou mesmo articula vários que se

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inter-relacionem e, em seu conjunto, o instrumento oferece e problematizaquestões que levam a uma avaliação da própria realidade, permitindo aparticipação de todos os envolvidos. A dimensão “Planejamento Institucio-nal” aponta indicadores referentes à proposta pedagógica, ao planejamen-to, acompanhamento e avaliação e ao registro da prática educativa; “Multi-plicidade de Experiências e Linguagens” é outro aspecto de análise comindicadores referentes a experiências saudáveis com o corpo, expressão pormeio das diferentes linguagens plásticas, musicais e corporais, estímulo àlinguagem oral e escrita, reconhecimento e valorização das diferenças.

“Interações”, dimensão central nas experiências de educação coleti-va, envolve indicadores como o respeito à dignidade, ao ritmo, à identida-de, desejos e interesses das crianças e respeito às ideias e produções; en-quanto “Promoção da Saúde” traz indicadores que apontam para a ali-mentação saudável, limpeza, salubridade e conforto do ambiente e segu-rança. Como aspecto central na organização da prática pedagógica, “Espa-ços, Materiais e Mobiliários” destaca indicadores referentes a esses itens eque favoreçam experiências saudáveis, seguras e desafiadoras às crianças;com materiais variados e acessíveis, respondendo, também, aos interesses enecessidades dos adultos que trabalham com essas crianças.

“Formação e Condições de Trabalho das Professoras e Demais Pro-fissionais” enfatiza indicadores como formação inicial e continuada dos pro-fessores e condições de trabalho adequadas. Por fim, a dimensão “Coopera-ção e Troca com as Famílias e Participação na Rede de Proteção Social” trazindicadores sobre o respeito e acolhimento, o acompanhamento das famíliasàs vivências e produções das crianças e a participação da instituição na redede proteção dos direitos da criança.

Para o Ministério da Educação, o processo de autoavaliação sugeri-do nesse documento possibilita realizar um diagnóstico das instituições deEducação Infantil, que, por sua vez, deverá resultar em planos de ação cujoprincipal objetivo é “construir um atendimento de qualidade”. Esses pla-nos deverão ser acompanhados e avaliados por uma comissão representati-va da comunidade escolar com a tarefa de monitoramento dos mesmos(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 28). O Ministério da Educaçãorecomenda, ainda, que esse material seja utilizado pelas instituições de Edu-

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cação Infantil, pelos Conselhos de Educação e pelas Secretarias Munici-pais de Educação5.

Expressando a necessidade de consolidação dos avanços da área, apósdez anos de vigência da Resolução 01/99, ocorreu um processo de revisãodas Diretrizes Curriculares Nacionais – DCN para a área, desenvolvido apartir de discussão nacional envolvendo vários segmentos da sociedade. OParecer CNE/CEB nº 20/2009 (BRASIL, CONSELHO NACIONAL DEEDUCAÇÃO, 2009c) justifica a necessidade de uma revisão das DCN paraa Educação Infantil, culminando com a edição da Resolução CNE/CEBnº 05/2009 (BRASIL, CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO,2009d). Essa norma avança em termos de conteúdo conceitual e normativoem diversos aspectos dessa oferta educacional e indica as interações e brin-cadeiras como eixo da organização do trabalho pedagógico junto às crian-ças pequenas.

A Emenda Constitucional 59/09 – EC (BRASIL, CONGRESSONACIONAL, 2009), ainda que por um lado fortaleça o direito à educaçãodas crianças de 4 e 5 anos, por outro lado, ameaça a unidade da EducaçãoInfantil estabelecida na LDBEN 9394/96 (BRASIL, CONGRESSO NA-CIONAL, 1996), podendo fragilizar a recente conquista do status educacio-nal para o atendimento às crianças bem pequenas. Tornando-se a pré-escoladireito público subjetivo, corre-se o risco de que a etapa creche perca espaçonas políticas educacionais nos municípios, considerada a demanda universalpara a faixa etária de 4 e 5 anos e a necessidade de maiores investimentospara a oferta de educação para as crianças até 3 anos.

Campos (2012) chama a atenção para os baixos índices históricos noatendimento às crianças de 0 a 3 anos no país, alertando, ainda, serem ascrianças mais pobres aquelas mais privadas desse direito, pois, no momen-to em que a obrigatoriedade se aplica apenas à faixa etária de 4 e 5 anos, osmunicípios com poucos recursos financeiros para investimento educacio-

5 As Secretarias Municipais de Educação são os órgãos governamentais responsáveis pela admi-nistração das instituições de educação dos sistemas municipais de ensino, bem como mantene-doras das instituições de educação da rede própria. Os conselhos municipais de educação,quando possuem a função normativa, e os conselhos estaduais são os responsáveis pela regula-mentação e fiscalização da oferta de educação nos respectivos sistemas.

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nal podem optar por “políticas pequenas para as crianças pequenas” (CAM-POS, 2012), opção comum a vários países latino-americanos, com políticasde atenção de caráter socioeducativo ou mesmo meramente assistencial enão educacional, havendo, inclusive, o risco do repasse desse atendimentode forma preferencial para as entidades filantrópicas.

Nesse sentido, Flores, Santos e Klemann (2009) apresentam algunsaspectos que se encontram ameaçados em função da falta de financiamen-to adequado para o atendimento na etapa creche. Entre eles, podemos citarum fato bastante comum nas instituições conveniadas: a atuação de profis-sionais sem a habilitação estabelecida pela LDBEN em função do custo dacontratação de professoras habilitadas em número suficiente para atender àrelação adulto/criança definida nas normativas.

Como outra questão destacada por Flores; Santos; Klemann (2009),temos a retração da oferta de vagas para as crianças bem pequenas, assimcomo a redução da oferta de atendimento em tempo integral, duas práticasque já vêm sendo observadas em diferentes estados do país. Esses movi-mentos promovem uma perda na unidade pedagógica da Educação Infan-til e, ao mesmo tempo, um retrocesso a partir da negação do direito consti-tucional à educação para as crianças até 3 anos.

Na seção seguinte, abordaremos algumas consequências da políticade conveniamento para a oferta de Educação Infantil, em um contextomacropolítico de crise do capital, no qual ocorre o incentivo à realização deconvênios entre o poder público e entidades privadas do terceiro setor. Esseincentivo se sustenta no fato de ser essa uma forma mais ágil e também demenor custo para o atendimento aos direitos da população, mas que, nemsempre, em nosso entendimento, garante os princípios constitucionais.

Repercussões do panorama macroeconômico nocontexto da expansão da oferta de Educação Infantil

Quando as entidades da sociedade civil, historicamente responsáveispela reivindicação e pelo controle social das políticas públicas, assumemencargos do Estado acabam sendo, de certa forma, “cooptadas” a partir deuma inversão de competências. Muitas vezes, distanciadas de seu papel ori-ginal, geram um vazio no espaço que ocupavam como demandantes por

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políticas sociais garantidoras dos direitos de cidadania. Esse processo decooptação de tal força de trabalho muitas vezes é repassado à sociedade sobum discurso de “empoderamento” das entidades privadas sem fins lucrati-vos, especialmente aquelas de natureza comunitária, quando, de fato, trata-se de uma questão complexa.

Segundo Gohn (2011), os movimentos sociais surgidos na década de1970 fortaleceram-se na década de 1980 como uma ação organizada dasociedade civil com vistas à reivindicação dos direitos sociais, contribuindopara consolidar muitas conquistas na Constituição Federal de 1988 – CF/88 (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 1988). Contudo, ao longo dasúltimas décadas, como uma das consequências do processo de minimiza-ção do Estado, temos observado, cada vez em maior escala, um protagonis-mo de entidades do terceiro setor no que se refere a uma responsabilizaçãopela oferta de serviços públicos, entre eles a educação.

Em relação à parceria entre o poder público e a iniciativa privadapara a oferta de educação básica escolar6, chamamos a atenção para algunsaspectos nos quais identificamos indicadores de precarização do atendi-mento ao direito público subjetivo à educação. Questionamos se, nessescasos, o conveniamento das organizações sociais sem fins lucrativos nãoseria, em si, um processo de “enfraquecimento” dessas entidades em rela-ção a seu papel social próprio e não de fortalecimento das mesmas, comose poderia supor.

Quando essas instituições do terceiro setor assumem a oferta de edu-cação, observa-se, em certos contextos, uma oferta precária de atendimen-to ao direito social à educação, inclusive pela falta de condições técnicas demuitas instituições. É comum encontrarmos o atendimento sendo realiza-do em espaços escolares por oficineiros, monitores ou colaboradores quenão possuem formação adequada, realizando um trabalho descontextuali-zado da proposta pedagógica institucional. Em função dos poucos recursosrepassados pelo Estado em troca dessa parceria e também pelo fato desses

6 Atualmente, essa forma de parceria pode ser encontrada em toda a Educação Básica, incluindoas modalidades de Educação Especial, Educação de Jovens e Adultos e, ainda, a EducaçãoProfissional.

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contratados, em muitos casos, não possuírem formação apropriada, aca-bam recebendo baixa remuneração, formando um círculo vicioso entre amá remuneração e a baixa qualidade do atendimento.

Entendemos que com essa “cooptação” da força de trabalho dos mo-vimentos sociais para a garantia de serviços de responsabilidade do Estadona área da educação, temos, ainda, uma perda quanto ao controle socialtanto do gasto do recurso como da qualidade do serviço público. Quandoesses movimentos oferecem um serviço à comunidade em lugar do poderpúblico, entidades conveniadas e gestor público perdem a legitimidade paramonitorar e avaliar a qualidade desse serviço: um, porque está ocupado emdar conta daquilo que foi contratado para oferecer; o outro, por estar contra-tando um terceiro para uma oferta que é de sua responsabilidade.

Com financiamento inadequado e alta demanda, essa etapa sofre con-sequências como a retração da oferta e/ou o prejuízo às condições de qua-lidade necessárias, levando alguns municípios à opção pelo conveniamen-to. No caso das entidades conveniadas, a maioria delas ainda complementaos recursos públicos recebidos por meio da cobrança de mensalidades e/ouda arrecadação de doações, tendo em vista que o repasse do recurso públi-co para tais instituições, em vários casos, é menor do que o valor de referên-cia do FUNDEB para essa etapa.

A cobrança de mensalidades ou “contribuições” das famílias por partedas instituições conveniadas é considerada ilegal, conforme o disposto noArt. 8º da Lei do FUNDEB (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 2007),que estabelece a proibição de qualquer cobrança nos casos de convênio,afirmando a igualdade de condições para o acesso e a permanência na es-cola, bem como a gratuidade a todos os alunos.

A parceria público-privada para a oferta de Educação Infantil no Brasiltem se constituído como uma política preferencial para a ampliação desseserviço, principalmente nas capitais e cidades com maior índice populacio-nal, constando não só dos programas dos governos municipais, mas figuran-do como uma política respaldada nacionalmente desde a inclusão das insti-tuições privadas sem fins lucrativos no repasse de recursos do FUNDEB.

Quando um município não remunera a matrícula da instituição con-veniada pelo mesmo valor de referência do FUNDEB, o convênio configu-ra-se como uma alternativa de ampliação do acesso à educação de custo

FLORES, M. L. R.; SUSIN, M. O. K. • Expansão da Educação Infantil através da parceria público-privada

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

menor do que aquele praticado no referido Fundo, já em si insuficiente,prejudicando a qualidade da educação oferecida às crianças.

Cabe aqui destacar que existem casos de instituições conveniadas queainda não se encontram cadastradas e credenciadas junto aos sistemas deensino, conforme determina a legislação vigente, deixando de atender aoscritérios mínimos de qualidade, a despeito do repasse de recursos públicosque recebem.7 Susin (2005; 2009) aprofunda estudos sobre a qualidade daoferta de Educação Infantil no município de Porto Alegre, evidenciando,como uma de suas conclusões, a falta do cumprimento de parâmetros pre-sentes no ordenamento legal vigente por parte de diversas creches comuni-tárias conveniadas.

O estudo evidencia que as condições socioeconômicas diferenciadaspresentes na Educação Infantil comunitária resultam em diferenças na qua-lidade da educação ofertada pelo estabelecimento conveniado. As institui-ções com mais recursos oferecem melhores condições de qualidade, que sematerializam no espaço físico, nos materiais pedagógicos e na habilitação eformação continuada dos professores. Já a análise das condições de ofertanas comunidades mais carentes revela precariedade nesses aspectos, fazen-do com que se perca de vista o paradigma da igualdade e do direito de todocidadão a uma educação de qualidade, assegurada como princípio consti-tucional (SUSIN, 2009).

Parece óbvio, mas é necessário dizer que, se o recurso repassado éinsuficiente, seria de se esperar que a qualidade do atendimento ofertadofosse insuficiente. Afinal, muitas instituições sem fins lucrativos não possu-em uma mantenedora suficientemente estruturada para garantir um inves-timento per capita dentro dos padrões de qualidade exigidos. Insumos comoestrutura física, materiais, profissionais e alimentação adequados à faixaetária de zero até seis anos exigem recursos significativos.

E aqui é preciso destacar a inconsistência de discursos que separamas questões de quantidade e qualidade na oferta educacional. Mesmo sen-do um conceito reinterpretado em cada contexto, a qualidade na educação

7 Conforme Art. 89 da LDBEN 9394/96: “As creches e pré-escolas existentes ou que venham aser criadas deverão, no prazo de três anos, a contar da publicação desta Lei, integrar-se aorespectivo sistema de ensino” (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 1996).

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da primeira infância, reconhecida internacionalmente como necessária parao desenvolvimento de um país, demanda insumos específicos para que seatinjam os resultados esperados e para que a cidadania se efetive desde asturmas onde são atendidos bebês.

A ampliação da oferta de vagas através de convênios, que poderia serentendida como uma democratização da Educação Infantil, pois, de fato,amplia o número de crianças atendidas, por outro lado, à medida que reali-za sem a garantia dos princípios constitucionais de gratuidade, laicidade equalidade, pode também ser considerada uma pseudodemocratização daeducação.

Afirmamos isso, uma vez que essa educação aquém dos padrões dequalidade estabelecidos é oferecida, justamente, para aquelas camadas maisvulneráveis da população e, ainda, em certos casos, na perspectiva de umapolítica assistencial, quando não assistencialista. Para que pudéssemos afir-mar que estaria havendo uma efetiva democratização da Educação Infan-til, além do acesso a uma vaga, seria necessário que as camadas menosprivilegiadas da população fossem atendidas com políticas educacionaisgarantidoras de inclusão com equidade e qualidade.

Considerações finais

O objetivo deste artigo foi avaliar se a parceria público-privada para aoferta de Educação Infantil se configura, de fato, como uma democratiza-ção dessa etapa da Educação Básica. Um breve desenvolvimento teórico arespeito da crise do capital foi necessário para que se compreendesse a pers-pectiva de conveniamentos entre o poder público e instituições privadasfilantrópicas desde um contexto ampliado de análise. Questões relativas aofinanciamento educacional contribuem na compreensão acerca da opçãode certos governantes, nas últimas décadas, por políticas de parceria públi-co-privada, ao invés da expansão da rede pública de Educação Infantil, adespeito do ordenamento legal vigente com reiteradas referências e indica-ções a padrões mínimos de qualidade.

Nas últimas décadas, leis federais legitimam a parceria público-priva-da ao regulamentarem o repasse de recursos públicos para matrículas daEducação Infantil das instituições comunitárias, confessionais, filantrópicas,

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

sem fins lucrativos, conveniadas com o poder público. Documentos oficiaisorientam a prática da parceria público-privada, instruindo os municípios sobrea adequada celebração de convênios com organizações da sociedade civil.

A partir da análise da legislação, dos documentos normativos e ori-entadores em nível nacional e da fundamentação teórica aqui desenvolvi-da, entende-se que o afastamento do Estado da oferta de educação para ascrianças pequenas, cedendo lugar ao protagonismo de entidades da socie-dade civil, é uma questão complexa, haja vista o contexto macroeconômi-co que aí repercute, assim como algumas configurações na relação público-privado que se estabelecem a partir dessa parceria.

A responsabilização da sociedade civil por demandas do Estado, des-de nosso ponto de vista, tem resultado em uma perda política que enfraque-ce a luta dos movimentos sociais por seus direitos, fragilizando seu papelespecífico de controle sobre a oferta de serviços de responsabilidade do poderpúblico. Quando a comunidade se torna responsável pelo serviço, ocorreuma diminuição não só de sua luta pelo direito à oferta de mais serviços,que venham a atender suas necessidades, como também do acompanha-mento e controle social sobre esses conveniamentos, responsabilidade daprópria sociedade e do poder público.

Essa dupla fragilização na ação fiscalizadora pode prejudicar a quali-dade da educação ofertada, tanto no que diz respeito aos processos pedagó-gicos como aos de gestão e avaliação institucionais e de aplicação dos re-cursos públicos. Pesa para essa problemática, em prejuízo à qualidade, osistema atual de financiamento da educação brasileira. Além do fato deque o custo/aluno/ano praticado pelo FUNDEB, especialmente para a etapacreche, não cobrir o gasto realizado pelos municípios, existe ainda a ques-tão da diferença a menor do recurso repassado às instituições conveniadasem troca das matrículas por essas assumidas. Existem evidências empíricasde que esse repasse insuficiente leva à precarização do trabalho nessas ins-tituições conveniadas, no que se refere à remuneração e às condições detrabalho dos profissionais que atuam com as crianças, bem como em rela-ção aos insumos disponibilizados.

A partir das análises aqui desenvolvidas e respondendo ao questiona-mento inicial deste artigo, entendemos ser inadequada a separação das ques-tões de direito ao acesso e à qualidade na análise da democratização da

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Educação Infantil quando se trata de oferta por meio de parceria público-privada, pois, historicamente, no Brasil, as crianças das classes menos privi-legiadas sempre foram aquelas privadas dos direitos sociais como um todoe não só na educação.

Disponibilizar justamente às camadas mais vulneráveis da popula-ção um serviço que não efetiva simultaneamente o direito ao acesso e àqualidade não significa uma democratização no sentido pleno dado a essapalavra no texto constitucional brasileiro. Considerados os princípios cons-titucionais de gratuidade, laicidade e qualidade, entendemos que não hou-ve democratização efetiva quando uma vaga é ofertada em um estabeleci-mento privado sem fins lucrativos sem atender aos parâmetros nacionais dequalidade. Afirmamos isso desde uma perspectiva que reivindica a supera-ção da dicotomia entre quantidade e qualidade na ampliação da oferta edu-cacional dirigida a crianças até 6 anos.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

As parcerias público-privadas naeducação brasileira e as decorrências

na gestão da educação: o caso doInstituto Ayrton Senna (IAS)1

Luciani Paz ComerlattoMaria Raquel Caetano

Considerações iniciais

Este artigo apresenta como tema as parcerias público-privadas naeducação. Visa analisar as decorrências dessas parcerias no contexto daeducação brasileira no que diz respeito ao exercício da gestão democrática.Para isso, apresenta o Instituto Ayrton Senna (IAS) como exemplo concre-to da educação impregnada da lógica empresarial2, adotando como parâ-metro o mercado através das indicações de produtividade, eficiência e efi-cácia. Apresentamos a tese de que a adoção do gerencialismo na educaçãocompromete a autonomia do sujeito histórico social, aqui entendida en-quanto a capacidade de pensar, criar, criticar, construir e reconstruir indivi-dualmente e, sobretudo, coletivamente3 a sua vida no processo histórico,independente da sua condição social, étnica e de gênero.

Desde as últimas décadas do século passado, vivenciamos, no con-texto da educação pública brasileira, a inserção da lógica privada na gestão

1 Este artigo integra a pesquisa “Parcerias entre sistemas públicos e instituições privadas doterceiro setor: Brasil, Argentina, Portugal e Inglaterra: implicações para a democratização daeducação”, que se propõe analisar a relação entre o público e o privado e as consequênciaspara a democratização da educação no Brasil, Argentina, Inglaterra e Portugal e o que seentende em cada país por público e privado, democracia e direito à educação – CNPQ, coorde-nado pela prof. Dra.Vera Maria Vidal Peroni da UFRGS.

2 Utilizamos a expressão gerencialismo como sinônimo de gestão da educação sob a lógica em-presarial.

3 O coletivo aqui se refere à sociedade como um todo.

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das redes de ensino e na gestão da escola pública, através das parcerias,com instituições públicas não estatais, tais como ONGS e institutos. Essasparcerias, devido a seus princípios teóricos metodológicos, baseados emprojetos educacionais heterônomos, embasados em perspectivas privadas,mercadológicas, vêm na contramão das lutas sociais historicamente cons-truídas, principalmente a partir da década de 1980, por uma sociedade maisdemocrática e, no contexto da educação, pela gestão democrática, afirma-da constitucionalmente no ano de 1988, cujo princípio fundamental é aautonomia escolar nas dimensões pedagógica, administrativa, jurídica e fi-nanceira. De acordo com Comerlatto (2013, p. 112), a autonomia escolarrefere-se ao direito da comunidade educativa de pensar, debater, planejar,elaborar, decidir, executar e responsabilizar-se por tudo o que diz respeito aomovimento do real escolar, baseado nas aspirações coletivas.

Partimos da premissa de que a função da escola é contribuir no pro-cesso de formação do sujeito histórico social. No entanto, para analisar oslimites e possibilidades da concretização dessa função, também é necessá-rio compreender as relações estabelecidas pela educação no contexto dosistema capitalista4, envolvendo Estado, Gestão Pública, Gestão Escolar eGestão de Sala de Aula5.

O estudo da educação, nas suas múltiplas relações, remete-nos aoentendimento sobre a tese da qual partimos e que iremos desenvolver nodecorrer deste artigo: as parcerias público-privadas desencadeiam uma cres-cente perda de autonomia das redes públicas de ensino e consequentemen-te da gestão educacional escolar, promovendo a coisificação humana en-tendida, conforme Comerlatto (2013, p.17), como a condição de subordi-nação que a lógica privada mercadológica atribui ao ser humano de serapenas executor e operador de propostas e projetos previamente definidos.

De acordo com essa tese, evidenciamos a contradição da educaçãono sistema capitalista: se, por um lado, a priori, ela tem a função de contri-buir na construção do sujeito histórico social, desenvolvendo suas habilida-des, construindo valores de vivência coletiva, por outro lado, de acordo

4 Para aprofundar essa discussão, sugerimos o estudo da obra “Para além do Capital”, de IstvanMészáros.

5 Ver Comerlatto (2013).

COMERLATTO, L. P.; CAETANO, M. R. • As parcerias público-privadas na educação brasileira...

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com o atual momento histórico, ela busca estratégias para educar com vis-tas às necessidades do mercado. Segundo Marx (1989), no contexto do sis-tema capitalista, a educação está a serviço da promoção das qualificaçõesnecessárias ao funcionamento da economia e a busca do controle político.

Essa contradição remete a uma nova forma de gerir as lutas que his-toricamente estavam sob a responsabilidade do Estado. Segundo Mészáros(2005, p. 25),

poucos negariam hoje que os processos educacionais e os processos sociaismais abrangentes de reprodução estão intimamente ligados. Consequentemen-te, uma reformulação significativa da educação é inconcebível sem a corres-pondente transformação do quadro social no qual as práticas educacionais dasociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente importantes funçõesde mudança (MÉSZÁROS, 2005, p. 35).

As mudanças no papel do Estado6, ocorridas na transição do séculoXX para o XXI, servem como exemplo da relação de imbricação apontadapor Mészáros, em que o Estado se desresponsabiliza do seu papel de execu-tor das políticas sociais, repassando tal responsabilidade para o público nãoestatal ou para o setor privado7. Configura-se a adoção da lógica privada dagestão empresarial pela gestão pública, por entendê-la como mais produtivae eficiente em todas as esferas da sociedade. Nessa conjuntura, delega-se aomercado o poder de decisão na coisa pública. Para Mészáros (2005, p. 25),

as mudanças sob tais limitações, apriorísticas e prejulgadas, são admissíveisapenas com o único e legítimo objetivo de corrigir algum detalhe defeituosoda ordem estabelecida, de forma que sejam mantidas intactas as determina-ções estruturais fundamentais da sociedade como um todo, em conformida-de com as exigências inalteráveis da lógica global de um determinado siste-ma de reprodução (MÉSZÁROS, 2005, p. 25).

A razão da lógica privada, assim como a do mercado, de intervir nas“questões públicas” é ideologicamente justificada pelo diagnóstico da ine-ficiência da gestão pública, afirmando que “tudo o que é público e gratuito

6 Ver PERONI, Vera. Mudanças na configuração do estado e sua influência na política educacio-nal. In: Dilemas da educação brasileira em tempos de globalização neoliberal: entre o público e o priva-do. 1. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006, v. 3, p. 11-24.

7 Sabemos que esse processo de minimização do Estado (característico dos anos 1990) já sereconfigurou nos anos 2000. No entanto, mantém o favorecimento ao setor empresarial, dele-gando-o à gestão das políticas sociais.

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é ineficiente”. Ou seja, sob o ponto de vista do sistema capitalista, a educa-ção pública precisa ser gerida como empresa, pois é na lógica empresarialque se encontram os critérios, processos e indicadores de gestão eficiente ede sucesso. Tal perspectiva fundamenta e justifica as alterações no sistemade avaliação escolar vivenciado nas últimas décadas, tanto em nível de ava-liação externa como na concepção de avaliação do processo de ensino-apren-dizagem no contexto escolar.

Nesse cenário, destacamos nos sistemas de ensino, na gestão escolare na gestão de sala de aula a execução de práticas teóricas metodológicas,inspiradas no sistema empresarial, a serviço do mercado, afirmando os ter-mos: produtividade, competição, eficiência, eficácia, sucesso e controle comosinônimo de qualidade. Como exemplo dessa perspectiva de gestão da edu-cação, apresentaremos no decorrer do texto o Instituto Airton Senna8. Nocaso da gestão escolar, o controle é exercido pelo gestor sobre todos os su-jeitos da educação, visando à eficiência e eficácia escolar, pautada nos re-sultados quantificadores como forma de se legitimar no mercado. Para La-val (2004, p. 257),

[...] os gerentes aparecem como “[...] ‘verdadeiros chefes’ encarregados deaplicar eficazmente as políticas de modernização decididas pelas altas esfe-ras e capazes de mobilizar as energias; de introduzir as inovações e de con-trolar os professores na base” [...] (LAVAL, 2004).

Nesse sentido, os recursos técnicos, tais como controles estatísticos,padronizações e avaliações de produtividade, etc., procuram atingir metasde eficiência e eficácia previamente definidas em planos estratégicos e acor-dos mediante a lógica da meritocracia. Sendo assim, a competitividadeaparece como o principal fator para desencadear a ‘qualidade’ das escolas.Segundo Laval (2004, p. 209),

Esse vasto movimento de avaliação [...] é inseparável da subordinação cres-cente da escola aos imperativos econômicos. Ela acompanha a “obrigaçãode resultados” conhecida por se impor tanto à escola como a toda organiza-

8 Esse tema foi aprofundado na pesquisa nacional “Análise das consequências de parcerias firma-das entre municípios brasileiros e a Fundação Ayrton Senna para a oferta educacional” (2008-2011), cujo objetivo foi analisar as características dos Programas Escola Campeã e Gestão Nota 10,propostos pelo Instituto Ayrton Senna, e as consequências de sua implantação para a oferta e agestão da educação em nove municípios brasileiros, sob a coordenação da professora Dra. VeraMaria Vidal Peroni e da Dra. Theresa Maria de Freitas Adrião.

COMERLATTO, L. P.; CAETANO, M. R. • As parcerias público-privadas na educação brasileira...

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

ção produtora de serviços. Nisso, ela participa das reformas “centradas nacompetitividade” visando fixar e elevar os níveis escolares esperados e, paraisso, normalizar os métodos e conteúdos do ensino (LAVAL, 2004).

Dessa forma, a escola aparece a ‘serviço’ dos ditames do sistema ca-pitalista e por isso reproduz as suas exigências. Nesse sentido, as avaliaçõesexternas funcionam, entre outras coisas, como mecanismos de regulaçãoda lógica instituída. E falando a partir de Marx, podemos dizer que as rela-ções econômico-sociais determinam a superestrutura, a forma de conduzira educação. O que também aparece em Laval (2004) ao dizer que a compe-tição econômica mundial ameaça que todo sistema educativo se reduza aum produtor do “capital humano” necessário às empresas. E ainda paraesse autor, a competição exige formar cidadãos clientes e consumidores;privatizar a cultura escolar; substituir a formação de valores solidários, hu-manistas, pela cultura competitiva, baseada nos valores do consumismo edo individualismo. Dessa forma, a privatização do ensino envolve muitomais do que a simples cobrança por um serviço. Ela influencia conteúdos,procedimentos e relações de poder dentro da escola que passa a funcionarcom base no dogma do mercado.

Dentro desta mesma linha de pensamento que valoriza a orientação empre-sarializada e mercantilizada da educação, os seus defensores tendem a invocaro carácter salutar e salvífico, da competição entre escolas, propondo então,entre outras medidas: inscrições e políticas de portas abertas; publicação deindicadores de performance e publicitação da imagem da escola; publicitaçãode rankings de escolas; contratação de professores com capacidades especi-ais; ofertas diferenciadas de atividades complementares, competição porrecursos públicos, por apoios empresariais ou de partenariado; novas fór-mulas de gestão com uma menor preocupação pela legitimidade das pres-sões e protestos públicos; profissionalização da gestão; maior atenção aocontrole dos resultados e às medidas e padrões de performance; racionaliza-ção de metas e procedimentos despolarizados politicamente; prossecuçãodo objetivo da total quality management. Nesta competição, não só as escolasprivadas ganhariam em termos de eficiência, mas também as escolas públi-cas estatais obteriam bons resultados, sobretudo se se “privatizassem”, ouseja, se adotassem as práticas e as políticas da gestão privada (CHUBB &MOE, 1990), proclamada como modelo de excelência (ESTEVÃO, 2009, p.40-41).

O que podemos perceber é que a determinação da gestão educacio-nal mediante a lógica do mercado – gerencialismo – é algo externo, masnão só externo, pois constitui substancialmente a própria forma de se pen-

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sar a educação. E essa forma ideológica e ‘traiçoeira’ de se apropriar dosbens públicos pelos interesses privados sempre caracterizou a sociedadecapitalista. Onde, segundo Marx, o Estado não passa de um comitê da bur-guesia. O que vem na contramão daquilo que deveria ser o foco da educa-ção: a formação do sujeito histórico na integralidade, que é simultanea-mente individual e coletivo e cujas relações sociais irão contribuir para areprodução e/ou transformação social. Dourado (2007) elucida a nossadiscussão ao dizer que:

A concepção de educação é entendida, aqui, como prática social, portanto,constitutiva e constituinte das relações sociais mais amplas, a partir de em-bates e processos em disputa que traduzem distintas concepções de homem,mundo e sociedade. Para efeito desta análise, a educação é entendida comoprocesso amplo de socialização da cultura, historicamente produzida pelohomem, e a escola, como lócus privilegiado de produção e apropriação dosaber, cujas políticas, gestão e processos se organizam, coletivamente ounão, em prol dos objetivos de formação. Sendo assim, políticas educacionaisefetivamente implicam o envolvimento e o comprometimento de diferentesatores, incluindo gestores e professores vinculados aos diferentes sistemasde ensino (DOURADO, 2007, p. 923-924)9.

A concepção de educação de Dourado (2007) contribui para o nossoentendimento sobre a função social da escola, a qual para nós consiste namediação do processo de aquisição da condição humana de viver no, com epara o coletivo. Ou seja, a escola tem a função de cooperar com a transfor-mação do sujeito individual, com interesses privados em busca de promo-ções individuais, para o sujeito coletivo, com interesses coletivos, em prol docoletivo. Essa é para nós uma questão central: a educação focada em compe-tições, resultados, planejamentos heterônomos (material replicável, modelosde aulas pré-definidos de norte a sul do Brasil) possibilita a construção dossujeitos críticos e autônomos, a gestão democrática da educação?

Entendemos que a democracia favorece o processo do sujeito consti-tuir-se histórico social. Para isso, o dialogo coletivo é imprescindível. Noque diz respeito ao processo de ensino-aprendizagem escolar, o planeja-mento de ensino é o ponto de partida para que a escola cumpra a sua fun-

9 Políticas e gestão da educação básica no Brasil: limites e perspectivas Educ. Soc., Campinas, vol.28, n. 100 – Especial, p. 921-946, out. 2007. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

ção social. Esse deve estar fundamentado no Projeto Político-Pedagógico etambém no Regimento Escolar10, previamente construído por, no mínimo,representações de todos os segmentos que compõem a escola, desencade-ando o exercício da participação e da responsabilidade coletiva. Evitando,assim, um ensino desinteressante e desconectado da realidade, em que es-tudantes e professores não se compreendem como seres participantes doseu processo histórico. Nesse sentido, Paro (2010, p. 62) contribui com anossa reflexão ao afirmar que:

Ao impor um ensino desinteressante no qual à criança cabe apenas obedeceràs determinações do professor e da escola, independentemente de sua von-tade e interesse, a escola tradicional concorre para desenvolver um tipo deobediência e passividade que não é compatível com o exercício democráticode cidadãos autônomos, incutindo valores que favorecem a constituição deindivíduos acostumados a dominar os mais fracos e a obedecer sem resistên-cia aos mais fortes (PARO, 2010).

Nessa conjuntura, compreendermos que a escola deva propiciar umdebate com toda a comunidade escolar sobre o que ensinar, para que ensi-nar e qual a sua função na sociedade. Entendendo que o planejamento deensino voltado à formação do sujeito histórico social exige conhecimentodo espaço singular, particular e universal na perspectiva histórico-científi-ca; formação continuada; abertura ao diálogo coletivo; tempo e disposiçãopara o planejamento; disciplina; definição de uma identidade, respeitandoa subjetividade, a objetividade e as diferenças tanto do educando como doeducador; compromisso social com a educação.

Nesse sentido, acreditamos que, no sistema capitalista, onde a socie-dade está organizada em classes sociais, com direitos e deveres atrelados àsua condição socioeconômica, a aprendizagem não está centrada apenasno querer fazer individual, mas sim como produto do diálogo coletivo (sis-tema e escola com todos os seus interlocutores).

Nesse contexto, estão postas duas propostas antagônicas sobre a fun-ção da educação escolar, em que cada uma apresenta especificidades coe-rentes com as suas respectivas finalidades, gestão democrática e gestão ge-

10 Tais documentos, quando construídos coletivamente, baseados na práxis, configuram um va-lor essencial, um elo de ligação entre o coletivo escolar.

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rencialista da educação. A primeira visa contribuir na formação do sujeitohistórico na integralidade e, por isso, preocupa-se em oferecer espaços dedesenvolvimento do sujeito em todos os aspectos que envolvem a sua cons-tituição, primando pelo processo de construção que contribui na formaçãode uma sociedade emancipatória, participativa, dialógica, crítica e coleti-va. A segunda visa contribuir na formação do sujeito para o mercado detrabalho, cuja finalidade é habilitar técnica, social, ideologicamente essesujeito com fins no mercado de produção e acumulação do capital, onde asociedade é produtora e promotora da acumulação e, por isso, deve serreprodutora, individualista e competitiva. O sujeito é o meio de se chegarao fim, que nada mais é do que acumulação, lucro e desenvolvimento.

A partir dessa reflexão inicial, apresentamos a seguir o Instituto Ayr-ton Senna como modelo concreto da inserção da lógica privada, gerencia-lista na educação brasileira.

O Instituto Ayrton Senna

O Instituto Ayrton Senna é uma entidade de assistência social sob aforma de associação civil de caráter filantrópico, constituída em novembrode 199411, presidida por Viviane Senna, irmã do piloto Ayrton Senna. Con-forme dados do site em 2012, o Instituto Ayrton Senna apresenta-se comouma instituição da sociedade civil cuja missão são a produção e a aplicaçãoem escala de conhecimento e inovação em educação integral de crianças ejovens. A parceria do Instituto Ayrton Senna com secretarias de educaçãoabrange um em cada quatro municípios brasileiros.

Os recursos financeiros do IAS advêm de parcerias entre o instituto eas empresas privadas e públicas, de doações, de contribuições recebidas ede contratos de sublicença de uso da marca Senna, da imagem do piloto

11 A instituição (IAS) saiu do papel em 15 dias para absorver a fortuna que o piloto tinha areceber por conta de contratos publicitários em andamento. Em 1995, o ano da largada, asdoações somaram R$ 1 milhão. Nos 12 meses seguintes, houve uma ligeira aceleração – R$1,2 milhão. Em 1997, liberou R$ 5 milhões, marca superada pelos R$ 9 milhões que garanti-ram combustível, em 1998, para projetos educativos de impacto. Disponível em: <http://epoca.globo.com/edic/19990503/soci3.htm>. Acesso em: 25 out. 2009.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Ayrton Senna, dos direitos autorais patrimoniais sobre o logotipo do Insti-tuto Ayrton Senna.

Conforme o balanço social 2009, em 13 de julho de 1998, em ato doPoder Executivo, publicado no Diário Oficial de 17 de julho de 1998, oInstituto Ayrton Senna foi declarado instituição de utilidade pública emâmbito federal, estando isento dos impostos incidentes sobre o seu patri-mônio, sua renda e seus serviços, em conformidade com o disposto no arti-go 150, inciso VI, alínea “c” da Constituição Federal. O instituto tambémestá livre das contribuições para a seguridade social por força do dispostono parágrafo 7º do artigo 195 da Constituição Federal.

Se considerarmos a inserção do IAS, verificamos que ele alcançatodas as regiões do Brasil. O site do instituto permite afirmar que em 1998eram 24 municípios que utilizavam os programas, em 2011 já são 1.300municípios em 24 estados do país adotando algum programa ofertado peloIAS. Foram 74 mil educadores capacitados e 2 milhões de crianças e jovensatendidos. Na tabela abaixo, apresentamos os números dos programas en-tre alunos, educadores, municípios e estados.

Números dos programas do Instituto Ayrton Senna

Atendimento* Educadores Municípios Estados

Acelera Brasil 41.508 3.143 544 24

Se Liga 45.838 3.442 581 24

Circuito Campeão 500.588 25.189 348 20

Gestão Nota 10 1.297.158 39.019 535 19

Fórmula da Vitória 6.198 344 2 2

SuperAção Jovem 150.646 1.668 293 1

Educação pela Arte 3.124 143 10 8

Educação pelo Esporte 2.290 143 8 6

Escola Conectada 1.814 188 4 2

Formações em Educação a Distância — 1.614 — —

* Número de atendimentos é o número de estudantes que se beneficiam em cada progra-ma. Em alguns casos, um mesmo estudante pode ser beneficiado por dois programasdistintos, já que demandam ações diferenciadas, com práticas e metodologias específicas.Fonte: Siasi/Instituto Ayrton Senna, 2011.

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Em 2008, o Se Liga, o Acelera Brasil e o Circuito Campeão forampré-qualificados pelo Ministério da Educação como ferramentas de apoioaos sistemas públicos de ensino para a promoção da qualidade da educa-ção12. Confirmando esse dado, constatou-se que o IAS possui financiamen-to público através das “parcerias” com instituições governamentais em queo instituto, através de suas tecnologias educacionais, as dispõe para prefei-turas, governos estaduais e, mais recentemente, através do convênio de Tec-nologias Educacionais, para o Ministério da Educação. O Guia de Tecno-logias Educacionais, lançado em junho de 2008, apresenta a descrição detodos os programas, entre eles o Acelera Brasil, programa de correção defluxo, e o Programa Circuito Campeão, de gerenciamento de aprendiza-gem dos alunos com foco nos anos iniciais13.

No balanço social realizado pelo IAS e disponível na sua página ele-trônica, consta que, em 25 de julho de 2009, o instituto firmou um contratocom o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) paraatender os municípios que manifestassem interesse pelas tecnologias de-senvolvidas pelo IAS, denominadas “Acelera Brasil” e “Se Liga”, num pe-ríodo de dezoito meses a contar da assinatura do contrato. O valor totalfaturado do contrato firmado com o Ministério da Educação (“MEC”) foide R$ 18.404.37514.

O alcance dos programas do instituto no Brasil é preocupante, pois,considerando os diferentes cenários socioeconômicos e culturais das regiões

12 Dados coletados do site: <http://senna.globo.com/institutoayrtonsenna/br/default.asp>.Acesso em: 04 abr. 2010.

13 O Guia de Tecnologias Educacionais foi criado com o objetivo de apoiar os sistemas públicosde ensino na busca de soluções que promovam a qualidade da educação. O guia é compostoda descrição de cada tecnologia e de informações que auxiliam os gestores a conhecer e iden-tificar aquelas que possam contribuir para a melhoria da educação em suas redes de ensino. Oguia está organizado em cinco blocos: gestão da educação, ensino-aprendizagem, formaçãode profissionais da educação, educação inclusiva e portais educacionais. Os sistemas que, aoelaborarem o PAR, incluírem como demanda as tecnologias que consideram importantes parao desenvolvimento do seu trabalho, serão atendidos pelo Ministério. Fonte: <http://www.mec.gov.br>. O material também foi divulgado para as secretarias municipais de educa-ção de todo o Brasil.

14 Condicionado ao número de crianças atendidas pelo projeto e está sendo pago pelo FNDE aoinstituto em sete parcelas, correspondentes à execução integral das sete fases contratadas, asquais são calculadas de acordo com o número de alunos atendidos nos municípios já referidos.

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do país, evidenciamos, através das pesquisas já realizadas, que um mesmoprograma é aplicado de norte a sul, chamado de “programas em larga esca-la”, que, conforme já indicado acima, desconsideram as especificidadesconcretas a partir das quais os sujeitos se constituem. Quando, para Vivia-ne Senna, a causa do “não aprendizado”, que leva à repetência e à evasão,é a má qualidade do ensino e não a subnutrição ou a falta de estímulo.Conforme podemos evidenciar na sua declaração realizada à Revista Ges-tão e Inovação (2007, p. 10): É justamente a incapacidade da escola deensinar. Tanto assim que, quando você faz a escola ensinar, as crianças apren-dem e são a mesma criança, a mesma professora, a mesma escola. A únicadiferença é que essa escola passou a funcionar.

Viviane Senna, presidente do IAS, afirma que o instituto contribuipara inserir no currículo e na rotina escolar diversas estratégias e práticasinovadoras para que cada criança e cada jovem possam se desenvolver emsuas múltiplas competências cognitivas e não cognitivas, reforçando comisso o aprendizado das disciplinas regulares e contribuindo para lidar comas exigências que surgem a cada dia no novo mundo do trabalho e no con-vívio social. Para ela,

[...] o atraso educacional se reflete na economia, de modo claro, com a faltade profissionais capazes de fazer a diferença num mercado global extrema-mente competitivo, dominado por produtos e serviços de alto valor agregadoem termos criativos, científicos e tecnológicos. Também o cenário políticoglobal, incluindo o dos movimentos sociais, requer competências mais am-plas, pois exigem-se posicionamento e tomada de decisões difíceis. Portanto,educação de qualidade, em larga escala, é mais do que nunca uma chave paraenfrentar os maiores desafios do presente e do futuro (SENNA, 2011).

A fala de Senna remete a um caráter salvacionista da educação15,inserido permanentemente nos discursos dos programas do Instituto Ayr-ton Senna, o que ‘explica’, em parte, a aderência e abrangência deles naeducação brasileira. Entendemos que a afirmação de Senna de que a faltade profissionais capacitados faz a diferença num mundo competitivo estáde acordo com a perspectiva teórica que compreende a educação comoserviço para e do mercado. Ou seja, para Senna, os programas do IAS de-

15 O discurso salvacionista da educação tem sido comum nos atuais discursos proferidos peloempresariado em relação à educação brasileira.

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vem, em primeira instância, formar mão de obra para servir ao mercado. Aeducação aparece como a mediadora para esse fim.

Os programas do Instituto Ayrton Senna caracterizam-se como pro-gramas de gestão da escola e da aprendizagem. Pois, de acordo com o ins-tituto, a raiz dos principais problemas encontrados nas escolas brasileirasestá na necessidade de uma gestão mais eficiente de recursos, focada emresultados. Por isso sugere o Programa “Gestão Nota 10”, que oferececapacitação e ferramentas gerenciais para as secretarias da educação e paraos gestores escolares.

Em relação ao processo de aprendizagem, a gestão escolar ocorrepor meio do Programa Circuito Campeão, que orienta e monitora direta-mente as ações educacionais de combate ao analfabetismo e à baixa apren-dizagem nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Para atender esses alu-nos, o IAS apresenta os programas Se Liga, Acelera Brasil e Fórmula daVitória (IAS, 2011).

A inserção do Instituto Ayrton Senna nas redes de ensino público dopaís ocorre a partir do que ele denomina como soluções educacionais, queapresentam na sua base uma concepção de educação, que não é neutra,conforme poderemos observar no decorrer deste artigo. A proposta é deimplementação dos conceitos iniciais dos Quatro Pilares da Educação –aprender a ser, aprender a conhecer, aprender a conviver e aprender a fazer–, desenvolvidos pela Unesco em 1988 e lançados no Brasil com o Relató-rio Delors.

O instituto traduziu esses conceitos em habilidades e competênciasque podem ser desenvolvidas na escola, com ações práticas, para formularpropostas objetivas às políticas públicas. As soluções, segundo o instituto,ajudam a desenvolver nos estudantes as competências cognitivas e não cog-nitivas necessárias para que possam enfrentar os desafios do século 21, comocidadãos, profissionais e agentes políticos, econômicos e sociais. Para o IAS,a amplitude do trabalho articulado pelas soluções educacionais permite que,separadamente ou em conjunto, elas funcionem como elementos de políti-cas públicas. E isso tem ocorrido em diversas regiões do Brasil, mesmoquando parcerias formais chegam ao fim.

Percebemos em nossos estudos que um dos objetivos do IAS é tornaros programas de uma instituição privada em política pública para as redes

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de ensino, ou seja, inserir a lógica da gestão privada no ensino público, oque interfere na formação dos educadores, dos gestores e na formação dosujeito histórico e social.

Partindo do suposto da igualdade de oportunidades para todos, pelavia da educação, o documento da Unesco retoma e atualiza o “conceito deeducação ao longo de toda a vida, de modo a conciliar a competição, queestimula a cooperação e a solidariedade que une” (JACOMELLI, 2008, p.165). Esse conceito visa como fazer com que cada indivíduo saiba conduziro seu destino em um mundo onde a rapidez das mudanças se conjuga como fenômeno da globalização, para modificar a relação que homens e mu-lheres mantêm com o espaço e o tempo.

Nessa perspectiva está a discussão da qualificação do trabalhador pelavia da aquisição de competências. Não há mais período na vida e na escolapredeterminado. O trabalhador competente ou flexível é aquele que desen-volve atitudes voltadas para a resolução de problemas, que se adapta a qual-quer situação no ambiente de trabalho, sabendo trabalhar em equipe (idem).A escola, em qualquer momento da vida do indivíduo, deve prepará-lo paraa aquisição de competências básicas para o mundo do trabalho.

Problematizando acerca das competências e da formação do aluno,Marise Ramos (2001, p. 130) contribuiu afirmando que “descarta-se a edu-cação para a cidadania em favor da educação para a produtividade, umaeducação baseada em procedimentos” (RAMOS, 2001). Um dos argumen-tos a favor das competências era a aproximação entre escola e trabalho comotentativa de mudar a relação entre a teoria e a prática, entre o geral e oespecífico. Para ela, “transpor essa mesma lógica para o sistema educacio-nal seria subordinar-se às exigências do mercado, o qual poderia estabele-cer inclusive os padrões de qualidade” (RAMOS, 2001, p. 130). Isso pode-ria reduzir o ensino a um treinamento ao qual Ramos (2011) se opõe, aoalertar que, nessa ótica, “a função educativa começa a ser marcada tambémpor uma perspectiva individualizante e adaptativa da sociedade às incerte-zas da contemporaneidade” (RAMOS, 2001, p. 131).

A proposta dos quatro pilares da educação, propostos por Delors, jáapresentados acima, mostra que as diferenças individuais são consideradasimportantes e fundamentais para que cada indivíduo encontre o melhorlugar nessa sociedade. Na perspectiva de que a sociedade está em constan-

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tes modificações, diminuindo a importância dos conteúdos escolares, quesão reduzidos a meras informações, e defendendo a necessidade de aqui-sição de um saber imediato e utilitário, o que se contrapõe à nossa visãode formação. Como os programas do instituto são prontos, padroniza-dos, a função do professor fica restrita a de um técnico atuando apenascomo um executor das decisões já estabelecidas. Nesses termos, o conhe-cimento não resultaria de um esforço social e historicamente determina-do de compreensão da realidade. O conhecimento só é válido por suautilidade ou viabilidade.

O enfoque nas competências reconfigura o papel da escola com umprojeto de sociedade em curso. Esse projeto tem interferências na gestão daeducação e da escola e, especialmente, no trabalho do professor. Compre-endemos que os processos de gestão escolar não se fazem no vazio ou deforma neutra. O processo de gestão realiza-se no seio de uma formaçãoeconômico-social, sendo, portanto, determinado pelas forças concretas,presentes na realidade (PARO, 2010). A gestão da escola relaciona-se dire-tamente com a concepção de educação e de homem que se quer formar.Como já apresentamos, a concepção de educação que defendemos é aquelaque visa formar o homem na sua integralidade como sujeito histórico, polí-tico e social.

O Instituto Ayrton Senna, ao oferecer seus programas prontos, pre-tende a formação de um determinado cidadão, já que sua proposta não éneutra, mas intencional. O IAS tem mostrado que seus programas podemser desenvolvidos independentemente da concepção de educação e métodode trabalho, ou seja, os programas podem ser utilizados para escolas detodo o Brasil, pois trabalham com o foco do gerenciamento.

Uma das características das soluções educacionais apresentadas peloIAS é o modelo de gestão integrada. Com ele, toda a rede se mantém co-nectada e monitorada, desde as secretarias de educação até cada uma dasescolas, compartilhando dados e metas, articulando os recursos com o ob-jetivo de melhorar o aprendizado e o desenvolvimento dos alunos. Pararealizar tal intento, utiliza-se do SIASI (Sistema Ayrton Senna de Informa-ções), em que o controle de todo o processo fica a cargo do IAS através dasinformações enviadas pelas escolas e secretarias de educação ao instituto.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Quanto a essa questão, Viviane Senna informa que sabe on-line o que estáacontecendo nas escolas:

Posso escolher uma escola e saber até quantos livros o aluno leu, em quelição ele está etc. Nós montamos todo esse processo. O professor passa osdados para o supervisor, que assiste à aula desse professor, de 15 em 15 dias,para acompanhá-lo. O supervisor é capacitado para ver onde o professorestá acertando e onde não está. Temos também uma avaliação externa, con-tratada. Ou seja, o que fazemos é uma dupla checagem. A gestão tem de sermuito eficiente. O professor não é funcionário nosso, nós não podemos de-miti-lo e ele não ganha mais por trabalhar mais ou para que o sistema real-mente funcione (SENNA, 2007, p. 10).

O controle do processo educacional não é mais da escola, dos profes-sores e dos alunos. Ele é exercido pelo Instituto Ayrton Senna nas redes deensino do país, possuindo informações privilegiadas sobre a educação pú-blica e interferindo nas mesmas. Para isso, utiliza os três efes: eficiência,eficácia e efetividade na formação de educadores. São gestores, coordena-dores e professores formados, que são a alma do sucesso de todo o processoeducacional.

De acordo com o IAS, o instituto oferece como soluções para os pro-blemas da educação brasileira as seguintes características: efetivas, pois sãooferecidas de acordo com a necessidade de cada instituição; eficazes, por-que dão certo; e eficientes, porque são viáveis (MISKALO, 2009). Nessecaso, a efetividade diz respeito à capacidade de se promoverem resultadospretendidos. Para Marinho e Façanha (2001), a eficiência denotaria com-petência para se produzirem resultados com dispêndio mínimo de recursose esforços, e a eficácia, por sua vez, remete a condições controladas e aresultados desejados de experimentos, critérios que, se deve reconhecer, nãose aplicam automaticamente às características e à realidade dos programassociais (p. 2), pois precisam de um grande trabalho para que sejam incorpo-rados pelas pessoas que os utilizam.

Constata-se que, na área educacional do IAS, a eficácia é alcançadaquando os programas atingem seus objetivos, obtêm resultados satisfatóriosno processo ensino-aprendizagem e quando atendem às necessidades da so-ciedade em geral e do aluno em particular. Nesse aspecto, parte do pressu-posto de que produzir com melhor qualidade significa produzir com maior

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produtividade, ou seja, com menos desperdício e menos retrabalho e, nessecaso, com custos menores dentro de uma lógica empresarial.

O Instituto Ayrton Senna “trabalha com as redes de ensino na reali-zação de diagnósticos educacionais, buscando compreender as necessida-des de cada uma das redes segundo seu contexto geográfico, econômico esociocultural” (IAS, 2011). Para ele, o respeito a essas realidades leva àconstrução de soluções customizáveis, capazes de atender às mais específi-cas necessidades de cada rede. “Essa racionalidade permite evitar o des-perdício do dinheiro público com ações que apenas remediam as consequên-cias, sem solucionar as causas” (IAS, 2011). Essas ações customizáveis têmcomo parâmetro o fazer mais com menos e para esse intento usam a padro-nização muito utilizada em processos de gestão empresarial e é considera-da, segundo Falconi (1992), “a mais fundamental das ferramentas geren-ciais”, sendo à base da rotina. É a atividade sistemática de estabelecer eutilizar padrões em que, após o padrão estabelecido, qualquer pessoa possautilizá-lo. Para compreender o conceito, é necessário conhecer o padrãoque é “um documento condensado estabelecido para um objeto, método, pro-cedimento, responsabilidade, dever, [...] com o objetivo de unificar e simpli-ficar de tal maneira que seja conveniente e lucrativo para as pessoas envol-vidas” (FALCONI, 1992, p. 5).

Gomes (1994, p. 71), na mesma linha de Falconi (1992), define queos padrões são “métodos específicos de trabalho para: planejar processos,executar tarefas e treinar operadores”. Segundo ele, não se podem contro-lar processos de trabalho diário sem padronização. A padronização para aqualidade dos processos de rotina diária, segundo Gomes (1994, p.72), são:“manter a escola sob controle, garantir domínio tecnológico e delegar auto-ridade. Quando os principais processos de uma escola estão padronizados,seu serviço torna-se previsível” (GOMES, 1994). É através da padroniza-ção dos programas que o IAS chega a várias escolas do Brasil, pois utilizaos mesmos processos independentemente se a escola é do norte ou do suldo país, ou mesmo da concepção de educação que cada escola utiliza. Por-tanto o controle, a produtividade, a eficácia, o foco nos resultados estãopresentes nos programas educacionais do IAS, assim como estão presentesnas empresas, o que limita a atuação das redes e escolas e redefine a gestãoeducacional.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

O foco em resultados está expresso também na cultura da avaliação.Para o IAS, é “fundamental mensurar o processo e o que ainda necessita deadequações para aprimorar o resultado, as soluções e as ações” (IAS, 2011).Somado ao monitoramento do processo, utiliza-se de avaliações externasdos resultados e do impacto gerado pelo trabalho realizado em parceriacom as redes escolares. Podemos verificar essa afirmação nas informaçõesabaixo em que o enfoque no resultado gerencial prepondera sobre o proces-so de ensino-aprendizagem.

99,1% Administram as escolas de acordo com os padrões estabelecidos

97,4% Asseguram o cumprimento dos dias letivos previstos para o mês

98,9% Registram fielmente a assiduidade de todos os servidores da escola

98,5% Gerenciam os resultados mensais dos alunos

96,3% Tomaram decisões a partir do gerenciamento de dados

99,4% Favoreceram o desenvolvimento profissional da equipe

99,6% Foram acessíveis à comunidade escolar (pais, professores, alunos,servidores)

99,1% Forneceram merenda regularmente

98,2% Asseguram em tempo a distribuição de material escolar aos alunos

97,2% Atenderam os prazos estabelecidos

Fonte: SIASI/Instituto Ayrton Senna, 2011. Relatório de Resultados 2011.

Da mesma forma, os coordenadores e professores demonstraram terdesenvolvido competências para gerir o processo educacional, assumindoa responsabilidade e o compromisso junto aos alunos. Avaliados individu-almente pelos seus diretores, eles tiveram uma expressiva confirmação deque, com a parceria, estão no caminho certo, adotando as boas práticaspropostas pelos programas Se Liga e Acelera Brasil.

98,85% Favoreceram a construção da boa autoestima pelos alunos

98,65% Seguiram as orientações gerenciais do programa

98,4% Planejaram coletivamente a partir das matrizes de habilidades

95,75% Consideraram o resultado das avaliações nos planejamentos

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99% Dominaram os conteúdos a serem ensinados

97,65% Cumpriram a rotina prevista para o desenvolvimento da aula

98,5% Desenvolveram todas as atividades e conteúdos previstos nomaterial dos alunos

97,05% Mantiveram salas com ambientação pedagógica estimuladora daaprendizagem

84,25% Leram todos os livros de literatura disponibilizados para a turma

98,85% Leram em voz alta para os alunos, pelo menos, uma vez por semana

94,15% Construíram semanalmente um texto coletivo

96,85% Atenderam as dificuldades dos alunos através de atividadesdiversificadas

Fonte: SIASI/Instituto Ayrton Senna, 2011. Relatório de Resultados 2011.

Nessa lógica apresentada pelo IAS, o ensino está divorciado da apren-dizagem. O sucesso ou fracasso da escola, dos professores e dos alunospassa a ser equacionado a partir das suas possibilidades individuais, consti-tuídas a partir de seu esforço e de sua adequação ao modelo imposto a ele.Tal modelo é construído a partir da lógica mercadológica emprestada dogerencialismo empresarial: relação custo/benefício, empreendedorismo,eficiência/eficácia, competências e habilidades. Essa lógica visa transfor-mar o cidadão político em cidadão-cliente. A avaliação dos professores érealizada tendo como base os manuais do IAS: seguiram os manuais/nãoseguiram os manuais, como mostram as questões elencadas acima.

Algumas considerações

Com base na exposição acima, evidenciamos que o IAS apresentauma proposta de gestão educacional pautada na lógica empresarial, a servi-ço do mercado, e utiliza-se de promessas salvacionistas para inserir-se emanter-se no campo da educação brasileira, que nas últimas décadas temsido foco de interesses diversos, inclusive lucrativos em termos econômi-cos, uma vez que favorece, através de incentivos de isenção e/ou diminui-ção de impostos, o empresariado brasileiro. Essas promessas encontramsustentação nos constantes discursos, inclusive midiáticos, de que a educa-

COMERLATTO, L. P.; CAETANO, M. R. • As parcerias público-privadas na educação brasileira...

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

ção pública brasileira encontra-se em estado de precariedade, fundamental-mente pela ausência de uma gestão ‘eficiente e eficaz’, tal como funcionamas empresas privadas, cujo foco encontra-se nos resultados.

Os programas do instituto funcionam como uma espécie de “carti-lha” ou “apostila” com soluções para cada suposto problema da educação.Se o problema apresentado é gestão, oferece-se o Programa Gestão Nota10; se é alfabetização, o Programa é o Circuito Campeão. Isso remete àafirmação de que há um projeto de sociedade sendo pensado e engendradopelos ideólogos que defendem a educação voltada para o mercado e nãopara a democracia.

Esses programas são contraditórios ao processo de democratizaçãoda educação brasileira, pois não há participação das diferentes comunida-des escolares na elaboração dos mesmos e muito menos na necessidade e/ouviabilidade em aplicá-los. No limite, os sujeitos participam apenas do ‘de-bate’ de como operacionalizar o projeto já definido previamente pelo IAS.Ou seja, os programas em ‘larga escala’, replicáveis, são heterônomos enão possibilitam a participação dos reais interessados: a comunidade esco-lar. Logo interferem e dificultam o exercício da gestão democrática da edu-cação, cujos maiores princípios são a autonomia, a participação e o diálogoda/na comunidade educativa, fundamentados nas suas características par-ticulares em consonância ao campo universal em que se encontram. ParaComerlatto (2013, p. 212),

a gestão da educação do IAS, através da sua proposta organizacional, estra-tégica e gerencialista, abstrai-se das condições histórico-sociais dos sujeitosda educação, desconsiderando a sua forma de viver, representar, pensar, cri-ar, criticar e transformar, reduzindo-os a sujeitos executores de tarefas, re-plicadores de propostas heterônomas, impondo-lhes um processo de coisifi-cação humana (COMERLATTO, 2013).

Entendemos que a gestão gerencialista do IAS, cujo caráter é centra-lizador, abstrato e tecnicista, promove a coisificação humana, produzindo,conforme Marx afirma nos Manuscritos econômicos filosóficos, uma relação deestranhamento do trabalhador ao produto de seu trabalho, devido ao cará-ter alienante das relações, em oposição à promoção da autonomia, caracte-rística da gestão democrática.

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Sistema de ensino Aprende Brasil– Grupo POSITIVO

Monique Robain Montano

Este artigo decorre de parte de uma pesquisa em andamento no gru-po pertencente ao Núcleo de Política e Gestão da Educação da Universida-de Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, que discute as “Parcerias entresistemas públicos e instituições do terceiro setor no Brasil, Argentina, Por-tugal e Inglaterra: implicações para a democratização da educação”, coor-denada pela Dra. Prof. Vera Maria Vidal Peroni.

Este artigo pretende expor algumas das reflexões acerca das implica-ções entre o público e as instituições privadas para o ensino público a partirda compra de sistema de ensino e de tecnologias educacionais produzidaspelo Grupo POSITIVO1, quais sejam: para a gestão democrática, para oacesso e para a melhoria da qualidade da educação pública.

Essa apreciação decorre de pesquisa documental e conteúdos dispo-nibilizados no sítio da empresa em questão e sítios governamentais. Paratanto, esta análise apresenta o contexto em que surgem as tecnologias daeducação, as características dessas e abrangência, seguida por uma análiseda parceria e suas implicações.

Num cenário de diminuição da atuação do Estado para a superação dacrise do capital, desempenhando um papel de regulador da economia paraevitar a redução dos lucros, abalizando o mercado como parâmetro de quali-dade e bem como arrefecendo os investimentos para as políticas sociais, oPlano de Desenvolvimento da Educação – PDE, oficialmente lançado peloMinistério da Educação em 2007, traz o discurso da potencialização da edu-cação no país. As razões e os princípios apresentados para a consecução do

1 Sobre o tema ver ADRIÃO (2010); ADRIÃO, GARCIA, BORGHI (2009) e ADRIÃO et al.(2009a).

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

plano afirmam que só há garantia do “[...]desenvolvimento nacional se aeducação for alçada à condição de eixo estruturante da ação do Estado deforma a potencializar seus efeitos. Reduzir desigualdades sociais e regionaisse traduz na equalização das oportunidades de acesso à educação de qualida-de” (p. 5). Constou da agenda do PDE o fortalecimento para a EducaçãoBásica, propondo o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação,materializado nos municípios por meio do Plano de Ações Articuladas –PAR. Entre os incrementos à qualificação da educação estão as tecnologiaseducacionais2, política a ser executada pelos municípios, uma das ações inse-ridas nas dimensões do PAR, com vistas à melhoria do IDEB.

Um dos programas do governo federal implantado e implementadoao Distrito Federal, aos estados e municípios a partir de 2007, por meio doMinistério da Educação – MEC, foi o Programa Nacional de TecnologiaEducacional (ProInfo), que instrumentalizou as escolas públicas de Educa-ção Básica com computadores, recursos digitais e conteúdos educacionais.Em contrapartida aos entes federados, compete garantir a estrutura ade-quada para receber os laboratórios e capacitar os educadores para o uso dasmáquinas e tecnologias. Ao aderir ao programa, os municípios assumiramcompromisso com as diretrizes do mesmo. Consta do termo que os entesque aderirem ao programa deverão aprovisionar a infraestrutura adequa-da, os serviços de manutenção e segurança para os ambientes tecnológicosdestinados às escolas e Núcleos de Tecnologia Educacional – NTE. Damesma forma, fica ao encargo desses a formação dos profissionais parautilização pedagógica das Tecnologias da Informação e Comunicação-TICs,além do fornecimento dos recursos e das condições necessárias ao trabalhodos núcleos no desenvolvimento e acompanhamento das ações de capaci-tação nas escolas. Também destina a responsabilidade do suporte técnico emanutenção dos equipamentos nos laboratórios após o término da garan-tia da empresa fornecedora.

2 As tecnologias educacionais compreendem material educativo, sejam Softwares ou Jogos Edu-cacionais. Esses sistemas são moldados com conteúdos pré-determinados para utilização emturmas de alunos, acompanhados por educadores, necessitando, no entanto, que esses profissio-nais possuam conhecimento básico em informática.

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Concomitante a esse programa, o governo implantou também o Progra-ma Nacional de Formação Continuada em Tecnologia Educacional (ProInfoIntegrado), voltado à formação dos profissionais da educação por meio deportal e com disponibilização de conteúdos e recursos multimídia e digitais.

No ano de 2009, o Ministério da Educação abre edital com o objetivoda identificação de parcerias que possuíssem tecnologias educacionais com“potencial para promover a qualidade em todas as etapas da educação bási-ca pública” (portal.mec.gov.br). A partir da chamada pública, avaliação epré-qualificação, o sítio governamental passa a divulgar parceiros que de-senvolvem tecnologias educacionais em conjunto com as tecnologias de-senvolvidas pelo Ministério da Educação, a fim de que essas possam seradquiridas para uso nas escolas públicas brasileiras pelos gestores educa-cionais, com a finalidade de apoiar os sistemas públicos de ensino na buscapor soluções que promovam a qualidade da educação. Nesse cenário e comesse fomento, a presença da iniciativa privada na educação pública cresceude forma significativa. O grupo POSITIVO consta nesse Guia das Tecnolo-gias na relação dos portais educacionais.

O Grupo POSITIVO

Fundado na década de 1970, por um grupo de oito professores, ini-ciou com um curso pré-vestibular e uma gráfica para impressão de materialdidático. Posteriormente, ampliou sua atuação educacional abrindo umaescola de Ensino Médio, investindo na produção de microcomputadores.Cabe ressaltar que nessa época o Brasil ainda não estava aberto à importa-ção de equipamentos informatizados. Na década de 1990, então, cria umauniversidade e expansão da produção de microcomputadores para atendi-mento da demanda das escolas conveniadas privadas, aliando a oferta dematerial impresso e equipamentos informatizados. Concomitante a isso, apartir de uma reorganização, passou a distribuir seu sistema de ensino paraescolas conveniadas.

Dados do próprio site demonstram que a expansão da venda de siste-mas de ensino para a rede pública ocorre a partir do ano de 2001, aproxi-madamente. Destaca-se que, em meados da década de 1990, o Ministério

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da Administração Federal e Reforma do Estado promove a Reforma doAparelho do Estado com a racionalização de recursos, diminuindo o seupapel no que se refere ao investimento para as políticas sociais. Essa delimi-tação das funções do Estado põe junto à redução do tamanho do Estado aprivatização, a terceirização e a transferência para o setor público não esta-tal os serviços sociais e científicos que o Estado deveria prestar.

Atualmente, o Positivo promove, para a educação pública e privada,desde a fabricação de microcomputadores até a produção de softwares, apli-cativos educacionais e desenvolvimento de portais de internet. Hoje seus pro-dutos estão direcionados para áreas do ensino-aprendizagem, formação deprofissionais da educação, gestão da educação e portais educacionais.

A partir das informações expressas no sítio, verifica-se que o grupoPositivo comercializa tecnologias educacionais para países da América doSul, África, Europa, Ásia, Oriente Médio e Estados Unidos; no Brasil, co-mercializa seus produtos nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal.Essa empresa oferta, entre outros, produtos nas áreas educacional, gráfico-editorial e produtos de informática. Na área educacional, seus produtossão destinados a dois públicos: para escolas da rede pública e para escolasda rede privada, contidas nessa as suas próprias escolas. Os conteúdos de-senvolvidos objetivam atingir a Educação Básica e Superior. Compreen-dem os produtos da área educacional os sistemas de ensino e conteúdospedagógicos por meio de quatro portais: o Portal Aprende Brasil, o PortalEducacional, o Portal Universitário e o Portal Positivo.

A área gráfico-editorial é composta por duas empresas: a EditoraPOSITIVO e a POSIGRAF. A primeira oferta livros didáticos, paradidáti-cos e de interesse geral, entre eles o minidicionário Aurélio e material deapoio aos sistemas, como, por exemplo, a revista Aprende Brasil. Já aPOSIGRAF é responsável pela impressão dos livros didáticos das escolasPOSITIVO, revistas, periódicos, publicações especiais e impressos comer-ciais e promocionais. A área da informática, além de produzir computado-res, softwares, é responsável pelo desenvolvimento, gerenciamento das tec-nologias educacionais, de serviços de capacitação de professores/usuáriose suporte técnico.

Conforme mencionado, a oferta da área educacional compõe-se dedois sistemas de ensino, um destinado às escolas particulares e outro direcio-

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nado às escolas das redes públicas. Nos sistemas são encontrados conteúdosprogramáticos, como áreas das linguagens, exatas, ciências humanas, entreoutras que atendem toda a Educação Básica com sugestões de atividadesou mesmo planejamento de aulas. Entretanto, para acessar qualquer con-teúdo ou recurso, faz-se necessário a instalação do sistema operacional pago.

Em ambos os sistemas, a compra ocorre por opção do gestor, seja daescola da iniciativa privada ou pelo secretário de educação no caso para asescolas da rede pública. Os produtos que compõem o sistema comercializa-do para a rede privada compreendem livros didáticos, com conteúdos paraa educação infantil até cursos preparatórios para o ingresso no curso supe-rior; assessoria pedagógica; assessoria em gestão escolar e o portal POSITI-VO. Dos itens integrantes do sistema destinado à rede pública estão livrosdidáticos, da Educação Infantil ao Ensino Médio; assessoria pedagógica; oportal Aprende Brasil e o Sistema de monitoramento. No caso das redespúblicas, não há oferta de material preparatório para o ingresso no cursosuperior.

Um olhar mais aproximado entre os itens dos produtos disponibili-zados aos diferentes conveniados revela sutil diferença aqui expressa. Aassessoria pedagógica para a rede privada propõe-se o aperfeiçoamento e acapacitação a partir de formação continuada para a equipe docente. Já paraa rede pública, apresenta como proposta a oferta de cursos e o atendimentopedagógico personalizado com equipes de profissionais especializados, osprofessores, os coordenadores das escolas e das secretarias de educação,com vistas a subsidiar e garantir a funcionalidade do sistema.

Quanto à assessoria pedagógica especializada para as conveniadasprivadas está a oferta de suporte para garantia de adequação à propostametodológica das escolas parceiras; para as escolas da rede pública, a asses-soria pedagógica personalizada implica tornar operacional o Sistema deEnsino Aprende Brasil, a metodologia para o uso do livro didático, bemcomo para a utilização das ferramentas e dos conteúdos disponibilizadosno Portal Aprende Brasil e para o planejamento e avaliação.

Quanto ao programa para os cursos ofertados pelo assessoramentopedagógico, existe também um diferencial para aquele oferecido à iniciati-va privada e aquele à rede pública; qual seja: para as escolas privadas o

MONTANO, M. R. • Sistema de ensino Aprende Brasil – Grupo POSITIVO

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curso tem o foco regional, nas áreas do conhecimento e de metodologiavisando ao aperfeiçoamento de gestores e formação continuada de profes-sores. Para o sistema público, o curso apresenta dois eixos: um para a im-plantação do Sistema de Ensino Aprende Brasil e sua proposta pedagógicae o segundo com foco na metodologia com o objetivo de formação continua-da, ou seja, uma padronização para todas as escolas com o objetivo de fun-cionamento do sistema implantado e com a padronização de metodologiaque desconsidera a complexidade da escola, o compromisso e a construçãode um projeto político-pedagógico coletivo, longe do incentivo à autono-mia dos professores, além de uma padronização curricular desconsideran-do as diferenças sociais e culturais nos municípios e regiões.

O último item integrante da cesta do Sistema de Ensino AprendeBrasil compreende o sistema de monitoramento, que se constitui em ferra-menta tecnológica educacional de acesso do prefeito, do secretário de edu-cação e dos gestores educacionais para verificação do desempenho da edu-cação pública do município, visualizando as ações e atividades realizadasnas escolas da rede. Esse sistema de monitoramento permite tanto à insti-tuição privada como ao gestor público acompanhar o desenvolvimento doprograma. Com a possibilidade de monitoramento que o programa com-prado pela Prefeitura oferece ao gestor ficam disponibilizados os dados domunicípio; já à empresa privada POSITIVO estão disponibilizadas as in-formações de todos os sistemas públicos onde atuam, o que lhe permite aapropriação de uma base de dados significativa, que lhe dá subsídios parainterferir nas políticas públicas educacionais. O sistema de ensino reserva-do às escolas públicas totaliza o atendimento a 400 mil alunos em mais de2.300 escolas públicas3 no país.

O caráter não governamental assumido pelo Terceiro Setor, que implica nãoser submetido ao controle institucional, aponta uma importante questão namedida em que essas organizações têm um poder cada vez maior. SegundoFernandes, “formam um mercado de trabalho específico, influenciam a le-gislação em seus mais variados domínios e condicionam os orçamentos dosgovernos, das empresas e dos indivíduos” (FERNANDES, 1994, apud PE-RONI, 2010, s/p.).

3 Dados disponibilizados no sítio do Grupo Positivo.

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Segundo consta no site, o grupo de empresas apresenta como missãoa formação do ser humano e pretende alcançar seu ideal por meio da edu-cação integral e pela inovação tecnológica. A visão expressa no site preten-de alcançar o patamar de referência empresarial na área da educação nosmercados em que atua.

A Positivo Informática tem como estrutura de gestão um Conselhode Administração e a Diretoria. O primeiro é um órgão colegiado de cará-ter deliberativo, composto por sete conselheiros, na maioria acionistas. Ocolegiado tem como atribuições a orientação geral dos negócios, eleição dadireção e fiscalização da concernente gestão. Quanto à diretoria, atualmen-te é composta por 10 membros, sendo Hélio Bruck Rotenberg Diretor Pre-sidente.

O sistema de ensino Aprende Brasil em prática

A adoção do sistema de ensino Aprende Brasil tem como implica-ções a rigorosidade de conteúdos pensados para um programa anual, orga-nizados em séries/anos e com orientações metodológicas para o trabalhodo professor e que tem como foco a sequência de aprendizagem de conteú-do e a utilização do planejamento de forma inflexível para a ação docente.É sabido que a diversidade presente regionalmente, de escola para escola eentre turmas, exige a variação de práticas pedagógicas, em que o professorfaz muitas opções para os conteúdos a serem trabalhados, os objetivos aserem alcançados e mesmo na avaliação, para que no decorrer da sua ativi-dade o aluno obtenha sucesso em sua aprendizagem. Entendemos que oplanejamento não pode ser efetivado de maneira mecânica, desvinculadodo contexto em que está inserido e com o contexto dos alunos. Nessa con-tratação, o segmento professores, no que tange ao processo pedagógico,fica colocado à condição de executor de tarefas.

O sistema de monitoramento do portal Aprende Brasil permite a ex-tração de relatório a partir do “login” do aluno ou do professor. O relatórioregistra blogs acessados, atividades mais acessadas, quais escolas, horários,conteúdos, acessos por escola. O monitoramento desenvolvido junto aosprofessores caracteriza-se enquanto controle à medida que os professores

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das turmas realizam relatórios de todas as atividades desenvolvidas com ascrianças em todos os dias da semana, a fim de entregá-los aos monitores doPositivo. A construção de um projeto pedagógico elaborado pela escola,assim como o planejamento coletivo possibilitam aos professores discuti-rem a pertinência, bem como a significação do conteúdo para o planeja-mento.

Tanto a Constituição Federal de 1988, assim como a Lei 9394/96que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, apontam parauma educação gestada democraticamente em um processo construído co-letivamente. Os educadores têm historicamente lutado pela democratiza-ção da educação pública, e suas demandas a partir de muita luta foramparcialmente incorporadas ao corpo de algumas legislações educacionais.Também o MEC disponibiliza em seus documentos apontadores a qualida-de gestada democraticamente, como colocado, por exemplo, no referencialpara os indicadores da educação de qualidade na educação, que dizem aquem compete a definição pela qualidade.

Além da padronização do método e material, a adoção de sistemasde ensino elaborados por parte dos gestores rompe com a proposta deprocesso coletivo da educação pública, pensada a partir das questões sociaiscolocadas para a escola enquanto consequência das diferenças sociais im-postas pelo modelo econômico estabelecido; percebe-se a ausência doacompanhamento do controle social na gestão e aplicação dos recursospúblicos.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seuartigo 206, traz em seu bojo a gestão democrática como princípio, assimcomo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, o princí-pio da escola pública de qualidade, a liberdade de ensino e a construção dosprojetos pedagógicos participativamente construídos, fundamentados notrabalho coletivo, fruto da luta da sociedade brasileira pela escola pública eeducação de qualidade para todos.

Importante destacar que a escola tem como função social o desenvol-vimento pleno do indivíduo, e nesse sentido a LDBEN postula em seu Tí-tulo II - Dos Princípios e Fins da Educação Nacional que:

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Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípiosde liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade opleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cida-dania e sua qualificação para o trabalho.Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensa-mento, a arte e o saber;III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;VII - valorização do profissional da educação escolar;VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legisla-ção dos sistemas de ensino;IX - garantia de padrão de qualidade;X - valorização da experiência extraescolar;XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.XII - consideração com a diversidade étnico-racial.

O contrassenso expresso na aquisição de sistemas de ensino padroni-zados, à revelia do que estabelecem os princípios da legislação educacionalpara uma educação pública, está para o desmantelamento de uma escolaque se entende enquanto lugar de concepção de cultura, construção deaprendizagens, concepção, realização e avaliação de seu projeto educativo,que organiza sua prática pedagógica com base na sua comunidade educacio-nal e diversidade nela expressa. Nesse sentido compete ao Poder Público e àsociedade o fortalecimento das relações entre escola e sistema de ensino paraa consolidação de uma escola pública democrática e de qualidade social.

Certamente uma mudança na concepção colocada para a melhoriada educação necessita da mobilização das comunidades escolares, pensadaorganicamente, bem como da ininterrupta luta dos educadores pela quali-dade social da escola pública.

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Relação público-privada naEducação Básica no Brasil: uma análise

da proposta do Instituto Unibancopara o Ensino Médio público

Marcelisa Monteiro

Introdução

Este artigo apresenta uma análise da parceria entre o Instituto Uni-banco e os governos estaduais na gestão da Educação Básica brasileira atra-vés das tecnologias educacionais desenvolvidas para o Ensino Médio públi-co mediante o questionamento sobre como o privado entra, influencia e sematerializa no setor público. Questões que advêm da pesquisa mais amplaintitulada Parcerias entre sistemas públicos e instituições do terceiro setor: Brasil,Argentina, Portugal e Inglaterra e as implicações para a democratização da educa-ção, coordenada pela prof. Dra. Vera Maria Vidal Peroni.

Inicialmente, o artigo situa os movimentos do processo histórico eas correlações de forças que permitem a entrada do setor privado no setorpúblico em forma de “quase mercado”, ou seja, quando o privado modi-fica o conteúdo do público, mesmo mantendo-o público. Justificando, as-sim, a presença do Instituto Unibanco nas escolas públicas em algunsestados brasileiros. Para tal, o estudo apoia-se no referencial teórico combase em Peroni (2010), Ball (2010), Freitas (2009), Wood (2003) e Gramsci(1980).

A seguir, apresenta o Instituto Unibanco e, mediante resultados par-ciais da análise documental, mostra as suas iniciativas no sentido de trans-ferir seus programas para os governos estaduais em forma de políticas pú-blicas, qualificadas pelo Ministério da Educação.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A última parte é dedicada à análise, nos limites deste artigo, da con-cepção político-educacional1 do conteúdo da proposta do Instituto Uni-banco, enquanto um indicador que evidencia contradições entre o proces-so de materialização da política através das tecnologias educacionais doinstituto e o avanço na democratização da educação. E as consideraçõesfinais enfatizam os questionamentos sobre a parceria público-privada nesteestudo.

A entrada do Instituto Unibanco nas escolas públicas

A partir dos movimentos nacional e internacional, podemos perce-ber as práticas neoliberais em relação às reformas educacionais iniciadasna década de 1990 e lideradas pelos organismos internacionais – principal-mente o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento –que condicionam a concessão de empréstimos aos Estados nacionais daAmérica Latina à implantação dessas reformas2.

As correlações de forças entre o Estado e a sociedade civil são, cadavez mais, constitutivas das políticas que vêm se materializando no Brasil.No caso específico da educação, a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 (LDB/96), que estava no bojo da reforma educacional brasileira, ilustra a reconfi-guração do papel do Estado sob a ideologia neoliberal, em que ele passou aconcentrar a direção e o controle de todo o sistema, mas partilhando oprovimento desse serviço com a sociedade. Conforme a análise realizadapor Krawczyk e Vieira (2008), o debate em defesa da educação que vinha

1 Parte dos resultados desta análise advém da coleta de dados para construção do Projeto deTese: “Práticas Educativas: as relações de forças e a produção de sentidos no trabalho docen-te”, que analisa o Projeto Jovem de Futuro, empreendido pelo Instituto Unibanco junto àsescolas públicas, apresentado em dezembro de 2011 no Programa de Pós-Graduação em Edu-cação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orien-tação da Profa. Dra. Carmen Lucia Bezerra Machado.

2 Conforme Peroni (2010, p. 222), o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvi-mento (BID) organizam documentos específicos para cada país que tome seus empréstimos. Omemorando (CAS 1997) do Banco Mundial para o Brasil indica que o país deve “aumentar otempo de instrução e qualidade do ensino”, e, em contrapartida, a instituição “vai exigir umamelhor definição nas contas nos níveis nacional e subnacional, um aumento da participaçãodo setor privado e da sociedade civil na educação e no melhor gerenciamento das escolas”.

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desde a disputa política pela democratização da sociedade na década de1980 foi perdendo força, ao longo do processo de tramitação da LDB/96,mudando a correlação de forças sociais e promovendo o projeto neolibe-ral de Estado, o que alterou as prioridades e as orientações na políticaeducacional na década de 1990.

Após a década de 1990, esses movimentos se intensificam à medidaque o capital busca superar sua crise através de estratégias como neolibera-lismo, globalização, reestruturação produtiva e Terceira Via, as quais rede-finem a relação entre o público e o privado (PERONI, 2010). A partir des-ses movimentos, fica evidente que a tão propalada separação entre econô-mico e político, assim como entre Estado e sociedade civil, se trata apenasde uma estratégia do capital para, através dos seus representantes ou, comodefine Gramsci, da sua “fração de partido”, assegurar seus projetos, umavez que “o próprio liberalismo é um programa político, um programa queinterfere no programa econômico do Estado e em quem dirige o Estado”(GRAMSCI, 1980, p. 32).

A separação entre o econômico e o político como uma estratégia docapital também é apontada por Wood (2003), quando ela defende que, aodeslocar questões essencialmente políticas como a disposição do poder decontrolar a produção e a apropriação ou a alocação do trabalho e dos recur-sos sociais para outra esfera, o capitalismo privatiza o poder político.

A relação entre economia e política é basilar para entender a entradado setor privado no público, em especial na área da educação, quando aspolíticas educacionais vêm se constituindo na relação e correlação de for-ças entre os movimentos sociais, empresários, organismos governamentaise não governamentais.

Nesse sentido, a Terceira Via, através do público não estatal – semfins lucrativos –, representa, neste estudo, a porta de entrada do InstitutoUnibanco às escolas públicas. Tendo em vista que os convênios e acordosentre Estado e os setores privados permitem que as escolas continuem sen-do públicas e gratuitas para os alunos, mas sob a lógica gerencialista dagestão privada. Justificando, assim, a implementação de programas estraté-gicos de gestão empresarial voltados à educação, entre os quais se encon-tram as tecnologias e metodologias do Instituto Unibanco.

MONTEIRO, M. • Relação público-privada na Educação Básica no Brasil

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

O Projeto Jovem de Futuro: validação e transferênciasde tecnologias educacionais para os estados

O Instituto Unibanco foi criado no ano de 19823 com o propósito depromover as ações e os investimentos sociais do Unibanco, que, atualmen-te, integra o conglomerado Itaú Unibanco, mas foi a partir de 2007 quedirecionou o foco de suas atividades para o Ensino Médio público.

As relações entre o público e o privado com base nas interações dossetores econômicos e políticos da sociedade vão se materializando nos acor-dos de cooperação técnica para o desenvolvimento de estudos, projetos,pesquisas e avaliações na área de educação entre o Instituto Unibanco, re-presentado pelo seu presidente Pedro Moreira Salles, e a Secretaria de As-suntos Estratégicos do Governo Federal (SAE), representado pelo ministroMoreira Franco.

O foco do acordo, realizado em setembro de 20114, são as escolaspúblicas de Ensino Médio, mediante a adoção do Projeto Jovem de Futuro doInstituto Unibanco. E prevê três linhas de ação: capacitação, apoio técnicoe avaliação.

O Instituto Unibanco responde pela disponibilização de recursos edados necessários à execução dos trabalhos e indica um técnico para acom-panhar as atividades previstas. Já a SAE oferece o apoio técnico e metodo-lógico à elaboração de pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Trabalho deGestão de Conhecimento do Instituto Unibanco, além de se responsabili-zar pelas avaliações de impacto dos projetos conduzidos pelo InstitutoUnibanco, realizadas por Ricardo Paes de Barros, o subsecretário da SAE,e pelo pesquisador João Pedro Azevedo (Banco Mundial).

Wanda Engel, ex-chefe da Divisão de Desenvolvimento Socialdo Banco Interamericano de Desenvolvimento e ex-ministra de Estado deAssistência Social entre 1999 e 2002 na gestão de Fernando Henrique Car-

3 Esses dados foram extraídos do site www.institutounibanco.org.br, dos exemplares de divulga-ção das tecnologias e metodologias do Instituto Unibanco, produzidos pelo próprio instituto edistribuídos nas escolas que desenvolvem suas tecnologias e do http://portal.mec.gov.br/ doMinistério da Educação.

4 http://www.sae.gov.br/site/?p=7567.

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doso, esteve à frente da superintendência executiva do Instituto Unibancoaté 2012. A partir de agosto de 2012, assumiu a superintendência o ex-secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Minis-tério da Educação, Ricardo Henriques. Já a presidência do Instituto Uniban-co está sob a responsabilidade de Pedro Moreira Salles, presidente do conse-lho de administração do Itaú Unibanco, e na vice-presidência, Pedro Sam-paio Malan, ex-ministro da Fazenda do governo Fernando Henrique.

O Instituto Unibanco estabelece parcerias com estruturas governa-mentais, empresas, organizações da sociedade civil (ONGs) e o meio aca-dêmico. Entre as parcerias realizadas ao longo do ano de 20105, destaca-sea Fundação Itaú Social (FIS), que apoiou uma série de linhas de pesquisapatrocinadas pelo Instituto Unibanco sobre políticas públicas com vistas àformação de professores e coordenadores pedagógicos, entre outras. Con-forme o Relatório de Atividades de 2011 do Instituto, a parceria se mantématravés dos dois conselhos das instituições, que compartilham decisões eestabelecem uma ação integrada.

Os projetos do Instituto Unibanco estão inseridos junto ao Guia deTecnologias do Ministério da Educação (MEC) de 2009, que faz parte doPlano de Ações Articuladas (PAR). Esse compõe mais de 40 ações criadasem conjunto com Municípios, Estados ou Distrito Federal, estando no bojodo Plano de Desenvolvimento da Educação e do Plano de Metas Compro-misso Todos Pela Educação (PDE). O Guia de Tecnologias do MEC estádividido em seis blocos, e o Instituto Unibanco integra dois desses blocos:Gestão da Educação, com o Projeto Jovem de Futuro, e Ensino-Aprendiza-gem, com o Projeto Entre Jovens.

O Projeto Jovem de Futuro define-se por ser um projeto de Gestão Es-colar para resultados, mantido por um fundo endowment6, instituído parafinanciar suas atividades. Tem como missão, mediante um apoio técnico efinanceiro, contribuir para o desenvolvimento de jovens em situação de

5 Dados extraídos do “Relatório de Atividades do ano de 2010” do Instituto Unibanco. Os rela-tórios de atividades de todos os anos são disponibilizados no site e alguns deles nas escolasonde o Projeto Jovem de Futuro é desenvolvido.

6 Conforme o Relatório de Atividades de 2010 (p.13), “as atividades do Instituto Unibanco sãomantidas por um fundo patrimonial, criado exclusivamente para esse fim. Esse sistema dedotação não depende de aportes adicionais”.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

vulnerabilidade, concebendo, validando e disseminando tecnologias e me-todologias sociais para aumentar a efetividade das políticas e práticas vi-gentes nas escolas públicas de Ensino Médio. Um dos seus objetivos estra-tégicos é incentivar e apoiar a formulação de políticas públicas integradasvoltadas à juventude.

Quanto ao apoio financeiro, constitui-se em um repasse de R$ 100,00por aluno e por ano. O recurso é entregue à Associação de Pais e Mestresou similar durante os três anos de duração do projeto na escola. Já quantoao apoio técnico, refere-se às capacitações em planejamento e gestão admi-nistrativo-pedagógica, uso didático dos resultados de avaliações e suportetécnico de um supervisor para grupos de cinco escolas.

Na fase de validação, o Instituto Unibanco é responsável direto peloProjeto Jovem de Futuro junto às escolas, que é desenvolvido em parceria comas Secretarias de Educação, as quais definem suas prioridades geográficasou de grupos específicos de escolas. O projeto é apresentado ao grupo deescolas prioritárias; logo após, as escolas que aderem são pareadas para arealização de um sorteio que define a composição dos grupos de interven-ção e de controle.

As escolas do grupo de intervenção ou de tratamento são aquelasonde projeto vai ser desenvolvido efetivamente; já as escolas que compõemo grupo de controle não participam diretamente da ação, mas servem deparâmetro para avaliar a evolução proporcionada pela tecnologia; por issose comprometem a realizar todas as avaliações de desempenho propostaspelo Instituto Unibanco, com o compromisso de se tornar grupo de inter-venção no final de três anos. A avaliação de impacto é realizada pela com-paração entre os resultados dos dois grupos.

Cabe à escola escolher um grupo gestor, constituído por integrantesda comunidade escolar, o qual será responsável pela elaboração/execuçãode um plano estratégico7 de acordo com as metodologias preestabelecidas

7 Conforme o “Manual para elaboração do Plano de Melhoria da Qualidade do Ensino” doInstituto Unibanco – versão 24-2-2009, o método se baseia no “Marco Lógico, que é um méto-do de planejamento desenvolvido no final dos anos 60 por uma empresa de consultoria privadanos EUA, a pedido da United States Agency for International Development (USAID)”. Cabelembrar que a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID)

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pelo instituto e que assuma o compromisso de melhorar o desempenho deseus alunos, principalmente em língua portuguesa e matemática.

No ano de 2009, a distribuição geográfica das escolas e os investi-mentos entre os estados em que o projeto foi sendo desenvolvido estão re-presentados neste quadro:

Escolas atendidas pelo Instituto Unibanco por regiões – 2009

ANO/ 2009 Escolas Investimentos Atendimento

RS 22 R$ 3.362.000,00 37.394

MG 20 R$ 2.898.000,00 33.908

SP 46 R$ 5.127.000,00 66.000

Total 88 R$ 1.387.000,00 137.302

Fonte: www.institutounibanco.org.br

Em 2010, quando o Instituto Unibanco concluiu os três anos previs-tos para a validação do Projeto Jovem de Futuro, a distribuição geográficade atendimento às escolas está representada no quadro abaixo:

Escolas atendidas pelo Instituto Unibanco por regiões – 2010

ANO/ 2010 Escolas

RS 22

MG 20

SP 41

RJ 15

Quadro elaborado a partir dos dados extraídos do Relatório de Atividades 2010 do InstitutoUnibanco

atua como reforço à política externa dos Estados Unidos. Os acordos entre o MEC-USAIDtiveram influência nas reformas do ensino brasileiro no período da ditadura militar e inseriam-se num contexto histórico fortemente marcado pelo tecnicismo educacional da teoria do capi-tal humano, isto é, pela concepção de educação como pressuposto do desenvolvimento econô-mico. Sobre os acordos entre MEC-USAID, ver os estudos de ARAPIRACA, José Oliveira(1982), ALVES, Márcio Moreira (1968) e GOERTZEL, Ted (1967).

MONTEIRO, M. • Relação público-privada na Educação Básica no Brasil

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A partir de 2011, após a avaliação do primeiro ciclo de três anos doprojeto, iniciou-se o processo de transferência. O projeto tornou-se políticapública através da parceria com o Governo Federal por meio do MEC ecom os governos dos estados de Ceará, Goiás, Mato Grosso do Sul, MinasGerais, Pará e São Paulo, denominando-se Programa Ensino Médio Inova-dor/Jovem de Futuro (ProEMI/Jovem de Futuro).

A fase de transferência consiste na apropriação dos projetos do Insti-tuto Unibanco por parte dos estados, ficando sob sua responsabilidade ocusteio de implantação, acompanhamento e avaliação, mas que será opera-cionalizada com o apoio técnico do Instituto Unibanco através de Unida-des de Apoio (UNAs) em cada capital para atuar em parceria com as equi-pes das Secretarias de Educação.

Conforme o Relatório de Atividades de 2011 do Instituto Uniban-co, na atual fase de transferência, a parceria público-privada passa a arti-cular-se em três esferas de participação: ao Instituto Unibanco cabe res-ponsabilizar-se em promover as capacitações em Gestão para Resultadosaos órgãos estaduais e às escolas; as Secretarias de Educação são respon-sáveis pela supervisão; e o MEC fica responsável pelo financiamento. Ain-da conforme o Relatório de Atividades 2011 (p. 24), “além de se associarà proposta educativa do Instituto Unibanco, o MEC assumiu a responsa-bilidade por repassar os recursos para o desenvolvimento da ação direta-mente às escolas atendidas por meio do Programa Dinheiro Direto naEscola (PDDE)8”.

8 “Criado em 1995, o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) tem por finalidade prestarassistência financeira, em caráter suplementar, às escolas públicas da educação básica das re-des estaduais, municipais e do Distrito Federal e às escolas privadas de educação especial man-tidas por entidades sem fins lucrativos, registradas no Conselho Nacional de Assistência Social(CNAS) como beneficentes de assistência social, ou outras similares de atendimento direto egratuito ao público. Em 2009, com a edição da Medida Provisória nº 455, de 28 de janeiro(transformada posteriormente na Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009), foi ampliado paratoda a educação básica, passando a abranger as escolas de ensino médio e da educaçãoinfantil.” Disponível em: http://www.fnde.gov.br/programas/dinheiro-direto-escola/dinhei-ro-direto-escola-apresentacao.

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Concepção político-educacional do Instituto Unibanco:afinal estamos avançando na democratização da educação?

No Brasil, a luta dos movimentos sociais e dos trabalhadores em edu-cação pela universalização, acesso e qualidade da educação sempre estevevoltada aos direitos à igualdade, à justiça social e à proposta de uma forma-ção humana para os cidadãos. Tais disputas continuam cada vez mais ten-cionadas pela correlação de forças entre essas propostas dos movimentossociais e àquelas voltadas à formação de capital humano para adaptação àorganização e, atualmente, à reestruturação produtiva, que são empreendi-das pelos empresários e agências multilateriais.

O pano de fundo dessas disputas é, portanto, a concepção político-educacional que ora avança no sentido da democratização da educação,pensando a formação da juventude de forma mais integral e humana, comoum direito do cidadão e uma obrigação do Estado com vistas a atingir ajustiça social, e ora limita esse movimento, ao pensá-la somente como for-mação para o mercado de trabalho, cuja responsabilização é transferidapara os diferentes segmentos da sociedade.

O Instituto Unibanco, sendo um projeto social amplo, de âmbito eco-nômico e de direção política, faz parte da correlação de forças que tomama educação e o currículo como campo de disputas. A sua proposta educati-va, implementada junto às escolas, tem uma concepção de educação volta-da à formação e à inserção das novas gerações no mercado de trabalho,atribuindo a conclusão do Ensino Médio às condições de empregabilidade.

O Projeto Jovem de Futuro é uma tecnologia do Instituto Unibanco,que, para ser operacionalizada no interior das escolas, conta com um apor-te teórico-prático, que são as metodologias. Através das metodologias sãodisponibilizados materiais didáticos para o desenvolvimento de uma série detemáticas junto aos jovens, que vão desde projetos de vida, meio ambienteaté alguns bem específicos, como educação financeira, formação de líderes,atitudes e comportamentos adequados para o mercado de trabalho. Sãomateriais didáticos, como, por exemplo, “Livro do Professor”, com plane-jamentos prontos para serem trabalhados em sala de aula pelo professor,mas também ações a serem realizadas por toda a comunidade escolar, queimplicam práticas de competitividade entre as escolas a fim de receber pre-

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miações, como é o caso de uma metodologia chamada Superação, carro-chefe do Projeto Jovem de Futuro, que envolve todas as escolas conveniadascom o Instituto Unibanco.

Com o Projeto Jovem de Futuro desenvolvido nas escolas da EducaçãoBásica e pública dos estados brasileiros, o setor privado influencia o setorpúblico mediante uma gestão escolar para resultados, pautada por testespadronizados e avaliações de desempenho. Tal empreendimento configurao que Ball (2010, p. 28) chama de “contratualismos e formas jurídicas queestão sendo estendidas ao processo educacional como um componente-chaveda economia do conhecimento”, em que o “valor do conhecimento passa aser determinado pelo seu impacto e que tem implicações nas novas formasde gestão da sociedade e suas populações através do uso do conhecimentogovernante”.

Ainda segundo esse autor, esse novo tipo de conhecimento – esseregime de números – que constitui um recurso através do qual a vigilânciapode ser exercida e que é empregado em esquemas como o Programa Inter-nacional de Avaliação de Alunos (PISA), sistemas nacionais de avaliação,tabelas de desempenho escolar, comparações de testes, indicadores de ren-dimento, etc., são formas com as quais os estados monitoram, dirigem ereformam seus sistemas educacionais através de metas e intervenções acio-nadas por desempenho (RINNE; KALLO apud BALL, 2010).

Nessa mesma linha, Freitas (2009) considera que o interesse do setorprivado nesses desempenhos e na agenda educacional com base em respon-sabilização e meritocracia se deve ao fato das novas tecnologias demanda-rem trabalhadores qualificados, mas também precarizados. Os testes pa-dronizados, segundo esse autor, vêm responder ao interesse das corpora-ções por informar, para além dos conhecimentos dos alunos, o nível socio-econômico, sendo um importante instrumento de redirecionamento da for-ça de trabalho.

Um dos argumentos do Instituto Unibanco para investir no EnsinoMédio é que “o acesso, permanência e conclusão do Ensino Médio podemaumentar a inserção dos jovens no mercado de trabalho e ser o elemento dequebra no ciclo intergeracional de pobreza” e que “o jovem que abandonao Ensino Médio deixa de ser cliente das políticas de educação e tende a ser

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alvo das políticas de assistência social e de segurança pública”9. Tal concep-ção evidencia a forma como o privado vem redefinindo o público, inclusive“por dentro” da escola, não considerando a totalidade das políticas sociaisenquanto direito social dos cidadãos. E, mesmo desenvolvendo suas tecno-logias através do Guia de Tecnologias do Ministério da Educação, ou seja,sendo parte integrante das políticas educacionais do país, compreende-ascomo um empreendimento em que os jovens são “clientes” e, tendo umaproposição bem definida de formação para o mercado de trabalho e nãopara formação enquanto um direito social de todo cidadão para constitui-ção da sua condição humana, independente da necessidade de empregabi-lidade.

Analisando as tecnologias e metodologias do Instituto Unibanco,observamos que, para além do foco no mercado de trabalho, os testes pa-dronizados desconsideram a diversidade dos jovens e as diferentes realida-des escolares. Apontam, portanto, uma contradição em relação às exigên-cias do próprio capital, em relação à força de trabalho, porque vivemos umgrande avanço tecnológico, em que se fazem necessárias agilidade de racio-cínio, autonomia, criatividade, bem como novas formas de sociabilidade ede pensar a juventude. Conforme Oliveira e Gomes (2011, p. 77), “vivemosum momento no qual não se pode mais pensar a juventude como um reser-vatório de uma futura massa de trabalhadores”.

A proposta de gestão do Instituto Unibanco prevê uma organizaçãopautada pela separação entre o planejamento e a execução, bem como adivisão fragmentada para execução do trabalho no espaço escolar, seguin-do a lógica hierárquica do modelo empresarial. O Projeto Jovem de Futu-ro, por exemplo, desenvolve-se dentro da escola a partir de planos de açãocom metas e resultados esperados, pré-determinados pelo Instituto Uni-banco, com uma margem de autonomia para elaboração de atividades esubatividades planejadas por uma equipe gestora que tem uma pequenarepresentatividade da comunidade escolar e sequer é escolhida por esta co-munidade. Portanto, vai na contramão da ideia de um planejamento parti-

9 Exemplar de divulgação do Instituto Unibanco intitulado: “O que faz o Instituto Unibanco”,distribuído nas escolas estaduais com as quais tem convênio e disponibilizado no seu site.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

cipativo e coletivo, enquanto uma ferramenta do processo de gestão demo-crática da educação.

Tendo em vista que o conteúdo do modelo de gestão do InstitutoUnibanco tem como objetivo “aplicar suas ações em qualquer realidade,mantendo a concepção e o desenvolvimento de suas tecnologias e metodo-logias educacionais dentro de um ciclo de produção que visa blindar essasiniciativas contra possíveis desvios em sua futura transferência e reprodu-ção”10. Questionamos a possibilidade de uma efetiva democratização pormeio das suas práticas educativas, uma vez que se apoiam em instrumentospedagógicos padronizados e replicáveis de forma indiscriminada, descon-siderando as particularidades regionais construídas historicamente e a im-portância da autonomia das comunidades escolares na elaboração dos seuspróprios projetos político-pedagógicos.

Considerações finais

A análise das tecnologias e metodologias educacionais do InstitutoUnibanco, enquanto parte do movimento histórico e das correlações deforças constitutivas das políticas educacionais, permitiram alguns questio-namentos sobre as implicações decorrentes das parcerias entre o sistemapúblico e as instituições do terceiro setor para o processo de democratiza-ção da educação.

As disputas em torno dos programas a serem implementados juntoàs escolas públicas representam disputas entre projetos societários diferen-tes, por isso a universalização da educação, a ampliação do acesso, a quali-dade, a inclusão e a autonomia são antigas questões de luta da sociedadebrasileira em relação ao processo de democratização. Tomando-os comoindicadores, percebemos que, se por um lado, o Estado incrementa as polí-ticas públicas, disponibilizando uma série de programas destinados à edu-cação de maneira geral e ao Ensino Médio, em particular, promovendo suaexpansão. Por outro, ao repassar para o setor privado o poder de definição

10 Conforme apresentação do Ciclo de Produção de Tecnologias e Metodologias encontrado noRelatório de Atividades do Instituto Unibanco, referente ao ano de 2010.

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da concepção e do conteúdo das propostas para a educação destinada aosjovens que se formam nos espaços escolares públicos, modifica o caráter eos sentidos das questões de luta.

Percebemos um aumento dos programas e projetos voltados à Edu-cação Básica, mas, por outro lado, existem indícios de uma perda em rela-ção à gestão democrática das escolas, como, por exemplo, referente aosprojetos político-pedagógicos, que não sabemos até que ponto ainda sãoresultantes de uma construção participativa e coletiva da comunidade es-colar. Tendo em vista que, de maneira geral, os programas do setor priva-do replicam modelos de planejamentos para serem executados pelas es-colas, como no caso do Instituto Unibanco, que propõe o Plano de Me-lhoria da Qualidade do Ensino Médio11 para escolas de diferentes estadosbrasileiros.

Contudo, questionamos a intervenção do setor privado, em especial,as tecnologias educacionais do Instituto Unibanco tanto pelas implicaçõesao processo de democratização da educação como pelas contradições evi-denciadas. Entre elas, destaca-se a proposta que o projeto tem para as esco-las, a qual se baseia numa organização do trabalho que divide a comunida-de escolar entre aqueles que são responsáveis por planejar, organizar, exe-cutar, controlar e avaliar de forma hierárquica e fragmentada, num períodoem que os intelectuais orgânicos do capital sugerem a formação de quadrosde profissionais multifuncionais, com capacidade de tomar decisões, autô-nomos e empreendedores.

Nesse sentido, encontramos contradições entre as próprias propostasdos setores privados e o momento particular do capitalismo. Pois vivemosum tempo que demanda novas formas de sociabilidade para uma juventu-de que nasceu na era tecnológica, sendo contraditória uma formação combase em instrumentos, tecnologias e metodologias padronizadas.

11 Ver www.institutounibanco.org.br.

MONTEIRO, M. • Relação público-privada na Educação Básica no Brasil

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

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O Programa Nacional de Acesso aoEnsino Técnico e Emprego – Pronatec:

um olhar a partir das relaçõesentre o público e o privado

Maurício Ivan dos SantosRomir de Oliveira Rodrigues

Introdução

Nos últimos anos, com o crescimento econômico experimentado naeconomia brasileira, um dos elementos que tem ganhado destaque na agendanacional é a questão da qualificação dos trabalhadores para acompanharesse processo de expansão econômica. Nessa perspectiva, o debate sobre aEducação Profissional e Tecnológica – EPT, em todos os seus níveis, assu-me uma posição central e torna-se um campo de disputa entre os váriossujeitos, públicos e privados, envolvidos com esse nível de ensino.

Buscando interferir nesse cenário, foi criado pelo governo brasileiro,por meio da Lei 12.513, em 26 de dezembro de 2011, o Programa Nacionalde Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – Pronatec –, que se constitui emum conjunto de ações que visam ampliar a oferta de vagas na EPT brasilei-ra. Com metas ousadas de atender oito milhões de beneficiados, criação de200 novas escolas técnicas federais e investimento de um bilhão de reais, oPronatec ocupa, atualmente, o centro do debate sobre a Educação Profissi-onal e apresenta, em sua estrutura, espaços onde se evidenciam relaçõesentre o público e o privado para o atendimento de suas metas.

Este texto tem como objetivo analisar o Pronatec em sua dimensãode política pública e, principalmente, nos aspectos em que são identificadasinter-relações entre o público e o privado de maneira a possibilitar a emer-gência das contradições em suas concepções e práticas.

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Por se tratar de um programa em fase inicial de implantação e norecorte específico deste texto, a metodologia utilizada foram a análise defontes primárias, documentos e leis que o estabeleceram e a revisão biblio-gráfica sobre os temas relacionados à EPT e ao contexto do sistema docapital na atualidade.

É importante ressaltar que as ideias apresentadas são resultado deum processo de pesquisa que tem uma dupla vinculação: primeiro, respon-de ao Programa de Fomento Interno do Instituto Federal de Educação,Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul – IFRS – Campus Canoas,dentro do projeto “A Relação entre o Público e o Privado na EducaçãoProfissional e Tecnológica em tempos de redefinição do papel do Estado”;segundo, integra o Projeto Produtividade “Parcerias entre sistemas públi-cos e instituições do terceiro setor: Brasil, Argentina Portugal e Inglaterra eas implicações para a democratização da educação”, coordenado pela pro-fessora Doutora Vera Maria Vidal Peroni, da Universidade Federal do RioGrande do Sul (UFRGS).

Para atingir o objetivo proposto, o texto está organizado em três se-ções, que, apesar de suas especificidades, estão organicamente articuladas.A primeira seção trata dos elementos estruturais que fundamentam a con-cepção e a implantação do Pronatec, com destaque para a discussão doNovo-Desenvolvimentismo, que desenha um novo papel para o Estado, edo propalado “apagão” da mão de obra, considerado um obstáculo para oatual processo de desenvolvimento econômico brasileiro e fundamento dosdiscursos que embasam o programa. As ações do Pronatec são desdobra-das na segunda seção, com destaque para as que apresentam evidências derepasse de recursos públicos para o setor privado. Na terceira seção, sãoapontadas algumas questões para a compreensão do Pronatec no atual ce-nário da EPT brasileira, em especial nas relações previstas entre entes pú-blicos e privados, e indicados alguns movimentos necessários para a conti-nuidade da pesquisa com o objetivo de avaliar os possíveis desdobramentosdo programa para a democratização da educação profissional.

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Novo-Desenvolvimentismo e o “apagão” da mão de obra:as bases estruturantes do discurso de implantação do Pronatec

As políticas públicas para a Educação Profissional e Tecnológica,como todas as políticas sociais, devem ser cotejadas com as políticas econô-micas, pois, como lembra Vieira (1992, p. 21), “não se pode analisar a polí-tica social sem se remeter à questão do desenvolvimento econômico, ouseja, à transformação quantitativa e qualitativa das relações econômicas,decorrentes do processo de acumulação particular do capital”.

Como características centrais do atual período do capitalismo, Pero-ni (2008) salienta que, para superar a crise nas taxas de lucro, especialmen-te a partir da década de 1980, foram implantadas estratégias de superação –neoliberalismo, globalização, reestruturação produtiva e terceira via – queacabaram por redefinir o papel do Estado, diminuindo sua atuação comoexecutor das políticas sociais.

Embora integrando esses movimentos, Branco (2009) aponta que ocontexto político sul-americano se modifica a partir do final da década de1990, quando o modelo neoliberal apresenta sinais de esgotamento, com aconsequente estagnação econômica dos países dessa região. Boschi e Gai-tán (2008, p. 306), ao examinarem esse período histórico, apontam parauma “virada ideológica na orientação dos governos em direção a concep-ções antineoliberais”. Acompanhando esse movimento, o Brasil apresentauma alteração na função do Estado, que passa a operacionalizar novas di-nâmicas, que, em seu conjunto, podem ser caracterizadas, segundo BresserPereira (2006), Branco (2009) e Veiga (2006), como Novo-Desenvolvimen-tismo.

Na definição de Bresser Pereira (2006, p. 12), o Novo-Desenvolvi-mentismo consiste “em um conjunto de propostas de reformas institucio-nais e de políticas econômicas, por meio das quais as nações de desenvolvi-mento médio buscam, no início do século XXI, alcançar os países desen-volvidos”. Para isso, o autor (2006, p. 18) afirma que “as instituições devemgarantir a propriedade e os contratos ou, mais amplamente, o bom funcio-namento dos mercados, que esses, por sua vez, promoverão automatica-mente o desenvolvimento” (BRESSER PEREIRA, 2006). O Estado passaa ter, na avaliação de Bresser Pereira (2006), a função de propor um “gran-

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de acordo” entre as classes sociais, uma integração entre os diferentes estra-tos, visualizando o horizonte comum do desenvolvimento econômico, for-mando assim uma “verdadeira nação”.

Em contraposição, Branco (2009, p. 78) coloca que, desde sua ori-gem, o Estado moderno funciona como “o guardião, em última instância,da ordem burguesa, que produz e reproduz as desigualdades sociais de di-versas formas, com central importância na existência da propriedade priva-da”. Dessa forma, o “grande acordo” social proposto pelos novos-desen-volvimentistas, com o objetivo comum de alcançar o desenvolvimento eco-nômico, induzido por um Estado promotor do bem-estar universal, acimados interesses de classe, não é aplicável no âmbito do capitalismo. Nadinâmica do sistema do capital, o Estado configura-se como ator funda-mental, reforçando, através de suas políticas, sua atuação como represen-tante dos interesses do capital, criando as condições necessárias para asua reprodução.

Nesse sentido, o protagonismo do Estado para o fortalecimento dosistema do capital, pode ser traçado um paralelo com o Nacional-Desen-volvimentismo brasileiro, característico das décadas de 1940 a 1970, que,baseado em trabalhos produzidos por intelectuais cepalinos1 e isebianos2,representou uma alternativa para a superação do subdesenvolvimento lati-no-americano e consequente consolidação do capitalismo nessa região. ONacional-Desenvolvimentismo previa uma intervenção direta do Estadona economia, atuando como promotor do desenvolvimento a partir de in-vestimentos na infraestrutura através de obras estruturantes.

1 A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) foi criada em 25 de feve-reiro de 1948 pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) e tem suasede em Santiago, Chile. É uma das cinco comissões econômicas regionais das Nações Unidas(ONU). Foi criada para monitorar as políticas direcionadas à promoção do desenvolvimentoeconômico da região latino-americana, assessorar as ações encaminhadas para sua promoçãoe contribuir para reforçar as relações econômicas dos países da área, tanto entre si como com asdemais nações do mundo.

2 O Instituto Superior de Estudos Brasileiros ou ISEB foi um órgão criado em 1955, vinculadoao Ministério de Educação e Cultura, dotado de autonomia administrativa, com liberdade depesquisa, de opinião e de cátedra, destinado ao estudo, ao ensino e à divulgação das ciênciassociais. O instituto funcionou como núcleo irradiador de ideias e tinha como objetivo principala discussão em torno do desenvolvimentismo e, a princípio, a função de validar a ação doEstado durante o governo de Juscelino Kubitschek. Foi extinto após o golpe militar de 1964.

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Porém, no quadro teórico do Novo-Desenvolvimentismo, esse prota-gonismo estatal assume contornos diferenciados e, apesar de também pre-ver um forte planejamento no setor de infraestrutura, modificam-se os pro-cedimentos. Segundo Branco (2009), o Estado passa a atuar como umainstância reguladora das atividades econômicas, criando as condições pro-pícias para o capital realizar seus investimentos financeiros. Essa mudançano papel do Estado durante o Novo-Desenvolvimentismo se consolida, entreoutras formas, por meio do repasse de verbas públicas para o setor privadonas chamadas Parcerias Público-Privadas – PPP. Um exemplo disso podeser percebido a partir dos investimentos destinados às diversas etapas e açõesdo Plano de Aceleração da Economia – PAC3, onde grandes obras estrutu-rais, em vários setores, como de transportes, são transferidos para a inicia-tiva privada através de concessões de uso e financiadas por instituições pú-blicas de fomento.

Trata-se, portanto, de um Estado que, amparado em um projeto dedesenvolvimento que articula os interesses particulares nacionais e regio-nais, como afirmam Boschi e Gaitán (2008, p. 306), “pode se constituircomo regulador das assimetrias do mercado e como garantia das condiçõesde inclusão social”. Visando atingir esse objetivo, emerge o conceito de“Equidade Social”, apontado por Sicsú, Paula e Michel (2004) como umdos pilares fundamentais do Novo-Desenvolvimentismo e consolidado emestratégias de transformação produtiva que permitam compatibilizar umcrescimento econômico sustentável com uma melhor distribuição de ren-da. No entanto, Branco (2009) questiona essa linha de raciocínio ao anali-sar que, mesmo apresentando um viés mais progressista para a abordagemdo conceito, permanecem inalteradas suas características essenciais de na-turalização das relações econômicas e de colocar o indivíduo e, portanto,suas diferenças como centro dos processos capitalistas. Nesse sentido, oautor afirma:

3 O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi criado em 2007 no segundo mandatodo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2007-2010) e se propôs a retomada do planejamentoe execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana, logística e energética do país,contribuindo para o seu desenvolvimento acelerado e sustentável, o aumento da oferta deempregos, a geração de renda e a elevação do investimento público e privado em obras fun-damentais.

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Hoje se admite amplamente que as diferenças naturais podem ser, em boamedida, neutralizadas por competências adquiridas através, por exemplo,da educação, que passa a ser instrumentalizada como um meio de capacitarseres humanos para a concorrência no mercado de trabalho. Em termospolíticos, os novo-desenvolvimentistas, ao se guiarem pelo conceito de equi-dade social, defendem a promoção da igualdade de oportunidades entre osindivíduos via educação. A educação, portanto, antes uma forma de eman-cipação humana, fica, de acordo com essa perspectiva, inteiramente subor-dinada aos requisitos de habilidades necessárias aos processos de produçãode mercadorias comandados pelo capital (BRANCO, 2009, p. 82).

Nessa composição, a qualificação da mão de obra é compreendidacomo investimento econômico, insumo para o desenvolvimento dos pro-cessos produtivos e não como direito dos trabalhadores. É a Teoria do Ca-pital Humano, resgatada em suas bases, reafirmando o tecnicismo na buscapor superar a defasagem entre os avanços tecnológicos e a capacidade dostrabalhadores em lidar com eles, origem de um suposto “apagão” de mãode obra. A educação profissional torna-se, então, uma ferramenta centralpara suplantar essa defasagem e, ao mesmo tempo, relega para o âmbito dainiciativa pessoal a busca por qualificar-se para a inserção no mercado detrabalho.

Analisando a questão do “apagão” da mão de obra no Brasil, Nasci-mento (2011) esclarece que a escassez de mão de obra, em termos econômi-cos, seria representada por uma demanda superior à oferta disponível deprofissionais com o perfil buscado pelos empregadores. Em seu estudo, oautor utiliza a evolução dos salários e a rotatividade como indicadores paraverificar a existência de uma efetiva carência de trabalho qualificado, espe-cialmente em ocupações típicas de carreiras técnico-científicas de nível su-perior e médio, sendo as últimas o foco dos cursos previstos no Pronatec.Para isso analisou os dados mensais do Cadastro Geral de Empregados eDesempregados – CAGED –, do Ministério do Trabalho e Emprego, no pe-ríodo de janeiro de 2003 a junho de 2011, concluindo que: (i) a taxa de rota-tividade, que corresponde à diferença entre o número de admitidos e desliga-dos em um determinado período, mostra-se estável; e (ii) o diferencial salari-al entre os admitidos e desligados permanece negativo, com os admitidosobtendo rendimentos médios no mínimo 15% inferiores aos desligados.

Portanto, ao analisar esses dados, Nascimento (2011, p. 26 e 27) con-clui que eles “não sugerem que o Brasil tenha passado qualquer período de

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escassez generalizada de profissionais de carreiras técnico-científicas” (NAS-CIMENTO, 2011). O autor destaca, porém, que, devido ao fato de estaremagregadas ocupações muito diversas no escopo da pesquisa, em nível maisdetalhado, possa se “revelar escassez de profissionais em ocupações especí-ficas” (NASCIMENTO, 2011).

Reforçando essa análise, a pesquisa de Nonato, Pereira, Nascimentoe Araújo (2011) sobre o perfil da força de trabalho brasileira apresenta umquadro de aumento da escolaridade da População em Idade Ativa – PIA.Avaliando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD– e de projeções demográficas oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística – IBGE –, os autores (2011, p. 34) demonstram que “a parcelada PIA com maiores níveis de escolaridade tem apresentado um aumentosignificativo, de forma que, no final da década de 2000, 40,4% da PIA já seencontravam nos níveis médios e/ou superior de escolaridade”. Esses da-dos apresentam maior contraste quando cotejados com os indicadores doinício da década de 1980 que apresentavam, nessa mesma escolaridade,apenas 12,7% da população. Nesse sentido, os autores da pesquisa (2011,p. 35) apontam para os próximos anos que a PIA no Brasil “apresentaráum perfil com nível de escolaridade cada vez maior, devido à permanênciamais prolongada da população na escola e à expansão nos níveis de ensinomédio e superior, bem como em vista das perspectivas de crescimento daeducação profissional, científica e tecnológica”.

Essa contradição entre os dados apresentados pelas pesquisas avalia-das e o discurso sobre o “apagão” da mão de obra, presente na fundamen-tação do Pronatec, precisa ser compreendida no conjunto de movimentosque constituem o programa. Ainda mais quando esse fenômeno tornou-seuma das principais justificativas para a emergência na implantação do pro-grama e argumento presente nas análises realizadas pelos meios de comu-nicação e, portanto, de forte impacto na população.

O Pronatec na fronteira entre o público e o privado

A Educação Profissional e Tecnológica consolida-se, na última déca-da, como uma das principais políticas públicas implantadas pelo GovernoFederal na área da educação, sendo composta por um conjunto de ações e

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programas desde a reformulação das Escolas Técnicas e Centros Tecnoló-gicos, com a implantação dos Institutos Federais de Educação, Ciência eTecnologia4, até programas focalizados, como o Mulheres Mil5. Em seuconjunto, essas ações e programas levaram a Rede Federal a apresentar oincremento, no período 2006 a 20106, de 107% nas matrículas da rede fede-ral, considerando apenas as ofertas articuladas ao Ensino Médio, e de 75%no número de estabelecimentos. Se a análise for ampliada, envolvendo to-das as redes públicas (federal, estadual e municipal), os resultados demons-tram um aumento de 80,97%7 nas matrículas durante esse mesmo período.

Todo esse incremento, porém, não consegue reverter a característicahistórica de predomínio da oferta privada da EPT no Brasil, que, em 2010,respondia por 56,49%8 do total das matrículas. Nesse cenário, o SistemaNacional de Aprendizagem (Sistema S) assume um papel destacado, confor-me corrobora o fato de, em 2010, o Serviço Nacional da Indústria (SENAI)responder, isoladamente, por 28%9 das matrículas na Educação Profissio-nal de nível técnico na rede privada.

Segundo Manfredi (2002), o Sistema S, criado na década de 1940durante o Governo Vargas10, representa, na sua origem, uma estratégiaempregada pelos industriais paulistas para disciplinar o trabalhador brasi-leiro e garantir a paz social, alicerçando-se nas premissas de colaboraçãoentre capital e trabalho e na representação de que a indústria interessava a

4 Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia foram criados em dezembro de 2008pela Lei 11.892, formando um novo modelo de educação profissional, oferecendo cursos téc-nicos em nível médio, cursos superiores de tecnologia, licenciaturas, mestrados e doutorados.

5 Ação voltada, inicialmente, para a formação de mil mulheres em situação de risco social dasregiões Norte e Nordeste, articulando elevação de escolaridade e formação profissional, acha-se atualmente disseminada em outras regiões do país.

6 Dados do Inep/Mec.7 Dados do Inep/Mec.8 Dados do Inep/Mec.9 Relatório Anual SENAI 2010. Disponível em: <http://www.senai.br/infografico/relatorioa-

nual2010/relatorio_anual_2010.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2012.10 Cabe ressaltar que, durante a década de 1940, o Governo Vargas, conhecido como o Estado

Novo, foi um período ditatorial marcado por medidas de total intolerância e cerceamento, porexemplo, diante das iniciativas autônomas dos trabalhadores, em razão do controle e do en-quadramento sindical, com a promulgação da legislação de natureza corporativista.

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todos os brasileiros, independente da classe social. O Sistema S possui umaestrutura híbrida, na qual sua gestão é privada, orientada por empresários,sem a efetiva participação do governo e trabalhadores. No entanto, a maiorparte de seus recursos é pública, proveniente das contribuições compulsóriasincidentes sobre a folha de pagamento das empresas de determinados seto-res, arrecadadas pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), ór-gão do governo federal.

Segundo Cunha (2000), o Sistema S foi adequando seu projeto àstransformações econômicas e políticas ocorridas na sociedade brasileira,passando por três fases: a primeira, nos anos 1950 e 1960, com a expan-são da industrialização de base, quando a aprendizagem foi substituídapelo treinamento a partir de cursos de curta duração. Na segunda, nosanos 1970, devido às transformações na legislação educacional, foramcriados cursos técnicos de nível médio, voltados a determinadas especiali-dades. A terceira, a partir do final da década de 1990, devido à reestrutu-ração dos processos produtivos advindos da globalização econômica e atransformações ocorridas nas políticas educacionais, foram criados cur-sos de nível superior e programas de consultoria e assessoria, indo, por-tando, além da educação.

Buscando interferir nesse contexto, o Programa Nacional de Acessoao Ensino Técnico e Emprego – Pronatec – contempla um conjunto deações que visam ampliar a oferta de vagas na EPT brasileira. Para atingirsuas metas, os objetivos do Pronatec são: (i) expandir, interiorizar e demo-cratizar a oferta de cursos de Educação Profissional Técnica de nível médioe de cursos e programas de Formação Inicial e Continuada (FIC) de traba-lhadores; (ii) fomentar e apoiar a expansão da rede física de atendimentoda Educação Profissional e Tecnológica; (iii) contribuir para a melhoria daqualidade do Ensino Médio Público por meio da educação profissional; e(iv) ampliar as oportunidades educacionais dos trabalhadores por meio doincremento da formação profissional.

Para cumprir esses objetivos, foram definidas as seguintes ações: (i)ampliação de vagas e expansão da Rede Federal de Educação Profissionale Tecnológica; (ii) fomento à ampliação de vagas e à expansão das redesestaduais de educação profissional; (iii) incentivo à ampliação de vagas e à

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expansão da rede física de atendimento dos Serviços Nacionais de Apren-dizagem; (iv) oferta de Bolsa-Formação nas modalidades Estudante e Tra-balhador; (v) financiamento da Educação Profissional e Tecnológica (FIES);e (vi) expansão da oferta de Educação Profissional e Técnica de nível mé-dio na modalidade de educação a distância – E-TEC.

Visando à concretização dessas ações, o Pronatec desenvolve as se-guintes iniciativas: (i) expansão da Rede Federal de EPT; (ii) Bolsa-Forma-ção Estudante e Trabalhador, essa última nas modalidades Seguro-Desem-prego e Inclusão Produtiva; (iii) FIES Técnico Estudante e Empresa; (iv) E-TEC Brasil; (v) Brasil Profissionalizado; (vi) continuidade do Acordo deGratuidade Sistema S; e (vii) ampliação da capacidade do Sistema S.

Como a centralidade da análise em curso se dá na relação entre osagentes públicos e privados para a consecução dessas iniciativas, serão de-talhadas as que, em sua formatação, evidenciam esse relacionamento. NaExposição de Motivos Interministerial n° 19, de 28.04.2011, que encami-nhou para o Congresso Nacional o Projeto de Lei do Pronatec, o próprioGoverno Federal afirma existir a necessidade de conjugar esforços paragarantir a expansão da educação profissional e tecnológica com qualidade,contando com a participação da rede privada, e conclui que “nesse contex-to, as entidades do chamado ‘Sistema S’ têm importantíssimo papel a de-sempenhar” (MEC/MTE/MF/MP/MDS, 2011).

Dentro dessa perspectiva, a Bolsa-Formação tem por objetivo ampliara oferta de EPT para estudantes do Ensino Médio da rede pública e paratrabalhadores a partir da concessão de bolsas financiadas pelo Governo Fe-deral para ocupar vagas em cursos ofertados pelas Redes Públicas e SistemaS. A Bolsa-Formação é dividida em três modalidades: (i) estudantes, comoferta de cursos de Formação Inicial e Continuada e cursos técnicos conco-mitantes aos estudantes do Ensino Médio Público; (ii) trabalhador – moda-lidade Seguro-Desemprego, a partir da oferta de cursos FIC para beneficiá-rios do seguro-desemprego, com recorte inicial de reincidência, baixa escola-ridade e faixa etária; e (iii) trabalhador – modalidade Inclusão Produtiva,com oferta de cursos FIC, Brasil Alfabetizado e Mulheres Mil, atendendo opúblico dos programas federais de inclusão social, especialmente o Bolsa-Família, com recorte inicial de baixa escolaridade e faixa etária.

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É importante destacar que essa ação do programa, em especial naBolsa-Formação modalidade estudantes, retoma a concomitância na ofer-ta da educação profissional de nível médio, separada e complementar aoEnsino Médio, pressupondo a existência de matrículas distintas para cadacurso. A proposta do programa é que os estudantes do Ensino Médio dasredes públicas cursem a formação geral em suas escolas de origem e, emcontraturno, utilizando as estruturas instaladas na região, públicas ou pri-vadas, desenvolvam a formação profissional. O impacto para a aprendiza-gem dos estudantes e a convivência com institucionalidades distintas, mui-tas vezes com diferenças significativas em sua estrutura física, equipamen-tos, recursos humanos, formas de gestão e em seu papel social, precisa sermelhor avaliado sob o risco de serem criadas falsas dicotomias, valorizan-do um dos polos como modelo de eficiência, especialmente quando foremmatrículas em instituições públicas – educação básica – e privadas – educa-ção profissional.

Essa questão assume outros desdobramentos, pois, desde o Decreto5154, de 23 de julho de 2004, a concomitância havia sido secundarizada pelapriorização dada aos cursos integrados. O Ensino Médio Integrado é carac-terizado, entre outros elementos, pela articulação entre conteúdos do EnsinoMédio e da formação profissional, que devem ser trabalhados de forma inte-grada durante todo o curso e pela oportunidade de elevar a escolaridade si-multaneamente com a aquisição de uma formação específica para a inclusãono mundo do trabalho. Essa prioridade para o Ensino Médio Integrado comocaminho para o desenvolvimento da qualificação profissional pode ser iden-tificada, por exemplo na Lei 11892, de 29 de dezembro de 2008, que cria osInstitutos Federais, ao definir, em seu Art. 7°, parágrafo I, “ministrar educa-ção profissional técnica de nível médio, prioritariamente na forma de cursosintegrados, para os concluintes do ensino fundamental e para o público daeducação de jovens e adultos” como um de seus objetivos principais.

Essa inflexão, no referencial do Pronatec, na forma de oferta da for-mação profissional, da integração para a concomitância, indica uma mu-dança na concepção da educação profissional e seu papel no desenvolvi-mento econômico e social do país. A forma integrada de oferta da educa-ção profissional, segundo o secretário de Educação Profissional e Tecnoló-

DOS SANTOS, M. I.; RODRIGUES, R. de O. • O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

gica do período, Eliezer Pacheco, propunha a criação de um novo desenhoinstitucional com a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência eTecnologia e estava inserida num planejamento de nação soberana e demo-crática, comprometida com uma educação emancipatória, vinculada aomundo do trabalho. Com isso, segundo Pacheco (2011, p. 15), esse novodesenho buscaria promover “uma formação profissional mais abrangente eflexível, com menos ênfase na formação para ofícios e mais na compreen-são do mundo do trabalho e em uma participação qualitativamente supe-rior nele”.

Essa perspectiva perde força com a implantação do Pronatec e a reto-mada da forma concomitante de oferta de educação profissional de nívelmédio, apontando para uma concepção de educação com forte vinculaçãoao mercado, de caráter tecnicista e ancorada na Teoria do Capital Huma-no. Essa concepção transparece nos documentos relacionados ao progra-ma, como demonstra a Exposição de Motivos Interministerial n° 19, de28.04.2011, ao afirmar ser o objetivo principal do programa a oferta de“oportunidade de formação profissional aos trabalhadores e jovens estu-dantes brasileiros, criando condições favoráveis para sua inserção no mer-cado de trabalho”. Essa estratégia, segundo o documento, visa superar umdos maiores problemas para a continuidade do crescimento econômico ex-perimentado pelo Brasil nos últimos anos, “que é a falta de mão de obraqualificada”.

Nesse sentido, é importante observar que essa mudança, priorizandoa concomitância, reflete a prioridade que essa forma de oferta possui narede privada. Comparando dados de matrícula da educação profissional de2011, do Inep/MEC, a rede privada respondia por 49,79% das matrículasda forma concomitante e apenas 8,37% da forma integrada. Esse direcio-namento está vinculado, entre outros fatores, à cultura institucional, espe-cialmente do Sistema S, que historicamente não desenvolve a escolarizaçãodos seus estudantes, priorizando sua formação profissional estrito senso eao custo necessário para o desenvolvimento da forma integrada, que, paraser executada com qualidade, demanda um grande investimento, desde es-paços físicos adequados até um corpo docente mais numeroso.

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Outra iniciativa do Pronatec, articulada ao repasse de recursos parainstituições privadas e dividido nas modalidades Estudante e Empresa, é oFIES Técnico, que consiste no provimento de linha de crédito para estu-dantes, trabalhadores empregados e setor empresarial para o custeio de cur-sos da EPT no Sistema S e em instituições privadas habilitadas pelo Minis-tério da Educação – MEC.

Outra iniciativa relacionada diretamente com o Sistema S é o Acor-do de Gratuidade, que prevê ampliar progressivamente a aplicação em ma-trículas gratuitas de cursos técnicos e FIC dos recursos recebidos através daContribuição Compulsória (fundos públicos) até a meta de 66,67% dasmatrículas em 2014.

Como referência para análise do Acordo de Gratuidade, o RelatórioGeral 2011, do SENAC, apresenta alguns indicativos dos resultados doPrograma SENAC de Gratuidade (PSG), que desenvolve cursos de Forma-ção Inicial e Continuada (FIC) e de nível médio (sem escolarização). Se-gundo o relatório, foram 249.776 matrículas nos cursos que integram oPSG, representando 21,14% do total de matrículas do SENAC em 2011.Em relação às metas do Acordo, esses números apontam para uma supera-ção de 8% do previsto para o período. Não existe, porém, no referido docu-mento, indicação de quais são os eixos tecnológicos e o formato dos cursosque foram oferecidos pelo PSG, o que dificulta uma análise qualitativa dosmesmos e, na ótica de Grabowski (2010), devem ter um acompanhamentomais efetivo, pois podem ser oferecidas “vagas nas áreas mais baratas, noscursos que não exigem grandes tecnologias e grandes laboratórios”.

O Relatório Geral 2011, do SENAC, apresenta o Pronatec como umadas ações de gratuidade, apesar de ter linha de crédito específica para odesenvolvimento de seus cursos, com repasse de recursos, no caso do Bol-sa-Formação Estudante e Trabalhador, diretamente do FNDE, conformeResolução CD/FNDE Nº 62, de 11 de novembro de 2011. Em 2011, foramapenas 9.231 matrículas em cursos presenciais FIC (mínimo de 160 horas),sendo que, para 2012, estão previstas 295 mil vagas.

A ampliação da capacidade do Sistema S é uma iniciativa do Prona-tec, que objetiva ampliar e readequar a infraestrutura e os equipamentosdos Serviços Nacionais de Aprendizagem, visando atender o aumento da

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demanda induzido pelo atendimento induzido pelo Pronatec. O financia-mento tem como fonte o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômicoe Social (BNDES), que, em 2012, já repassou 1,5 bilhão ao ProgramaSENAI para a competitividade industrial para investimento em obras deinfraestrutura (construção, modernização e ampliação de unidades), alémda aquisição de máquinas e equipamentos destinados ao aparelhamentodas unidades.

É importante salientar a mudança ocorrida no enquadramento insti-tucional do Sistema S, que, de acordo com o artigo 20 da Lei 12.513, passaa integrar o sistema federal de ensino, mantendo, porém, “autonomia paraa criação e oferta de cursos e programas de educação profissional e tecnoló-gica, mediante autorização do órgão colegiado superior do respectivo de-partamento regional da entidade, resguardada a competência de supervi-são e avaliação da União”. Dessa forma, segundo artigo 6º da mesma lei, aUnião fica autorizada a “transferir recursos financeiros às instituições deeducação profissional e tecnológica das redes públicas estaduais e munici-pais ou dos serviços nacionais de aprendizagem correspondentes aos valo-res das bolsas-formação” e, como registra o parágrafo 1° do referido artigo,“as transferências de recursos de que trata o caput dispensam a realizaçãode convênio, acordo, contrato, ajuste ou instrumento congênere, observadaa obrigatoriedade de prestação de contas da aplicação dos recursos”.

Ainda nessa direção, a Resolução/FNDE/CD/Nº 31, de 1º de julhode 2011, que dispõe sobre a descentralização e execução de créditos orça-mentários do FNDE para órgãos e entidades da administração pública fe-deral, em seu artigo 1º, dispensa a apresentação de certidões de regularida-de e as consultas ao Cadastro Informativo de créditos não quitados do setorpúblico federal (Cadin) e ao Sistema Integrado de Administração Financei-ra do governo Federal (SIAFI), bastando a realização de Termo de Coope-ração.

Essas mudanças estão consonantes, conforme apresentado anterior-mente, com a base de justificação teórica do governo e consolidam-se emtoda a documentação legal que sustenta o Pronatec. Isso pode ser evidencia-do nas considerações preliminares da Resolução CD/FNDE Nº 62, de 11 denovembro de 2011, que afirma a “necessidade de integrar as principais redes

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ofertantes de forma a compartilhar experiências e unir esforços de forma agarantir a democratização e interiorização da oferta de educação profissio-nal e tecnológica no país”. Compreender o Pronatec é, portanto, analisaressas inter-relações entre as esferas pública e privada que sustentam o pro-grama e percebê-lo como integrante de um movimento de escala superior,que fundamenta a formatação do atual Estado brasileiro e consolida-se emsuas políticas públicas.

Conclusões preliminares da análisede um programa em andamento

A análise realizada, tendo como ponto de partida os documentos eleis que implantaram o Pronatec, indica que o Sistema S é um agente fun-damental desse programa, sendo contemplado como beneficiário direto epreferencial de recursos públicos em muitas das iniciativas do programa.Essa centralidade dos Serviços Nacionais de Aprendizagem assume maiorrelevo quando fica indicada uma inter-relação entre essas iniciativas. Ouseja, de um lado, o Acordo de Gratuidade pode gerar, para o Sistema S,uma diminuição nas receitas devido à obrigatoriedade da aplicação dosrecursos recebidos da contribuição compulsória – de caráter público – naampliação de vagas gratuitas nos cursos de formação inicial e continuadaou de qualificação profissional. Por outro, a Bolsa-Formação, o FIES Téc-nico e a Ampliação da Capacidade do Sistema S promovem mecanismosde compensação com o ingresso de novos recursos.

O ingresso do Sistema S no sistema federal de ensino vem a corrobo-rar com essa conclusão, pois, entre outras coisas, facilita o repasse de recur-sos públicos diretamente, sem a necessidade de realização de convênios oude seguir as demais diretrizes das políticas públicas da EPT devido à per-manência de sua autonomia pedagógica, financeira e administrativa.

Essa centralidade no setor privado também pode ser percebida napriorização da oferta de educação profissional de nível médio de formaconcomitante, focalizada no treinamento de mão de obra com o objetivode atender as demandas do mercado de trabalho. Nessa perspectiva, o Pro-natec caminha em direção contrária ao conjunto de políticas que estavam

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sendo implementadas pelo Governo Federal, cujo enfoque era propiciar aotrabalhador o ingresso no mundo do trabalho de forma autônoma, com odesenvolvimento integral de suas potencialidades, visando interferir nosprocessos produtivos e gerar novas tecnologias. Analisar as alterações nacorrelação de forças entre os envolvidos na definição das políticas públicasda EPT é central para compreender essa mudança de enfoque das políticase tarefa importante para a continuidade da pesquisa.

Nesse sentido, o trabalho a partir dos dados referentes à execução doPronatec, como número de vagas preenchidas, áreas tecnológicas de abran-gência e características organizativas e curriculares dos cursos, torna-se fun-damental para analisar essas conclusões iniciais. Dessa forma, será possíveltambém verificar o protagonismo das instituições privadas na oferta doscursos da EPT a partir de financiamento público e avaliar os possíveis des-dobramentos do programa para a democratização do acesso, da gestão e daqualidade na educação profissional brasileira.

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A relação entre a educação pública e a privadana Educação Especial brasileira

Fabíola Borowsky

Introdução

Este artigo é parte da pesquisa “Parcerias entre sistemas públicos einstituições do terceiro setor no Brasil, Argentina, Portugal e Inglaterra:implicações para a democratização da educação”, coordenada pela profes-sora Vera Maria Vidal Peroni, vinculada ao Programa de Pós-Graduaçãoem Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O texto apresenta os estudos realizados até o presente momento den-tro da pesquisa, que abarcam a Educação Especial1. Buscamos, no decorrerdo processo de investigação, compreender como instituições privadas atua-ram no campo da Educação Especial (EE) e como essa relação está confi-gurada hoje no Brasil.

O objetivo do artigo é discutir como se deu a relação público-privadana EE no decorrer de sua história no Brasil, como se constitui hoje essarelação e apresentar suas contradições.

Para isso, analisamos a história da Educação Especial, especialmen-te os estudos de Gilberta de Martino Jannuzzi (2006). Utilizamos dados doInstituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira etambém documentos e legislação elaborados entre os anos de 1988 e 2011,momento em que a área ganha força no país em nível de Estado. As contri-buições, principalmente de Rosalba Cardoso Garcia (2009 e 2004), Vera Maria

1 A Educação Especial é uma modalidade de ensino que perpassa todos os níveis, etapas e mo-dalidades, realiza o atendimento educacional especializado, disponibiliza os recursos e servi-ços e orienta quanto à sua utilização no processo de ensino e aprendizagem nas turmas comunsdo ensino regular. O público-alvo da Educação Especial são alunos com deficiência, transtor-nos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação (BRASIL, 2008).

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Vidal Peroni (2009), Nalú Farenzena e Maria Gorete Farias Machado (2006),Élcia Esnarriaga de Arruda, Mônica Kassar e Marielle Santos (2006) e JucaGil et al (2010), sustentam as discussões que vêm sendo realizadas.

O texto está organizado em três momentos. Inicialmente, fizemosum resgate histórico de como se deu a oferta de EE no Brasil. Após, apre-sentamos como está organizada hoje a área em questão2 e quais os princi-pais programas de governo que a orientam. Em seguida, apontamos, nalegislação, onde está garantido o financiamento público a instituições pri-vadas. Por fim, tecemos considerações preliminares sobre a política de EE.

Breve retrospectiva histórica da ofertade Educação Especial no Brasil

Historicamente, a Educação Especial foi considerada mais um servi-ço de caráter filantrópico do que propriamente um direito social. A partirda década de 1980, porém, ela entra para a pauta da universalização dodireito à educação, inicialmente com a Constituição de 1988.

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educa-ção Inclusiva mostra que

No Brasil, o atendimento às pessoas com deficiência teve início na época doImpério, com a criação de duas instituições: O Imperial Instituto dos Meni-nos Cegos, em 1854, atual Instituto Benjamin Constant – IBC e o Institutodos Surdos mudos, em 1857 [...]. No início do século XX, é fundado o Insti-tuto Pestalozzi (1926), instituição especializada no atendimento às pessoascom deficiência mental; em 1945, é criado o primeiro atendimento educacio-nal especializado às pessoas com superdotação na Sociedade Pestalozzi, porHelena Antipoff (BRASIL, 2008).

Na década de 1960, clínicas e serviços particulares de atendimento,muitos com apoio educacional, foram reunindo pessoas e profissionais in-

2 A Educação Especial tinha, até início do ano de 2012, uma secretaria própria dentro do Minis-tério da Educação (MEC), chamada Secretaria de Educação Especial (SEESP). Devido a umanova compreensão da área (que será mais bem explicada posteriormente), na perspectiva daEducação Inclusiva, a Educação Especial passa a integrar, para fins administrativos, a Secreta-ria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI). Em algunsmomentos, o presente texto trará referências encontradas no site da SEESP, que não disponibi-liza mais as informações.

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teressados no problema. Comprova-se certa pressão em torno do tema. Em1973, o MEC cria o Centro Nacional de Educação Especial – CENESP,responsável pela gerência da Educação Especial no Brasil, que, sob a égideintegracionista, impulsionou ações educacionais voltadas às pessoas comdeficiência e às pessoas com superdotação, mas ainda configuradas por cam-panhas assistenciais e iniciativas isoladas do Estado (JANNUZZI, 2006).

Nesse momento, não se efetiva uma política pública de acesso uni-versal à educação, permanecendo a concepção de “políticas especiais” paratratar da educação de alunos com deficiência. Na metade da década de1980, é criado o Conselho Nacional para Integração da Pessoa com Defi-ciência (CORDE), visando maior abrangência que o CENESP e, numaépoca de nova tentativa de redemocratização nacional, traz também a mar-ca de alguma participação dos próprios deficientes, o que não aconteciaanteriormente (JANNUZZI, 2006).

Após esse período, com a Constituição de 1988, a Lei de Diretrizes eBases da Educação Nacional (1996) e políticas integracionistas, começa ase efetivar a oferta de serviço educacional público às pessoas com deficiên-cia em escolas especiais e classes especiais (dentro de escolas regulares).Isso não quer dizer que a oferta privada se extingue, pois a mesma exercegrande força política no interior do Estado.

Seguindo esse movimento (que ocorre também em outros países), aspolíticas de integração passam a ser substituídas pelas chamadas políticas deinclusão, visando à extinção das classes e escolas especiais. A proposta dachamada educação inclusiva é que os alunos público-alvo da Educação Es-pecial sejam matriculados em salas de aula regulares e tenham atendimentocomplementar em salas de apoio dentro da escola regular e em turno oposto.Tais políticas se mantêm nos dias de hoje, porém com algumas modificações.

Sobre esse movimento histórico, Peroni (2009) contribui para o de-bate:

Após muita luta para ser garantida como um direito, a educação dos sujei-tos com deficiência é garantida na legislação, mas a sua implementação so-freu os impactos das redefinições no papel do Estado e dificuldades na suamaterialização. O poder público historicamente desresponsabilizou-se da edu-cação especial e, no momento em que estava iniciando a ser entendida comoum direito, a nova conjuntura de racionalização de recursos dificulta a im-plementação com qualidade das políticas e restringe a ampliação de escolaspúblicas de educação especial (PERONI, 2009, p. 01-02).

BOROWSKY, F. • A relação entre a educação pública e a privada na Educação Especial brasileira

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

As políticas continuam hoje restringindo a existência de escolas pú-blicas de Educação Especial, movimento que se fortaleceu com a Reformado Estado brasileiro. Sobre isso, Garcia (2009) também traz contribuiçõesimportantes:

Historicamente, a educação especial brasileira foi estruturada sobre poucasinstituições públicas e uma rede paralela de instituições privadas que desen-volveram o trabalho em regime de convênios com secretarias de educaçãonos estados e municípios. [...] A reforma do Estado brasileiro nos anos 1995favoreceu uma situação que já estava naturalizada para a educação especial,qual seja a relação público/privado na execução do atendimento educacio-nal. As instituições privado-assistenciais assumiram o atendimento de edu-cação especial, recebendo financiamentos públicos, que podem servir para aestrutura física, o transporte escolar e mesmo para a sustentação do quadrode professores, muitos deles cedidos pelas secretarias estaduais e/ou muni-cipais (GARCIA, 2009, p. 03).

Atualmente, a Educação Especial é chamada de Educação Inclusi-va3. O atendimento complementar em salas de recursos é entendido como“atendimento educacional especializado4” (AEE), que pode ser realizadonas escolas ou em centros especializados, públicos ou privados. As salas deapoio passaram a se denominar Salas de Recursos Multifuncionais5, e opapel do professor também se modificou através da ampliação de algumasfunções e da supressão de outras6.

3 Essa não é apenas uma mudança na nomenclatura, mas sim na compreensão da área. A respei-to dessa discussão, exclusão/inclusão educacional, que não poderá ser aqui desenvolvida devi-do às limitações físicas do artigo, concordamos com Oliveira (2004) que afirma que os concei-tos exclusão/inclusão não podem ser compreendidos como novos paradigmas sociais, vistoque são formas contemporâneas de aparecimento da lógica interna do sistema capitalista. Paramaiores esclarecimentos sobre o debate, ver OLIVEIRA, Avelino da Rosa. Marx e a exclusão.Pelotas: Seiva, 2004. 162p.

4 De acordo com o decreto 6.571/2008 “§1º, considera-se atendimento educacional especializa-do o conjunto de atividades, recursos de acessibilidade e pedagógicos organizados institucio-nalmente, prestado de forma complementar ou suplementar à formação dos alunos no ensinoregular” (BRASIL, 2008b, p. 01).

5 “(...) as salas de recursos multifuncionais são ambientes dotados de equipamentos, mobiliáriose materiais didáticos e pedagógicos para a oferta do atendimento educacional especializado”(BRASIL, 2010, p. 05).

6 Sobre isto ver BOROWSKY, Fabíola. Fundamentos teóricos do Curso de Aperfeiçoamento de Profes-sores para o Atendimento Educacional Especializado (2007): novos referenciais? Dissertação (Mes-trado em Educação). Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2010.

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Essa reconfiguração pela qual tem passado a Educação Especial quan-to ao tipo de educação ofertada aos alunos, quanto às concepções e termi-nologias empregadas e ao papel do professor suscita a ideia de que a rela-ção público-privado, que já existia através de convênios, esteja se fortale-cendo com a ideia de a Educação Especial ser um serviço de ordem técnicaque não precisa ocorrer no seio da escola, apesar de percebermos maioratuação do Estado na área.

Como está configurada hoje a Educação Especial no Brasil

O Brasil tem avançado bastante nas duas últimas décadas na esferajurídica, no que diz respeito aos direitos das pessoas com deficiência. Mui-tas leis conquistadas são resultados de lutas dos movimentos sociais emprol da igualdade de direitos. Podemos verificar a expressão dessas con-quistas nos diversos documentos orientadores e normatizadores da área.

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da EducaçãoInclusiva tem objetivo amplo, ultrapassando os níveis da educação e esten-dendo-se à comunidade, como pode ser observado na passagem abaixo:

[...] assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência, transtornos glo-bais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, orientando ossistemas de ensino para garantir: acesso ao ensino regular, com participa-ção, aprendizagem e continuidade nos níveis mais elevados do ensino; trans-versalidade da modalidade de educação especial desde a educação infantilaté a educação superior; oferta do atendimento educacional especializado;formação de professores para o atendimento educacional especializado edemais profissionais da educação para a inclusão; participação da família eda comunidade; acessibilidade arquitetônica, nos transportes, nos mobiliá-rios, nas comunicações e informação; e articulação intersetorial na imple-mentação das políticas públicas (BRASIL, 2008, p. 14).

Diante desse arcabouço legal, o Governo Federal, na gestão de LuísInácio Lula da Silva (2002-2010), criou programas de governo que deramnovas características à política nacional, os quais são mantidos pelo atualgoverno na gestão de Dilma Roussef (2011-2014). Os programas “Implan-tação de Salas de Recursos Multifuncionais”7 (BRASIL, 2010), “Educação

7 “O Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais, instituído pelo MEC/SEESP por meio da Portaria Ministerial nº 13/2007, integra o Plano de Desenvolvimento da

BOROWSKY, F. • A relação entre a educação pública e a privada na Educação Especial brasileira

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Inclusiva: direito a diversidade8” (BRASIL, 2005) e “Escola Acessível9”são direcionados à educação básica, e o “Programa Incluir10” é direciona-do ao Ensino Superior. Todos eles são organizados pelo sistema de editaisde concorrência.

Dessa forma, a política de educação inclusiva articula um progra-ma ao outro, visando atingir todos os níveis de ensino. É importante des-tacar a contribuição de Garcia (2009), que nos lembra que os programasaqui citados foram elaborados dentro do Plano de Desenvolvimento daEducação – PDE, plano de metas do governo federal que apresenta diver-sos projetos para os diferentes níveis e modalidades da educação nacio-nal.

Além disso, a autora afirma que esse movimento implica a presen-ça do Estado na criação de mecanismos públicos de Educação Especial,embora, segundo as Diretrizes Operacionais da Educação Especial para oAtendimento Educacional Especializado na Educação Básica (BRASIL,2009), assim como já constava na Resolução nº 2 de 2001, o atendimento

Educação – PDE, destinando apoio técnico e financeiro aos sistemas de ensino para garantir oacesso ao ensino regular e a oferta do AEE aos alunos com deficiência, transtornos globais dodesenvolvimento e/ou altas habilidades/superdotação” (BRASIL, 2010, p. 09).

8 Visa “(...) a formação de gestores e educadores para efetivar a transformação dos sistemaseducacionais em sistemas educacionais inclusivos, tendo como princípio a garantia do direitodos alunos com necessidades educacionais especiais de acesso e permanência, com qualidade,nas escolas regulares” (BRASIL, 2005, p. 09). Esse programa vem sendo implementado peloMEC e pela antiga SEESP desde 2003 numa lógica de municípios-polos que exercem o papelde multiplicadores. A inspiração de tal programa é o conhecido material da Unesco “Forma-ção de Professores: as necessidades especiais na sala de aula” (GARCIA, 2009).

9 “Promover a acessibilidade e inclusão de estudantes com deficiência, transtornos globais dodesenvolvimento e altas habilidades/superdotação matriculados em classes comuns do ensinoregular, assegurando-lhes o direito de compartilharem os espaços comuns de aprendizagem,por meio da acessibilidade ao ambiente físico, aos recursos didáticos e pedagógicos e às comu-nicações e informações” (BRASIL, 2012, p. 05-06) é a meta desse programa, que disponibilizarecursos por meio do Programa Dinheiro Direto na Escola – PDDE, às escolas contempladaspelo Programa Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais.

10 Objetiva “promover a inclusão de estudantes com deficiência na educação superior, garantin-do condições de acessibilidade nas Instituições Federais de Educação Superior”. Disponívelem: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view =article&id=17433&Itemid=817>. Acesso em: 28 jan. 2013.

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educacional especializado possa ser realizado pelos centros especializadosmantidos pelas instituições privado-assistenciais, desde que conveniadas comas redes de ensino (GARCIA, 2009).

Com essas ações, evidenciam-se mudanças nos índices de acesso dapessoa com deficiência às escolas. Segundo dados do Instituto Nacionalde Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (BRASIL, 2011b),em 2010 houve um aumento de 10% no número de matrículas nessa mo-dalidade de ensino. Em 2009, havia 639.718 matrículas, e, em 2010,702.603. Quanto ao número de alunos incluídos em classes comuns doensino regular e em EJA, o aumento foi de 25%. Nas classes especiais enas escolas especiais, houve diminuição de 14% no número de alunos.Em 2007, 62,7% do total de matrículas da educação especial estavam nasescolas públicas e 37,3% nas escolas privadas. Em 2010, esses númerosalcançaram 75,8% nas públicas e 24,2% nas escolas privadas, mostrandoa ampliação do acesso dos alunos público-alvo da Educação Especial àescola pública.

Do total de matrículas de alunos público-alvo da Educação Especial, amaioria se encontra em escolas públicas, sejam elas especiais ou regulares.Porém, quando analisamos as matrículas dos alunos público-alvo da Edu-cação Especial em escolas especiais, vemos que a maioria (65%) se concen-tra em escolas privadas (BRASIL, 2011b).

Isso nos leva a questionar a quem a política de inclusão está benefici-ando, já que alunos com maiores comprometimentos ou aqueles que não seenquadram nessa política, os que a escola regular não consegue atender,estão nas escolas especiais e privadas. Há uma demanda significativa, aqual a política não contempla.

Aqueles que necessitam de escolas especiais encontram-se, em suamaioria, na rede privada, como podemos observar no comparativo entre osanos de 2007 e 2010:

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Distribuição das matrículas de Educação Especialpor Dependância Administrativa

Brasil – 2007-2010

Fonte: BRASIL (2011b)

Observamos, então, que o número de alunos em escola especial temreduzido, mas na escola privada tem reduzido pouco. Isso nos remete àdiscussão sobre a legitimidade que as escolas privadas têm quanto ao aten-dimento dessa demanda em relação ao pensamento hegemônico de descré-dito da escola pública para essa função. Além disso, questionamos o fo-mento a essas instituições consideradas prestadoras de serviço, já que agoraa Educação Especial é considerada um serviço. O incentivo é dado a essasinstituições através da oferta de verbas públicas para o financiamento dasmesmas, como poderemos ver no item seguinte, onde é legalmente emba-sado esse financiamento.

A garantia legal de financiamento públicoa instituições privadas

No intuito de compreender como se materializam as parcerias já re-feridas entre o sistema público e o setor privado na EE, realizamos umlevantamento dos documentos que orientam a formação de convênios eaqueles que regulamentam essas parcerias.

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A Lei nº 9.394/96, que estabelece as Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional, quando trata da EE, já mencionava a possibilidade de convêniosna área: “Art. 60. Os órgãos normativos dos sistemas de ensino estabelece-rão critérios de caracterização das instituições privadas sem fins lucrativos, espe-cializadas e com atuação exclusiva em Educação Especial, para fins de apoiotécnico e financeiro pelo Poder Público” (BRASIL, 1996) [grifo nosso].

Com relação aos documentos específicos da EE, trouxemos passa-gens do Parecer nº 17, de 3 de julho de 2001, do Conselho Nacional deEducação, que orienta sobre as diretrizes para a EE no país. Esse parecerressalta que

4.1 - No âmbito políticoEssa política inclusiva exige intensificação quantitativa e qualitativa na for-mação de recursos humanos e garantia de recursos financeiros e serviços deapoio pedagógico públicos e privados especializados para assegurar o de-senvolvimento educacional dos alunos (BRASIL, 2001, p. 13).O “lócus” dos serviços de educação especialOs sistemas públicos de ensino poderão estabelecer convênios ou parceriascom escolas ou serviços públicos ou privados, de modo a garantir o atendi-mento às necessidades educacionais especiais de seus alunos, responsabili-zando-se pela identificação, análise, avaliação da qualidade e da idoneida-de, bem como pelo credenciamento das instituições que venham a realizaresse atendimento, observados os princípios da educação inclusiva (BRA-SIL, 2001, p. 19).

A Resolução nº 2, de 11 de setembro de 2001, documento de lei queestabelece as diretrizes nacionais para a EE, traz uma passagem sobre ocredenciamento de instituições que podem estabelecer convênios com osistema público:

Art. 14. Os sistemas públicos de ensino serão responsáveis pela identifica-ção, análise, avaliação da qualidade e da idoneidade, bem como pelo cre-denciamento de escolas ou serviços, públicos ou privados, com os quais estabe-lecerão convênios ou parcerias para garantir o atendimento às necessidades edu-cacionais especiais de seus alunos, observados os princípios da educaçãoinclusiva (BRASIL, 2001b, p. 4) [grifo nosso].

Com esses primeiros documentos citados, já percebemos que, nosanos em que a chamada educação inclusiva começava a se firmar no campoda EE, intitulando-se um novo paradigma educacional, o incentivo à ini-ciativa privada continuava a existir e ganhava legitimidade através da legis-lação, revelando as contradições dessa política.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Em 2007, o FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimentodo Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério)11 foi substituídopelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e deValorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), que, apesar de se-melhante ao FUNDEF, ampliou suas propostas para a educação básica.Com essa substituição, o diferencial entre os valores destinados aos alunosdos anos iniciais do Ensino Fundamental e a Educação Especial passoudos 7% (FUNDEF) para 20% (GIL et al, 2010). Além disso, foi implemen-tada, a partir de 2010, a dupla contagem da matrícula dos alunos da educa-ção regular da rede pública, que recebem atendimento educacional especi-alizado (seja ele público ou privado), ou seja, destinação de valor dobrado aalunos da Educação Especial que recebem o AEE.

O Decreto nº 6571, de 17 de setembro de 2008, que dispõe sobre oAEE, aponta que receberão duplo financiamento do FUNDEB os alunosmatriculados em escolas regulares e no AEE (de instituições públicas ounão) e remete-se ao Decreto 6253, de 13 de novembro de 2007, que dispõesobre o FUNDEB:

Art. 14. Admitir-se-á, a partir de 1º de janeiro de 2008, para efeito da distri-buição dos recursos do FUNDEB, o cômputo das matrículas efetivadas naeducação especial oferecida por instituições comunitárias, confessionais ou filan-trópicas sem fins lucrativos, com atuação exclusiva na educação especial, con-veniadas com o poder executivo competente (BRASIL, 2007, s/n) [grifonosso].

11 O FUNDEF foi regulamentado pelo Decreto nº 2.264, de junho de 1997. Foi implantado,nacionalmente, em 1º de janeiro de 1998, quando passou a vigorar a nova sistemática de redistri-buição dos recursos destinados ao Ensino Fundamental. A maior inovação do FUNDEF consis-tiu na mudança da estrutura de financiamento do Ensino Fundamental no país (1ª a 8ª sériesdo antigo 1º grau), ao subvincular a esse nível de ensino uma parcela dos recursos constitu-cionalmente destinados à educação. A Constituição de 1988 vincula 25% das receitas dosestados e municípios à educação. Com a Emenda Constitucional nº 14/96, 60% desses recur-sos (o que representa 15% da arrecadação global de estados e municípios) ficam reservados aoEnsino Fundamental. Além disso, introduz novos critérios de distribuição e utilização de 15%dos principais impostos de estados e municípios, promovendo a sua partilha de recursos entreo governo estadual e seus municípios, de acordo com o número de alunos atendidos em cadarede de ensino. Genericamente, um fundo pode ser definido como o produto de receitas espe-cíficas, que, por lei, vincula-se à realização de determinados objetivos. O FUNDEF é caracte-rizado como um fundo de natureza contábil. Disponível em: <http://mecsrv04.mec.gov.br/sef/fundef/funf.shtm>. Acesso em: 27 jan. 2013.

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Com isso observamos novos contornos na organização estatal. Osdois fundos previram valores financeiros diferenciados a serem destinadosàs instituições que atendem a educação especial, sejam elas públicas ouprivadas. Valores esses mais elevados do que os aportados às escolas co-muns. Gil et al (2010, p. 20) afirmam que “(...) os fatores de ponderaçãoestipulados para o FUNDEB não estão assentados em dados técnicos queevidenciem as justificativas de suas diferenciações e as decisões sobre essesvalores advêm essencialmente dos embates políticos entre diferentes grupos”.

A Resolução nº 4, de 2 de outubro de 2009, que institui as DiretrizesOperacionais para o AEE, também enfatiza a participação das instituiçõesprivadas no AEE.

Art. 1º Para a implementação do Decreto nº 6.571/2008, os sistemas deensino devem matricular os alunos com deficiência, transtornos globais dodesenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas classes comuns doensino regular e no Atendimento Educacional Especializado (AEE), oferta-do em salas de recursos multifuncionais ou em centros de Atendimento Edu-cacional Especializado da rede pública ou de instituições comunitárias, confes-sionais ou filantrópicas sem fins lucrativos (BRASIL, 2009, p. 01) [grifo nosso].

Sobre onde deve ocorrer o AEE, o documento reafirma:

Art. 5º O AEE é realizado, prioritariamente, na sala de recursos multifuncio-nais da própria escola ou em outra escola de ensino regular, no turno inversoda escolarização, não sendo substitutivo às classes comuns, podendo ser re-alizado, também, em centro de Atendimento Educacional Especializado darede pública ou de instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicassem fins lucrativos, conveniadas com a Secretaria de Educação ou órgãoequivalente dos Estados, Distrito Federal ou dos Municípios (BRASIL, 2009,p. 02).

O mesmo documento reforça o duplo financiamento pelo FUNDEB:

Art. 8º Serão contabilizados duplamente, no âmbito do FUNDEB, de acor-do com o Decreto nº 6.571/2008, os alunos matriculados em classe comumde ensino regular público que tiverem matrícula concomitante no AEE.Parágrafo único. O financiamento da matrícula no AEE é condicionado àmatrícula no ensino regular da rede pública, conforme registro no CensoEscolar/MEC/INEP do ano anterior, sendo contemplada: (...)d) matrícula em classe comum e em centro de Atendimento EducacionalEspecializado de instituições de Educação Especial comunitárias, confessio-nais ou filantrópicas sem fins lucrativos (BRASIL, 2009, p. 02).

Ou seja, no ano em questão, a EE já se reconfigurava quanto ao mo-delo de atendimento agora chamado de AEE, considerado um serviço,

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porém se reafirma uma prática historicamente consolidada na área, qualseja, a política de conveniamentos.

Nessas passagens, questionamos também que, se o AEE implica aexistência da sala de recursos multifuncional e o mesmo pode ser realizadoem instituições privadas, logo as instituições privadas também podem rece-ber a sala multifuncional e todos os equipamentos dela decorrentes, finan-ciados pelo sistema público.

Chamamos atenção também para o Programa Dinheiro Direto naEscola (PDDE), o qual se realiza com verbas do FNDE, que na Resoluçãonº 17, de 19 de abril de 2011, dispõe sobre os procedimentos de adesão ehabilitação e as formas de execução e prestação de contas referentes aoPDDE: “CONSIDERANDO a política de estímulo ao fortalecimento daparticipação social e da autogestão dos estabelecimentos de ensino públi-cos, e privados sem fins lucrativos que ministram educação especial, como meiode consolidação da escola democrática” (BRASIL, 2011, p. 01) [grifo nos-so]. Nessa passagem, o documento coloca a parceria público-privada comomeio de consolidação da escola democrática e leva-nos a questionar talafirmação, visto que, em nosso entender, uma escola democrática não secaracteriza pela parceria com o setor privado.

O mesmo documento, quando descreve o programa, destaca:

Art. 1º O Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) consiste na destina-ção anual, pelo FNDE, de recursos financeiros, em caráter suplementar, aescolas públicas e privadas de educação especial, que possuam alunos ma-triculados na educação básica, com o propósito de contribuir para o provi-mento das necessidades prioritárias das escolas beneficiárias que concor-ram para a garantia de seu funcionamento e para a promoção de melhoriasem sua infra-estrutura física e pedagógica, bem como incentivar a autoges-tão escolar e o exercício da cidadania com a participação da comunidade nocontrole social (BRASIL, 2011, p. 02).

Percebemos aqui as parcerias sendo utilizadas como justificativa paraa participação social. Entendemos que nos documentos confundem-se con-ceitos como democracia e participação social e que esse último refere-se àparticipação de instituições privadas sem fins lucrativos.

Sobre os beneficiários do PDDE, o documento salienta:

Art. 2º Os recursos financeiros do PDDE destinam-se a beneficiar as escolas:(...) II - privadas de educação básica, na modalidade de ensino especial,recenseadas pelo MEC no ano anterior ao do atendimento, mantidas por

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entidades definidas na forma do inciso III, parágrafo único, do art. 4º (BRA-

SIL, 2011, p. 02).

Percebemos que documentos mais abrangentes referentes à educa-ção básica, sempre que tratam da EE, referem-se a instituições privadassem fins lucrativos.

Por fim, o mais recente documento da área, o Decreto 7611, de 17 denovembro de 2011, que dispõe sobre a Educação Especial, o atendimentoeducacional especializado e dá outras providências:

DECRETA:Art. 1o O dever do Estado com a educação das pessoas público-alvo da edu-cação especial será efetivado de acordo com as seguintes diretrizes:(...) VIII - apoio técnico e financeiro pelo Poder Público às instituições pri-vadas sem fins lucrativos, especializadas e com atuação exclusiva em educa-ção especial.(...) Art. 5o A União prestará apoio técnico e financeiro aos sistemas públi-cos de ensino dos Estados, Municípios e Distrito Federal e a instituiçõescomunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos (BRASIL,2011c, p. 01).

Com esses elementos, iniciamos algumas análises a respeito de comovem se reconfigurando a Educação Especial em alguns aspectos e em ou-tros mantém antigas concepções. Entendemos que o fato de a EE ter sidogarantida legalmente enquanto direito público não extingue práticas his-tóricas na área. Buscando olhar a totalidade das relações sociais, pensa-mos que, apesar de avanços conquistados, a atual política reconfigura aárea em favor da manutenção de uma lógica que favorece instituições pri-vadas e fomenta um pensamento hegemônico de descrédito da escolapública.

Para contribuir com essas discussões, utilizamos um estudo de Fa-renzena e Machado (2006), que nos mostra que o custo-aluno-ano médionacional12 na Educação Especial é de R$ 4.283,21, enquanto que na Educa-ção Infantil (creches) é de R$ 2.538,55 e pré-escola é de R$ 1.109,19; noEnsino Fundamental Inicial (EFI), é de R$ 1.004,29 e Final de R$ 1.002,44;

12 Custo-aluno-ano quantifica monetariamente os recursos utilizados, por aluno matriculado, noperíodo de um ano. O custo-aluno-qualidade seria o valor, por aluno, no período de um ano,dos recursos necessários ou desejáveis para um ensino de qualidade (FARENZENA, 2006).

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no Ensino Médio R$ 1.307,82 e na Educação de Jovens e Adultos R$831,3613. Ou seja,

Na educação especial, o custo-aluno-ano médio nacional (R$4.283,21) é maisde quatro vezes o valor do EFI (R$1.004,29). Dos cinco estados da amostraque contam com escolas que oferecem educação especial (atendimento ex-clusivamente especializado), os custos dessa modalidade sempre são maisdo que o dobro daquele do EFI (FARENZENA e MACHADO, 2006, p.285-286).

Esses dados nos levam a entender que a inclusão de alunos público-alvo da EE em escolas regulares significa uma economia importante paraos cofres públicos, o que poderia justificar as grandes campanhas em favorda inclusão e pelo fim das escolas especiais públicas.

Complementando essas análises, a relação entre o custo do aluno naEE estatal e na não estatal suscita outras discussões. Arruda, Kassar e San-tos (2006) mostraram que em 2004 a média anual de um aluno de umainstituição pública não estatal era de R$ 218,50 e, no mesmo ano, a médiaanual de um aluno de uma instituição pública era de R$ 109,53.

Ao analisar recursos repassados a uma instituição específica, as auto-ras constataram que o financiamento das instituições privado-assistenciaisé predominantemente público. Dessa forma, se pensarmos na redução degastos ao Estado, não é estranho assisti-lo assumindo a execução do atendi-mento da EE através da política de inclusão (ARRUDA, KASSAR e SAN-TOS, 2006).

Encontramos, com essas análises, contradições referentes ao papeldo Estado para com a EE, visto que documentos orientam a inclusão esco-lar dos alunos com deficiência em escolas públicas do ensino regular, em-bora se incentive o AEE em instituições privadas através do repasse de re-cursos públicos e a legislação assegure a coexistência de ambas as institui-ções. Há uma indefinição sobre o papel dessas instituições diante do movi-mento de inclusão dos alunos com deficiência, sendo que muitas têm reor-ganizado suas práticas, transformando-se em centro de AEE.

13 A pesquisa envolveu apenas escolas especiais públicas. Aqui apenas expusemos os dados atítulo de comparação, sem considerar as diferenças econômicas regionais e o número de esco-las de cada Estado que participaram da pesquisa.

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Considerações finais

Observamos que, historicamente, o descompromisso do Estado naEducação Especial é mais evidente do que no restante da educação e que osetor privado sempre foi mais atuante na área. Porém, com o chamadomovimento de inclusão escolar de alunos com deficiência, percebemos oEstado atuando na área, mas de forma diferenciada e contraditória, já queao mesmo tempo fomenta a participação de instituições privadas na ofertade atendimento.

Analisando a questão dentro do movimento histórico da sociedadecapitalista, é possível perceber que, no Brasil, as políticas educacionais paraas pessoas com deficiência são criadas na medida em que a sociedade as vêcomo capazes de integrar a força de trabalho ou no intuito de liberar afamília para o trabalho. Além disso, esse movimento poderia contribuirpara o aumento da produtividade como alavanca do progresso e do desen-volvimento do país, onde a escola passa também a ter o objetivo de prevenira delinquência e manter a “ordem” do sistema (JANNUZZI, 2006).

A Educação Especial historicamente foi ofertada pelo setor privado,enquanto o Estado esteve isento dessa responsabilidade. Com movimentosoriundos da sociedade, essa passa a ser considerada um direito público. Con-tudo, políticas de conveniamento fazem com que instituições privadas semfins lucrativos atendam a maior parte dos sujeitos da Educação Especial,durante um longo tempo. A reforma do Estado reforça essa situação, que jáera uma prática comum na Educação Especial.

Atualmente, a política prevê o chamado atendimento educacionalespecializado, que pode ocorrer dentro das escolas regulares (no que antesse chamavam salas de recursos) e/ou nos centros de especializados, que sãoas escolas especiais transformadas nesse novo modelo de atendimento, emturno inverso ao da escola regular, dentro da perspectiva da chamada inclu-são. Essa reconfiguração pela qual tem passado a Educação Especial quan-to ao tipo de educação ofertada aos alunos, quanto às terminologias e aopapel do professor, não ocorre no que diz respeito ao local onde deve ocor-rer, já que a política não extingue a oferta de Educação Especial privadamas, pelo contrário, a fomenta e legitima.

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Ou seja, essa política chamada inovadora, que anuncia todos na mes-ma escola, não diz que escola é essa. Ela não rompe com a lógica históricada Educação Especial de financiamento público a instituições privadas.Parece-nos que os documentos estão mais ‘preocupados’ em definir se aescola deve ser regular ou especial, mas não se deve ser pública. Tais ele-mentos revelam algumas das contradições dessa política.

Percebemos que o Estado se coloca como provedor não da EducaçãoEspecial, mas do chamado AEE, que, como visto em outras pesquisas14, seconstitui em instrumentos e técnicas de acessibilidade e não garante aaprendizagem dos alunos. Ainda assim, o Estado responsabiliza também asociedade pela oferta de Educação Especial, transferindo a instituições pri-vadas apoio financeiro em detrimento da escola pública.

A Educação Especial já vinha sendo tratada como um serviço (BRA-SIL, 2001), no caso, um serviço educacional especializado complementar,suplementar ou substitutivo à educação regular. Agora, as salas de recursosmultifuncionais como lócus do atendimento educacional especializado rei-teram essa compreensão de educação como serviço. A concepção de “ser-viço” está articulada às definições acerca da responsabilidade sobre o aten-dimento educacional especializado (GARCIA, 2009). Remete a ideia deque a Educação Especial possa ser ofertada enquanto prestação de serviçoe não como um processo de escolarização caracterizado na educação bási-ca como um todo.

Observamos que, ao mesmo tempo em que a política avança na pos-sibilidade de matrícula de pessoas com deficiência enquanto direito públi-co, ela reitera antigas concepções quanto a esse atendimento ser ofertadopelo setor privado. A política avançou quanto ao número de alunos matri-culados em escolas públicas e quanto à criação de salas de recursos multi-funcionais em escolas regulares. Porém, ao mesmo tempo esses alunos sãoincentivados a frequentar escolas e/ou centros privados para fazer o AEE.

Conforme os dados apresentados, a frequência de alunos com defi-ciência em escolas públicas regulares é mais barato ao Estado do que naescola conveniada e mais barato ainda do que na escola especial pública.

14 BOROWSKY (2010); LEHMKUHL (2011).

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Isso justifica a atuação do Estado em prol da inclusão em escola regularpública e do fim das escolas especiais públicas. Porém, politicamente, aforça das instituições privado-assistenciais garante a sua atuação na EE en-quanto prestação de serviço.

Também entendemos que, ao gastar com instituições privadas e con-vênios, o Estado deixa de investir em escolas públicas, uma verba que épública, e acaba por repassar a responsabilidade de qualificação para o se-tor privado, em detrimento da escola pública, que fica cada vez mais desa-creditada.

Assim, vemos que juntamente aos documentos oficiais que incenti-vam as parcerias público-privadas, as leis federais as legitimam perante asociedade. O Estado coloca-se como provedor dos serviços que vão garan-tir o fim da exclusão de alunos com deficiências das escolas, anunciandoqualidade na educação, entretanto está apenas reforçando uma situaçãosegregatória já consolidada na área e agora trazida para junto da escola.

Referências

ARRUDA, E. E.; KASSAR, M.; SANTOS, M. M. Educação Especial: o custo doatendimento de uma pessoa com necessidades especiais em instituições públicaestatal e não estatal, em MS, 2004. In: Educação Especial em Foco: questões contem-porâneas. Campo Grande: Ed. Uniderp, 2006.

BOROWSKY, Fabíola. Fundamentos teóricos do Curso de Aperfeiçoamento de Professorespara o Atendimento Educacional Especializado (2007): novos referenciais? Dissertação(Mestrado em Educação). Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina,2010.

BRASIL. Lei 9394/96. Lei que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacio-nal. Brasília: MEC, 1996.

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______. Educação Inclusiva: direito a diversidade. Documento Orientador. Brasília: MECSEESP, 2005.

BOROWSKY, F. • A relação entre a educação pública e a privada na Educação Especial brasileira

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

______. Decreto n° 6253, de 13 de novembro de 2007. Dispõe sobre o Fundo de Manu-tenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionaisda Educação (FUNDEB). Brasília: MEC, 2007.

______. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.Brasília: MEC/SEESP, 2008.

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______. Resolução 4/2009. Institui Diretrizes Operacionais para o AtendimentoEducacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial.Brasília: Conselho Nacional de Educação, 2009.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado:a parceria público-privada nas políticas

de educação de jovens e adultos

Denise Maria ComerlatoJaira Coelho Moraes

Com o objetivo de analisarmos a relação entre o público e o privadoe as consequências para a democratização da educação, caracterizamos nestetexto as duas principais propostas de alfabetização para jovens e adultosem execução no Brasil. Para tanto, traremos elementos da história da edu-cação e sua relação com as reformas do Estado a partir dos anos 1990,entre as quais se destaca o estímulo à parceria público-privada no campoeducacional.

Nesse contexto, efetivam-se a organização não governamental AlfaSole o Programa Brasil Alfabetizado (PBA), os quais descrevemos desde seussujeitos às formas de estruturação, implementação e desenvolvimento. OPBA é parte integrante da política de Educação de Jovens e Adultos (EJA)do governo federal desde 2003 e é considerado pelo Ministério de Educa-ção (MEC) uma das portas de entrada para o Ensino Fundamental de jo-vens, adultos e idosos. A AlfaSol também desenvolve ações voltadas para aalfabetização inicial e teve seu início em 1997 como programa de alfabeti-zação do governo federal sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso(FHC). Em 2002, passou a ser uma associação da sociedade civil sem finslucrativos e, em 2007, uma organização não governamental (ONG).

A relevância deste estudo está diretamente relacionada ao fato daAlfaSol poder executar políticas públicas de educação em forma de parce-ria com governos municipais e estaduais, entre elas o PBA. Outro fator quejustifica nosso estudo é a constatação de que a queda do analfabetismoadulto no Brasil tem sido residual em comparação aos investimentos reali-zados pelo governo federal.

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A Alfabetização Solidária – AlfaSol

O Programa Alfabetização Solidária foi criado em 1997 pelo Conse-lho do Programa Comunidade Solidária – um fórum de desenvolvimentode ações sociais, cuja base de funcionamento é a parceria entre governofederal, iniciativa privada e sociedade civil. Com origem em 1996, esse pro-grama era voltado para a assistência social e coordenado pela então primei-ra-dama, Dra. Ruth Cardoso. E, conforme Barreyro (2005), foi muito criti-cado no início por estar ligado à distribuição de cestas básicas, o que levouo Comunidade Solidária a mudar de foco, escolhendo alguns eixos de tra-balho, tais como o fortalecimento da sociedade civil, que se concentrou napromoção do voluntariado e do “terceiro setor”, e o desenvolvimento deprogramas inovadores, entre esses o Alfabetização Solidária.

Tal iniciativa ocorreu após anos sem políticas públicas voltadas paraa alfabetização de adultos, pois não havia projetos federais desde 1990 coma extinção do Projeto Educar. Cabe ressaltar que o Programa Alfabetiza-ção Solidária foi lançado em data posterior à homologação da Lei de Dire-trizes e Bases – LDB 9394/96, que deveria garantir a oferta do ensino fun-damental e médio a todos, mesmo àqueles que não tiveram acesso ou con-tinuidade de estudos na idade própria. Também posterior ao veto do presi-dente da República Fernando Henrique Cardoso, em 1996, dos recursos doFUNDEF1, destinados à Educação de Jovens e Adultos.

A criação do Programa Alfabetização Solidária fundamenta-se emdois grandes marcos políticos anteriores. Por um lado, a promulgação daLei Orgânica de Assistência Social2 (LOAS) em 1993, estimulando políti-cas sociais, inclusive por meio de serviços ofertados por entidades e organi-zações de assistência social sem fins lucrativos, voltadas para a populaçãoem situação de pobreza e/ou vulnerabilidade social e pessoal. E, por outro,

1 Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Ma-gistério. O FUNDEF, que vigorou de 1997 a 2006, é caracterizado como um fundo de naturezacontábil que repassa recursos aos estados e municípios, de acordo com coeficientes de distribui-ção estabelecidos e publicados previamente. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br>. Acessoem: 27 nov. 2012.

2 Lei que dispõe sobre a organização da Assistência Social. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8742.htm>.

COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

a Reforma do Estado a partir de 1995, na qual tem grande importância aaprovação da lei das Organizações Sociais – Lei nº 9.637/1998, fundamen-tada nas ideias inovadoras do então ministro da Administração Federal,Bresser Pereira, acerca de “público não estatal”. Essa lei inaugurou umanova compreensão do público a partir da possibilidade de setores privadosatuarem em esfera pública por meio de parcerias.

Foi essa possibilidade de parceria público-privada que permitiu a so-lidificação do Programa Alfabetização Solidária em acordos firmados en-tre governo federal, iniciativa privada, instituições de ensino superior, socie-dade civil e governos municipais, quando esse se transformava em 1998 emsociedade civil sem fins lucrativos (Associação de Apoio ao Programa Alfabeti-zação Solidária – AAPAS) e tornava-se responsável pela execução do mes-mo. Essa novidade gerou, inclusive, questionamentos acerca do caráter doprograma, se esse se tratava de uma ação civil ou de um programa de gover-no, como defendia o próprio ministro da Educação da época, Prof. PauloRenato de Souza. Tal esclarecimento foi prestado pela auditoria do Tribu-nal de Contas União (TCU), que explicitou em documento que a AçãoAlfabetização Solidária de Jovens e Adultos era da responsabilidade doMinistério da Educação (TCU, 2003, p. 10).

O Programa Alfabetização Solidária (PAS) teve início nas regiões doNorte e Nordeste, em municípios que apresentavam extrema pobreza, combaixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e alto índice de analfa-betismo, muitas vezes implantado junto a outras políticas sociais, tendo porobjetivo

[...] contribuir para a redução do analfabetismo e para a ampliação da ofertapública de Educação de Jovens e Adultos no Brasil e no mundo por meio daarticulação de uma rede de parceiros, envolvendo Instituições de EnsinoSuperior, empresas, governos (municipais, estaduais e federal) e pessoas físi-cas (VÓVIO, 2006, p. 7).

Em 2002, a entidade executora do Programa de Alfabetização pas-sou a ser uma Organização Não Governamental (ONG) com o nome deAlfaSol. Dados explicitados no relatório de 13 anos do AlfabetizaçãoSolidária mostram que, até o ano de 2009, 5,5 milhões de alunos foramatendidos em 2.433 municípios brasileiros e 254 mil alfabetizadores capa-citados. Também tinha contado com 209 parceiros (iniciativa privada, ins-

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tituições governamentais e internacionais) e 371 Instituições de EnsinoSuperior (IES).

A AlfaSol foi também se aperfeiçoando e desenvolvendo programase ações relacionados à educação. Alguns dos principais listados no relató-rio por Gonçalves (2009) são: o Programa Fortalecendo a EJA (destinado agestores municipais e cursos de capacitação de professores de EJA da redemunicipal de ensino); Alfabetização Inicial de Jovens e Adultos (com atua-ção em áreas rurais e grandes centros urbanos); o Programa Telesol (meto-dologia desenvolvida pela Fundação Roberto Marinho, que visa promovera formação de professores da rede pública de ensino do ponto de vista dasespecificidades da EJA). Além disso, a AlfaSol tem ações voltadas para acooperação técnica internacional em parceria com a Agência Brasileira deCooperação (ABC), órgão do Ministério das Relações Exteriores, e já atuouno Timor Leste, na Ásia, em Moçambique, São Tomé e Príncipe e CaboVerde, na África, e na Guatemala, na América Central.3

Em relação à Alfabetização de Jovens e Adultos, a AlfaSol desenvol-ve o Programa Nacional, que atua principalmente em comunidades ruraisdistantes no interior do Nordeste com populações ribeirinhas semi-isoladasno Norte, em comunidades do semiárido e nas periferias das metrópolesbrasileiras. Os educadores são selecionados entre a população local e cha-mados de alfabetizadores populares, sendo exigido o Ensino Médio comoescolaridade mínima. As instituições de Ensino Superior, considerando osprincípios pedagógicos da AlfaSol, são responsáveis pela seleção e capaci-tação dos alfabetizadores. O programa desenvolve ações pedagógicas du-rante 8 meses com o jovem e adulto alfabetizando.

Em relação à concepção de alfabetização, no site da AlfaSol4 consta:

O analfabetismo está atrelado aos demais indicadores da desigualdade sociale condena gerações de jovens e adultos à negação do direito fundamental deexpressão e transformação de sua vida pessoal e comunitária. O jovem e oadulto egressos das salas da AlfaSol, mais do que prontos para a continui-dade de seu processo de escolarização, são ativos na mobilização de suascomunidades em torno do direito de todos ao acesso à educação. Invertem

3 Disponível em: <http://www.alfabetizacao.org.br/site/atuacao_internacional.asp>.4 Disponível em: <http://www.alfabetizacao.org.br/site/eja.asp>.

COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

índices e apropriam-se dos saberes acumulados pela sociedade para a rees-crita de sua história (ALFASOL, 2012, [s.p.]).

Nessa citação, duas noções importantes para definir alfabetização naconcepção da AlfaSol: a primeira trata a alfabetização como um direitofundamental e a segunda compreende a alfabetização como leitura do mun-do, capaz de transformar os sujeitos alfabetizandos em agentes de transfor-mação social. Desse modo, poderia associar-se a concepção de alfabetiza-ção da AlfaSol à perspectiva crítica de educação. Porém faz-se necessáriauma análise para diferenciar de outros programas ou campanhas de alfabe-tização que conhecemos em nossa história.

De acordo com Gonçalves (2009), em documento oficial da ONG:

O grande diferencial entre a oferta de alfabetização inicial por parte da Alfa-Sol e as campanhas de alfabetização reside na lógica “da necessidade deconhecimento mínimo” (muitas vezes restrita à escrita do nome) por partedessas campanhas e a busca de satisfação das “necessidades básicas de apren-dizagem” por parte da AlfaSol, como princípio que considera percursos,cultura e conhecimentos prévios do aluno, além de base para a construçãode proposta educativa identificada com a especificidade do processo de en-sino e aprendizagem de jovens e adultos (GONÇALVES, 2009, p. 18-19).

A AlfaSol também afirma nesse documento que busca a continuidadedo atendimento de escolarização dessa população através do incentivo e dacolaboração na elaboração de projetos de EJA nos municípios em que atua.

No entanto, o trabalho com os chamados alfabetizadores populares érealizado na forma de voluntariado, com recebimento de bolsa-auxílio, demodo que se estabelece uma relação precária de trabalho, também tempo-rário e em grande parte desenvolvido em locais inadequados para o ensino.Esses dados nos remetem à sua similaridade com antigas campanhas dealfabetização, desenvolvidas na história da educação brasileira. Por outrolado, a proposta da AlfaSol também se afasta dos trabalhos de educaçãopopular de inspiração freiriana, nos quais o engajamento dos educadoresse dava pela militância política e pelo compromisso com a transformaçãosocial.

No caso da AlfaSol, os alfabetizadores são capacitados pela própriaentidade por meio de parcerias com as Instituições de Ensino Superior enecessariamente não apresentam formação pedagógica anterior e nem com-prometimento político. Como exemplo, os dados do Programa Adote um

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Aluno5 trazem a informação de que 71,1% dos educadores tinham apenaso Ensino Médio. Outro dado importante é que, do total desses, 39,6% sedeclararam alfabetizadores populares, tendo na atividade a sua profissão, e18,2% se declararam desempregados. No caso, observa-se que quase 60%dos educadores, somando os declarados alfabetizadores e desempregados,têm nesse programa de alfabetização seu provável meio de sustento. Dessemodo, o programa também serve para a promoção social de jovens e adul-tos que atuam como alfabetizadores na comunidade.

Outros dados fornecidos no documento “Campanha Adote um Alu-no” da AlfaSol sobre uma ação em centro urbano mostram que, em 2009,47,5% das aulas aconteceram na casa do alfabetizador e 33,2% em escolas.Se, por um lado, é surpreendente que quase a metade das aulas se desenvol-via em locais inadequados, por outro, também é questionável que um terçodas aulas ocorria em escolas, onde jovens e adultos deveriam ter direito aoensino regular de EJA, com professores formados e com todos os recursosque a instituição tem obrigação de oferecer.

Ainda, a AlfaSol nessa “Campanha Adote um Aluno” propõe quequalquer cidadão adote um analfabeto por R$ 30,00 ao mês durante oitomeses. Essa campanha deixa transparecer outras concepções, agora de anal-fabeto, pois a adoção sugere uma pessoa de menor idade, ou seja, alguémque não assume plenamente os compromissos e responsabilidades da vidaadulta, que precisa ser tutelada, cuidada. Desse modo, a “Campanha Ado-te um Aluno” traduz uma velha concepção difundida entre os políticosbrasileiros na primeira metade do séc. XX: a do analfabeto como um cida-dão pela metade, como um incapaz (COMERLATO, 2000). Essa visão dosujeito analfabeto é contrária não só à perspectiva crítica, mas também àatual legislação de EJA (CNE 11/2000), que compreende o sujeito jovem eadulto analfabeto como possuidor de cultura e linguagem própria, popular,nem sempre coincidente com os saberes escolares, mas nem por isso commenor valor. No caso dessa campanha, a imagem de analfabeto difundidapela ideia de adoção é inclusive contrária à concepção apresentada pela

5 ALFASOL – CAMPANHA ADOTE UM ALUNO. Disponível em: <http://www.alfasol.org.br/aapas_site/hotsite/arquivos/resultados_campanha_2009.pdf>.

COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

própria AlfaSol, que diz considerar “percursos, cultura e conhecimentosprévios do aluno” (GONÇALVES, 2009, p. 20).

Outros aspectos que consideramos importantes destacar dizem res-peito ao financiamento e à articulação público-privada relacionados à Al-faSol. Cabe ressaltar que os dados financeiros não são de fácil acesso. Mas,para se ter uma ideia da dimensão da ação, dados coletados e analisadospor Di Pierro (2002) indicam que o Programa Alfabetização Solidária (PAS)captou nos anos de 2001 e 2002, anos finais do governo FHC, valores daordem de R$ 80 a R$ 100 milhões, o que representou, segundo o seu estu-do, entre 20 e 25% dos investimentos federais na educação de jovens e adul-tos naqueles anos.

Em 2003, com o lançamento de um novo programa de alfabetizaçãodo governo federal, a AlfaSol passou a executar, além de suas próprias ações,as do Programa Brasil Alfabetizado através das parcerias firmadas com es-tados e municípios. A parceria pode ser exercida de várias formas, seja pormeio de indicações de ações específicas nas quais se possam implementarpolíticas públicas, seja pela formalização de convênios e repasse dos recur-sos necessários para a efetivação de ações de alfabetização e Educação deJovens e Adultos (EJA). Desse modo, uma organização sem fins lucrativospode executar políticas públicas em educação.

Um exemplo dessa execução de política pública pode ser observadoem notícia publicada no site da AlfaSol sobre o início do programa TeleSolem Teresina-PI: “Em 2012 serão, ao todo, 7.604 alunos atendidos e 399professores e educadores capacitados em 311 turmas divididas nos 1º e 2ºsegmentos (do TeleSol) e no Programa Brasil Alfabetizado”6. Ainda nomunicípio de Teresina-PI, a AlfaSol, através de uma de ações, o TeleSol(que faz uso de vídeos em metodologia desenvolvida em parceria com aFundação Roberto Marinho), é quem tem realizado o Ensino Fundamen-tal da Educação de Jovens e Adultos na rede pública do município (RevistaEJ, págs. 12 e 13)7.

6 ALFASOL. Atuação internacional. Disponível em: <http://www.alfabetizacao.org.br/site/atuacao_internacional.asp>.

7 Revista Escrevendo juntos: Uma publicação da alfabetização solidária, julho 2008/junho 2009– nº 38/39. Disponível em: <http://www.cereja.org.br/site/_shared%5CFiles%5C_cer_old%5Canx%5Cej38-39.pdf >.

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Essas informações nos fazem indagar sobre o papel do Estado noprocesso de desenvolvimento da educação e questionar que conceito dedemocratização da educação de jovens e adultos é colocado nesse modelode parceria Estado-Sociedade.

Outro dado relevante é que, no ano de 2007, o INEP8 registrou umtotal de 4,9 milhões de matrículas em EJA, considerando todos os segmen-tos e modalidades. Importa aqui observar que esse total de matrículas re-presenta apenas 8,21% do volume estimado de analfabetos funcionais noBrasil (GONÇALVES, 2009).

Esses dados, que poderiam justificar a necessidade de continuidadeda AlfaSol, porque existe uma demanda real, também colocam em questãoa sua eficácia, visto que as suas ações não representaram nesses quase 15anos de atuação, de forma geral, um impacto significativo no decréscimodos índices nacionais de analfabetismo.

O Programa Brasil Alfabetizado

Ao analisarmos o Programa Brasil Alfabetizado, programa do gover-no federal desde 2003, deparamo-nos com o discurso da tentativa de superaro analfabetismo, universalizando a alfabetização de jovens, adultos e idosos ea progressiva continuidade dos estudos em níveis mais elevados. Entretanto,os dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística –IBGE, referentes à década de 2000-2010, demonstram que ainda estamosdistantes dessa realidade, uma vez que a taxa de analfabetismo para 2010, dototal da população de 15 anos ou mais, foi de 9,6%, o que representa mais de13 milhões de analfabetos absolutos no Brasil. Essa pesquisa indica, ainda,que o número de pessoas com mais de 15 anos que não conseguem sequerescrever um bilhete diminuiu apenas 1,1% nos últimos três anos.

Com o objetivo de contribuir para superar o analfabetismo no Brasil,promovendo o acesso à educação como direito de todos, em qualquer mo-mento da vida, o Programa Brasil Alfabetizado teve início em 2003 no go-verno do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Esse vem sen-

8 Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais.

COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

do desenvolvido em todo o território nacional, com atuação mais intensanos 1.928 municípios com taxa de analfabetismo igual ou superior a 25%.Sua execução é descentralizada por meio da transferência de recursos fi-nanceiros, em caráter suplementar, do governo federal aos entes federadosque aderirem ao programa.

O tempo para a alfabetização é de seis a oito meses de duração (240 a320 horas) com uma carga horária mínima de 40 horas presenciais para aformação inicial de alfabetizadores e coordenadores de turmas, conforme aResolução CD/FNDE nº 32, de julho de 20119. A seleção dos alfabetiza-dores, coordenadores e tradutores – intérpretes de libras é feita preferen-cialmente precedida de chamada pública, sendo que os critérios para essaseleção são os seguintes, conforme art. 12 dessa Resolução:

I - o candidato deve, preferencialmente, ser professor das redes públicas deensino;

II - deve ter, no mínimo, formação de nível médio completo;

III - ter experiência anterior em educação, preferencialmente em educaçãode jovens adultos (BRASIL, 2011, p. 9).

Nessa forma de seleção dos alfabetizadores, é comum um nível deformação média ou ainda em nível fundamental, similar a programas degovernos anteriores, e que igualmente se mantinham com educadores vo-luntários. Nos dados apresentados pelo Ministério da Educação e Cultura(MEC), divulgados em 2012, sobre a avaliação do PBA, pode-se observarque grande parte são alfabetizadores populares e/ou desempregados (51%).Do total avaliado, apenas 22% são professores alfabetizadores.

No quadro abaixo, observa-se o nível de formação dos alfabetizado-res informado nessa apresentação do MEC:

Nível de formação e ocupação dos alfabetizadores

Nível de formação

Fundamental Médio Superior Pós-Graduação

4% 81% 15% 0

Fonte: MEC (2012)

9 Disponível em: <http://www.fnde.gov.br/fnde/legislacao/resolucoes/resolucoes-2011?start=40>.

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Por esse documento avaliativo do MEC se vê que o nível de forma-ção que têm os alfabetizadores do PBA é bastante precário, tendo em vistaque a maioria apresenta somente o Ensino Médio. Também o Tribunal deContas da União (TCU), em 2006, quando avaliou o programa, já haviadetectado que “para 52% dos alfabetizadores era a primeira experiênciacom esse tipo de atividade e 87% dos entrevistados tinham, no mínimo, oEnsino Médio completo”. O que demonstra, à semelhança da AlfaSol, ocaráter assistencialista do programa também para os alfabetizadores.

Em relação aos sujeitos incluídos no programa, entre 2003 e 2010, oPBA atendeu 12.075.428 alfabetizandos. E, de acordo com os dados dispo-níveis no Sistema Brasil Alfabetizado (SBA), das 1.552.673 pessoas em pro-cesso de alfabetização no Ciclo 2010, aproximadamente 69% das matricu-las estavam na faixa etária dos 30 aos 64 anos de idade, demonstrando queparte significativa dos beneficiários do programa encontrava-se em idadeeconomicamente ativa.

Cabe salientar que o PBA vem sendo modificado desde o seu início,e as alterações ocorreram, em grande parte, em razão das avaliações reali-zadas pelo TCU (Tribunal de Contas da União) e também por conta deuma avaliação do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas),sob a coordenação de João Pedro Azevedo10, conforme consta no site daAção Educativa11.

10 Economista na Unidade de Redução da Pobreza e Gestão Econômica da América Latina eCaribe do Banco Mundial. Antes de entrar para o banco, era um pesquisador do InstitutoBrasileiro de Pesquisa Econômica Aplicada e superintendente de Monitoramento e Avalia-ção na Secretaria de Finanças do Estado do Rio de Janeiro. Ele é o atual presidente doComitê Executivo da Rede de Pobreza e Desigualdade do BID-Banco Mundial-PNUD-LACEA e fez ampla consultoria e pesquisa para o Banco Mundial, BID, PNUD, UNESCO,o Departamento Britânico de Trabalho e pensão, e os ministérios brasileiros da Educação eda Assistência Social.

11 A Ação Educativa, Assessoria, Pesquisa e Informação é uma associação civil sem finslucrativos, fundada em 1994. Atualmente, seu programa é constituído por várias linhas deatuação: elaboração de propostas pedagógicas, materiais didáticos e paradidáticos; forma-ção de educadores; avaliação de programas, pesquisa e monitoramento de políticas públicase participação em redes, comissões e fóruns. A coleção didática Viver, Aprender, voltada àalfabetização e à educação básica de pessoas jovens e adultas, é um dos destaques da área.Em 2010, a importância da coleção foi reconhecida com a aprovação dos livros destinadosao primeiro e ao segundo segmentos do Ensino Fundamental no PNLD (Programa Nacio-nal do Livro Didático) para EJA.

COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Os dados dessa avaliação foram apresentados em setembro de 2012pelo Ministério da Educação durante um seminário em Brasília com espe-cialistas e pesquisadores. Desenhada desde 2004 até 2007, a avaliação apontapara o alto índice de evasão e a falta de continuidade nos estudos. Outrosaspectos foram observados, além das denúncias de “turmas fantasmas”,como o fato de muitos municípios não oferecerem a possibilidade de conti-nuar o Ensino Fundamental na rede pública de educação de jovens e adul-tos, sendo comprovada a ineficácia do programa no que diz respeito à ofer-ta de educação contínua aos jovens e adultos.

Para a coleta das informações, na pesquisa de avaliação realizadapelo IPEA, foram utilizados diversos instrumentos como registros admi-nistrativos do programa (como o sistema informatizado das turmas), dadosdo IBGE, visitas a turmas e entrevistas com gestores. Mas, apesar de todoesse empenho, segundo o coordenador Azevedo, houve dificuldade de “ava-liar um programa social que não foi desenhado para ser avaliado”.

Em relação à concepção teórico-metodológica definida no progra-ma, no documento “Coleção Educação para Todos”12, lançado pelo IPEA,UNESCO e MEC em 2004, podemos observar que a perspectiva é voltadapara uma compreensão imediata de decifração de códigos. A justificativaapresentada para tal perspectiva é que se trata de uma educação inicial quenão precisaria de maior aprofundamento, como esclarece esse documento,no caso da escrita.

Assume-se aqui uma concepção de aprendizado da língua escrita, que en-volve quatro grandes dimensões cognitivas: I. O domínio de competênciasque tendem a contribuir para o processo inicial de apropriação do sistemade escrita, servindo de base tanto ao desenvolvimento do processo de leituraquanto ao de escrita; II. O desenvolvimento da capacidade de decifração,quer dizer, de transformar sinais gráficos ou grafemas em fonemas, commaior ou menor nível de fluência; III. O desenvolvimento da capacidade deescrita, especificamente as capacidades de escrever palavras memorizadas,codificar palavras simples; IV. O desenvolvimento do processo de compre-ensão de textos (AZEVEDO [org.], 2006, p. 16).

12 A Coleção Educação para Todos, lançada pelo Ministério da Educação e pela UNESCO em2004, é um espaço para a divulgação de textos, documentos, relatórios de pesquisas e eventos,estudos de pesquisadores, acadêmicos e educadores nacionais e internacionais, que têm porfinalidade aprofundar o debate em torno da busca de educação para todos.

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Com o objetivo de verificar até que ponto o programa vinha contri-buindo para a construção de conhecimentos dos jovens e adultos, a avalia-ção demonstrou que há efeito positivo do programa sobre os alunos comhabilidades bem iniciais no processo de leitura; entretanto o mesmo contri-bui pouco para os alunos de níveis mais altos.

Outra conclusão desses testes diz respeito às atividades de ensino de-senvolvidas pelo Brasil Alfabetizado, consideradas “insuficientes para ha-bilitar o aluno aos níveis mais altos em decorrência das concepções de ensi-no dos alfabetizadores”, pois ignorariam o conceito de letramento13 e osconhecimentos trazidos pelos alunos.

Já o Tribunal de Contas da União (TCU), quando realizou avaliaçõessobre o Programa Brasil Alfabetizado referentes aos anos 2003-2006, verificoufalhas na articulação entre os gestores municipais de educação e os parceirosque atuavam no nível local, o que também provocou mudanças no PBA.

Algumas dessas mudanças expressaram-se na forma de repasse dosrecursos e nos valores pagos correspondentes às bolsas. Antes, em 2003, orepasse era feito sem controle às organizações/entidades. De 2004 a 2005,o repasse de recursos efetivava-se automaticamente pelo Ministério da Edu-cação aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, ainda sem necessi-dade de convênio, acordo, contrato, ajuste ou instrumento congênere, me-diante depósito em conta-corrente específica. A partir de 2006, os recursospassaram a ser transferidos aos Entes Executores em 2 (duas) parcelas apósa validação do Plano Plurianual de Alfabetização pela SECAD/MEC14 eapós a inserção pelos Entes Executores15 dos cadastros no SBA.

Cabe ressaltar que, a partir de 2004, o Sistema Brasil Alfabetizado (SBA)passa a centralizar todas as informações das etapas de análise de projetos/planos pedagógicos e de distribuição de recursos (declarações de compromis-so, plano pedagógico, entre outros). Além disso, o novo sistema agrega osrelatórios de acompanhamento dos parceiros, que incluem campos fechados,podendo ser rapidamente sistematizados e utilizados como indicadores parao monitoramento do programa, e campos abertos, que podem ser analisa-

13 Conforme Soares (1995, p. 10), “numa dimensão social ou cultural, letramento é o uso que sefaz das habilidades de leitura/escrita para responder às demandas sociais”.

14 SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade.15 Entes Executores corresponde aos estados, municípios e Distrito Federal.

COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

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dos por amostragem, gerando, para a equipe pedagógica, informações commaior detalhamento sobre os projetos. Outra mudança importante ocor-rida em 2005 é o fato de agora o sistema poder ser acessado também pelosparceiros, enquanto que, em 2004, o acesso era restrito à equipe do MEC.

Essa mudança parece ter gerado um controle maior sobre os recursosdestinados ao programa. Por outro lado, há grandes falhas ainda no controleem relação à inadequação e à insuficiência de instalações físicas, sendo que,muitas vezes, as aulas ocorrem, por exemplo, em salão de igreja, na casa doalfabetizador ou até mesmo em campo aberto, como foi constatado pelo TCU.O mesmo ocorre em relação ao acompanhamento da aprendizagem do alfa-betizando e ao detalhamento das turmas implantadas por município.

Outra mudança relativa ao controle foi a fixação de valores para pa-gamento de bolsas por turma e não mais por aluno, o que possibilitou oregistro dos alunos que realmente frequentavam as aulas de alfabetização,uma vez que foram constatados, como já foi dito antes, casos de alunos“fantasmas” em 2003.

Cabe ressaltar que os valores destinados ao pagamento de bolsas con-tinuaram irrisórios, deixando de ser um atrativo para profissionais com maiornível de formação, sendo que até 2012 esse valor variou entre 250 (alfabeti-zador e tradutor-intérprete por turma) e 500 reais (coordenador de turmas),como mostra o quadro abaixo:

Valores pagos aos Alfabetizadores e Coordenadores nos ProgramasAlfabetização Solidária e Brasil Alfabetizado – Período 1997-2010

Programa Alfabe-Programa Brasil Alfabetizado

tização Solidária

1997-2002 2003 2004-2006 2007 2010

R$ 300,00 para Remuneração máxima Remuneração máxima R$ 200,00 Bolsa classe ICoordenador mensal de R$ 375,00. mensal de R$ 295,00. Alfabetizador e R$ 250,00R$ 120,00 para De acordo com o Alfabetizador Tradutor-intérprete AlfabetizadorAlfabetizador do número de alunos parcela fixa de Libras Bolsa classe IIProjeto Nacional por turma. (R$ 120,00) e variável R$ 300,00 R$ 275,00R$ 200,00 para R$ 15,00 por por alfabetizando em Supervisor (pop. Carcerária)Alfabetizadores aluno/mês, em sala de aula (grupo de 15 Bolsa classe IIIdos Grandes máximo 25 alunos (R$ 7,00) alfabetizadores) R$ 250,00Centros Urbanos por turma Tradutor de Libras

Bolsa classe IVCoord. de turmasR$ 500,00Bolsa classe VDuas turmasR$ 500,00

Fonte: Quadro elaborado pelas autoras, com base nas informações dos documentos pesquisados.

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Nesse quadro se observa que os valores pagos aos voluntários, emforma de bolsa, desde 1997 a 2007, pouco se alteraram, mantendo valoresconsiderados como uma ajuda de custo. No que tange ao programa comoum todo, com base nas informações aqui destacadas, cabe salientar que,com a implantação do PBA, a responsabilidade pelo controle burocrático eadministrativo recaiu sobre os distintos executores. A prestação de contas,portanto, passou a ser controlada de forma efetiva pelo sistema implantadoSBA.

A compreensão do atual programa de alfabetização, implantado peloentão governo do presidente Lula (2003-2010) e dado continuidade no atualgoverno da presidenta Dilma Rousseff, abrange muitos aspectos, porémconsideramos importante alguns destaques relacionados à história e funda-mentalmente ao percurso da alfabetização de jovens e adultos a partir dofinal da década de 1980 até a virada do século XXI. Nesse percurso, paraalfabetização de jovens e adultos, ainda que a Constituição de 1988 tenhaampliado o dever do Estado em relação à EJA, garantindo o Ensino Fun-damental para todos, e a década de 1990 tenha exibido elevado número deanalfabetos16, o que ainda ocorre é a omissão do governo federal na articu-lação de uma política efetiva de alfabetização de jovens e adultos no Brasil.

Algumas considerações

O Programa Nacional de Alfabetização da AlfaSol e o ProgramaBrasil Alfabetizado mantêm muitas semelhanças. Tanto que se confundemnos locais onde a AlfaSol executa o Brasil Alfabetizado. E a AlfaSol, umaorganização privada, sem fins lucrativos, apresenta ainda uma diversidadede ações capaz de penetrar, de forma legal, nas políticas públicas munici-pais, estaduais e nacional, ofertando orientação de projetos, capacitação deprofessores e até mesmo a metodologia para o trabalho com estudantes daeducação de jovens e adultos no Ensino Fundamental.

16 Conforme CURY (2000), o IBGE apontava, no ano de 1996, 15.560.260 pessoas analfabetasna população de 15 anos de idade ou mais, perfazendo 14,7% do universo de 107.534.609nessa faixa populacional.

COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Os dados apresentados no texto apontam que tanto a AlfaSol como oPrograma Brasil Alfabetizado cumprem uma função assistencialista juntoao “alfabetizador popular”, ao ser fonte de sustento para muitos e, prova-velmente, auxiliar na sua promoção social junto à comunidade. Nesse sen-tido, também se observa que a finalidade das ações está voltada para o de-senvolvimento local, de municípios e regiões com baixo IDH (Índice dedesenvolvimento Humano) e que são também as regiões com maiores índi-ces de analfabetismo. Desse modo, esses programas de alfabetização carac-terizam-se como políticas de governo, paliativos e temporários, e não comouma política de Estado, de caráter permanente, que garantiria o acesso doscidadãos aos direitos explicitados em leis nacionais.

Apesar da AlfaSol e do Programa Brasil Alfabetizado trazerem em suaproposta o incentivo à implementação da EJA nos municípios e isso repre-sentar um avanço em relação às campanhas anteriores de alfabetização, otempo de alfabetização para o educando é de no máximo oito meses. Dessemodo, o que se apresenta são apenas propostas de alfabetização inicial, semgarantia de continuidade. Também, com uma alfabetização rudimentar, osujeito é considerado analfabeto funcional, pois não consegue fazer uso daleitura e escrita nas demandas cotidianas.

Entendemos assim que a referência à democratização do ensino e auma formação sólida do professor/educador para o seu exercício profissio-nal junto aos jovens, adultos e idosos está diretamente relacionada à funçãopolítica da educação. A ONG AlfaSol e o Programa Brasil Alfabetizadoapresentados neste texto não respondem a algumas demandas históricasda educação de jovens e adultos, como o acesso a uma educação de boaqualidade que ultrapasse níveis de utilitarismo adequados às necessida-des mínimas do mercado de trabalho. O estudo revela, portanto, a neces-sidade de políticas voltadas para a educação de jovens, adultos e idosos,que coloquem essa população no Plano da Educação Básica, conformedetermina a lei.

Observamos que, com a falta de recursos financeiros para os níveisda educação que não são considerados prioritários e com a transferência deresponsabilidades para os estados, municípios e organizações não governa-mentais, ficam esvaziadas as ações do governo federal em favor da alfabeti-zação de jovens e adultos em um movimento crescente desde 1997. Essa

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forma de governar, que redefiniu o papel do Estado, desvencilhando-se doscompromissos sociais e, no caso específico da EJA, produzindo políticasassistencialistas, está plenamente de acordo com a política neoliberal insta-lada pela ordem capitalista mundial na década de 1990, como aponta Pero-ni (2003, p. 97).

É necessário ressaltar que se, por um lado, a atual LDB, promulgadaem 1996, reafirma o direito à educação de todos, independente da idade, ereconhece a EJA como modalidade própria, ainda hoje ela ocupa lugarsecundário nas políticas educacionais. Como afirmam os autores Paiva,Machado e Ireland (2004, p. 88), “dispondo de financiamento escasso, osprogramas da EJA não contam com recursos materiais e humanos condi-zentes com a demanda por atender”.

Assim, o que ocorre é um distanciamento entre o que se propõe le-galmente e o que se realiza concretamente a favor desses que foram coloca-dos à margem do processo educacional. Como salienta Cury (2000, p. 05),o analfabetismo “representa uma dívida social não reparada para com osque não tiveram acesso a e nem domínio da escrita e leitura como benssociais, na escola ou fora dela”, pois nosso modelo de sociedade não permi-te a todos o acesso ao conhecimento formal. Outro modelo só seria possí-vel, como diz Ferraro (2009, p.195), “se transformar a lógica de exclusãoque historicamente veio regendo o processo de escolarização das camadaspopulares”. Ou, de forma geral, superar o atual sistema, pois como afirmaWood (2006, p. 23), “o capitalismo tem a capacidade de fazer uma distri-buição universal de bens políticos sem colocar em risco suas relações cons-titutivas, suas coerções e desigualdades”. Por isso também a complexidadepara entendermos a democracia, sua real possibilidade e concretude, noque diz respeito aos limites de emancipação humana, relacionada a seutempo e espaço.

Nesta breve apresentação da AlfaSol e do Programa Brasil Alfabeti-zado, vimos que as ações, dentro de suas contradições, mais do que permi-tir o acesso da população à alfabetização, vem contribuindo para a manu-tenção das desigualdades sociais. Isso ocorre em razão da oferta de umaalfabetização inicial em caráter temporário, sem garantia de continuidade,com alfabetizadores populares com pouca formação pedagógica, caracteri-

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

zados como voluntários, que apresentam vínculos precários de trabalhoenquanto bolsistas dos programas e cujo processo educacional muitas ve-zes se desenvolve em locais inadequados para a aprendizagem. Nesse senti-do, as ações apresentadas parecem servir mais como um programa de assis-tência social ao promover, de forma temporária, um trabalho para a popu-lação carente e desempregada.

Também a possibilidade de uma ONG, no caso a AlfaSol, executaralém do PBA outros programas de governo locais traz uma grande novida-de no campo das políticas públicas. As políticas públicas podem agora serexecutadas por instituições privadas com suas orientações pedagógicas esem que se tenha acesso fácil aos dados, especialmente os financeiros. Noentanto, sabe-se que a população da EJA, excluída do sistema educacionalna chamada “idade própria” e, portanto, também excluída socialmente,muitas vezes vê esses programas de alfabetização como um amparo porparte dos governos.

Se, por um lado, a ampliação do atendimento de uma população queestava desassistida pode ser vista como um avanço para a democracia, poispermite, mesmo com todas as falhas, uma possibilidade de acesso à apren-dizagem da alfabetização. Por outro, os elementos considerados em nossaanálise impedem o reconhecimento de um avanço educacional capaz decolaborar efetivamente com o desenvolvimento da democracia no país. Osprogramas apresentados expressam novas formas de realização do capitalprivado, que passam por dentro do espaço do público, fazendo com quegarantias legais conquistadas na Constituição de 1988 e na Lei de Diretri-zes e Bases Brasileira de 1996 sejam minimizadas.

Uma modificação que se pode considerar um avanço em relação aprogramas anteriores foi a implantação de um sistema de controle (SistemaBrasil Alfabetizado) que possibilita maior acesso aos dados e controle daforma de repasse dos recursos e valores pagos correspondentes às bolsaspagas aos voluntários. Essa mudança gerou um controle maior sobre osrecursos destinados ao programa, porém ainda apresenta falhas no contro-le em relação à inadequação e à insuficiência de instalações físicas, no acom-panhamento da aprendizagem do alfabetizando e no detalhamento das tur-mas implantadas por município.

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Por fim, entendemos que há esforço dos governos no sentido de ele-var as taxas de alfabetismo no país e para isso se evocam medidas e açõesque poderiam contribuir para essa finalidade. Porém consideramos que ocampo da educação de jovens, adultos e idosos, em específico da alfabetiza-ção, ainda carece de políticas que assegurem a articulação efetiva entre oinvestimento econômico realizado e que deveria ser ampliado, com um pro-jeto educacional vinculado a uma sociedade justa e mais humana.

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COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Sobre autores e autoras

Alexandre José Rossi: Licenciado em Filosofia e Especialista em Fundamentos daEducação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Mes-tre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),junto à linha de pesquisa de Políticas e Gestão de Processos Educacionais, ondeatualmente realiza o doutorado. Pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudosde Políticas e Gestão da Educação da Faculdade de Educação da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul. Tem pesquisado, na área de políticas educacio-nais, as políticas para a diversidade.E-mail: [email protected]

Antonio Olmedo: É membro britânico da Academia Internacional Newton,baseado no Departamento de Humanidades e Ciências Sociais, Instituto deEducação da Universidade de Londres, Reino Unido. Trabalha atualmente emdois projetos de pesquisa, um em privatizações e novas tecnologias da políticana política educacional espanhola, e outro na análise de redes de política globaise “nova filantropia”.

Daniela de Oliveira Pires: Possui graduação em História Licenciatura Plena pelaUniversidade Federal de Santa Maria e graduação em Direito pelo Centro Uni-versitário Franciscano. Mestre em Educação pela Universidade Federal do RioGrande do Sul. É doutoranda em Educação pela Universidade Federal do RioGrande do Sul. Atualmente é professora nos cursos de Direito e Pedagogia eexerce a função de Coordenadora da Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão naUniversidade Luterana do Brasil – Campus Guaíba.E-mail: [email protected]

Denise Maria Comerlato: Possui graduação em Pedagogia e mestrado e doutora-do em Educação pela UFRGS. É professora adjunta do Departamento de Estu-dos Especializados da Faculdade de Educação da Universidade Federal do RioGrande do Sul, onde desenvolve ações e estudos na área da Educação de Jovense Adultos. Coordena o Núcleo Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensãoem Educação de Jovens e Adultos – NIEPE-EJA e é membro do Núcleo deEstudos de Politicas e Gestão da Educação, ambos da Faculdade de Educaçãoda Universidade Federal do Rio Grande do Sul.E-mail: [email protected]

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Fabíola Borowsky: É graduada em Educação Especial pela Universidade Federalde Santa Maria, mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Cata-rina, doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande doSul e professora da Rede Municipal de Educação da Prefeitura de Porto Alegre,onde atua na Educação Especial.E-mail: [email protected]

Fátima Antunes: Doutora em Educação, área de conhecimento de Sociologia daEducação, é professora associada do Instituto de Educação e investigadora doCentro de Investigação em Educação da Universidade do Minho.

Jaira Coelho: Possui Licenciatura Plena em Pedagogia pela Instituição Educacio-nal São Judas Tadeu (2005) e mestrado em Educação pela Universidade Fede-ral do Rio Grande do Sul (2010). Atualmente é bolsista Capes/REUNI e dou-toranda do curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal doRio Grande do Sul (UFRGS). Experiência na área de Educação, com ênfasenas seguintes temáticas: Formação de professores para a Educação Básica ePolíticas Públicas para Educação de Jovens e Adultos.E-mail: [email protected]

Jaqueline Marcela Villafuerte Bittencourt: Possui Doutorado (2011) e Pós-dou-torado (2012) em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.Tem experiência nessa área com ênfase em Política Educacional, atuando nosseguintes temas: Alimentação Escolar, Efetividade Social e Avaliação de Políti-cas Educacionais, Análise da Relação Público/Privada da Educação, Educa-ção Comparada e Gestão Democrática.E-mail: [email protected]

João Barroso: Vice-reitor da Universidade de Lisboa e professor catedrático doInstituto de Educação da mesma Universidade. É licenciado em História pelaFaculdade de Letras da Universidade do Porto, possui o Diplome d’ ÉtudesApprofondies (DEA) em Ciências da Educação pela Universidade de Bordéus(França) e é doutorado e agregado em Ciências da Educação pela Faculdade dePsicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Exerce a suaatividade docente e de investigação no domínio da Política e da Administraçãoda Educação, tendo coordenado a equipe portuguesa nos projetos de investiga-ção: Reguleducnetwork - “Changes in regulation modes and social productionof inequalities in education systems: a European Comparison” (2001-2004) eKnowandpol – The role of Knowledge in the construction and regulation ofhealth and education policy in Europe: convergences and specificities amongnations and sectors” (2006-2011), financiados pela União Europeia (fifth and six-

Sobre os(as) autores(as)

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

th Framework Programme for Research). É autor de diversos livros, capítulos delivros e artigos publicados em Portugal, Brasil, Espanha, França e Bélgica.E-mail: [email protected]

Laura R. Rodríguez: Universidad Nacional de Luján, profesora investigadora en Polí-tica educacional. Doctoranda en Ciencias Sociales/Universidad de Buenos Aires.E-mail: [email protected]

Liane Maria Bernardi: Doutoranda em Educação pela Universidade Federal doRio Grande do Sul – UFRGS (em andamento). Mestre em Educação (UFRGS/2007). Pós-Graduação em Metodologia do Ensino de História (1991). Graduaçãoem Estudos Sociais (1989). Professora da Rede Municipal de Porto Alegre eProfessora Colaboradora do Curso de Pós-Graduação em Gestão EscolarUFRGS/MEC.E-mail: [email protected]

Licício C. Lima: É professor catedrático do Departamento de Ciências Sociais daEducação, do Instituto de Educação da Universidade do Minho, Braga, Portu-gal. Tem lecionado disciplinas nos domínios da Sociologia das OrganizaçõesEducativas, Administração Educacional, Métodos de Investigação e Políticasde Educação de Adultos, tendo sido professor convidado e dirigido cursos eseminários em universidades portuguesas e em várias universidades da Alema-nha, Brasil, Espanha, França, Holanda e Reino Unido. É autor, coautor e editorde uma centena e meia de obras, incluindo mais de trinta livros, publicadas emtreze países e em seis distintas línguas.E-mail: [email protected]

Lucia Hugo Uczak: Pedagoga. Mestre em Educação pela UFRGS (2005) e douto-randa em Educação pela UFRGS, na linha de Políticas e Gestão de ProcessosEducacionais. Atualmente é professora na Universidade Feevale na área da edu-cação.E-mail: [email protected]

Luciani Paz Comerlatto: É doutora em Educação pela Universidade Federal doRio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Educação pela Pontifícia Universida-de Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), especialista em Psicopedagogiapela mesma universidade e licenciada em História pela Faculdade Porto Ale-grense de Educação Ciências e Letras (FAPA). Pesquisadora do Nucleo de Es-tudos de Políticas e Gestão da Educação da Faculdade de Educação da Univer-sidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora Bolsista do curso de Pedago-gia Parfor do IFRS – Campus Porto Alegre.E-mail: [email protected]

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Marcelisa Monteiro: Doutorado em Educação pela Universidade Federal do RioGrande do Sul (em andamento). Mestre em Educação (UFRGS/2003). Gra-duação em Pedagogia (1995) e Ciências Sociais (1999) pela Pontifícia Univer-sidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora Substituta junto ao Depar-tamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul (2008-2010).E-mail: [email protected]>

Maria de Fátima Oliveira: Possui mestrado (2007) em Educação pela Universida-de Federal do Rio Grande do Sul, pós-graduação em Controladoria (UFRGS/2000) e graduação em Administração de Empresas (PUC/1995). Tem experi-ência na área da educação com ênfase em Formação de Professores, atuandonos seguintes temas: Gestão Democrática, Políticas Públicas, Análise da Rela-ção Público/Privada da Educação. Além de experiência docente na área daadministração.E-mail: [email protected]

Maria Luiza Rodrigues Flores: Graduada em Letras pela Universidade Federaldo Rio Grande do Sul (1992), mestrado(2000) e doutorado (2007) em Educaçãopela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente é pro-fessora adjunta do Departamento de Estudos Especializados da Faculdade deEducação da UFRGS, atuando na área de Política e Gestão da Educação. Mem-bro de Comitê Diretivo do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil– MIEIB e da Coordenação Colegiada do Fórum Gaúcho de Educação Infantilnas gestões 2009-2010 e 2011-2012. Tem experiência na área de Educação, comênfase em Políticas Públicas de Educação e Legislação Educacional, atuandoprincipalmente nos seguintes temas: políticas públicas de Educação Infantil,políticas públicas de Ensino Fundamental, currículo e trabalho docente.E-mail: [email protected]

Maria Otília Kroeff Susin: Graduada em História pela Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio Grande do Sul (1982), com mestrado (2005) e doutorado(2009)em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha depesquisa sobre Políticas Públicas e Processo de Gestão. É professora da Secreta-ria Municipal de Educação de Porto Alegre. Atualmente é Assessora Pedagógi-ca do Conselho Municipal de Educação. Tem experiência na área de Educação,com ênfase em Administração Educacional, atuando principalmente nos se-guintes temas: gestão democrática, educação infantil, público não estatal, fi-nanciamento da educação e conselho de educação.E-mail: [email protected]

Sobre os(as) autores(as)

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Maria Raquel Caetano: É doutora em Educação pela Universidade Federal doRio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Educação pela Pontifícia Universida-de Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e graduada em Pedagogia. Profes-sora da Educação Superior na FACCAT. Pesquisadora do Núcleo de Estudosde Políticas e Gestão da Educação da Faculdade de Educação da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul.E-mail: [email protected]

Maurício Ivan dos Santos: Especialista em Educação Profissional Integrada àEducação Básica, na modalidade de Educação de Jovens e Adultos pela Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul (2009). Professor de História do ensinobásico, técnico e tecnológico no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tec-nologia do RS – Campus Canoas.E-mail: [email protected]

Monique Robain Montano: Possui graduação em Pedagogia, especialização pelaUFRGS. É professora da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre,atuando no Conselho Municipal de Educação. Tem experiência na área de Edu-cação, com ênfase em Gestão, atuando principalmente nos seguintes temas:políticas públicas, democratização, inclusão, diversidade e educação especial.E-mail: [email protected]

Raquel Varela: Historiadora, investigadora doutorada da Universidade Nova de Lis-boa (UNL), Portugal, e do International Institute for Social History, Amsterdã.

Romir de Oliveira Rodrigues: Mestre em Educação pela Universidade Federal doRio Grande do Sul (2006). Professor de Geografia do Ensino Médio e Tecnoló-gico e coordenador do PROEJA do Instituto Federal do Rio Grande do Sul –Campus Canoas.E-mail: [email protected]

Sandra Isabel Mateus Duarte: Licenciou-se em Matemática – Ramo Ensino naFaculdade de Ciências da Universidade do Porto em 1999. Em 2002 fez namesma instituição de ensino o Mestrado em Estatística. Desde 1998 é professo-ra do 3º Ciclo do Ensino Básico e do Ensino Secundário de Matemática. Apartir de 2006 é professora dos quadros do Ministério de Educação. Foi co-autora de dois manuais escolares de matemática para alunos dos 7º e 8º anos deescolaridade. Foi dirigente sindical do Sindicato de Professores da Grande Lis-boa entre 2007 e 2010. Sempre foi ativista em movimentos sindicais e não sindi-cais de professores e encarregados de educação.E-mail: [email protected]

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Stephen J. Ball: É professor de Sociologia da Educação no Departamento de Ciên-cias Humanas e Ciências Sociais e Centro de Estudos Políticos da Educação Crí-tica, do Instituto de Educação da Universidade de Londres, Reino Unido e Dire-tor Editorial do Jornal de Política da Educação. Publicações recentes incluem: ODebate da Educação: diplomacia e política no século 21 (Bristol: Policy Press, 2008) eComo as escolas fazem política (Routledge and Global Education Inc., 2012).E-mail [email protected]

Susana E. Vior: Universidad Nacional de Luján, Directora Maestría en Política yGestión de la Educación, Profesora investigadora en Política educacional.E-mail: [email protected]

Vera Maria Vidal Peroni: É doutora em Educação e professora da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul (UFRGS) nos cursos de graduação e pós-gra-duação em Educação. É pesquisadora em produtividade CNPQ. Participa dogrupo nacional de pesquisa sobre a relação entre o público e o privado na Educa-ção. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Política Educacional,atuando principalmente nos seguintes temas: Estado e política educacional,política educacional brasileira, relação público/privada. Sua pesquisa mais re-cente trata das parcerias entre sistemas públicos e instituições privadas do ter-ceiro setor e as implicações para a democratização da educação no Brasil, Ar-gentina, Portugal e Inglaterra.E-mail: [email protected]

Sobre os(as) autores(as)