REESTRUTURAÇÕES: AS IRRACIONALIDADES E A COISIFICAÇÃO … · 2016. 2. 23. · tir em massa etc....

3
5 O O O O O D D DA A AY Y Y- - -AF AF AF AF AFTER TER TER TER TER D D D D DA A AS S S REESTRUTURAÇÕES: A REESTRUTURAÇÕES: A REESTRUTURAÇÕES: A REESTRUTURAÇÕES: A REESTRUTURAÇÕES: AS S S IRRA IRRA IRRA IRRA IRRACIONALID CIONALID CIONALID CIONALID CIONALIDADES E A ADES E A ADES E A ADES E A ADES E A COISIFICAÇÃO DO COISIFICAÇÃO DO COISIFICAÇÃO DO COISIFICAÇÃO DO COISIFICAÇÃO DO HUMANO HUMANO HUMANO HUMANO HUMANO Maria Ester de Freitas © 1999, RAE - Revista de Administração de Empresas / EAESP / FGV, São Paulo, Brasil. O mundo organizacional caracte- riza-se por seu grande dinamismo e pela ênfase no aspecto pragmático. Até aí, nada mudou, exceto que a no- ção de tempo foi alterada e que a pa- lavra “mudança” precisou ser adjetivada como “acelerada”, o que nos faz pensar que estamos diante de um mundo em que nada se mantém estável ou constante, salvo talvez al- gumas retas nos modelos econômicos. A impressão que temos é a de es- tarmos correndo mesmo quando pa- rados, a de que precisamos estar sem- pre em ação para justificarmos a nos- sa serventia nesta vida e só assim lhe darmos validade. A ordem do dia é ser produtivo, apresentar resultados, mostrar que é capaz, superar-se a cada recorde, enfim, ser estressado e tenso é o normal e o aceitável. Existe algo mais sem graça, agressivo, insultante ou contrastante que uma pessoa des- contraída, à vontade, que se mostra leve e solta, em paz e devagar? Ela deveria ter pudor em mostrar-se pu- blicamente de forma tão indecente! A globalização, que trouxe na sua rasteira a elevação do nível de com- petitividade mundial, a quebra de vá- rias empresas, as megafusões e a in- terdependência financeira cada vez mais acentuada e perigosa, coloca em xeque as estruturas e as estratégias organizacionais que sobreviveram à década de 80, conhecida como a per- dida, especialmente no Brasil. A res- posta não se fez esperar e “reestrutu- ração” foi a palavra mágica capaz de fazer os executivos e os acionistas cre- rem, outra vez, que o céu é o limite. O início dos anos 90, no Brasil, foi A ordem do dia é ser produtivo, apresentar resultados, mostrar que é capaz, superar-se a cada recorde. TENDÊNCIAS RAE Light v. 6 n. 1 p. 5-7 Jan./Mar. 1999

Transcript of REESTRUTURAÇÕES: AS IRRACIONALIDADES E A COISIFICAÇÃO … · 2016. 2. 23. · tir em massa etc....

Page 1: REESTRUTURAÇÕES: AS IRRACIONALIDADES E A COISIFICAÇÃO … · 2016. 2. 23. · tir em massa etc. “Reengenharia” e “downsizing” eram palavras que ser-viam para fazer a passagem

5

O O O O O DDDDDAAAAAYYYYY-----AFAFAFAFAFTERTERTERTERTER D D D D DAAAAASSSSSREESTRUTURAÇÕES: AREESTRUTURAÇÕES: AREESTRUTURAÇÕES: AREESTRUTURAÇÕES: AREESTRUTURAÇÕES: ASSSSS

IRRAIRRAIRRAIRRAIRRACIONALIDCIONALIDCIONALIDCIONALIDCIONALIDADES E AADES E AADES E AADES E AADES E ACOISIFICAÇÃO DOCOISIFICAÇÃO DOCOISIFICAÇÃO DOCOISIFICAÇÃO DOCOISIFICAÇÃO DO

HUMANOHUMANOHUMANOHUMANOHUMANOMaria Ester de Freitas

© 1

999,

RAE

- R

evis

ta d

e Ad

min

istr

ação

de

Empr

esas

/ EA

ESP

/ FG

V, S

ão P

aulo

, Bra

sil.

O mundo organizacional caracte-riza-se por seu grande dinamismo epela ênfase no aspecto pragmático.Até aí, nada mudou, exceto que a no-ção de tempo foi alterada e que a pa-lavra “mudança” precisou seradjetivada como “acelerada”, o quenos faz pensar que estamos diante deum mundo em que nada se mantémestável ou constante, salvo talvez al-gumas retas nos modelos econômicos.

A impressão que temos é a de es-tarmos correndo mesmo quando pa-rados, a de que precisamos estar sem-pre em ação para justificarmos a nos-sa serventia nesta vida e só assim lhedarmos validade. A ordem do dia éser produtivo, apresentar resultados,

mostrar que é capaz, superar-se a cadarecorde, enfim, ser estressado e tensoé o normal e o aceitável. Existe algo

mais sem graça, agressivo, insultanteou contrastante que uma pessoa des-contraída, à vontade, que se mostra

leve e solta, em paz e devagar? Eladeveria ter pudor em mostrar-se pu-blicamente de forma tão indecente!

A globalização, que trouxe na suarasteira a elevação do nível de com-petitividade mundial, a quebra de vá-rias empresas, as megafusões e a in-terdependência financeira cada vezmais acentuada e perigosa, coloca emxeque as estruturas e as estratégiasorganizacionais que sobreviveram àdécada de 80, conhecida como a per-dida, especialmente no Brasil. A res-posta não se fez esperar e “reestrutu-ração” foi a palavra mágica capaz defazer os executivos e os acionistas cre-rem, outra vez, que o céu é o limite.

O início dos anos 90, no Brasil, foi

A ordem do dia é ser

produtivo, apresentar

resultados, mostrar

que é capaz,

superar-se a cada

recorde.

TENDÊNCIAS

RAE Light • v. 6 • n. 1 • p. 5-7 • Jan./Mar. 1999

Page 2: REESTRUTURAÇÕES: AS IRRACIONALIDADES E A COISIFICAÇÃO … · 2016. 2. 23. · tir em massa etc. “Reengenharia” e “downsizing” eram palavras que ser-viam para fazer a passagem

6

um momento de grande rebuliço. Aquestão de ordem era enxugar asplanilhas de custos, cortar as gordu-ras, apertar os cintos, separar o joiodo trigo das despesas, desacelerar in-vestimentos, definir o core business,terceirizar o que não era essencial,reduzir os níveis hierárquicos, demi-tir em massa etc. “Reengenharia” e“downsizing” eram palavras que ser-viam para fazer a passagem do velhoao admirável novo mundo. As demis-sões nunca foram tão democratica-mente distribuídas: começaram fazen-do o seu caminho pelo chão da fábri-ca, atingiram os níveis de média ge-rência e bateram nas portas do primei-ro escalão, considerado quase inatin-gível. Cortaram-se cabeças, compe-tências e sonhos. Até onde sei, ne-nhum pesquisador arriscou-se a fazeras contas dessa revolução.

Obviamente, as empresas nuncase pretenderam portadoras de felici-dade e certamente têm que conside-rar em primeiro, segundo e terceirolugar a sua sobrevivência e o respei-to à sua natureza expansionista. Mas,se é verdade que o cenário exigia umaresposta firme ante as ameaças colo-cadas, não é menos verdade que essaresposta veio de forma simplificada,maldefinida e mal-operacionalizada.

A simplificação fica por conta deconsiderar reestruturação como sinô-nimo de cortes; a má definição tam-bém é de ordem conceitual já que, emvez de as empresas redirecionarem-seestrategicamente, olharam apenaspara o curto prazo e para aquilo queconseguiam enxergar a uma distânciapequena; por fim, a má operacionali-zação contabiliza os despropósitos, osdesrespeitos, a falta de sensibilidade,o cinismo e a irresponsabilidade comque a empresa tratou o ser humano,até então seu fiel colaborador.

Muitas demissões foram feitaspor e-mail, por telefone, no meio dasférias, no final do expediente quan-do o indivíduo já estava no estacio-namento e por atos covardes seme-lhantes. Muitas coisas foram empa-

cotadas e enviadas por boys para seevitar o constrangimento causado poruma presença infeliz. Negou-se aohomem demitido não apenas o direi-to de limpar as suas gavetas ou ar-mários, mas também o de demons-trar a sua humanidade, fosse no adeusaos colegas, fosse na face que expri-mia uma dor. Em boa medida umador que não estava relacionada sim-plesmente com a perda do emprego,mas por ser tratado como um lixo,como um nada, como um ninguém.

As empresas não têm do que seorgulhar nesse comportamento bárba-ro e imoral, ainda que ele tenha pro-vocado acréscimos de produtividade.Não fossem as incorporações tecno-lógicas feitas rapidamente, estranha-ríamos o resultado de elevação de pro-dutividade depois desse vendaval, quearruinou o clima organizacional efez o moral e a auto-estima dos in-divíduos beijarem a lona. Aliás, ins-talou-se o pânico de ser o próximo dalista ou a bola da vez. A cultura dodescartável ou da obsolescência atin-giu todos os níveis: saberes, idades,carreiras, competências, grupos etc.

A lealdade, até aí consideradauma das vigas mestras do sucesso devárias empresas de renome, passoua ser vista como sinônimo de coisaatrasada, old-fashioned. Algo maisridículo que lealdade para com aempresa ou esperar que ela seja recí-proca? A empresa fez questão demostrar que esse valor não tinha mais

tradução na nova versão lingüísticado mundo empresarial moderno.

E foi aí que surgiu o que hoje jáse percebe como uma grandeencrenca para as organizações: osmercenários e os estrategistas indi-viduais. Essas crias foram gestadasna mensagem alardeada aos quatrocantos: você deve tratar-se como umprojeto, como um capital a dar re-torno, um recurso a ser gerido .Olhando para trás, os novos contra-tados viram um rastro de pessoastidas como leais jogadas no lixo;olhando para a frente, podiam vis-lumbrar a si próprios no mesmo lu-gar. E foi assim que uma espécie depacto silencioso foi assinado: nãoespere a minha lealdade, o que te-mos em conjunto é um acordo deconveniência temporária, possotrocá-lo por quem me der mais aqualquer momento.

O profissional sério, consciencio-so, leal e de longo prazo foi trocadoou estimulado a ser o jogador, o es-trategista, o cara que contabiliza osganhos do dia e que tem compromis-so em primeiro, em segundo e em ter-ceiro lugar apenas consigo e com oseu caminho de sucesso. As promo-ções que se desenvolviam, anterior-mente, de maneira mais lenta passama ser disputadas avidamente e no me-nor espaço de tempo possível. A em-presa passa a dizer que quem fica pa-rado é poste e todo mundo tem quecorrer para pegar o seu filão. De umlado, carreiras rápidas, avaliação di-ária de valor agregado; de outro,passe sempre à venda e lealdade aocorpo que está dentro da camisa, aninguém mais. A empresa sabe queexistem muitos talentos disputandoo mercado, e as pessoas talentosassabem que, se forem realmente boas,podem conseguir ofertas sempre me-lhores. Empresas e talentos corremem raias diferentes, mas se sondam,se espiam, se namoram, especial-mente por meio dos casamenteirose alcoviteiros, modernamente cha-mados head-hunters.

As empresas não têm

do que se orgulhar

nesse comportamento

bárbaro e imoral,

ainda que ele tenha

provocado acréscimos

de produtividade.

TENDÊNCIAS

RAE Light • v. 6 • n. 1 • Jan./Mar. 1999

Page 3: REESTRUTURAÇÕES: AS IRRACIONALIDADES E A COISIFICAÇÃO … · 2016. 2. 23. · tir em massa etc. “Reengenharia” e “downsizing” eram palavras que ser-viam para fazer a passagem

7

De tudo isso, podemos deduziruma mudança brutal na administraçãodos recursos humanos. A palavra “re-cursos” parece hoje mais pertinente eadequada que a palavra “humanos”;daqui a pouco os consultores talvezsugerirão um termo mais moderno,pois “humano” parece muito mortal efrágil. Enfim, o contrato de trabalhofoi quebrado, as carreiras entrarampara o mundo dos esportes, a avalia-ção de desempenho passou a ser diá-ria, o salário ficou definido de acordocom o valor agregado, o treinamentopassou a ser uma benção ou uma mal-dição permanente, os benefícios fo-ram revistos e a estabilidade no em-prego virou palavrão. A palavra“turnover”, que tinha uma certa sig-nificação até poucos dias atrás, agoratambém não serve para medir maisnada; como todo dia é dia de demis-são e todo dia entra alguém novo ouuma máquina nova, de que vale essarelação? A sua análise tornou-seobsoleta! Empregabilidade não é fun-ção de um repertório diversificado dehabilidades e competências, mas re-sultado da empresabilidade.

Como tudo está de pernas para cimaem todas as áreas da empresa, como omercado todo dia apresenta um capri-cho diferente, como os consumidoresestão cada vez mais temperamentais,como os talentos exigem tratamento di-ferenciado para ser identificados, comoadministração nunca mesmo foi umaciência, os tempos de hoje permitemtodo tipo de técnica e de tentativa.

A área de recursos humanos tal-vez esteja sendo mais criativa que ade marketing no processo de desen-volvimento de seus novos produtos.Astrólogos, numerólogos, grafólo-gos, treinamentos exóticos e exoté-ricos, como, por exemplo: imersãona selva, gritos primais de Tarzã, des-cer corredeiras, fazer esportes radi-cais, fazer treinamentos de guerra,consultar os anjos e os florais, saberresponder rapidamente quantas lis-tras tem uma zebra e um rol de per-guntas fundadas no nonsense. Os dis-

cursos são elaborados cuidadosamen-te e o marketing pessoal agora é coi-sa de profissional.

É verdade que a área de recursoshumanos sempre foi uma das maispobres do ponto de vista da produçãoacadêmica de qualidade. Sempre seencontraram com facilidade livros queapregoavam receitas mágicas da mo-tivação fácil e como se arrancar omáximo de produtividade com a mú-sica adequada. Mas é impressionanteo vazio existencial do momento! Nin-guém se arrisca a escrever nada, afi-nal está todo mundo jogando pedrasna Lua e esperando que um dos anéisde Saturno mande uma boa nova parase equacionar o problema.

O que sabemos é que, quando oser humano é esquecido ou transfor-mado em coisa, perde sentido o pro-pósito de construção de riquezas e deum mundo melhor. As incertezas e ascomplexidades colocadas pelo novoambiente socioorganizacional suge-rem que a leitura do que está aconte-cendo e das tendências exige uma sen-sibilidade diferente.

A nova geração ainda tem coração,sonhos e aprende a valorizar aquiloque a sociedade aponta como impor-tante. O contrato atual assinado pelasempresas não assume nenhum tipo deresponsabilidade, não garante nenhumtipo de apoio, estimula o cinismo e ocomportamento escapista e mercená-rio. Investir numa relação fundadanessas bases é fomentar um compor-tamento cada dia mais imoral e aético,complicador de que não estamos ne-

cessitando. As empresas têm ou de-veriam ter um compromisso com asgerações futuras não apenas em rela-ção aos produtos e serviços que ofe-recerão, mas também ser responsáveisquanto ao comportamento que dizemvalorizar. Até aqui, elas não têm dadoum bom exemplo e devem ter mesmoa “consciência” pesada, que não épassível de ser resgatada apenas comalguns projetos sociais patrocinados.

Dizer aos jovens que devem seconsiderar um capital a dar retorno ouum projeto a ser gerido foi a coisamais imbecil e irresponsável que asempresas já fizeram até hoje, mas issopode ser reversível se as pessoas quedecidem nas empresas refletirem ocusto alto que elas poderão pagar se oconselho for seguido ao pé da letra. Otrabalho de um educador se tornamuito mais difícil quando ele tem queretrabalhar o discurso torto e os con-selhos pragmáticos pretensamentedestituídos de valor e de visão demundo. A nova geração já tem umdéficit no apoio de valores que anteseram da família, da vizinhança, daIgreja e do Estado. Quando o dinhei-ro é a medida de todas as coisas e osucesso a única coisa que interessaatingir, não é de se duvidar que todomundo venda todo mundo.

Não está sendo solicitado que asempresas abram mão de sua visãomonetarizada de mundo, mas que elashonrem em ações o que costumampregar em discursos que dizem que oser humano é o seu principal “ativo”.O ser humano, mortal e frágil, tem láseus defeitos, comete erros e faz suasbobagens, mas, quando ele é estimu-lado a substituir o coração por um chipou uma máquina registradora, o mun-do deve ter medo. �

Maria Ester de Freitasé Professora do Departamento deAdministração Geral e Recursos

Humanos da EAESP/FGV.

O profissional sério,

consciencioso, leal e

de longo prazo foi

trocado ou estimulado

a ser o jogador, o

estrategista.

O DAY-AFTER DAS REESTRUTURAÇÕES: AS IRRACIONALIDADES E A COISIFICAÇÃO DO HUMANO

RAE Light • v. 6 • n. 1 • Jan./Mar. 1999