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3 AS TELENOVELAS E SUAS PROPRIEDADES COERCITIVAS SOBRE A SOCIEDADE INTRODUÇÃO Vivemos em um mundo ligeiramente bombardeado por uma constante reflexão dele próprio, isso em qualquer tipo de obra que possa explorar fatos verossímeis, como alguns romances, filmes ou uma forma bem típica de nosso país, que busca ainda mais que os demais a proximidade com a realidade vivida pela sociedade em que se insere: a telenovela. Como qualquer obra de ficção, a telenovela exige que o telespectador permita aquilo que Eco (1994) trata por "acordo ficcional", também chamado de "suspensão da descrença" por Coleridge (apud ECO, 1994). Este acordo consiste em o leitor – telespectador, uma vez que se trata de uma obra televisiva - saber que a novela é uma invenção do autor, mas aceitá-la como se fizesse parte da realidade; fosse, de fato, uma reflexão do mundo. Dessa forma o telespectador pode se envolver com a trama que se forma ao redor dos personagens e núcleos da novela e considerar que a mesma é muito semelhante aos aspectos da vida cotidiana. E é por essa aceitação da realidade gerada pelo autor ao mesmo passo de sua não aceitação como real que "suspendemos nossa descrença em relação a algumas coisas e não a outras" (ECO, 1994) para nos permitirmos compreender obras tais. No entanto, a telenovela e esse seu efeito que permite às pessoas identificarem-se não surgiu repentinamente, é antes

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Reflexão e Conclusão para a disciplina de Língua Portuguesa, Redação e Expressão Oral 2, Profª Drª Maria Cristina Mongioli - ECA USP

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AS TELENOVELAS E SUAS PROPRIEDADES COERCITIVAS SOBRE A SOCIEDADE

INTRODUÇÃO

Vivemos em um mundo ligeiramente bombardeado por uma constante reflexão dele

próprio, isso em qualquer tipo de obra que possa explorar fatos verossímeis, como alguns

romances, filmes ou uma forma bem típica de nosso país, que busca ainda mais que os demais

a proximidade com a realidade vivida pela sociedade em que se insere: a telenovela.

Como qualquer obra de ficção, a telenovela exige que o telespectador permita aquilo

que Eco (1994) trata por "acordo ficcional", também chamado de "suspensão da descrença"

por Coleridge (apud ECO, 1994). Este acordo consiste em o leitor – telespectador, uma vez

que se trata de uma obra televisiva - saber que a novela é uma invenção do autor, mas aceitá-

la como se fizesse parte da realidade; fosse, de fato, uma reflexão do mundo. Dessa forma o

telespectador pode se envolver com a trama que se forma ao redor dos personagens e núcleos

da novela e considerar que a mesma é muito semelhante aos aspectos da vida cotidiana. E é

por essa aceitação da realidade gerada pelo autor ao mesmo passo de sua não aceitação como

real que "suspendemos nossa descrença em relação a algumas coisas e não a outras" (ECO,

1994) para nos permitirmos compreender obras tais.

No entanto, a telenovela e esse seu efeito que permite às pessoas identificarem-se não

surgiu repentinamente, é antes uma espécie de evolução, de cunho baseado na era televisiva,

de um hábito já aderido pela sociedade anos antes.

NOVOS FOLHETINS

A telenovela sempre fez parte da vida cotidiana do público, por fazer com que ele se

identificasse, em uma espécie de catarse grego, e a acompanhasse desde então. E, mesmo

antes de começarem a serem produzidas, seus precursores também mostravam essa

característica.

A semelhança entre os folhetins românticos do século XIX e a telenovela é bastante

clara, tanto em relação às temáticas presentes, quanto ao formato e sucesso conquistado.

Através da publicação semanal de capítulos de romances nos principais jornais do Brasil, os

folhetins foram ganhando um público fiel, muito interessado no desenvolvimento da trama

apresentada. Esta, por sua vez, possuía muitos diálogos e uma sucessão de acontecimentos

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surpreendentes, que, em geral, eram descritos com muita emoção e eloqüência, como ocorre

nas telenovelas.

Por exigir um baixo conteúdo intelecto-cultural para seu entendimento e apresentar

tramas que envolvem sentimentos muito conhecidos pela população (como amor, ódio,

tristeza, coragem, etc.), o folhetim chamou muito a atenção de grande parte da sociedade, e

não só de um público específico, apesar de sua leitura ainda ser realizada principalmente pela

elite brasileira. A identificação da população em relação às histórias tornava-se, assim,

altíssima, como também ocorre na telenovela, que se destina a um público bem heterogêneo.

Como uma característica especificamente do folhetim no Brasil, apresenta-se um viés

didático nas tramas. A fim de criar uma nacionalidade para o país que acabara de ter sua

independência, as histórias também mostravam valores éticos e morais a favor da família e da

cidadania. Aspecto claramente encontrado ainda hoje nas telenovelas, que, também como no

primeiro gênero (folhetins), apresentam um valor maniqueísta em suas obras. A luta entre o

Bem e o Mal, ou a personagem Boa e a Má, ainda se mostra importantes para a trama.

Percebe-se, assim, que, apesar de estarmos no século XXI e diversas mudanças terem

ocorrido em nossa sociedade, a fórmula apresentada pelos folhetins do século XIX ainda gera

grande sucesso de público, como observamos com as telenovelas brasileiras.

ESPELHO DA REALIDADE

Um dos principais motivos para que haja tal sucesso é o processo de identificação pelo

qual o público passa em relação à história e aos personagens da telenovela. Assim, a partir de

Bakhtin (1981), podemos dizer que, como os signos, o gênero em questão reflete a realidade

em que se insere.

Segundo Propp (apud MOTTER, 2005) em geral, a fórmula utilizada para se criar

histórias ficcionais é focada na busca do protagonista de um objeto de desejo ao qual não tem

acesso. Durante essa jornada, a personagem principal se vê obrigada a superar diversos

obstáculos, inclusive inimigos, para que cumpra sua missão. A partir dessa ideia, podemos

perceber que a fórmula apresentada acaba resumindo, de forma geral, como se desenrola a

vida de uma pessoa na vida real.

Dentro de uma sociedade, há diversos tipos de indivíduos e cada um está sempre em

busca de algo que ainda não alcançou e que se constitui seu maior anseio; seja esse algo um

objeto palpável, como estabilidade financeira, ou algo mais subjetivo, um bem abstrato, como

a felicidade. Conforme os mesmos tomam decisões para alcançar seu objetivo final, veem-se

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frente a frente com seu suposto inimigo, que pode ser um obstáculo qualquer, como uma

entrevista de emprego ou uma paixão mal resolvida, que são a razão pela qual ainda se está

distante do objeto de desejo. Esse aspecto acaba explicitando o porquê da diversidade de

públicos, constituídos de parcelas bem distintas da sociedade, que se identificam com algum

aspecto de uma trama qualquer, buscando assimilar a ficção transmitida durante os episódios

com as mais variadas situações de sua vida real.

Complementando a explicação anterior, podemos dizer também, pelo o que Motter

(2005) nos apresenta, que uma história tem seu início em um problema, na perda de

estabilidade na vida de uma personagem, o que impede ou adia a posse do objeto desejado.

Fato muito comum na vida cotidiana. É a partir da definição de um problema que o indivíduo

passa por diversas transformações e obstáculos, visando a volta de sua vida tranqüila, de sua

estabilidade. Assim, desenvolvem-se os conflitos, que geram esses problemas. Suas soluções,

porém, acarretam novos conflitos que nos empurram para a ação, exatamente como ocorre nas

telenovelas.

Segundo Motter (2005), nas telenovelas há a presença de diversos núcleos, ou seja,

conjuntos de personagens que se relacionam por uma mesma ação dramática. Assim, temos o

principal e os secundários. Todas as personagens, porém, possuem algum tipo de relação com

outras, que se encontram em diferentes núcleos. Visto isso, temos que a trama principal se

entrecruza com histórias secundárias dentro da telenovela. Novamente, se compararmos a

vida real com esse aspecto da telenovela revelamos uma grande semelhança. Os indivíduos de

uma sociedade possuem um certo núcleo de pessoas com quem se relacionam mais, através de

determinado assunto (por exemplo, um indivíduo em relação aos seus colegas de trabalho).

Ao mesmo tempo, possuem outras pessoas com quem não possui muito contato, mas, ao

mesmo tempo, suas vidas se cruzam (por exemplo, a relação do indivíduo em questão com o

parceiro amoroso de um desses colegas de trabalho), tornando-os ligados, em certo aspecto.

Mais uma vez a semelhança entre vida real e telenovela se apresenta.

Visto que diversos aspectos do gênero em questão são estritamente relacionados à

sociedade e a forma como os indivíduos agem, a identificação por parte do público se torna

muito concreta. Pode-se dizer até, fazendo uma analogia ao que é apresentado no texto de

Motter (2001), que a telenovela é a linha/tecido que tece a realidade de nossas vidas com

nossas fantasias e anseio de que tudo dê certo, de que a estabilidade seja alcançada e o objeto

de desejo conquistado.

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REFLEXÃO E REFRAÇÃO DO MUNDO

Após afirmarmos que a telenovela reflete a sociedade em que se está inserida,

lembremos da outra parte da teoria apresentada por Bakhtin (1981), em qual afirma que o

signo, como objeto material “passa a refletir e a refratar, numa certa medida, uma outra

realidade”. Seguindo tal linha de pensamento, podemos afirmar que a telenovela também

modifica, de certa forma, a sociedade em que se insere. Através da representação do mundo

real, se encontra uma refração na visão que há sobre essa realidade. Acaba se passando, pela

história, ideologias e pensamentos, que podem inclusive influenciar nos valores morais de

uma época. Tais ideologias e pensamentos, porém, podem não representar a realidade vista no

mundo, apesar de muitas vezes mostrarem o que seria o ideal.

As telenovelas, assim, possuem certo poder de mudar a nossa sociedade, seja pela

diferente forma de como ela é representada, seja pela inserção de certos assuntos em pauta, o

que nos obriga a repensá-los. Tópicos como: agressão física contra a mulher,

homossexualidade, dependentes de drogas ou gravidez na adolescência; foram apresentados

em diversas novelas com o objetivo de chamar-nos a atenção para esses assuntos. Com a

veiculação de problemas que de fato fazem parte de nossa sociedade, nos tornamos mais

atentos em relação a eles. No caso da homossexualidade, que infelizmente ainda não é vista

com grande naturalidade no Brasil, a discussão em telenovelas mostra que a sociedade está

cada vez mais aberta em relação ao tema, ou seja, está se tornando bem comum aceitar

socialmente o fato de alguém ser homossexual. O gênero que discutimos aqui tem um grande

papel nessa mudança de visão. Mostrando o homossexualismo de uma forma respeitosa,

durante diversas telenovelas, a sociedade foi, aos poucos, percebendo como o assunto deveria

ser tratado. Mudou-se, assim, um padrão; a própria realidade.

A TELENOVELA E SEU CARÁTER PEDAGÓGICO

Outro aspecto importante das telenovelas é o fato de serem utilizados certos tipos

estereotipados de personagens. Assim, o protagonista em geral é uma pessoa boníssima,

sempre segue os valores morais da sociedade e vence muitos obstáculos para, ao final da

trama, conseguir sua recompensa. O seu inimigo, em contrapartida, vai contra a ética e quase

sempre fica em uma péssima situação ao final, como recompensa também de todo o mal que

causou. Tais estereótipos são, geralmente, a forma idealizada de mundo formada em nossa

mente através de tudo que nos é passado desde muito cedo por contos e histórias infantis

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durante o processo da educação social. Deste modo, facilitando nossa compreensão e

aceitação em relação à personagem, os estereótipos vêm de encontro aos nossos ideais já pré-

estabelecidos, fazendo com que estes sejam somente fixados ainda mais. Podemos dizer,

portanto, que como a família ou a escola, a televisão (através das telenovelas, no caso)

também acaba nos socializando, ao mostrar-nos no que se deve acreditar (nos valores éticos) e

como é o mundo (estereótipos). Portanto, devido a esse processo de socialização decorrente

das telenovelas podemos considerá-las em âmbito nacional portadoras de um viés pedagógico.

Um aspecto presente nesse gênero que comprova tal característica é a presença do

merchandising social e cultural. As ações mostradas nas telenovelas, assim, muitas vezes

procuram apresentar “comportamentos promotores da cidadania, da solidariedade, da

inclusão.” (MOTTER, 2005). Com o objetivo de promover boas ações, através do

merchandising social, as telenovelas mostram como se deve agir quando se busca fazer o bem

à sociedade e acabam, portanto, ensinando-nos. Quanto ao merchandising cultural, procura-

se, através da promoção de produtos culturais (como peças de teatro ou obras literárias)

promover a importância da cultura em nossas vidas. Isso tem se tornado essencial já que a

população acomodou-se a um estilo de vida movido à televisão, com pouco acesso a materiais

impressos para leitura, idas a espetáculos teatrais, museus ou qualquer outra forma de

obtenção de cultura direta, presencial.

O fato de a telenovela se mostrar pedagógica, nos atenta a uma outra característica da

televisão aberta brasileira. Aqui ela se mostra geralista, ou seja, direcionada a diversos tipos

de público, torna-se, assim, mais social, e contribui para a identidade e integração nacional,

aspecto que seria encontrado principalmente em emissoras públicas. Como é apresentado no

texto de Wolton (2006), na televisão privada brasileira “encontramos, com efeito, o sucesso e

o papel nacional de uma grande televisão, assistida por todos os meios sociais, e que pela

diversidade de seus programas constitui um poderoso fator de integração social.”. Deste

modo, pelo fato de diferentes camadas da sociedade possuírem a oportunidade de assistir

televisão pelos olhos “do outro”, acaba–se criando um maior sentimento de união. Mesmo em

um país tão grande como o Brasil, a televisão, e, claro, as telenovelas mostram diversos lados

de uma mesma realidade, diversos tipos de programas para diferentes gostos e por isso criam-

se uma identidade nacional e uma integração. Todos se sentem parte do que lhes é

apresentado e sentem orgulho de participarem disso. Sentem orgulho de fazer parte de uma

nação, de viverem no Brasil.

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SUPERFICIALIDADE

Ao mesmo tempo em que as telenovelas se mostram tão importantes para a sociedade,

vemos uma certa superficialidade vinda do público ao assisti-las. Segundo Motter (2005), essa

falta de análise frente às temáticas e referências culturais, por exemplo, trechos de obras

literárias inseridas no roteiro que só são percebidas por certos telespectadores que fazem uma

“leitura mais profunda” do que se assiste; se deve a dois principais motivos: o modo

despreocupado que vemos televisão e nosso interesse centrado no desenrolar da história

apresentada, apenas.

Por ser um gênero que não exige tanta atenção para se acompanhar – um dos sentidos

já basta (audição ou visão) – nós acabamos nos preocupando com outras tarefas enquanto

assistimos às telenovelas, fazendo com que não fiquemos totalmente concentrados nos

detalhes da trama. Além disso, em geral, vemos tal gênero como um modo de entretenimento,

o que nos propicia uma visão de que para se “relaxar” nossa mente não deve trabalhar muito,

fazendo com que nos preocupemos somente com o desenrolar da história apresentada,

desconsiderando possíveis referências a fatos exteriores ou análises críticas.

Visto isso, entendemos que as telenovelas, como nos mostra Motter (2005), podem

esgotar todo seu conteúdo constituindo-se apenas em estímulos visuais, como as outras

imagens que são apresentadas ao público pela televisão. Segundo a autora, temos certa

limitação em atribuir sentidos e contextualizar o que assistimos para formar, a partir daí, a

construção de uma análise crítica.

CONCLUSÃO

As telenovelas, enfim, em sua diversidade cada vez mais abrangente, tematicamente

falando, tornaram-se interessante alvo de análises diversas. Reflexões de uma realidade

composta por situações problema e momentos felizes, interrelação de indivíduos e difusão de

costumes, elas se tornaram instrumento de uma mescla cultural, que por sua acessibilidade,

aproxima cada vez mais pessoas de diferentes nichos sociais ou regionais, dando-lhes

sensação de proximidade, de possibilidade; ampliando sua visão de mundo.

É fato que embora aceitemos a não-realidade dessas obras, ainda assim nos deixemos

influenciar por elas, mesmo que inconscientemente, e isso se dá por sua proximidade a nossa

vida, nossos conflitos; e assim muito do que lá se transmite acaba por ser também por nós

incorporado.

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Sendo, em contrapartida, muitas vezes efêmera, pode ser algumas vezes ignorada

como instrumento efetivo pedagógico, mas, considerando-se a situação do mundo em que

vivemos, cercado por mídias e por visões pregadas por esta, é inegável a colaboração que as

telenovelas tiveram ao ajudarem a criar tal geração, dependente da televisão e sua profusão de

imagens.

É, porém, deveras interessante nos basearmos nelas para aprendemos a entender o

mundo pelos olhos das pessoas que trabalham na indústria cultural e que focam grande parte

de seus esforços na criação de desejos e na voracidade do consumo, modificando o

comportamento e ideologia gerais da geração em questão (MOTTER, 2005).