REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVEL Considerações Iniciais … · Resumo Palavras-Chave: Trabalho -...

11
- REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVEL MUNDO NOVO l Altino José Martins Filho? I BCH-UFC J O presente artigo se constitui numa análise refle- xiva sobre a obra literária de Aldous Huxley (1930), com o intuito de investigar as apostas, construídas historicamente em relação à ciência e à tecnologia. O objetivo não é apenas de ofere- cer um "em torno", mas de ter a possibilidade de captar o diálogo entre as idéias defendidas pelo autor eo nosso contexto social/educacional nos dias atuais. Resumo Palavras-Chave: Trabalho - Ficção - Educação. Abstrcct: Reflecting on an admirable new world This artic/e is a reflective analysis about the literary work of Aldous Huxley (1930). It investigates the bets (on the outcomes),historically constructed, in re/ation to science and technology. The purpose of the study is not only to offer a comprehensive view of the matter, but also to show it is possible to capture the dialogue between the author 's idea and our present social/educacional reality. Key words: Work - Fiction - Education. 1 o título original do livro, Brave New World, foi retirado de um trecho de uma peça de William Shakespeare, The Tempest (1911). O trecho refere-se à cena em que Miranda vê os prín- cipes de Nápoles desembarcarem de um navio naufragado e exclama: "Esplêndida humanidade, maravilhoso mundo novo, quem pode nutrir serestão perfeitos?* (RAMONET, 1911). Este artigo é uma versão de trabalho realizado para a disciplina Trabalho, Educação e as Tecnologias da Informação e da Co- municação sob a coordenação do Professor Dr. Lucídio Bianchetti, segundo semestre de 2002. 2 Mestrando em Educação e Infância do Programa de Pós-Gra- duação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. E- mail: [email protected] Considerações Iniciais ... *Em uma experiência educacional verdadeiramente compartilhada, as escolhas e decisões precisam ser feitas com o maior consenso possível e com um profundo respeito por uma plural idade de idéias e perspectivas*(Sergio Spaggiori). A questão do controle vem ganhando espa- ço nas sociedades contemporâneas por meio de mecanismos sofisticados de vigilância, que pro- movem invasões à privacidade, como nos recen- tes episódios televisivos no estilo reality shows e nos crescentes e sofisticados sistema de vigilân- cia contendo câmaras ocultas de registro de ima- gens e sons. Como conseqüência desses instrumentos controladores estamos diante da banalização do cotidiano, em que o controle e a intimidade pas- sam a fazer parte de uma rotina como uma ques- tão natural e rapidamente são assimilados pelas instituições sociais. Podemos considerar o olhar futurista de Aldous Huxley como uma possibilidade e suges- tão de advertência a esse fenômeno de vigilância e controle se compararmos suas ideologias à rea- lidade social em que estamos inseridos, na qual os valores morais estão sofrendo mudanças abrup- tas, os avanços científicos e técnicos abrem possi- bilidades de inclusão e exclusão do indivíduo nas variadas esferas sociais. A ficção de Huxley, considerada um exage- ro à época (década de 30), apresenta uma utopia sobre o funcionamento de uma sociedade alta- mente controladora, baseada em controles sócio- metabólicos e pré-destinação dos papéis sociais, como será relatado neste artigo. A utopia de Huxley exibe um modelo de sociedade "má", daí ser denominada distopia (um mau lugar, o lugar da distorção) ou desutopia, uma vez que o Mundo Novo imaginado estava longe de ser "perfeito", já que a palavra utopia está as- sociada à possibilidade de um mundo ideal. O exagero de sua ficção naquele momento histórico parece, em alguns casos, possível de ser 32 EDUCAÇÃO EM DEBATE FORTALEZA. ANo 25 • V. I Nll 45 • 2003

Transcript of REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVEL Considerações Iniciais … · Resumo Palavras-Chave: Trabalho -...

Page 1: REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVEL Considerações Iniciais … · Resumo Palavras-Chave: Trabalho - Ficção - Educação. Abstrcct: Reflecting on an admirable new world ... 1915, na

-REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVELMUNDO NOVOl

Altino José Martins Filho?

IBCH-UFC JO presente artigo se constitui numa análise refle-xiva sobre a obra literária de Aldous Huxley(1930), com o intuito de investigar as apostas,construídas historicamente em relação à ciênciae à tecnologia. O objetivo não é apenas de ofere-cer um "em torno", mas de ter a possibilidade decaptar o diálogo entre as idéias defendidas peloautor e o nosso contexto social/educacional nosdias atuais.

Resumo

Palavras-Chave: Trabalho - Ficção - Educação.

Abstrcct: Reflecting on an admirable new world

This artic/e is a reflective analysis about theliterary work of Aldous Huxley (1930). Itinvestigates the bets (on theoutcomes),historically constructed, in re/ation toscience and technology. The purpose of the studyis not only to offer a comprehensive view of thematter, but also to show it is possible to capturethe dialogue between the author 's idea and ourpresent social/educacional reality.

Key words: Work - Fiction - Education.

1 o título original do livro, Brave New World, foi retirado deum trecho de uma peça de William Shakespeare, The Tempest(1911). O trecho refere-se à cena em que Miranda vê os prín-cipes de Nápoles desembarcarem de um navio naufragado eexclama: "Esplêndida humanidade, maravilhoso mundo novo,quem pode nutrir serestão perfeitos?* (RAMONET, 1911). Esteartigo é uma versão de trabalho realizado para a disciplinaTrabalho, Educação e as Tecnologias da Informação e da Co-municação sob a coordenação do Professor Dr. LucídioBianchetti, segundo semestre de 2002.2 Mestrando em Educação e Infância do Programa de Pós-Gra-duação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. E-mail: [email protected]

Considerações Iniciais ...

*Em uma experiência educacional verdadeiramentecompartilhada, as escolhas e decisões precisam ser

feitas com o maior consenso possível e com umprofundo respeito por uma plural idade de

idéias e perspectivas*(Sergio Spaggiori).

A questão do controle vem ganhando espa-ço nas sociedades contemporâneas por meio demecanismos sofisticados de vigilância, que pro-movem invasões à privacidade, como nos recen-tes episódios televisivos no estilo reality shows enos crescentes e sofisticados sistema de vigilân-cia contendo câmaras ocultas de registro de ima-gens e sons.

Como conseqüência desses instrumentoscontroladores estamos diante da banalização docotidiano, em que o controle e a intimidade pas-sam a fazer parte de uma rotina como uma ques-tão natural e rapidamente são assimilados pelasinstituições sociais.

Podemos considerar o olhar futurista deAldous Huxley como uma possibilidade e suges-tão de advertência a essefenômeno de vigilânciae controle se compararmos suas ideologias à rea-lidade social em que estamos inseridos, na qualos valores morais estão sofrendo mudanças abrup-tas, os avanços científicos e técnicos abrem possi-bilidades de inclusão e exclusão do indivíduo nasvariadas esferas sociais.

A ficção de Huxley, considerada um exage-ro à época (década de 30), apresenta uma utopiasobre o funcionamento de uma sociedade alta-mente controladora, baseada em controles sócio-metabólicos e pré-destinação dos papéis sociais,como será relatado neste artigo.

A utopia de Huxley exibe um modelo desociedade "má", daí ser denominada distopia (ummau lugar, o lugar da distorção) ou desutopia, umavez que o Mundo Novo imaginado estava longede ser "perfeito", já que a palavra utopia está as-sociada à possibilidade de um mundo ideal.

O exagero de sua ficção naquele momentohistórico parece, em alguns casos, possível de ser

32 • EDUCAÇÃO EM DEBATE • FORTALEZA. ANo 25 • V. I • Nll 45 • 2003

Page 2: REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVEL Considerações Iniciais … · Resumo Palavras-Chave: Trabalho - Ficção - Educação. Abstrcct: Reflecting on an admirable new world ... 1915, na

levado a efeito nos dias de hoje e funcionou comouma espécie de denúncia antecipada, uma vezque a essência de suas previsões pode ser consi-

erada atual, basta compararmos as experiênciasa área de biotecnologia, como clonagens, deter-inações genéticas, entre outros processos em

andamento que oferecem base tecnológica paramaterializar o Mundo Novo de Huxley.

A obra analisada suscita a discussão de ques-

ões centrais no âmbito da educação, das novastecnologias, dos modos de produção, bem sobreo cenário atual das relações sociais altamenteecnologizado.

as que Mundo é esse?

Em 1932, o inglês Aldous Leonard Huxleyescreveo livro "Admirável Mundo Novo", visto porcríticos e outros intelectuais da época, como uma"utopia/ficção". Huxley era um homem da classearistocrática inglesa, considerado politicamenteconservador, que sempre viveu numa ambiênciaprivilegiada e como todo filho desta aristocraciasonhava em fazer medicina. Contudo, por proble-

as de saúde! formou-se em jornalismo.Cabe mencionar que sua obra teve grande

influência sobre o público a partir das primeirasécadas do século XX. Em "Admirável Mundoovo", o coletivismo e a passividade do traba-dor derivam do desenvolvimento deturpado da

ciência e da tecnologia, num cenário pessimistasobre o futuro do trabalho(SILVA, s/d).

Na obra, o autor descreve uma sociedade doro na qual o Estadotem o domínio total da vida

dos indivíduos a ponto de ser o grande pai e mãee todos", num mundo onde são controlados asões e os sentimentos das pessoas. Um controlesociedade determinado bio-psico-socialmente.

É perceptível que o objetivo do autor era te-uma crítica aos instrumentos de dominação dos

ey ficou quase cego e este foi um dos inativos pelosl:ICõiol5 ele abandonou os estudos no campo médico para se de-

ao jornalismo.mais tarde Orwell, na obra 7984, uma obra da mesma

, fala do "grande irmão'.

regimes totalitários emergentes naquele momentohistórico e ao modelo fordista de produção indus-trial. Paraconseguir tal façanha, o mesmo imaginaum sistema de produção de seres humanos, gene-ticamente modificados em incubadoras especiais,predestinados a determinadas condições sociais.

Um Mundo em que o Estado eleva sua vo-cação totalitária ao mais alto nível fazendo comque o indivíduo esteja condenado desde a con-cepção e habituado a não pensar por conta pró-pria. Um indivíduo sem livre-arbítrio e semconsciência que se revela convenientemente adap-tado àssuasfunções pré-determinadas e, com baseem tecnologias de condicionamento, sente-se as-sim "feliz".

O autor, como homem de seu tempo, foide certo modo porta-voz de um momento muitopeculiar. A década de trinta, principalmente naEuropa, estavaenvolta num clima político bastanteconflituoso. De um lado, viam-se tomando formaas ideologias de governos autoritários como o fas-cismo e o comunismo, responsáveis pelosurgimento de grandes exércitos constituídos dehomens iguais, na forma de vestir e de se colocar,todos enfileirados, muito bem treinados, discipli-nados e com a mesma idéia: vencer o estado ini-migo. Homens sem pai e mãe, pois o Estado erapai e mãe.

Por outro lado, notadamente no campo daciência que se encontrava em ampla expansão,também vinham gradativamente tomando espaçoos grandes avanços científicos da época. A idéiade clonagem humana, ou seja, a produção cientí-fica de milhares de seres iguais uns aos outros eraoutro tema recorrente, de certa forma inspiradopelos avanços da genética, bem como pela laten-te apresentação das fileiras de soldados inteira-mente iguais nas manifestações nazistas.

A capacidade visionária do autor pode serevidenciada pelo fato de o primeiro bebê de pro-veta ter sido gerado somente em 1978 e as ex-periências de clonagem terem sido realizadassomente na década de 1950. Contudo cabe men-cionar que as idéias de clonagem eram bastan-te antigas.

EDUCAÇÃO EMDEBATE. FORTALEZA. ANo 25 • V. I • Nll45 • 2003. 33

Page 3: REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVEL Considerações Iniciais … · Resumo Palavras-Chave: Trabalho - Ficção - Educação. Abstrcct: Reflecting on an admirable new world ... 1915, na

(...) o termo done já tinha sido utilizado emoutras obras de ficção científica. Ele aparece em1915, na coletânea Master Tales of Mystery bythe World's Most Famous Authors of Today,editada por Francis loseph Reynolds. Apesar deter sido cunhado antes na ciência (em 1903 osubstantivo clone é utilizado pela primeira vezpara batizar grupos de plantas exatamente idên-ticos em sua composição genética), os donesirão tomar notoriedade na Iiteratura de fanta-ciência e posteriormente no cinema no qualserão por diversas vezes o tema central do ro-teiro. Essa exploração insistente por parte dacultura pop ao longo do século XX irá instaurá-los definitivamente no imaginário dos povosocidentais". (FRANCO, 2002, p.20). Antes ain-da temos o romance escrito pela inglesa MaryShelley, em 1816 que já teve inúmeras adapta-ções principalmente no cinema.

Na obra em questão, as idéias do processode industrialização exercem grande influência,pois na grande Londres Central todo o trabalhointelectualizado era eliminado do trabalho da fá-brica/empresa e centralizado no departamento deplanejamento. A divisão do trabalho se estabele-cia através da separação do trabalho intelectual,e centralizado no departamento de planejamen-to, e o trabalho braçal. De um lado ficam os quepensam e do outro aqueles que executam o quefoi pensado.

Na sociedade do futuro idealizada pelo au-tor, os bebês eram concebidos, gestados e desen-volvidos numa grande incubadora artificial e emlinha de produção e eram os cientistas do Estadoque controlavam todo o processo de criação depessoas,objetivando à manutenção obcecada pelaestabilidade social. Os sereshumanos produzidoseram classificados em Alfas, Betas, Gamas, DeI-tas e [psilons, ou seja, em castas definidas comcondicionamentos distintos com a intenção de osindivíduos aceitarem e "serem felizes" em suadeterminada posição social.

Referenciando a este determinismo, nas pri-meiras páginas do livro, o Diretor de Incubação eCondicionamento descreve o Centro de Incuba-ção e Condicionamento de Londres Central e ex-

plica o seu funcionamento a uma turma de estu-dantes recém-chegados que estava conhecendo atecnologia empregada na reprodução em série.

ósos condicionamos de tal modo que eles sedão bem com o calor. (...) Nossos colegas lá emcima os ensinarão a amá-Io. (...) é o segredo dafelicidade e da virtude: amar o que se é obriga-do a fazer. Tal é a finalidade de todo o condici-onamento: fazer as pessoas amarem o destinosocial a que não podem escapar. (HUXLEY,1989, p. 19).

Nessa nova sociedade, ou seja, nesseMun-do Novo, tudo é controlado, a exemplo da produ-ção dos sujeitos, na qual a quantidade de oxigêniono cérebro determina qual a casta a que perten-cerá o embrião, seu sexo, bem como sua estatura,gostos, que tipos e cores de roupas irão usar, qualo trabalho a executar, que transporte deverá serutilizado, quais os esportes a praticar, sua resis-tência para o frio ou calor, entre outras condiçõespré-concebidas pela direção do Centro.

O conceito de "produção em série" de bensde consumo, baseado nas linhas de montagem, foiincorporado nacriação de sereshumanos, taiscomomáquinas (em forma e função), herança do modelofordista. Segundoasexplicações do Diretordo ClC6,que no início da narrativa eram feitas aos recém-chegados, tal produção era determinada pelo Pro-cessoBokanovsky que consistia essencialmente emuma série de interrupções do desenvolvimento doóvulo que possibilitava um óvulo germinar, prolife-rar e dividir-se em até 96 germes, que originariamsereshumanos gêmeos idênticos. Ou, na visão doDiretor do ClC, em 96 máquinas.

Noventa e seis gêmeos idênticos fazendo fun-cionar noventa e seis máquinas idênticas! (...)Sabe-se seguramente para onde se vai. - Citouo lema planetário: Comunidade, Identidade,Estabilidade. (HUXLEY, 1989, p.14)

5 CIC - Centro de Incubação e Condicionamento de Londres Cen-tral: local onde ocorria a criação dos habitantes do Mundo Novo.6 Henry Ford foi o inventor de um método de organização dotrabalho para a produção em série e da padronização das peças.Essa técnica, pensada por Ford na década de 1920, transformou,

34 • EDUCAÇÃO EM DEBATE • FORTAlEZA • ANo 25 • V. I • N1l45. 2003

Page 4: REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVEL Considerações Iniciais … · Resumo Palavras-Chave: Trabalho - Ficção - Educação. Abstrcct: Reflecting on an admirable new world ... 1915, na

Para o Diretor do CIC, "o processoBokanovsky é um dos principais instrumentos deestabilidade social" e o lema desse modelo desociedade era "Comunidade, Identidade e Estabi-lidade", caracterizando um mundo altamente con-trolado, no qual a Comunidade é globalizada, semlimites territoriais, constituindo um grande Esta-do Mundial, em que tudo é comum a todos. Nes-se mundo, a Identidade refere-seà igualdade entreos pertencentes às castas (em padrão de vida,vestimentas, funções sociais etc) o que mantém ahomogeneidade e a ordem entre os pares. Já aEstabilidade se refere à satisfação de todas as ne-cessidades dos habitantes em relação à manuten-ção da sua casta e função social.

O ideário liberal declarava a escola comoum direito e condição para todos tornarem-se ci-dadãos, bem como proclamava a bandeira da Li-berdade, Igualdade e Fraternidade? para asociedade em geral. Na sociedade imaginada, tal

ema planetário" satiricamente, apregoava Comu-idade, Identidade e Estabilidade.

O tempo relatado na ficção era o ano de 632"- depois de Ford. Tal referência, bem como ode expressões pelos personagens como "Nos-

Ford" ou "Graças a Ford", indica o referencial. Ocoao qual Aldous Huxley remetia, baseado

eorias de Henry Ford" que materializaram no10 fordista de produção industrial.

Fordismo é um sistema de produção industrialcaracterizado por: um elenco limitado de pro-

. dizer, os trabalhadores em autômatos repetindo a.-=,.... ÇO" o dia inteiro. Apesar de seu caráter desumano,verdadeira revolução no universo industrial e rápida-

~a, da Alemanha à União Soviética, por todas as_~'5 -:cw' nrías mecânicas do mundo. No mundo sindical e

e também entre os intelectuais, o fordismo suscitou=nI1:õI!I;'-.I'I(IIenIas,que artistas e criadores da época muitas ve-JI!!,'iCcc:oaram com indiscutível talento cáustico.

~~ IpeI"l(]'oo, a questão da identidade nacional esteve na~GIdz5; m5CU.5SÕeSe debates em vários países do mundo.

ção não foi muito diferente. O governo e a_p::;;~SEJlCiedade se mobilizaram para estabelecer os respec-Wrl:5.:J::c:I::r.x>sda nacionalidade, visando a concretizar idéi-.-;:;IR:.~!z!:car:Ie,. autonomia e soberania.

emo de Getúlio Vargas, se comparado com•• e=cs, ,.::;:;erio" res, de fato a educação recebe grande irn-_iIirJ"c:a:::ililuü"ld,o para o respectivo êxito político.

dutos estandardizados; métodos de produção demassa; automação usando máquinas dedicadasà produção de um produto determinado; forçade trabalho segmentada responsável por tarefasfragmentadas e especializadas; controle centra-lizado; e organização hierárquica e burocrática(RAGGAT, 1993, p. 23).

Por ter sido um ícone do tecnicismo e dofuncionalismo na época de Huxley, Ford toma olugar de JesusCristo nesta sociedade do futuro. Oaspecto divino e religioso é substituído pela cren-ça em tudo o que é tangível, o que parece de-monstrar a valorização exacerbada da tecnologiae do pragmatismo.

Tal situação pode ser considerada como re-flexo do momento histórico em que se encontra-va o autor. Um período no qual o materialismoe os pressupostos das teorias liberais determina-vam que para ser verdadeiro, tudo deveria teruma razão funcional. O pensamento pragmáticoera a ordem da época. Em termos econômicos, adécada de trinta ainda vivia sob os efeitos da cri-se de 1929 e a América, principalmente os EUA,aparecia como o lugar da liberdade, da felicida-de, onde contraditoriamente as idéias tecnicistasde Henry Ford já estavam bastante solidificadasnas Indústrias"

Como a Inglaterra e outros paíseseuropeusestavam vivendo num mundo pós-guerra, na dé-cada de 30, vários setores sociais da Europa já semovimentavam para evitar o desastre dos gover-nos liberais democráticos, que já não consegui-am solucionar o problema da defesa de suasfronteiras e, principalmente, do avanço dos naci-onalismos extremados provenientes da Alemanhae da Itália (DANTAS, 2000).

Dentro desse turbilhão de fatos, Huxley re-monta, em seu livro, algumas críticas tanto à soci-edade stalinista da utopia soviética, como à novasociedade mecanizada, automatizada e padroni-zada que vinha se desenvolvendo nos EstadoUnidos. Huxley observou e imaginou, dentro daspossibilidades dos governos liberais democráticose dos nacional istas extremados, uma crítica con-tundente a essesmodelos sociais emergentes.

EDUCAÇÃO EM DEBATE. FORTALEZA. ANo 2S • v. I • NQ 4S • 2003. 3S

Page 5: REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVEL Considerações Iniciais … · Resumo Palavras-Chave: Trabalho - Ficção - Educação. Abstrcct: Reflecting on an admirable new world ... 1915, na

No mesmo período histórico em que foi

escrito o livro, o Brasil, estava vivendo as primei-

ras décadas do regime Republicano. Nesse mo-mento histórico se intensificam as iniciativas de

organização dos sistemas públicos de ensino no

Brasil, pois se apregoava que a solução dos pro-

blemas nacionais passava pela educação.

Desse modo, é mediante a educação

institucionalizada que o Estado promove um cres-cente controle sobre seus cidadãos. Esse controle

evidencia-se com o despertar do nacionalismo ea imposição da nacionalização? . O governo bra-

sileiro impulsionado pelo anseio da moderniza-

ção, estrategicamente, interessa-se pela educação,

legislando e criando escolas públicas para pro-mover a divulgação da língua, da história e da

cultura luso-brasileira.A intenção do Estado era de regenerar a

população brasileira, recuperar sua nacionalidade,

tornando-a "saudável, disciplinada e produtiva"

para que fosse incorporada ao processo de indus-trialização. O objetivo era formar os trabalhadores

dentro de uma lógica de disciplinamento que aten-

desse às demandas do mundo do trabalho que es-

tava se desenhando (HYPÓLlTO, 1997, p.34).

As formas de desenvolvimento da organi-

zação escolar assumem cada vez mais um mode-

lo racional de organização, análogo às formas deorganização do trabalho, pensava-se em uma for-

mação tecnicista, produtora e reprodutora de mão-de-obra. Pois a sociedade em processo deindustrialização precisava de uma escola que qua-

lificasse e disciplinasse os futuros trabalhadorespara tarefas especializadas.

Assim, no limiar do século XX, o Brasil in-veste na educação, alvo de estratégias políticas,

sobretudo de governos autoritários'" ao tomarem

conhecimento do poder que a mesma podia exer-

cer perante a sociedade, que estava em transfor-

mação, ou seja se industrializando e urbanizando.

9 Na mecãnica este termo significa "a matéria dos movimentosdos gases e fenômenos dos gases". (FIESC/SENAI, 2002, pg.5)O termo deriva do grego "Pneurna" que significa fôlego, ventoe filosoficamente, a alma".10 Cor dos uniformes dos Betas.

A Hipnopedia - Tecnologia de Adestramento

O contexto relatado acima vai ao encontro

do que Huxley expressou em seu livro com relação

às características relacionadas à seletividade social,no entanto na sociedade imaginada, a escola (Colé-

gio de Engenharia Emocional) não era vista como o

principal meio de aprendizagem e aculturamento

social, já que muitas das questões eram determina-

das antes de os indivíduos nascerem.

Nessa perspectiva, o autor se baseia nas idéi-

as de Skinner e Pavlov para criar os Centros deCondicionamento do Estado, no qual cada ser

humano é educado desde nascença de acordo coma função social e com os valores determinados

especificamente para seu grupo, por meio de es-

tratégias como a hipnopedia, para manipular oespírito, para criar no indivíduo reflexos condici-onados distintos e ensinar para que se conformemcom seu destino e desenvolvam o preconceito

entre as castas.

Na obra, é citada uma sessão de hipnopedia:em um dormitório, no qual as crianças em seus

leitos, durante o sono, aprendiam lições de Cons-

ciência de Classe:

As crianças Alfas vestem roupas cinzentas. Elastrabalham muito mais do que nós porque sãoformidavelmente mais inteligentes. Francamen-te, estou contentíssimo de ser um Beta, porquenão trabalhamos tanto. E, além disso, nós so-mos muito superiores aos Gamas e aos Deltas.(...) Eos Ípsilons são ainda piores. São demasia-do broncos ... (HUXLEY, 1989, p.30).

As mensagens hipnopédicas induziam os

habitantes a reconhecer o segredo da felicidade eda vi rtude como o lema: amar o que se é obriga-do a fazer (HUXLEY, 1989, p.35), condicionando

as massas a desempenharem funções determina-

das na sociedade. A exemplo do que ocorria com

os mecânicos das aeronaves que precisavam tra-

balhar de cabeça para baixo e, mesmo nessa po-sição, se sentirem felizes.

As lições de sexo elementar também eram

aprendidas nas sessões de hipnopedia. O sexo na

36 • EDUCAÇÃOEM DEBATE. FORTAlEZA. ANo 2S • V. I • N1l4S. 2003

Page 6: REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVEL Considerações Iniciais … · Resumo Palavras-Chave: Trabalho - Ficção - Educação. Abstrcct: Reflecting on an admirable new world ... 1915, na

sociedade apresentada é compreendido como algonatural e exclusivamente para saciar prazeres enão mais para procriação, além de conferir umcaráter socializador, já que tudo pertence a ta-dos. Considerados uma fonte de prazer que deveser suprida desde a mais tenra idade, os jogos eró-ticos eram introduzidos no cotidiano dos indiví-duos desde seu nascimento.

As lições das Salas de Condicionamentoeopavloviano ocorrem por meio da repetição. É

perceptível que essas lições, repetidamentereproduzidas, estabeleciam a condição de umaverdade absoluta. Cem repetições três noites porsemana, durante quatro anos, declara um especi-alista em hipnopedia, e sessenta e duas mil repe-tições criam uma verdade (HUXLEY, 1989, p.47).

Nesse processo de transmissão cultural deaber hipnopédico, a leitura como uma atividade

individual era proibida, pois representava o peri-ao de provocar o indesejável descondicionamentodas massas(HUXLEY, 1989). Podemos traçar, aqui,um paralelo com a atitude do venerável Jorge noromance "0 nome da rosa", que escondia dos lei-ores as obras consideradas heréticas, sobretudoquelas que contrariavam os dogmas teocêntricoso período medieval.

No Admirável Mundo Novo, os velhos li-as proibidos eram guardados no cofre-forte do

inete do administrador mundial, denotandoa atitude de forte relação de poder. Havia umae campanha contra o passado, que se mani-va com o fechamento dos museus, destrui-

-o dos manuscritos históricos, supressão dosos publicados antes de 150 D.F, pois o mundo

_ ra é estável e a estabilidade tem seu preço-UXLEY, 1989, p.55).

Além do que, não se pode consumir muitase se fica sentado lendo livros, uma crítica

comportamentos anticonsumitas. Não haviaço para processos muito intensos ou prolon-

os e a ordem era para a manutenção de com-"'Y1·t:lITlentosobedientes, capazes de provocar a

ção de satisfação com estabilidade.O controle pela censura se manifestava tam-

- nas novas edições publicadas. Mustafá Mond,

o administrador mundial para a Europa Ocidental,proibiu a publicação do livro "Uma nova teoriabiológica" e ordenou que o autor fosse mantidosob vigilância. Issoporque seu livro anunciava que"0 objetivo da vida não era a manutenção do bem-estare sim uma intensificação, um refinamento daconsciência e ampliação da sabedoria" (HUXLEY,1989, p. 60), proposta considerada perigosa e po-tencialmente subversiva, pois se baseavaem idéi-asque poderiam descondicionar os espíritos menosestáveisdas castassuperiores. Além disso, toda or-dem social ficaria desorganizada se os homens sepusessema fazer coisas por iniciativa própria.

A arte também representava um risco à es-tabilidade do sistema vigente, portanto deveria seracorrentada, amordaçada. Assim como a ciência,pois toda descoberta da ciência pura erapotencial-mente subversiva. A ciência era considerada umperigo público.

Os autores das mensagens hipnopédicastambém publicavam seus artigos nos jornais eeram responsáveis pela redação. As palavras sãocomo raios X, uma metáfora para iIustrar o poderpenetrante e manipulador das palavras na forma-ção das ideologias.

Seguindo o contexto do controle social,entre os adultos, era proibido relacionamentoemocional, para tanto os habitantes eram subme-tidos a tratamentos durante suas vidas, como é ocaso do Sucedâneo de Paixão Violenta, que con-trolava os impulsos emocionais que tendiam aapegos pessoais e afetivos. No entanto, suasvidassexuais iniciavam cedo, se tomarmos comoparâmetro a sociedade tradicional e moralista vi-vida pelo autor, na qual a estrutura familiar era decaracterística patriarcal, nuclear, com a culturafeminina voltada para o lar.

Faz-seevidente no texto, a inexistência dequalquer laço familiar no Novo Mundo. Não exis-tia a figura de pai, mãe e irmãos, haja vista a for-ma como eram concebidos, por meio de processoslaboratoriais de incubação artificial, de maneiratécnica e estandardizada. Havia um grande des-prezo pelos valores e sentimentos humanos incu-tidos por meio da hipnopedia.

EDUCAÇÃO EM DEBATE. FORTALEZA. ANo 2S • v. I • N1l4S • 2003. 37

Page 7: REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVEL Considerações Iniciais … · Resumo Palavras-Chave: Trabalho - Ficção - Educação. Abstrcct: Reflecting on an admirable new world ... 1915, na

Outra característica marcante na obra dizrespeito à inserção de uma droga chamada soma,que era distribuída nas fábricas com uma cota di-ária. Não havia efeitos colaterais para doses pe-quenas, assim era comum o uso diário de gramasde soma, proporcionando fuga da realidade e dei-xando as pessoas sentirem-se melhor. Já nas ses-sões hipnopédicas aconselhava-se ingerir somasempre que a pessoa se sentisse infeliz, insegura,com medo, ou qualquer outro sentimento que nãofosse a felicidade plena. O uso constante dessadroga evitava angústias e espaços para questio-namentos que poderiam levar a indignação e apossíveis esperanças de transformação.

A droga também era utilizada pela políciaem raros momentos de conflito, nos quais os poli-ciais vaporizavam nuvens de soma e colocavama funcionar a Caixa de Música Sintética Portátil,com mensagens de paz. Se necessário fosse, usa-vam pistolas de água com forte anestésico. Apósalguns minutos, com o efeito do soma, todos seabraçavam e se beijavam de acordo com as men-sagensouvidas.

o Cotidiano no Admirável Mundo Novo

É oportuno também observar que Huxleyapresenta em sua obra a história da dois mundos,um dos quais denominado mundo civilizado, o dosgrandes Estados Mundiais e o outro da "Reservados Selvagens", o mundo dos não-civilizados.

O mundo civilizado representadoé o mundoda tecnologia, dos grandes Centros de Condiciona-mento, dos bebês bokanovsky, das mulheres pneu-máticas 11, dos betas, deltas, alfas, dos cinemassensíveis,dos esportes eletromagnéticos, do soma.

Já o mundo dos não civilizados, a reservados selvagens, é o abominável mundo velho. Omundo dos índios, selvagens, da falta de higiene,de ritos tribais de iniciação, de animais, de huma-nos que envelhecem, adoecem e não têm assis-

11 Mais informações, ver ROCHA, Ruth. A escola de vidro.SP: Ática.

tência por parte do Estado. É o mundo da afeti-vidade, da religiosidade, da liberdade. Vale lem-brar que até o nome dado por Huxley a essareserva reflete o que ela representa para o "Admi-rável Mundo Novo", Malpaís, ou seja, um paísruim. O povo de Malpaís também estava predes-tinado, assim como o povo civilizado, só que emcondições bastante diferenciadas, a ficar ondeestava. Quem nascia na reserva dos selvagensmorria na reserva dos selvagens.

A narrativa ganha o seu auge no momentoem que essesdois mundos se entrecruzam, o ve-lho e o novo mundo, quando o autor relata a his-tória de Linda, uma moça civilizada que acabavivendo na reserva por estar grávida do diretor docentro. Após muitos anos, seu filho já jovem édescoberto por um casal civilizado que visitavaMalpaís e leva o Selvagem John com sua mãe devolta a Londres Central.

Nesse momento específico no AdmirávelMundo Novo, o abominável mundo velho pedepassagem e o que ocorre é muito semelhante aoque testemunhamos hoje. Choques de culturas,mas com a diferença de que os civilizados deHuxley apenas viam nos selvagens a imagem deum passado que eles não queriam sequer recor-dar. O hoje, o novo é exatamente o tempo da fe-licidade, ainda que uma felicidade proporcionadapelo soma.

Ao contrário, os selvagens jamais sairiamdos limites da reserva, [ohn foi um caso excepcio-nal, digno de estudos, visto ser filho de pais civili-zados por mais incivilizado que parecesse aosolhos do Administrador Mundial de Londres.

Conhecer como o selvagem sedesenvolveue como percebia esseMundo Novo, podia de certomodo dar indicativos para que o sistema procu-rasseavançar cada vez mais no sentido de buscarmeios para manter a "comunidade, a identidadee a estabi Iidade".

[ohn fora criado em Malpaís, em culturasmistas ouvindo histórias que Linda contava da ci-vilização e das histórias contadas pelos anciãos,religiosas e indígenas; aprendeu conceitos civili-zados proporcionados pela mãe, bem como

38 • EDUCAÇÃO EM DEBATE • FORTAlEZA • ANo 25 • V. I • N° 45. 2003

Page 8: REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVEL Considerações Iniciais … · Resumo Palavras-Chave: Trabalho - Ficção - Educação. Abstrcct: Reflecting on an admirable new world ... 1915, na

ensinamentos de como trabalhar a argila, fazer arcoe flecha, caçar, plantar, etc. Apesar do analfa-betismo local, linda o ensinou a ler, utilizando li-vros de Shakespeare(um achado trazido por Popé,amante de linda). John aprendeu a se expressarutilizando citações dessasobras, vivendo em suaexclusão social, pois os moradores indígenas nãoaceitavam as diferenças físicas e nem morais. Elesviam linda como uma prostituta e as mulheres tra-ídas da vila a surravam com freqüência.

Quando lohn chegou à civilização, deslum-brou-se e exclamou: "Como há aqui seres encan-ados! Como é bela a humanidade! Oh! Admirável

mundo novo •.." (Shakespeare, Tempest, vol 1,p.130). Porém, apesar de seu deslumbramentoinicial, John não se adaptou. As pessoas daqueleespaço não entendiam suas idéias, nem acredita-vam nas suas teorias infames, baseadas nas obras

e Shakespeare e no mundo velho. Também nãoconseguia amar, pois apesar de se encontrar apai-onado por uma mulher civilizada, ela não

correspondia, nem tampouco entendia a real im-rtância do amor, devido ao grande choque en-culturas.

Huxley encontra um fim dramático para- u personagem principal, em meio às exclusõessociais, sofridas em ambos os mundos. Depoisda morte da mãe (por excesso de soma) e do afas-

mento de seus dois únicos amigos, o Selvagemse exclui e albergou-se em um farol abandona-

o, em busca da proteção de sua privacidade,identidade e liberdade, conceitos desconhecidos

o mundo civilizado.O autor priva os personagens da liberdade

escolha, da liberdade de querer ser alguém. erente do que lhe foi imposto, de querer cres-

na vida. A vida individual é anulada pela vidaletiva. Porém, abre espaço para que se reflitabre variadas questões, num debate travado en-o Administrador e o Selvagem sobre arte, soli-

ão, ciência, saúde perfeita, Deus (que seifesta na ausência) e outros.

O Administrador apóia-se em um livro dae cita um trecho: "Nós não pertencemos a

• mesmos, assim como não nos pertence aqui-

10 que possuímos. Não fomos nós que nos fize-mos, não podemos ter a jurisdição suprema sobrenós mesmos. Não somos nossos próprios senho-res." (HUXlEY, 1989, p. 217). lohn não concor-dava com as afirmações do Administrador e porfim reclamou o direito de ser infeliz, ou seja, deficar feio, velho e impotente, mas de acreditar emDeus, na arte, na bondade, no perigo, no pecado,nos sentimentos individuais e na própria nature-za. No entanto, como são valores incompatíveisnaquela sociedade, lohn prefere a morte e se en-forca, em meio a sua solidão.

O circo estava montado e a multidão assistiasarcasticamente à destruição dos valores humanosdo Selvagem, compulsivamente e unanimemente,o que é próprio dos métodos de condicionamentohipnopédico. Tal desejo obsessivo e cruel pode sercomparado ao sucesso dos atuais programastelevisivos de auditório no qual as pessoassão ex-postasao ridículo, perante uma platéia, e transmiti-dos em rede nacional com alto índice de audiência.

Programas televisivos cada vez mais impreg-nados de banalidades que fazem os espectadorescaírem no exibicionismo delirante de nossa nuli-dade (BAUDRlllARD, 2001), construindo discur-sos midiáticos sem escrúpulos, sem ética,notadamente perversos.

O caráter global desse fenômeno televisivo- sobretudo os relativos aos reality shows, esti-mula a especulação, frequentemente na chavemoral (HAMBURGER, 2002). São alvos de críticapor sua natureza exploradora de humilhações depessoas reais diante das câmaras, valorização dedetalhes escatológicos do cotidiano, pelas cenasaberrantes e sensacionalistas que no conjunto vi-olam a dignidade humana .

Um Pouco do AdmirávelllMundo Novo" noNosso Mundo não tão Novo Assim ...

Traçando um paralelo entre as idéias deAldus Huxley, ao escrever o livro O AdmirávelMundo Novo, com a nossa realidade, mais desetenta anos depois de escrito, verificamos que é

EDUCAÇÃO EM DEBATE • FORTALEZA • ANo 25 • v. I • Nll45 • 2003. 39

Page 9: REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVEL Considerações Iniciais … · Resumo Palavras-Chave: Trabalho - Ficção - Educação. Abstrcct: Reflecting on an admirable new world ... 1915, na

possível detectar muitas semelhanças no que tan-ge ao contexto em que viviam seus personagens.Ao analisarmos nossa estrutura social cristalizadaem hierarquias sociais, observamos que nossascrianças ainda são educadas em métodos de re-petição, com atividades sem sentido e reflexõesque as fazem aceitar essa sociedade dividida emclasses sem questionamento. Dependendo do ta-manho da conta bancária de seus pais, esse tipode educação pode ser diferente, mas a ênfase nahierarquização aparentemente não se modifica.

Os noticiários jornalísticos e os discusosmidiáticos em geral reforçam essa ideologia doapagamento das diferenças sociais, dando a sensa-ção de que vivemos numa sociedade homogêneae sem contradições. As mídias são mecanismosconcretos que engendram a liberdade formal daspessoas, estimulando o controle excessivo exer-cido pelas forças do capital. Como afirmam Marxe Engels (1998, p. 48): A classe que dispõe dosmeios da produção material dispõe também dosmeios da produção intelectual, de modo que opensamento daqueles ao quais são negados osmeios de produção intelectual está submetidotambém à classe dominante.

A situação apresentadapelo autor ao colocaro mundo "maravilhoso" em contato com o mundoselvagem,por meio dospersonagensLenina,BemardMarx e lonh (O Selvagem)nos remetea pensar,comoSabbatin expõe, se em 2010 não vamos olhar paraas metrópoles dos paísessubdesenvolvidos e estu-dar o comportamento dos selvagens e unificar ostrabalhadores não especializados de cáqui?12.Oumesmo se atualmente isso não acontece quando,por exemplo, alunos de escolasprivadas organizamvisitas a escolaspúblicas e estaspor susvez, visitamas escolas indígenas.

O conflito entre os dois mundos econômicosque Aldous Haxley tentou fundir na forma de umanova ordem social e econômica foi vivenciado

12 Em referência a essatransição, BIANCHETII (2001) preconi-za a existência de dois profissionais: o trabalhador analógico(o especialista) e o trabalhador digital (ou generalista especia-lista). Mais informações consultar: BIANCHETII, Lucfdio. Dachave de fenda ao leptop: tecnologia digital e novas qualifica-ções:desafios à educação. RJ: Vozes, Unitrabalho e UFSC,2001.

durante a estruturaçãoe desestruturaçãodessesdoismundos (o capitalista e o socialista) e o surgimento,em detrimento a essasdivisões, de uma Nova Or-dem Mundial chamada de G/obalização, em que apolítica generalista na qual "tudo é de todos" éapregoada (desdeque não fira a ordem social ondeo tudo dos paísesdesenvolvidos não passaa ser detodos dos outros países, mas a recíproca contráriadeve ser verdadeira, como é o caso que se temnotícia do que tem sido ensinado às crianças dosEstadosUnidos que recebem em seus livros didáti-cos - um condicionamento hipnopédico - o mapado Brasil já sem o Estado da Amazônia, conside-rando que este é de Propriedade Mundial).

Sobre o condicionamento para a aceitaçãodas regras sociais que cada indivíduo era subme-tido antes mesmo de nascer, Mustafá Mond, aoconversar com o Selvagem, diz que mesmo de-pois da decantação, ele fica sempre dentro de umbocal, um bocal invisível de fixações infantis eembrionárias (HUXLEY, 1989, p. 271), o que RuthRocha representou com esplendor em uma de suashistórias infantis denominada A Escola de Vidro,na qual os alunos eram condicionados a espaçosreduzidos por uma questão de ordem.

Dentro da realidade social de AldousHuxley a ciência era tão temida quanto a arte e ahistória. Pensando na estabilidade, Mustafá Monddisse que toda descoberta da ciência pura é po-tencialmente subversiva: até a ciência deve, àsvezes, ser tratada como um inimigo possível(HUXLEY, 1989, p. 272). e que as instruções cien-tíficas que a população recebia nos Colégios po-deria ser comparada a um livro de receitas no qualsó o cozinheiro-chefe poderia autorizar o acrésci-mo ou retirada de algum elemento.

Se remetermos para a sociedade atual, po-deríamos comparar tal situação, com o que acon-tece no sistema educacional atual, no qual asuniversidade públicas, que são uma das poucasinstituições que produzem conhecimento e ciên-cia sem um vinculo utilitário ligado ao mercadode trabalho, estão sendo sucateadas. No qual areforma educacional, imposta pela legislação, pro-põe o oferecimento de cursos de graduação uni-

40 • EDUCAÇÃO EM DEBATE • FORTALEZA • ANo 25 • V. I • Na 45. 2003

Page 10: REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVEL Considerações Iniciais … · Resumo Palavras-Chave: Trabalho - Ficção - Educação. Abstrcct: Reflecting on an admirable new world ... 1915, na

versitária (os tecnólogos) com tempo de até doisanos de duração ficando os estímulos a pesquisasvinculados à sua atuação no mercado de traba-lho, bem como ao seu interesse, já que não confi-gura como uma obrigatoriedade dos currículos.

Os indivíduos mais interessados e curiosose que têm em seu histórico de vida, uma condi-ção social privilegiada (salvo algumas exceções)são os que têm possibilidade de dedicar-se umpouco mais aos estudos e quem sabe entrar em

ma universidade pública.No Novo Mundo, os profissionais que deti-

nham o conhecimento eram colocados em car-os de poder (até por questões de manter a ordem

social) ou eram encaminhados para uma ilha, umgar para o qual, segundo Mustafá Mond, eram

iadas todas as pessoas que, por esta ou aque-razão, adquiriram demasiada consciência de

sua individualidade para poderem adaptar-se àida comunitária; todas as pessoas a quem a orto-

doxia não satisfaz, que têm idéias próprias e in-dependentes; todos aqueles, numa palavra, quesão alguém (HUXLEY, 1989, p.275).

Tais afirmações nos remetem às décadas de960170, quando no Brasil se procedia a uma dasofundas cisões entre o conhecimento e a cons-

iência social, quando durante o governo militarindivíduos que pensavam socialmente neste

íseram cassadose os de "maior pericu losidade"deportados para algumas "ilhas", onde teri-

liberdade de pensar sem tumultuar a estabili-e social imposta na época.

Atualmente, iniciamos a nadar contra cor-novamente, quando estimulamos os sonhos

- icos e desutópicos mesmo que enfrentandoos preconceitos e incompreensões que o

gem sofreu quando tentou, dentro do queiderava correto, impedir o consumo de soma,ue segundo ele era um veneno para a alma,

- como para corpo (HUXLEY, 1989, p.256).O ser pensante e integral tem sido alvo de

•.•..••.-..:u discussões. No "Mundo Novo", cada pes-- era especializada como uma formiga, vivendo

ente para exercer a profissão a que foi des-antesde nascer. Hoje, ao mesmo tempo que

a educação é comprimida em um menor tempo(porque desta forma é conveniente ao mercado detrabalho), esta mesma "entidade" espera um indi-víduo pensante, com certas competências desen-volvidas, disposto a mudanças e pronto paraenfrentar um trabalho tecnologicamente em desen-volvirnento!". Essemesmo indivíduo, ao mesmotempo que é solicitado a pensar e refletir com ointuito de gerar mudança, é podado no que tangea sua vida individual, uma das coisas mais valiosasque o homem conquistou com o seu desenvolvi-mento evolutivo, tem sido anulada pela vida cole-tiva, pelo estímulo e valorização da equipe.

Inegavelmente, Aldous Huxley olhou paraalém do seu tempo e com isso nos permite utili-zar este mesmo olhar futurista para que se perce-ba como chegamos até aqui e para onde estamosrealmente caminhando.

Assim como na história imaginada porHuxley, vivemos hoje, século XXI, num grandeestado mundial, comandado por aqueles que de-têm o poder econômico. ão são 10, como naera de 632 d.F. Por incrível que pareça são aindamenos, se pensarmos no Grupo dos G8.

Sobre o mundo civilizado e a reserva dosselvagens, podemos estabelecer nos dias atuais umparelelo entre a pujança dos países de primeiromundo com as crescentes desigualdades nos paí-ses periféricos. Do mesmo modo, pode-se pensarnaselites fortemente edificadas e segurase, do outrolado, na imensa massados excluídos residente nosfrágeis aglomerados de barracos nas periferias.

Sobre o soma, podemos fazer uma compara-ção com os inúmeros expedientes utilizados pelapopulação de nossas sociedades contemporâneascomo instrumentode "amortização"dosefeitosprovo-cados pelas desigualdades sociais, pela desu-manização das relaçõese por outras manifestaçõesresultantes de um entorno político autoritário eexcludente, e de fortesapelosao consumo. Aqui, noVelho Mundo, usamosas drogas lícitas, ilícitas e ascrescentesopções de antipressivose ansiollticos, es-sesúltimos consideradosos carros-chefesda "indús-tria da felicidade", metáfora usada para designar osbilionários negócios dos laboratórios farmacêuticos.

EDUCAÇÃO EM DEBATE • FORTALEZA • ANo 25 • V. I • Na 45 • 2003. 41

Page 11: REFLETINDO SOBRE UM ADMIRÁVEL Considerações Iniciais … · Resumo Palavras-Chave: Trabalho - Ficção - Educação. Abstrcct: Reflecting on an admirable new world ... 1915, na

Podemos considerar, ainda, substitutos dosoma todos os produtos midiáticos embaladose distribuídos intensamente pelos meios de co-municação de massa que conduzem os espec-tadores a um percurso diário e banal demensagens descontextualizadas, efêmeras emedíocres que resultam na própria nulidadedaquilo que se supõe ser mais caro à humani-dade, a inteligência.

Referências Bibliográficas

BAUDRILLARD,Jean.BanalidadeMortífera. FolhadeSãoPaulo, SP,10 de jun. 2001. Caderno Mais, p.12.

FRANCO, Edegar. Seres Híbridos & Clones: daliteratura para as telas, das telas para a realidade.Disponível em < http://www.comciencia.br>Acessado em 03/08/2002.

HACHETTE. Enciclopédia digital. França: 1997.CD-ROM produzido por Éditions Hachette.

HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. 17a

edição. São Paulo: Globo, 1989.

RAGGAT, P. "Post-fordism and distanceeducation: a flexible strategy for change", in OpenLearning, vol. 8, n? I, 1993.

SILVA, Carlos Eduardo Linda da. O caminho dasutopias. Artigo de jornal (fontee datadesconhecidas)

42 • EDUCAÇÃOEM DEBATE. FORTAlEZA. ANo 2S • V. I • ND 4S • 2003