REFLEXÕES SOBRE O ROMANCE MODERNO - ROSENFELD

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anatol rosenfeldTEXTO/CONTEXTO I

~\\,~~ ~ EDITORA PERSPECTIVA

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5" ediçãoISBN 85-273-0073-7

Direitos reservados àEDITORA PERSPECTIVA S.A.Avenida Brigadeiro Luís Antônio, 302501401-000 - São Paulo - SP -BrasilTelefone: (011) 885-8388Fax: (011) 885-68781996

Quando a alma fala, já não fala a alma.

FRIEDRICH SCHILLER

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REFLEXÕES SOBRE O ROMANCE MODERNO

1Estas considerações sobre o romanceA moderno

I'lll.ú visam a uma apresentação sistemática ou históri-ca, por mais rudimentar que seja, de um vasto sétord~ literatura atual. O que propomos, nestas páginas,é um jogo de reflexões, espécie de diálogo iUdico .como leitor, baseado numa série de hipóteses. possivelmen-te fecundas.

A hipótese básica t.:mque nos apoiamos é a supo-sição de que em cada fase histórica exista certoZeitgeist, um espírito unificador que se comunica atodas as manifestações de culturas em contato, natu-ralmente com variações nacionais. Falamos nestas

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páginas da "cultura ocidental", não tomando em con-ta as diversificações naciclDais. . Supomos, pois, quemesmo numa cultura muito complexa como a nossa,com alta especialização e autonomia das várias esferas- tais como ciências, artes, filosofia - não só hajainterdependência e mútua influência entre esses cam-pos, mas, além disso, certa unidade de espírito e sen-timento de vida, que impregna, em certa medida, tOdasestas atividades.

A segunda hipótese sugere que se deva conside-rar, no campo das artes, como de excepcional impor-tância o fenômeno da "desrealização" que se observana pintura e que, há mais de meio século, vem sus-citando reações pouco amáveis no grande público. Otermo "desrealização" se refere ao fato de que a pintu-ra deixou de ser mimética, recusando a função de re-produzir ou copiar a realidade empírica, sensível. Isso,sendo evidente no tocante à pintura abstrata ou não--figurativa, inclui também correntes figurativas comoo cubismo, expressionismo ou surrealismo. Mesmoestas correntes deixaram de visar a reprodução maisou menos fiel da- tealidade empírica. Esta, no expres-sionismo, é apenas "usada" para facilitar a expressãode emoções e visões subjetivas que lhe deformam aaparência; no surrealismo, fornece apenas elementosisolados, em contexto insólito, para apresentar a ima-gem oDÍrica de um mundo dissociado e absurdo; nocubismo, é apenas ponto de partida de uma reduçãoa suas configurações geométricas subjacentes. Em todosesses casos podemos falar de uma negação do realis-mo, se usarmos este termo no sentido mais lato, de-signando a tendência de reproduzir, de uma forma es-tilizada ou não, idealizada ou não, a realidade apreen-dida pelos nossos sentidos. Há interpretações diame-tralmente opostas deste fenômeno. Marcel Brion, porexemplo, baseado nas teorias de Worringer, consideraa abstração (e o anti-realismo) como manifestação cor-

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riqueira, freqüente na história. de um sentimento devida religioso ou pelo menos espiritualizado. "Só apintura abstrata pode dar expressão ao que pela suaprópria essência é não-figurativo: a um estado psíqui-co." Já o católico Hans Sedlmayr considera a arteabstrata (e moderna em geral) um fenômeno úriico nahistória, uma revolução "como antes nunca existiu".E além disso julga esta arte profundamente irreligio-sa por nela não se vislumbrarem outros valores queos puramente estéticos e por tornar-se assim a própriaarte em ídolo.

Abstendo-nos de tais interpretações extremas, ve-rificamos apenas o fato da abstração, atribuindo-lhegrande importância. Desse fato seguem, ou a ele seligam, vários momentos de igual importância: o serhumano. na pintura moderna, é dissociado ou "redu-zido" (no cubismo). deformado (no expressionismo)ou eliminado (no não-figurativismo). O retrato de-sapareceu. Ademais, a perspectiva foi abolida ou so-freu, no surrealismo. distorções e "falsificações". Sobreeste fato há muitas especulações fascinantes. A pers-pectiva central, eliminada pela pintura moderna, surgiuno Renascimento; a perspectiva grega, diversa da re-nascentista, foi introduzida na época dos sofistas, noséculo V a.c. Como se sabe, a pintura egípcia ou apintura européia medieval - para dar só estes exem-plos -- não conheciam ou não empregavam a pers-pectiva. As hipóteses sobre esse curioso fenômeno ten-dem a considerar provável que a. perspectiva seja umrecurso para a conquista artística do mundo terreno,isto é. da realidade sensível. f: característica típicade épocas em que se acentua a emancipação do in-divíduo, fenômeno fundamental da época sofista e re-nascentista.

A perspectiva cria a ilusão do espaço tridimen-sional. projetando o mundo a partir de uma consciên-cia individual. O mundo é relativizado, visto em rela-

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ção a esta consciência, é constituído a partir dela; masesta relatividade reveste-se da ilusão do absoluto. Ummundo relativo é apresentado como se fosse absoluto.t uma visão antropocêntrica do mundo, referida àconsciência humana que lhe impõe leis e óptica subje-tivas. Na filosofia ocidental, esta constituição domundo a partir da consciência humana surge pela pri-meira vez com os sofistas: "O homem é a medida detodas as coisas" (Protágoras). A visão perspectívicaressurge depois na filosofia pós-renascentista com Des-cartes que pelo menos parte do cogito, supondocomo única certeza inabalável a do eu existente (é apartir dele que Descartes reconstrói o mundo desfei-to pela dúvida). E encontrou sua expressão máximaem Kant que projeta o mundo dos "fenômenos" -isto é, o mundo como nos aparece, único a que tería-mos acesso - a partir da consciência (não importa,neste contexto, que não se trata de uma consciênciaindividual) .

t evidente que a visão perspectívica seria impos-sível na Idade Média. Como a Terra é imóvel, fixano centro do mundo, assim o homem tem uma posi-ção fixa no mundo e não uma posição em face dele.A ordem depende da mente divina e não da humana.Não cabe ao homem projetar a partir de si um mundode cuja ordem divina ele faz parte integral, que ele ape-nas apreende (em parte) e cuja constituição não de-pende 'das formas subjetivas da sua consciência. Nomomento em que a Terra começa a mover-se, essaordem parece fadada à dissolução. A reviravolta co-perniciana é. seguida de outra, no dizer de Kant: jánão é o mundo que prescreve as leis à nossa cons-ciência, é esta que prescreve as leis ao mundo. Antesde tudo, prescreve-lhe as perspectivas de espaço e tem-po, formas subjetivas da nossa consciência, mercê dasquais projeta u realidade sensível dos fenômenos.

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Nossa segunda hipótese resulta, portanto, naafirmação de que a pintura moderna - eliminando oudeformando o ser humano, a perspectiva "ilusionista"e a realidade dos fenômenos projetados por ela - éexpressão de um sentimento de vida ou de uma atitu-de espiritual que renegam ou pelo menos põem em dú-vida a "visão" do mundo que se desenvolveu a partirdo Renascimento. Merece, aliás, ser salieI!tado que anegação do ilusionismo é particularmente bem caracte-rizada no teatro. Este, ao abandonar a partir dos iní-cios do nosso século as convenções tradicionais, o pal-co à italiana, a imitação minuciosa da vida empírica,tal como visada pelos naturalistas, começa a se con-fessar teatro, máscara, disfarce, jogo cênico, da mes-ma forma como a pintura moderna se confessa planode tela coberta de cores, em vez de simular o espaçotridimensional, volumes e figuras. O crítico teatral S.Melchinger ressalta com precisão que, da mesma for-ma como o desenvolvimento da pintura levou do fe-nômeno individual "árvore" à linha ou cor puras ouà organização abstrata da superfície, assim o desen-volVImento do teatro conduz à reconstituição dosseus fenômenos específicos: do Ludus (jogo) queprecisamente não é a realidade, da peça, que não é avida, da cena, que não é o mundo.

O palco à italiana era tipicamente um palco pers-pectívico. A cena moderna, "espacial", sem caixa depalco, cena que faz parte da sala de espetáculos, semseparar-se dela pela moldura que a "enquadra" e cons-titui como mundo distinto, ~ nitidamente aperspectí-vica. Há uma interpenetração entre o espaço cênico eo espaço empírico da sala que borra a perspectiva.Resultado semelhante decorre dos teatros de arena.

Recorrendo à nossa primeira hipótese da unida-de espiritual das fases históricas, chegamos à nossa ter-ceira hipótese: tais alterações profundas, verificadasna pintura (e também nas outras artes), devem, de

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um ou outro modo. manifestar-se também no roman-ce, embora neste campo seja bem menor o número depessoas que se deram conta de modificações semelhan-tes àquelas que na pintura provocaram verdadeiros es-

. cândalos. De fato, as alterações ocorridas no romao-ce não "dão tanto na vista" como as de uma arte vi-sual. Além disso, o mercado de romances é abastecidoem escala muito maior por obras de tipo tradicional.

O valor das nossas hipóteses mede-se pela fertili-dade da sua aplicação, pelos esclarecimentos que elasporventura são capazes de oferecer no campo da lite-ratura e pela iluminação que certas interpretações, co-lhidas destarte no romance, poderão por sua vez lan-çar sobre a pintura.

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Nota-se no romance do nosso século uma modi-ficação análoga à da pintura moderna, modificaçãoque parece ser essencial à estrutura do modernismo.A eliminação do espaço, ou da ilusão do espaço, pa-rece corresponder no romance a da sucessão temporal.A cronologia, a continuidade temPoral foram abala-das, "os relógios foram destruídos". O romance mo-denio nasceu no momento em que Proust, Joyce, Gide,Faulkner começam a desfazer a ordem cronológica,fundindo passado, presente e· futuro.

Fenômeno semelhante ocorre no teatro com aPeça de Sonho, de Strindberg. De um modo geralé com o grande sueco e com Pirandello que se iniciano teatro a destruição do espaço cênico fechado, pro-cesso que acompanha a superação da mecânica clássi-ca e da matemática euclidiana. Com a "teoria da re-latividade cênica", espaço e tempo fictícios começama oscilar e pelas paredes rotas do palco penetra o mito,a mística, o irreal, enquanto a psicologia profunda

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faz estremecer os planos da consciência, impregnandoa realidade de elementos oníricos.

Com isso, espaço e tempo, formas relativas danossa consciência, mas sempre manipuladas como sefossem absolutas, são por assim dizer denunciadascomo rdativas e subjetivas. A consciência como quepõe em dúvida o seu direito de impor às coisas - eà própria vida psíquica - uma ordem que já não pa-rece corresponder à realidade verdadeira. A dificul-dade que boa parte do público encontra em adaptar-sea este tipo de pintura ou romance decorre da circuns-tância de a arte moderna negar o compromisso comeste mundo empírico das "aparências", isto' é, com omundo temporal e espacial posto como real e absolu-to pelo realismo tradicional e pelo senso comum. Tra-ta-se, antes de tudo, de um processo de desmascara-mento do múndo epidérmico do senso comum. Reve-lando espaço e tempo -- e com isso o mundo empíricodos sentidos - como relativos ou mesmo como apa-rentes, a arte moderna nada fez senão .reconhecer oque é corriqueiro na ciência e filosofia. Duvidandoda posição absoluta da "consciência central", ela re-pele o que faz a sociologi~ do conhecimento, com suareflexão crítica sobre as posições ocupadas pelo sujei-to .cognoscente:

O fundamentalmente novo é que a arte modernanão o reconhece apenas tematicamente, através de umaalegoria pictórica ou a afirmação teórica de uma per-sonagem de romance, mas através da assimilação des-ta' relatividade à própria estrutura da obra-de-arte. Avisão de uma realidade mais profunda, mais real, doque a do senso comum é incorporada à forma total daobra. ~ só assim que essa visão se toma realmenteválida em termos estéticos.

~ absurdo negar à arte tradicional o direito devida, já que vastos setores do público lhe dão francapreferência. No entanto, tem-se diante dessas manifes-

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tações a impressão de que não fazem, por inteiro, par-te do nosso tempo. t apenas na sua temática que to-mam conhecimento das transformações da nossa épo-ca. Estas não atingiram ao âmago, às formas de ex-pressão.. Com os aviões de Santos Dumont ou dosirmãos Wright não se pode empreender o vôo cósmico.

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Já no século passado, Goethe reconheceu a extre-ma subjetividade e relatividade do tempo (e SantoAgostinho muitos séculos antes). Verificou no roman-ce Afinidades Eletivas que a vivência subjetiva do tem-po nada tem que ver com o tempo dos relógios. Isso,porem, e afirmado apenas em termos de uma reflexãogeral. () fato nao é transformado em experiência.

Sabemos que o homem não vive apenas "no" tem-po, mas que ti tempo, tempo nãó-cronológico. A nossaconsCiência não passa por uma sucessão de momen-tos neutros, como o ponteiro de um relógio, mas cadamomento contém todos os momentos anteriores. Nãopoderíamos ouvir uma sinfonia ou melodia como umatotalidade coerente e significativa se os c;ons anterio-res não se integrassem, continuamente, num padrãototal, que por sua vt:Z nos impõe certas expectativase tensões dirigidas para o futuro musical. Em cadainstante, a nossa consciência é uma totalidade que en-globa, como atualidade presente, o passado e, alémdisso, o futuro, como um horizonte de possibilidadese expectativas.

Muitos dos romances mais famosos do nossoséculo procuram assinalar não só tematicamente e simna própria estrutura essa "discrepância entre o tempono relógio e o tempo na mente" (Virgínia Woolf).Mesmo num romance como AnKlÍstia, de GracilianoRamos, que não adota processos muito radicais, senota intensamente eSsa preocupação: o passado e o

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futuro se inserem -- através da repetição incessanteque dá ao romance um movimento giratório - nomonólogo interior da personagem que se debate nasua desesperada angústia, vivendo o tempo do pesa-delo. A irrupção, no momento atual, do passado re-moto e das imagens obsessivas do futuro não pode serapenas afirmada como num tratado de psicologia. Elatem de processar-se no próprio contexto narrativo emcuja estrutura os níveis temporais passam a confundir--se sem demarcação nítida entre passado, presente efuturo. Desta forma, o leitor - que não teme esseesforço - tem de participar da própria experiênciada personagem. Não conta com as facilidades que,quase sempre, marcam no filme o retrocesso do flashback: este recurso dá ó passado como passado, comocoisa morta, apenas lembrada. Para fazê-lo ressurgirem toda a sua pujança, como presença atual, não sepode narrá-lo como passado. O processo dessa atuali-zação (que foi adotado no filine Hiroshima, meuAmor e, de outro modo, em Ano passado em Ma-rienbad), não só modifica a estrutura do romance,mas até a da frase que, ao acolher o denso tecido dasassociações com sua carga de emoções, se estende, de-compõe e amorfiza ao extremo, confundindo e mistu-rando, como no próprio fluxo da consciência, frag~mentos atuais de objetos ou pessoas presentes e agorapercebidos com desejos e angústias abarcando o futuroou ainda experiências vividas há muito tempo e se im-pondo talvez com força e realidade maiores do queas' percepções "reais". A narração toma-se assim pa-drão plano em cujas linhas se funde, como simultanei-dade, a distensão temporal.

A tentativa de reproduzir este fluxo da consciên-cia - com sua fusão dos níveis temporais - leva àradicalização extrema do monólogo interior. Desapa-rece ou se omite o intermediário, isto é, o narrador,que nos apresenta a personagem no distanciamento

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gramatical do pronome "ele" e da "Vozdo pretérito.A consciência da personagem passa a manifestar-se nasua atualidade imediata, em pleno ato presente, comoum Eu que ocupa totalmente a tela imaginária do ro-mance. Ao desaparecer o intermediário, substituídopela presença direta do fluxo psíquico, desaparece tam-bém a ordem lógica da oração e a coerência da estru-tura que o narrador clássico imprimia à seqüência dosacontecimentos. Com isso esgarça-se, além das formasde tempo e espaço, mais uma categoria fundamentalda realidade empírica e do senso comum: a da causa-lidade (lei de causa e efeito), base do enredo tradicio-nal, com seu encadeamento lógico de motivos e situa-ções, com seu início, meio e fim.

Tais modificações, que de um ou outro modo seligam à abolição do tempo cronológico (corresponden-te à do espaço-ilusão na pintura), decorrem, pelo quese vê, do uso de recursos destinados li reproduzir coma máxima fidelidade a experiência psíquica. Implicamuma retificação do enfoque: o narrador, no afã deapresentar a "realidade como tal" e não aquela reali-dade lógica e bem comportada do narrador tradicional,procura superar a perspectiva tradicional, submergindona própria corrente psíquica da personagem ou toman-do qualquer posição que lhe parece menos fictícia queas tradicionais e "ilusionistas".

Segundo Wolfgang Kayser, a supressão da funçãomediadora do narrador é ruinosa para a ficção. E.que tradicionalmente coube ao narrador, como eixo emtomo do qual revolve a narração, garantir a ordemsignificativa da obra e do mundo narrado. No entan-to, se esta ordem é posta em dúvida, a ausência doorganizador e a supressão de uma ordem ilusória cer-tamente se justificam.

Trata-se, no fundo, de uma radicalização do ro-mance psicológico e realista do século passado; maseste excesso levou a conseqüências que invertem por

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inteiro a forma do romance tradicional. A enfocaçãomicroscópica aplicada à vida psíquica teve efeitos se-melhantes à visão de um inseto debaixo da lente domicroscópio. Não o reconhecemos maia como tal, pois,eliminada a distdncia, focalizamos apenas uma parceladele, imensamente ampliada. Da mesma forma se des-faz a personagem nítida, de contornos firmes e claros,tão típica do romance convencional. Devido à focali-zação ampliada de certos mecanismos psíquicos perde--se a noção da personalidade total e do seu "caráter"que já não pode ser elaborado de modo plástico, ao lon-go de um enredo em seqüência causal, através de umtemp.o de cronologia coerente. Há, portanto, plena in-terdependência entre a dissolução da cronologia, da mo-tivação causal, do enredo e da personalidade. Estaúltima, ademais, não se esfarpa apenas nos contornosexteriores, mas também nos limites internos: ela setranscende para o mundo ínfero das camadas infra-pessoais do it, para o poço do inconsciente; mundoem que, segundo Freud, não existe tempo cronológicoe em que se acumulariam, segundo lung, nio só asexperiências da vida individual e sim as arquetípicase coletivas da própria humanidade.

Reconhecemos, no processo descrito, muitas ana-logias com a pintura moderna. À abolição do espaço--ilusão corresponde a do tempo cronológico. Isso im-plica uma série de alterações que eliminam ou ao me-nos borram a .perspectiva nítida do romance realista.Espaço, tempo e causalidade foram "desmascarados". .como meras aparências exteriores, como formas epidér-micas por meio das quais o senso comum procura im-por uma ordem fictícia à realidade. Neste processode desmascaramento foi envolvido também o ser hu-mano. Eliminado ou deformado na pintura, tambémse fragmenta e decompõe no romance. Este, não p0-dendo demiti-lo por inteiro, deixa. de apresentar o re-

'trato de Uldivíduos íntegros. Ao fim, a personagem

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chega. p. ex. nos romances de Beckett .. a mero porta-dor abstrato - inválido e mutilado - da palavra. amero suporte precário. "não-figurativo", da língua. Oindivíduo. a pessoa, o herói são revelados como ilusãoou convenção. Em seu lugar encontramos a ViS30

microscópica e por isso não-perspectívica de mecanis-mos psíquicos fundamentais ou de situações humanasarquetípicas.

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Partimos, para forçar a analogia com a pintura,de alterações "técnicas" que acabaram por resultar nu-ma verdadeira desmontagem da pessoa humana e do"retrato" individual. No entanto, chegados a esteponto. é justo acentuar que o processo talvez tenhasido inverso ou interdependente. O que se afigurou co-mo resultado de desenvolvimentos "formais". talvez te-nha sido em verdade ponto de partida ou parte ineren-te desses desenvolvimentos.· Talvez fora básica umanova experiência da personalidade humana. da pre-cariedade da sua situação num mundo caótico, em rá-pida transformação, abalado por cataclismos guerrei-ros, imensos movimentos coletivos, espantosos progres-sos técnicos que, desencadeados pela ação do homem.passam a ameaçar e dominar o homem. Não se re-fletiria esta experiência da situação precária do indi-víduo em face do mundo.· e da ~ua relação alteradapara com ele, no fato de o artista já não se sentir auto-rizado a projetá-lo a partir da própria consciência? Umaépoca com todos os valores em transição e por issoincoerentes, uma realidade que deixou de ser "ummundo explicado", exigem adaptações estéticas capa-zes de incorporar o estado de fluxo e insegurança den-tro da própria estrutura da obra. De qualquer mododesapareceu a certeza ingênua da posição divina do in-divíduo, a certeza do homem de poder constituir, a

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partir de uma consciéncia que agora se lhe afigura epi-dérmica e superficial, um mundo que timbra, em de-monstrar-lhe. por uma \'erdadeira revolta das coisas.que não aceita ordens desta consciência.

Notamos uma espécie de pressentimento disso noauge do individualismo, em pleno século XIX. Os pin-tores impressionistas, com sua arte alegre e luminosa,certamente não desejavam exprimir nenhuma cosmovi-são profunda.' Desejavam, precisamente, reproduzirapenas a aparência passageira da realidade, a impres-são fugaz do momento. De certa forma eram realistasao extremo. Mas precisamente por isso já não alegamreproduzir a realidade e sim apenas a sua "impressão".Tornaram-se subjetivos por quererem ser objetivos. Eno mesmo momento a perspectiva começa a borrar-se:o pintor já não pretende projetar a realidade; reproduzapenas a sua própria impressão, flutuante e vaga, eassim renuncia à posição de quem se coloca "em face"do mundo. Daí a Kandinsky há só um passo: o daexpressão imediata do mundo psíquico, sem necessi-dade de recorrer à mediação de impressões figurativas.A perspectiva desaparece porque não há mais nenhummundo exterior a projetar, uma vez que o próprio fluxopsíquico, englobando o mundo, se espraia sobre o planoda tela. No entanto, neste processo - que correspon-de ao do monólogo interior radical - se manifesta pre-cisamente a crise acima apontada. O que se verifica, é osegumte, posto em termos esquemáticos e simplificados:s~ a perspectiva é expressão de uma relação entre doispólos, sendo um o homem e o outro o mundo pro-.jetado, dá-se agora uma ruptura completa. Um dospólos é eliminado e com isso desaparece a perspectiva.Num caso, resta só o fluxo da vida psíquica que absor-veu totalmente o mundo (seria o caso de Kandinskye dos seus seguidores); noutro caso, resta só o mundo,reduzido a estruturas geométricas em equilíbrio que,por sua vez, absorvem o homem (seria o caso de Mon-

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drian e dos seus seguidores). Em ambos os casos,suprime-se a distância entre o homem e o mundo ecom isso a perspectiva. O abandono da perspectivamostra ser expressão do anseio de superar a distânciaentre indivíduo e mundo; distância de que a perspecti-va se torna a expressão decisiva no momento em queo indivíduo já não tem a fé renascentista na posiçãoprivilegiada da consciência humana em face do mundoe não acredita mais na possibilidade de, a partir dela,poder constituir uma realidade que não seja falsa e"ilusionista" .

Assim, a perspectiva, de início recurso artísticopara dominar o mundo terreno, torna-se agora símbolodo abismo entre o homem e o mundo, símbolo dessacisão e distância que o poeta G. Benn chamou a "ca-tástrofe esquizóide", a fragmentação da unidade para-disíaca original. O sentimento dessa "consciência in-feliz" suscita uma verdadeira angústia. Gerações intei-ras de artistas e intelectuais procuram reencontrar umaposição estável e essa procura, resultado e causa de

uma mstabilidade cada vez maior, exprime-se no esta-do de pesquisa e experimentação no romance, cujosautores tentam retificar as enfocações tradicionais; emanifesta-se, principalmente, no desejo de fugir paraum mundo ou uma época em que o homem, fundidocom a vida universal, ainda não conquistara os contor-nos definitivos do eu, em que não se dera ainda opecado original da "individuação" e da projeção pers-pectívica. Esse culto do arcaico, esta glorificação doinício e do elementar são típicos justamente para asvanguardas mais requintadas. O intelectual, o "esqui-zóide" neurótico, dissociado entre os valores em trau-sição, enquanto revela essa fragmentação nas suas per-sonagens desfeitas e amorfas, exprime nesta mesmadecomposição do indivíduo a sua esperança de, che-gado à substância anônima do ente humano, poder vis-lumbrar a integração no mundo elementar do mito.

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Daí a glorificação dos deuses passados e o mis-ticismo orientalizante de tantas "Beat Generations" eadeptos de Zen, arautos fervorosos de uma unidadeaperspectívica em que não há "pontos de fuga" e emque os seres se confundem e apagam na "unio mystica"plana, que é apenas o reverso "dialético" dos imensosespaços vazios, feitos de pesadelo e angústia, dos sur-realistas: perspectiva deformada que encontramos tam-bém nos romances de Kafka.

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Vimos que a radicalização do romance psicoló-gico do século passado levou à sua autodissolução -da mesma forma como a aprofundação da pesquisacientífica levou a hipótese de o indivíduo consCiente eracional ser apenas um ente fictício, epidérmico. Estaconsciência individual seria apenas uma tênue camada,uma onda fugaz no mar insondável do inconscienteanônimo. No fundo e em essência o homem repetesempre as mesmas estruturas arquetípicas - as def:dipo ou de Electra (a própria psicologia recorreuao mito); as do pecado original, da individuação; dapartida da casa paterna, da volta do filho pródigo; dePrometeu, de Teseu no labirinto - e assim em diante.A própria emergência e emancipação do indivíduo ra-cional e consciente é apenas parte daquele "eterno re-torno", é um padrão fixo que a humanidade repete nasua caminhada circular através dos milênios.

Compreendemos agora mais de perto porque apersonalidade individual tinha de desfazer-se e tomar--se abstrata no processo técnico descrito: para que serevelem tanto melhor as configuraçiks arquetípicas doser humano; estas são intemporais como é intemporalo "tempo mítico" que,Jonge de ser linear e progressivo(como é o tempo judaico-cristão), é circular, voltandosobre si mesmo. O tempo linear, cronológico, se apa-

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ga como mera aparência no eterno retomo das mes-mas situações e estruturas coletivas. Na dimensão mí-tica, passado, presente e futuro se identificam: as per-sonagens são, por assim dizer, abertas para o passadoque é presente que é futuro que é presente que é pas-sado - abertas não só para o passado individual esim o da humanidade; confundem-se com seus prede-cessores remotos, são apenas manifestações fugazes,máscaras momentâneas de um processo eterno quetranscende não só o indivíduo e sim a própria huma-nidade: esta, reintegrada no Arqui-Ser, que a ultrapassae abarca, é parte da luta eterna entre as forças divinase demoníacas; é portadora de uma mensagem sobre--humana; ergue-se prometeicamente contra as divinda-des; é expulsa da unidade original; sofre a tortura deSísifo num mundo absurdo; vive a frustração do homemque almeja chegar ao Castelo dos poderes insondáveisetc. Assim, em Ulysses transparecem, através dasmáscaras de Bloom, Dedalus e Mol1y, as personagensmíticas de Ulisses, Telêmaco e Penélope. Na odisséiade um só dia, no mar urbano da "Polis" de Dublin,é celebrada, ainda que em termos de paródia, a inter-minável viagem do herói homérico. Renasce - numavisão saudosa e irônica - um mundo em que as es-feras divina e humana ainda se interpenetram numaunidade sem fenda. Esta odisséia do século XX,prenhe, de dissociações, montagens artificiais, variaçõesde estilo, evoca a unidade mítica e revela ao mesmotempo, na sua própria estrutura, a razão dessa procurasaudosa.

Boa parte da obra de Faulkner reencena comomito puritano a conspurcação da terra prometida pelomaterialismo e pelo ódio racial. B uma repetição daqueda. Essa corrupção original atua incessantementenos dias atuais. A técnica complexa de Faulkner, ainversão cronológica dos acontecimentos, a construçãocircular, a irrupção do passado no presente e, com

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isso, do inconsciente no consciente, são a expressãoformal precisa de um mundo em que a continuidadedo tempo empírico e o eu coerente e epidérmico jánão têm sentido.

No esfacelamento de Macunaíma manifestam-se,através das preocupações nacionais e pessoais de Máriode Andrade, que disse de si que "sou trezentos, s_outrezentos-e-cinqüenta", as estruturas arquetípicas dosdeuses despedaçados, mas de novo recompostos; o heróide Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, revi-ve o drama de Fausto em pleno sertão brasileiro; Revel,o herói de L'Emploi du Temps, de Michel Butor, re-pete no labirinto da grande cidade a aventura de Teseu,lutando com o Minotauro do tempo; as angústias doherói de Berlim Alexanderplatz (Alfred Doeblin), vi-vidas na Babel moderna da grande cidade, são sincro-nizadas com temas bíblicos.

Em todas estas e em muitas outras obras se nota,em grau maior ou menor, esta desrealização, abstraçãoe desindividualização de que partimos, evidente tentati-va de superar a dimensão da realidade sensível parachegar, segundo as palavras do pintor expressionistaFranz Marc, à "essência absoluta que vive por trás daaparência que vemos".

6No romance do século passado a perspectiva, a

plasticidade das personagens e a ilusão da realidade fo-r~m criadas por uma espécie de truque: o romancista,onisciente, adotando por assim dizer uma visão estereos-cópica ou tridimensional, enfocava as suas personagenslogo de dentro, logo de fora, conhecia-lhes o futuroe o passado empíricos, .biográficos, situava-as num am-biente de cujo plano de fundo se destacavam com niti-dez, realçava-lhes a verossimilhança (aparência da ver- .dade) conduzindo-as ao longo de um enredo cronoló-gico (retrocessos no tempo eram marcados como tais),

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de encadeamento causal. O narrador, mesmo quandonão se manifestava de um modo acentuado, desapare-cendo por trás da obra como se esta se narrasse sozi-nha, impunha-lhe uma ordem que se assemelhava àprojeção a partir de uma consciência situada fora ouacima do contexto narrativo. Por mais fictício que sejao imperfeito da narração, esta voz gramatical reveladistância e indica que o narrador não faz parte dos su-cessos, ainda que se apresente como Eu que alega nar-rar as próprias aventuras: o Eu que narra já se distan-ciou o suficiente do Eu passado (narrado) para ter avisão perspectívica. O Eu passado já se tornou objetopara o Eu narrador. 'E:. digno de nota a grande quanti-dade de romances modernos narrados na voz do pre-sente, quer para eliminar a impressão de distância entreo narrador e o mundo narrado, quer para apresentara "geometria" de um mundo eterno, sem tempo.

O primeiro grande romancista que rompe a tra-dição do século XIX, conquanto ainda de modo mo-derado, é MareeI Proust: para o narrador do seu grau-de romance o mundo já não é um dado objetivo e simvivência subjetiva; o romance se passa no íntimo donarrador, as perspectivas se borram, as pessoas se frag-mentam, visto que a cronologia se confunde no tempovivido; a reminiscência transforma o passado em atua-lidade. Como o narrador já não se encontra fora dasituação narrada e sim profundamente envolvido nelanão há a distância que produz a visão perspectívica.

Quanto mais o narrador se envolve na situação,através da visão microscópica e da voz do presente, tantomais os contornos nítidos se confundem; o mundo nar-rado se torna opaco e caótico. Vimos que esta "técni-ca", se de um lado é causa, de outro lado é resultadodo fato de que, conforme a expressão de VirgíniaWoolf, a vida atual é feita de trevas impenetráveis quenão permitem a visão circunspecta do romancistatradicional.

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Em muitos romances de transição o próprio nar-rador começa a ironizar a sua perspectiva ainda con-vencional. Chega mesmo a desculpar-se por saber tan-to a respeito de personagens de que não pode conhe-cer as emoções e a biografia mais íntimas.

Surge então a tentativa de superar tais dúvidasatravés da autoridade do mito: o narrador, ente hu-mano como suas figuras, participa das mesmas estru-turas coletivas: não as inventa. Os mecanismos psíqui-cos são os mesmos em todos os seres humanos: elemesmo os vive. Não descreve a psicologia individualde Fulano e Sicrano que, de fato, não pode conhecer;descreve processos fundamentais de dentro da perso-nagem que se confunde com o narrador no monólogointerior. A romancista Nathalie Sarraute acentua que"o leitor se encontra de chofre no íntimo, no mesmolugar em que se encontra o autor, numa profundezaem que nada mais permanece das marcas confortáveiscom cujo auxílio (o autor tradicional) constrói a per-sonagem fictícia. Ele submerge. .. numa matéria tãoanônima como o sangue, num magma sem nome oucontornos" (VEre de Soupçon). Nos seus própriosromances, vai tecnicamente muito além de Proust. Jánão existe um Eu narrador fixo face a um Eu narradoem transformação; o próprio Eu narrador se transfor-ma constantemente, como se a autora quisesse demons-trar a relatividade de tudo e a teoria de ,Einstein;pos-sive1mente a relatividade da própria teoria da relati-vidade.

7Se neste tipo de romances o narrador objetivo

se omite, lançando-se, junto com o mundo exterior, nofluxo da consciência caótica da personagem, há outro'tipos de narrativas ém que o narrador se omite - oupelo menos supera o narrador tradicional - pela en-focação rígida das personagens somente de fora: renun-

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cia a conhecer-lhes a intimidade. Descreve-lhes apenaso comportamento exterior e reproduz os diálogos. Nun-ca lhes penetra a alma.

Em alguns contos admiráve-is, Hemingway aplicoucom rigor esta técnica derivada da psicologia compor-tamentista ("Behaviorism" - psicologia que eliminaqualquer referência à vida psíquica). f: uma focaliza-ção que se presta de início a dar vida intensa a ummundo heróico e primitivo em que a psicologia é subs-tituída pela ação. Mas a perspectiva unilateral, ligadaa um estilo seco e impessoal, isento de quaisquer ex-plicações causais, torna as personagens estranhas e im-penetráveis, num mundo igualmente estranho e mJc-vassável. Neste mundo, os seres humanos tendem atornar-se objetos sem alma entre objetos sem alma.entes "estrangeiros", solitários, sem comunicação.

f:. precisamente L.' E;'ranger que se chama o melhorromance .de Camus. Esta obra, curiosamente, é nar-rada· na forma do Eu, mas com a técnica behaviorista.

f: um Eu que nada tem a narrar sobre a sua vidaíntima porque não a tem ou não a con~ece - é um"falso Eu", como foi chamado. Não tem dimensãointerior, vive planando na superfície das sensações. Opróprio assassínio que comete é conseqüência de umreflexo e não de ódios ou emoções íntimas. O tribunalque o condena tenta restituir-lhe a alma para podercondená-lo. Introjeta nele motivos que não tivera, mal-dades que não conhecera. uma coerência de atitudesque ignorara. Faz dele personagem de romance tra-dicional para poder condená-lo. Esse tribur.al absur-do é um grande símbolo da alienação: entre o réu --cidadão de quem o Estado e seu tribunal tiram o seudireito e força - e este mesmo tribunal criado pelocidadão, já não existe a mínima relação. Reconhece-mos, em certa medida, o tribunal de Kafka: este, po-rém, exprimiu a profunda dúvida em face da alienaçãointerposta entre o homem "exilado" e o poder meta-

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físico insondável que o esmaga. Em Camus já não hádúvida, apenas a afirmação do absurdo.

Notamos nesta obra de Camus algo da óptica"surrealista" de Kafka, com suas "personagens em pro-jeto" que nem nome têm e que vivem no tempo para-lisado da espera (como as personagens da peça Espe-rando Godot, de Beckett): perspectiva falsa e exage-rada dos surrealistas que corresponde com precisão aeste mito da frustração e da impossibilidade de reen-contrar a unidade perdida: o pecado é a própria indi-viduação. Kafka, com efeito, escreveu o mito da im-possibilidade do retomo ao mundo mítico.

Também neste tipo de romances se verifica oabandono completo da psicologia "retratista" do ro-mance tradicional (psicologia e romance que, emL'etranger, são objetos de paródia). Ainda o mesmoocorre nas obras, cujo tema é a simultaneidade da vidacoletiva de uma casa ou cidade ou de um amplo espa-ço geográfico num segmento de tempo. O grande mo-delo de tais romances é USA, de Dos Passos, cujatécnica encontramos também em Berlim Alexanderplat,z.Le Sursis (Sartre) ou, mais recentemente, embora mo-dificada, em Passage de Milan, de Michel Butor, bemcomo em muitos outros romances. A técnica simultâ-nea joga com grandes espaços e coletivos. Elimina,quase sempre, o centro pessoal ou a· enfocação coeren-te e sucessiva de uma personagem central. Os indiví-duos - quase totalmente desindividualizados - sãolançados no turbilhão de uma montagem caótica demonólogos interiores, notícias de jornal, estatísticas,cartazes de propaganda, informações políticas e meteo-rológicas, itinerários de bonde - montagem que re-produz, à maneira de rapidíssimos cortes cinematográ-ficos, o redemoinho da vida metropolitana. O indivíduodissolve-se na polifonia de vastos afrescos que tendemli abandonar por inteiro a ilusão óptica da perspectiva,já em si destruída pela simultaneidade dos aconteci:

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mentos, a qual substitui a cronologia. Poder-se-ia falarde um enfocação telescópica, de grande distância, cujoefeito é o mesmo da microscópica - o "achatamento"do objeto - se o foco não se dissolvesse junto comas personagens visadas, neste mundo imenso da reali-dade social que sufoca o "elemento" humano.

Vemos, portanto, que a perspectiva tanto se des-faz nos romances em que o narrador submerge, porinteiro, na vida psíquica da sua personagem, como na-queles em que se lança no rodopiar do mundo. Quero mundo se dissolva na consciência, quer a consciên-cia no mundo, tragada pela vaga da realidade coletiva,em ambos os casos o narrador se confessa incapaz oudesautorizado a manter-se na posição distanciada e su-perior do narrador "realista" que projeta um mundo deilusão a partir da sua posição privilegiada. Essa dis-tância é precisamente exagerada e acentuada ao extre-mo na perspectiva deformada que, falando de Camus eKafka, chamamos de "surrealista". Curiosamente, emtodos os três casos os resultados se assemelham: noprimeiro, o indivíduo desfaz o mundo e deixa de serpessoa íntegra, pois esta s6 se define no mundo, desta-cando-se dele; no segundo caso, o mundo desfaz o in-divíduo que, também nesta enfocação, deixa de serpessoa íntegra. E no último caso abre-se um abismoentre indivíduo e mundo e, ainda nesta óptica, a pes-soa perde a sua integridade. Todas as três perspecti-vas, sendo sintomas de um grave desequilíbrio,' são,como sintomas, ao mesmo tempo expressão verdadeiradas transformações ameaçadoras que a perspectivaequilibrada do romance tradicional, quando usada emnossos dias, timbra em ignorar.

8Nestas páginjis não foi tentado apresentar uma

teoria e sim uma série de hipóteses que, como todasas analogias entre as diversas artes, devem ser encara-

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das com certa reserva. Muito menos foi tentado apre-sentar um quadro completo das novas enfocações.Não foi abordado o romance existencialista, nem o ro-mance "geométrico" de A. Robbe-Grillet que, porexemplo, em Jaio:Jsie, tenta reproduzir o eterno ritmo"gráfico", por assim dizer o padrão geométrico, dociúme como tal, eliminando por inteiro a personagemque é portadora deste ciúme.

Entretanto, mesmo à base desta exposição rudi-mentar é óbvio que preocupações semelhantes, decorren-do do mesmo Zeitgeist, se manifestam na pintura e noromance (e, sem dúvida, nas outras artes). Não che-gamos a conclusões tão radicais como MareeI Brionou Hans Sedlmayr: de que a arte moderna seria essen-cialmente religiosa ou irreligiosa. Mas sem dúvida seexprime na arte moderna uma nova visão do homeme da realidade ou, melhor, a tentativa de redefinir asituação do homem e do indivíduo, tentativa que serevela no próprio esforço de assimilar, na estruturada obra-de-arte (e não apenas na temática), a preca-riedade da posição do indivíduo no mundo moderno.A fé renascentista na posição privilegiada do indivíduodesapareceu.

O modo de abordar o problema foi, evidentemen-te, um pouco arbitrário. Nem todas as facetas pu-deram ser visadas a partir dos momentos da abstração,da eliminação do retrato individual e da ausência oudeformação da perspectiva. Mas esta nossa enfoca-ção, sabendo-se unilateral embora flutuante como ummobile de Calder, tentou incorporar na própria estru-tura deste trabalho a dúvida, através da constante re-tomada do fio do raciocínio e do CÍrculo - talvez vi-cioso - das cogitações. O que importa é a fertilidadedesta perspectiva, ainda que ela seja precária como sãohoje todas as perspectivas.

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