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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE PÚBLICA MESTRADO EM SAÚDE PÚBLICA FERNANDO HELLMANN REFLEXÕES SOBRE OS REFERENCIAIS DE ANÁLISE EM BIOÉTICA NO ENSINO DA NATUROLOGIA NO BRASIL À LUZ DA BIOÉTICA SOCIAL Florianópolis 2009

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

    CENTRO DE CINCIAS DA SADE PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE PBLICA

    MESTRADO EM SADE PBLICA

    FERNANDO HELLMANN

    REFLEXES SOBRE OS REFERENCIAIS DE ANLISE EM BIOTICA NO ENSINO DA NATUROLOGIA NO BRASIL LUZ DA BIOTICA SOCIAL

    Florianpolis

    2009

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  • FERNANDO HELLMANN

    REFLEXES SOBRE OS REFERENCIAIS DE ANLISE EM BIOTICA NO ENSINO DA NATUROLOGIA NO BRASIL LUZ DA BIOTICA SOCIAL

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sade Pblica da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito para obteno parcial do ttulo de Mestre em Sade Pblica. rea de concentrao: Cincias Humanas e Polticas Pblicas em Sade. Linha de pesquisa: Biotica.

    Orientadora: Prof . Dr . Marta Inez Machado Verdi

    Florianpolis

    2009

  • Catalogao na fonte pela Biblioteca Universitria da Universidade Federal de Santa Catarina

    H477r Hellmann, Fernando Reflexes sobre os referenciais de anlise em biotica no ensino da naturologia no Brasil luz da biotica social [dissertao] / Fernando Hellmann ; orientadora, Marta Inez Machado Verdi. - Florianpolis, SC, 2009. 177 f. Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Cincias da Sade. Programa de Ps-Graduao em Sade Pblica. Inclui bibliografia 1. Sade pblica. 2. Biotica. 3. Naturologia. 4. Sade coletiva. 5. Ensino. I. Verdi, Marta Machado. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Ps-Graduao em Sade Pblica. III. Ttulo. CDU 614

  • Ivone Hellmann, amiga, confidente e Me.

  • AGRADECIMENTOS

    Cada vez mais a vida tem me ensinado que eu nada seria se estivesse

    sozinho. Tem me ensinado que a rvore, para dar frutos, precisa de tempo para

    crescer e depende da terra, da luz, da gua. Por isso, quero agradecer cada pessoa

    que, nesses ltimos dois anos, de uma forma ou de outra, contribuiu para que esta

    dissertao amadurecesse junto comigo.

    Em primeiro lugar, agradeo aos meus pais, Amirto Hellmann (em

    memria) e Ivone Hellmann, pois sempre me apoiaram e incentivaram a estudar.

    Agradeo ainda aos meus irmos, Silvana e Gilson, tambm aos meus sobrinhos

    Bruno, Ana, Artur, Felipe e Vitor, por compartilharem com afeto, e mesmo com

    alguns desafetos, nosso amor de famlia.

    Agradeo imensamente minha orientadora Prof. Marta Verdi, me do

    Lorenzo, que me acolheu e acreditou no meu trabalho, propiciando crescimento

    pessoal e acadmico. Marta, s para mim no apenas um exemplo de professora

    mas tambm de Pessoa!

    Aos professores que participaram da banca de defesa desta dissertao:

    Prof. Volnei Garrafa e ao Prof. Marco da Ros; ao Prof. Charles Tesser Prof. Elma

    Zoboli, pela excelente contribuio na qualificao deste trabalho. A vocs, muito

    obrigado!

    Prof. Sandra Caponi compete um agradecimento em especial, pois

    alm de participar da qualificao e da defesa deste estudo, me recebeu com

    carinho em suas aulas e foi sempre prestativa nos auxlios que pedi a ela.

    Agradeo aos professores do mestrado; aos amigos feitos nessa que a

    melhor turma que o Programa de Sade Pblica j teve, em especial Juliane

    Brenner, companheira em todos os trabalhos acadmicos.

    Prof. Rozane Goulart, que nunca mediu esforos para me auxiliar na

    vida acadmica: desde a primeira apresentao que fiz em um congresso, em 2002,

    quando cursava a terceira fase de Naturologia na UNISUL, passando pelo

    Congresso de Biotica, em 2008, na Crocia, at a realizao do mestrado, muiiiiito

    obrigado!

  • Ao Programa Linha Verde da UNISUL: em especial Teresa Gaio e

    Ftima Farias, amigas e professoras, que me inseriram no SUS e na fitoterapia;

    Nathlia Martins e Maria Alice. Vocs so exemplos para mim!

    Ao Naturlogo Daniel Rodrigues, eterno amigo que merece

    agradecimento especial, pois no mediu esforos para ministrar minhas aulas

    quando tive que me ausentar em funo do mestrado; muito obrigado de corao.

    Aos professores que me iniciaram na vida acadmica: Helge e Marina

    Pantzier, Rita de Cssia dos Santos e Joel Lohn, pois fizeram a diferena na minha

    formao. Prof. itajaiense Nazar Nazrio, exemplo de didtica, que colaborou na

    metodologia desta pesquisa. Dra. Marilene Dellagiustina pelas valiosas

    contribuies para o segundo artigo. Luana Wedekin, minha professora, amiga e

    at terapeuta! Dra. Elaine de Azevedo, que me mostrou que Naturologia no

    existe se no buscarmos alm da sade individual e coletiva, ambiental e social.

    Amiga Vilca Merzio, no apenas pela reviso ortogrfica, mas tambm

    pela amizade genuna que me faz viver e me sentir vivo e amado. Obrigado!

    Aos novos amigos: Paulo Francisco, pela traduo; Pedro Bortolon, pelas

    artes grficas; Joo Ricardo Machado, pelos momentos especiais vividos em 2008.

    Agradeo a todos que tornaram esta pesquisa possvel: ao coordenador

    do curso de Naturologia da Universidade Anhembi Morumbi, Prof. Andr Ribeiro e,

    novamente, Prof. Rozane Goulart, Coordenadora do Curso de Naturologia

    Aplicada da UNISUL, e a Ana Paula Farias por seu carinho e ateno sempre

    recebido. Agradeo especialmente a todos os professores entrevistados pela

    ateno a mim dirigida.

    grande famlia de Naturlogos e de acadmicos do Curso de

    Naturologia, em especial queles que ministrei ou ministrarei aulas!

    Por fim, sou sempre grato aos meus eternos amigos (em ordem

    alfabtica): Cleusa Probst, Jeferson de Melo, Marcelo Franzoi, Rafael Reis, Ramon

    Frasetto, Rodrigo Hellmann e Thyago Martins, simplesmente por existirem.

    Agradecido!

  • HELLMANN, F. Reflexes sobre os referenciais de anlise em biotica no ensino da naturologia no Brasil luz da biotica social. 2009, 177f. Dissertao (Mestrado em Sade Pblica) Programa de Ps-Graduao em Sade Pblica. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis.

    RESUMO

    As possveis relaes entre Biotica e Naturologia esto presentes no desejo dessas reas de conhecimento zelarem pelo bem-estar humano e do planeta, tambm no enfrentamento do desafio de superar perspectivas da prxis de mbito individual e de caminhar na direo do bem comum coletivo. Considerando que h diferentes enfoques em Biotica, apresenta-se a Biotica Social como possvel marco terico para propor reflexes acerca dos desafios atuais da Naturologia frente a ateno sade coletiva. Assim, este estudo tem por objetivo discutir, luz da Biotica Social, os temas e os referenciais de anlise em Biotica presentes no ensino de Naturologia no Brasil e suas implicaes para a formao do naturlogo. Este um estudo qualitativo-descritivo, realizado por meio de investigao documental e de campo, desenvolvido em duas universidades brasileiras que abrigam o curso de Naturologia. Participaram como sujeitos da pesquisa vinte docentes. As informaes foram obtidas em dois momentos: no primeiro, procedeu-se a coleta de dados documentais, em que foram selecionados e analisados trinta e seis planos de ensino, que continham temas de interesse Biotica. No segundo, foram entrevistados vinte professores visando conhecer como era realizado o processo de ensino-aprendizagem frente aos temas encontrados. Os dados foram tratados atravs da anlise de contedo. Os resultados so apresentados em dois artigos. O primeiro, responde questo central do estudo, expondo os temas e referenciais bioticos estudados transversalmente no curso, em cinco categorias: (1) Da relao teraputica ecologia: temas bioticos presentes no ensino da Naturologia; (2) A relao teraputica na Naturologia: enfoque do cuidado na Biotica; (3) Fundamentos da Naturologia: do enfoque naturalista naturalizao dos problemas sociais; (4) Das virtudes deontologia: pluralidade de enfoques no ensino da Naturologia; (5) Vocao, presena e desafios da Biotica Social no curso de Naturologia. O segundo artigo versa sobre como se d o estudo da tica, da deontologia e da biotica no curso, em quatro categorias: (1) Caractersticas gerais das disciplinas que envolvem o estudo da tica, biotica, e deontologia; (2) Biotica enquanto disciplina no curso de Naturologia: temas e referenciais de anlise; (3) Abordagens tericas da tica estudadas na Naturologia: um olhar a partir da Biotica Social; (4) O estudo da deontologia no ensino da Naturologia. Considera-se que, atualmente, o ensino de Naturologia tende a formar o naturlogo para o cuidado sade individual, mas no para a ateno sade coletiva e informa o acadmico que h problemas sociais, mas no possibilita a capacitao de um profissional socialmente comprometido. Faz-se necessrio ampliar contedos de carter sciopoltico no ensino e habilitar os referenciais tica da Biotica Social. Palavras-chave: Biotica. Naturologia. Sade Coletiva. Ensino.

  • HELLMANN, F. Reflections on the references of the analyses in bioethics in the naturology teaching in Brazil under the light of social bioethics. 2009, 177f. Dissertation (Master in Public Health) Graduate Program in Public Health . Federal University of Florianpolis, Santa Catarina.

    ABSTRACT The possible relations between Bioethics and Naturology are evident in the desire of these disciplines to care for the well-being of humans and the planet, as well as in facing the challenges of overcoming the usual perspectives of the individual, and to move towards the common well being. Considering that there are different visions of Bioethics, Social Bioethics appears as a possible theoretical landmark to propose reflexions about the current challenges facing the Naturologia attention of the collective health. Therefore, the purpose of this study is to discuss the light of Social Bioethics, the themes and references to the analysis in Bioethics present in the Naturology teaching in Brazil and in its implications for the formation of the naturologist. This is a documented descriptive and qualitative study, conducted as a field investigation carried out in two Brazilian Universities that offer Naturology studies. The subjects of this research were twenty professors. The information was obtained in two steps. In the first, the documental data was collected, which included more than thirty-six teaching plans containing themes regarding Bioethics. In the second step, twenty professors were interviewed for to know how the process of teaching and learning distinct themes was carried out. The data were treated through the analyses of content. The results are presented in two articles. The first one answers the central question of the study, exposing the bioethics themes and references studied through the courses, in five categories: (1) The therapeutic relationship to ecology: bioethical issues in the teaching of Naturologia; (2) The therapeutic relationship in Naturologia: the focus of care in bioethics; (3) Epistemology of Naturologia: the naturalistic approach to the naturalization of social problems, (4 ) From the virtues to Deontological ethics: multiple approaches in the teaching of Naturologia; (5) Vocation, presence and social challenges of bioethics in the course of Naturologia.The second article discusses how the ethics study is done, of deontology and bioethics in the course, in four categories: (1) General characteristics of subjects involving the study of ethics, bioethics, and deontology, (2) Bioethics as a discipline in the course of Naturologia: themes and references for analysis, (3) theoretical approaches in the study of ethics in Naturology: under the light of Social Bioethics, (4) The study of deontology in the teaching of Naturologia. It is considered that currently, Naturology tends to graduate the naturologist concerned more with individual health, and not with attention to the collective health. Moreover, only to inform the students that there are social problems still doesn't graduate socially-aware professionals. It is necessary to make more abundant the social-politic content in teaching, and create more references to social Bioethics.

    Keywords: Bioethics. Naturology, Collective Health. Teaching.

  • HELLMANN, F. Reflexiones sobre los referenciales de anlisis de la biotica en la enseanza de la naturologa en Brasil a la luz de la biotica social. 2009, 177f. Disertacin (Maestra en Salud Pblica) Programa de Postgrado en Salud Pblica. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis.

    RESUMEN Las posibles relaciones entre Biotica y Naturologa se encuentran en el deseo presente en estas dos reas del conocimiento de asumir el desafo de dar una contribucin al bienestar humano y del planeta, as como tambin en el desafo de superar una perspectivas de praxis individual para caminar en direccin al bien comn colectivo. Considerando que hay diferentes enfoques en Biotica, surge la Biotica Social como posible marco terico para proponer reflexiones acerca de los desafos actuales que enfrenta la Naturologia frente de la atencin de la salud pblica. As, este estudio tiene como objetivo discutir, a la luz de la Biotica Social, los temas y los referenciales de anlisis en Biotica presentes en la enseanza de la Naturologia en Brasil y sus implicaciones para la formacin del naturlogo. Este es un estudio cualitativo-descriptivo, realizado por medio de investigacin documental y de campo, fue desarrollado en dos universidades brasileras que abrigan el curso de Naturologa. Participaron como sujetos de investigacin veinte docentes. Las informaciones fueron obtenidas en dos momentos: en el primer momento se procedi a la colecta de datos documentales, fueron seleccionados y analizados treinta y seis programas curriculares, que contenan temas de inters para la Biotica. En un segundo momento, fueron entrevistados veinte profesores para saber como era realizado el proceso de enseanza-aprendizaje frente a los temas encontrados. Los datos fueron estudiados a travs del anlisis del contenido. Los resultados son presentados en dos artculos. El primero responde a la cuestin central del estudio, exponiendo los temas e los referenciales bioticos estudiados transversalmente en el curso, en cinco categorias: (1) De la relacin teraputica a la ecologa: las cuestiones de biotica en la enseanza de Naturologia, (2) La relacin teraputica en Naturologia: el foco del cuidado en la biotica; (3) Fundamentos de Naturologia: de lo enfoque naturalista a la naturalizacin de los problemas sociales, (4 ) De las virtudes a la deontolgia: los mltiples enfoques en la enseanza de Naturologia; (5) La vocacin, presencia y los desafos de la biotica Social en el curso de Naturologia. El segundo articulo se refiere al modo como se da el estudio de la tica, de la deontolgica y de la Biotica como materias del curso, en cuatro categorias: (1) Caractersticas generales de las matrias de la tica, la biotica y la deontolgia, (2) La biotica como disciplina en el curso de Naturologia: temas y referenciales de anlisis, (3) Los enfoques tericos de la tica en el estudio de Naturologia: a luz de la biotica social, (4) El estudio de la deontolgia en la enseanza de Naturologia. Considera-se que actualmente la enseanza de la Naturologa tiende a formar al naturlogo para el cuidado a la salud individual y no para la atencin a la salud colectiva. Informa a los alumnos que existen problemas sociales, pero no permite la capacitacin de un profesional socialmente comprometido. Resulta necesario ampliar contenidos de carcter socio-polticos en la enseanza y aproximar los referenciales de la naturologa a la ptica de la Biotica Social. Palabras claves: Biotica. Naturologa. Salud Colectiva. Enseanza.

  • HELLMANN, F. Rflexions propos des rfrentiels danalyse en biothique dans lenseignement de la naturologie au Brsil la lumire de la biothique sociale. 2009, 177f. Thse (Master en Sant Publique) Programme de 2me et 3me Cycles en Sant Publique. Universit Fdrale de Santa Catarina, Florianpolis.

    RSUM

    Les possibles rapports entre Biothique et Naturologie sont prsents dans lobjectif que ces domaines de la connaissance poursuivent, aussi bien pour ce qui est dagir en vue du bien-tre de lhomme et de la plante, que de relever le dfi de dpasser des perspectives de la pratique dordre individuel et de se diriger vers le bien commun collectif. Sachant quil y a diffrentes approches en biothique, la biothique sociale apparat comme tant une possible rfrence thorique afin de proposer des rflexions face aux bouleversements actuels de la naturologie de lattention donne la sant collective. Ainsi, cette tude a pour objectif de discuter, la lumire de la biothique sociale, les thmes et les rfrences danalyse en biothique, prsents dans lenseignement de la naturologie, au Brsil, et ses implications dans la formation du naturologue. Il sagit dune tude qualitative et descriptive, ralise travers une recherche documentale et sur le terrain, dveloppe dans deux universits brsiliennes qui offrent le cours de naturologie. Elle a compt sur la participation de vingt professeurs en tant que sujets de ltude. Les informations ont t obtenues deux moments : dans un premier moment, on a ralis la collecte des donnes documentales, dans laquelle trente six plans de cours qui contenaient des thmes de lintrt de la biothique ont t slectionns. Dans un second moment, vingt professeurs ont t interviews pour savoir comment tait ralis le processus denseignement-apprentissage face aux thmes rencontrs. Les donnes ont t traites par lanalyse de contenu. Les rsultats en sont prsents dans deux articles. Le premier, rpond la question centrale de ltude, en exposant les thmes et les rfrentiels biothiques tudis transversalement pendant le cours, dans cinq catgories: (1) De la relation thrapeutique l'cologie: les questions de biothique dans l'enseignement de Naturologie; (2) La relation thrapeutique en Naturologia: les orientation de soins en biothique; (3) pistmologie de la Naturologie: de l'approche naturaliste la naturalisation des problmes sociaux, (4) De les vertus a ls donthologie: de multiples approches dans l'enseignement de Naturologia; (5) La vocation, la prsence et les dfis de La biothique sociale dans lenseignement de la Naturologie. Le deuxime article parle de comment se fait ltude de lthique, de la donthologie et de la biothique en tant que matires du cours, dans quatre catgories: (1) Les caractristiques gnrales des disciplines concernant l'tude de l'thique, la biothique et La donthologie, (2) La biothique en tant que matires do cours de Naturologie: thmes et des rfrences d'analyse, (3) Approches thoriques de l'thique dans ltude de Naturologie: un regard a la biothique sociale, (4) L'tude de La donthologie dans l'enseignement de la Naturologie. On considre que, actuellement, lenseignement de la naturologie tend la formation du naturologue aux soins envers la sant individuelle et non pas envers lattention la sant collective et informer le monde acadmique quil y a des problmes sociaux, mais ne permet pas la formation dun professionnel socialement engag. Donc, il devient ncessaire dlargir, dans lenseignement, le contenu de caractre socio-politique et adapter les rfrentiels loptique biothique sociale. Mots cls: Biothique. Naturologie. Sant Collective. Enseignement.

  • O que que se encontra no incio? O jardim ou o jardineiro? o jardineiro. Havendo um

    jardineiro, mais cedo ou mais tarde um jardim aparecer. Mas, havendo um jardim sem

    jardineiro, mais cedo ou mais tarde ele desaparecer. O que um jardineiro? Uma pessoa cujo

    pensamento est cheio de jardins. O que faz um jardim so os pensamentos do jardineiro. O

    que faz um povo so os pensamentos daqueles que o compem.

    Ruben Alves (2002, p. 24).

  • SUMRIO Lista de quadros........................................................................................................13

    Lista de siglas............................................................................................................14

    1 INTRODUO .......................................................................................................15 1.1 Objetivo Geral....................................................................................................23 1.2 Objetivos Especficos .......................................................................................23 1.3 Justificativa........................................................................................................24 2 REFERENCIAL TERICO.....................................................................................26 2.1 Biotica ..............................................................................................................26

    2.1.1 As Dimenses da Biotica .........................................................................30

    2.1.1.1 A Diversidade de Referenciais Tericos em Biotica .........................33

    2.1.2 O Enfoque Principialista ............................................................................37

    2.1.3 O Enfoque das Virtudes.............................................................................42

    2.1.4 O Enfoque do Cuidado ..............................................................................49

    2.1.5 O Enfoque Naturalista ...............................................................................53

    2.1.6 O Enfoque da tica Profissional ................................................................58

    2.1.7 O Enfoque Social.......................................................................................60

    2.1.7.1 Biotica Cotidiana ...............................................................................66

    2.1.7.2 Biotica de Interveno ......................................................................68

    2.1.7.3 Biotica de Proteo...........................................................................71

    2.1.7.4 Biotica e Teologia da Libertao.......................................................73

    2.1.7.5 Biotica Antissexista, Antirracista e Libertria ....................................74

    2.2 Naturologia ........................................................................................................76 2.2.1 O ensino de Naturologia no Brasil: currculo dos cursos ...........................82

    2.2.2 Campos de atuao do Bacharel em Naturologia .....................................86

    2.2.3 Prticas Integrativas e Complementares, Naturologia e Sade Pblica no

    Brasil...................................................................................................................86

    3 PERCURSO METODOLGICO ............................................................................90 3.1 Tipo de Estudo ..................................................................................................90 3.2 Cenrio e Sujeitos da Pesquisa .......................................................................91

  • 3.3 Coleta de Dados e Amostragem ......................................................................92 3.4 Anlise dos Dados ............................................................................................95 3.5 Limitaes do Mtodo.....................................................................................102 3.6 Consideraes ticas .....................................................................................102 4 RESULTADOS E DISCUSSO ...........................................................................103 5 REFERNCIAS....................................................................................................104 6 ARTIGOS RESULTANTES DA PESQUISA: ......................................................116 6.1 Artigo 1: Reflexes sobre os referenciais de anlise em Biotica no ensino da Naturologia no Brasil luz da Biotica Social .............................................116 6.2 Artigo 2: tica, Biotica e Deontologia no Ensino da Naturologia no Brasil: reflexes a partir da Biotica Social....................................................................144 APNDICES ..........................................................................................................166 Apndice I (A) - Declarao de cincia e parecer da Instituio envolvida - UNISUL166

    Apndice I (B) - Declarao de cincia e parecer da Instituio envolvida -UAM...167

    Apndice I (C) - Declarao de cincia e parecer da Instituio envolvida - UFSC 168

    Apndice II (A) Termo de Consentimento para Coleta de Dados - UNISUL ........169

    Apndice II (B) Termo de Consentimento para Coleta de Dados - UAM .............171

    Apndice III Termo de Consentimento Livre e Esclarecido..................................173

    Apndice IV Declarao de Cincia da Resoluo CNS 196/96..........................175

    Apndice V Roteiro para coleta de dados - Entrevista semi-estruturada .............176

    ANEXOS ................................................................................................................177 ANEXO I Certificado de Aprovao do Comit de tica em Pesquisa.................177

  • 13

    Lista de quadros

    Quadro 1: Instrumento de coleta de dados da fase documental ........................95 Quadro 2: Esquema para tratamento dos dados e interpretao .......................96 Quadro 3: Elementos constituintes dos diferentes enfoques em Biotica........97

  • 14

    Lista de siglas

    ABNT Associao Brasileira de Normas Tcnicas

    CAPS Centro de Ateno Psicossocial

    CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico

    CSN Conselho Nacional de Sade

    ESF Estratgia de Sade da Famlia

    EUA Estados Unidos da Amrica

    MCA Medicina complementar alternativa

    MEC Ministrio da Educao e Cultura

    MT Medicinas tradicionais

    NASF Ncleo de Apoio Sade da Famlia

    OMS Organizao Mundial da Sade

    PNPIC Poltica Nacional de Prticas Integrativas e Complementares

    PPC Projeto Pedaggico de Curso

    RJ Rio de Janeiro

    SUS Sistema nico de Sade

    SC Santa Catarina

    SP So Paulo

    UAM Universidade Anhembi Morumbi

    UnB Universidade de Braslia

    UFSC Universidade Federal de Santa Catarina

    UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a educao, a cincia e a cultura

    UNISUL Universidade do Sul de Santa Catarina

    UnP Universidade Potiguar

  • 15

    1 INTRODUO

    Para ser naturlogo necessrio antes ser bioeticista. Isso porque a

    Naturologia preconiza um olhar voltado para a integralidade no cuidado sade

    humana, no apenas compreendendo o indivduo enquanto unidade singular de

    vida, mas tambm como resultado da interrelao com o ambiente e sociedade.

    Portanto, ao se refletir sobre a interface entre Biotica e Naturologia converge-se

    possvel relao entre elas, especialmente no que se refere ao processo de

    construo do campo de conhecimento destas duas reas. Ainda assim, como ser

    visto a seguir, considera-se que essas duas reas de conhecimento so

    polissmicas, esto em constante evoluo, sofrendo influncias diversas de acordo

    com os seus momentos histricos e com as realidades econmica, social, poltica e

    cultural especficas, requerendo estudo aprofundado para se poder afirmar que

    Para ser naturlogo necessrio antes ser bioeticista. Assim, a fim de dar exemplo

    sobre o processo evolutivo, ocorrido nessas duas reas, do qual resultam diferentes

    possibilidades de concepes, apresentam-se, inicialmente, a discusso da Biotica,

    como cenrio conceitual deste estudo, e, depois, a Naturologia, como cenrio

    contextual.

    O surgimento da Biotica como campo de estudo acadmico deve-se, em

    especial, ao aparecimento pblico dos dilemas ticos relacionados aos abusos da

    cincia em particular s pesquisas biomdicas envolvendo seres humanos ,

    crescente despersonalizao da assistncia mdico-sanitria e mobilizao social

    face s necessidades de mudana dos valores das sociedades ocidentais.

    Alguns historiadores apontam que tanto o neologismo Biotica quanto a

    prpria disciplina teve seu nascimento simblico na obra Bioethics: Bridge to the

    future, do cancerologista estadunidense Van Rensselaer Potter, publicado em 1971.

    Outros contestam tal paternidade do neologismo e indicam que o mdico obstetra,

    fisiologista fetal e demgrafo Andr Hellegers, da Georgetown University, tambm

    nos Estados Unidos da Amrica (EUA), tenha sido o primeiro a utilizar esse termo

    academicamente (POTTER, 1971; DINIZ e GUILHEM, 2002). H ainda quem

    defenda que o vocbulo Biotica teve sua primeira utilizao em 1927 na obra de

    Fritz Jahr: Bio=Ethik. Eine Umschau ber die ethichen Beziehung des Menschen zu

  • 16

    Tier und Pflanze1 (ENGEL, 2004), muito embora, no tenha sido esse o autor que

    impulsionou o nascimento da Biotica em termos acadmicos.

    Para Garrafa (2005c), foi atravs de Potter que o neologismo Biotica

    ficou mundialmente conhecido. Mas, independente de quem tenha cunhado o termo,

    houve diferenas no significado da palavra quando esses autores as criaram: para

    Hellegers, a Biotica designava tica da vida, e seu campo de estudo restringia-se

    a princpios morais focados principalmente nas consequncias da aplicao das

    biotecnologias das cincias mdicas ao homem e relao entre mdico e paciente.

    Para Potter, o sentido da Biotica era "cincia da sobrevivncia", a ponte entre

    cincia e filosofia em termos mais abrangentes, ligado ao bem-estar dos seres

    humanos, dos animais no-humanos e do meio ambiente (POTTER, 1971; DINIZ e

    GUILHEM, 2002). Por sua vez, Engel (2004) defende que Fritz Jahr apresentava a

    Biotica, assim como Potter, como a emergncia de obrigaes ticas no apenas

    em relao ao homem, mas a todos os seres vivos.

    J no incio da discusso acadmica sobre Biotica, verifica-se a grande

    circunscrio de temas: desde as implicaes ticas dos avanos cientficos que

    envolvem a vida em seu aspecto macro a ecologia, por exemplo - at as relaes

    micro, como a relao entre terapeuta e pessoa assistida e entre as instituies e as

    pesquisas biomdicas (PESSINI, 2005). Os temas bioticos esto pautados

    especialmente nas implicaes tecno-cientficas e nos dilemas ticos relacionados

    aos processos do viver humano, como o nascer e o morrer, o trabalho, as relaes

    com o corpo, entre outros e as relaes do homem com a natureza e sociedade. A

    ampla abrangncia temtica deve-se ao fato de a Biotica ser um campo de estudo

    interdisciplinar.

    Ainda que haja grande abrangncia temtica na Biotica, os temas

    mudam conforme a posio e o entendimento de diversos autores que tratam desse

    assunto, muito especialmente quando cultura, economia, regio geogrfica e scio-

    poltica diferem. A grande maioria das discusses Bioticas permanece no que

    Berlinguer (1995) denomina situaes limites, ou seja, aquelas centradas nos

    avanos cientficos, sobretudo da medicina e da biologia, tais como transplantes,

    fecundao artificial, clulas tronco, DNA recombinante, sobrevivncia prolongada e

    hibridao inter-espcies. O mesmo autor refere que esse rumo da Biotica

    1 Biotica: um olhar sobre a tica das relaes entre o homem com as plantas e os animais (Traduo do Autor).

  • 17

    negligenciou problemas que, cotidianamente, afetam milhares de pessoas,

    sobretudo as mais necessitadas. Dessa forma, Berlinguer aponta a necessidade de

    se pensar os dilemas ticos persistentes na sociedade, entre eles, a desigualdade

    social, as cacotansias2, a fome e o restrito acesso de assistncia sade

    (BERLINGUER, 1995; 2004).

    Para Neves (1996), quando se confrontam diferentes autores que tratam

    da Biotica, h uma diferena substancial entre distintas correntes de pensamento

    existentes quanto ao equacionamento frente a um mesmo dilema tico, ou seja,

    existem diferentes formas de olhar para um mesmo dilema.

    A diversidade de enfoques3 em Biotica pode ser observada j na

    definio proposta por Reich (1995, p. XXI): a Biotica compreende o [...] estudo sistemtico das dimenses morais, incluindo a viso, a deciso, a conduta e as normas das cincias da vida e da sade, utilizando uma variedade de metodologias ticas num contexto interdisciplinar.

    A partir dessa definio, possvel considerar a existncia de diferentes

    formas de pensar a respeito de um mesmo tema. Assim, a Biotica pode

    caracterizar-se como campo aberto do saber ao englobar aspectos interdisciplinares

    capazes de propor respostas s questes de ordem tica, em especial s

    sobrevindas da reflexo sobre as consequncias das aes, tanto individuais quanto

    coletivas, provenientes da cincia, do viver em sociedade e de tudo o que implica na

    sobrevivncia do planeta Terra e de tudo o que nele existe.

    A literatura revela diferentes referenciais de anlise em Biotica, como,

    por exemplo, os de inspirao liberalista, naturalista, das virtudes, entre outras. No

    entanto, a teoria principialista mostra-se a mais difundida e dominante, chegando-se

    a confundi-la com a prpria disciplina Biotica (DINIZ e GUILHEM, 2002; NEVES,

    1996).

    Os referenciais bioticos geralmente apontam para as exigncias do

    contexto em que se inserem. Se, de um lado, nos pases anglo-americanos,

    destacam-se modelos de anlises tericas voltados aos ideais liberalistas, aos

    direitos individuais, sobretudo nos Estados Unidos; de outro, a sistematizao da

    Biotica na Europa se d atravs das tendncias de modelos como o personalista e

    2 O termo cacotansias refere-se mortes sofridas, sobretudo as que poderiam ser evitadas. 3 Por opo do Autor, ser utilizado o termo enfoque em Biotica como sinnimo para referenciais de anlise em Biotica.

  • 18

    o hermenutico, enraizado na filosofia europia contempornea, prevalecendo a

    tendncia de uma tica universal (NEVES, 1996).

    Um dos exemplos de autores que prezam uma tica universalista o

    mdico e sanitarista italiano Giovanni Berlinguer, que pensa a Biotica a partir da

    equidade e da promoo de sade, posicionando-se contra os enfoques bioticos

    que buscam justificar o duplo standard, ou seja, critrios ticos para pases ricos

    diferentes dos critrios para pases pobres. O autor ainda prefere tratar dos

    problemas ticos cotidianos negligenciados, na maioria das vezes, nos debates

    bioticos: a excluso social, o preconceito e as mortes evitveis (BERLINGUER,

    1995; 2004).

    De forma semelhante, bioeticistas brasileiros como Volnei Garrafa, Fermin

    Roland Schramm, Ftima Oliveira e Mrcio Fabri dos Anjos, entre outros, pensam a

    Biotica a partir do enfoque latino-americano, discutindo problemas ticos

    persistentes nos pases da Amrica Latina, dentro de uma perspectiva mais ampla

    que considera o pluralismo moral existente nas sociedades, contextualiza os

    problemas onde o mesmo acontece, preza pela universalidade e justia social

    (GARRAFA et al, 2006; ANJOS, 2003; OLIVEIRA, 1995; SCHRAMM, 2006).

    Berlinguer, Garrafa, Schramm, Oliveira e Anjos, so alguns dos

    bioeticistas que defendem a necessidade de se pensar referenciais de anlise em

    Biotica socialmente comprometida, uma Biotica social. A Biotica social, para ser

    efetiva, entre outros fatores, necessita de disposio, persistncia e preparo

    acadmico, com a finalidade de se alcanar uma sociedade mais justa e equnime

    (GARRAFA, 2005a).

    Cortina (1998) assinala que, para mudar a sociedade da situao atual

    para algo melhor, exige-se repensar o mbito pblico a partir das atividades

    econmicas, da opinio pblica, das associaes civis e tambm das atividades

    profissionais. As atividades profissionais pertencem sociedade civil; portanto,

    inserem-se no mbito pblico, pois, de alguma forma, prestam atendimentos

    especficos sociedade. Esse marco referenda, conforme a autora menciona, a

    revitalizao da tica das profisses, empenhada na tarefa de fazer excelente a vida

    cotidiana. Por eso importa revitalizar las profesiones, recordando cules son sus fines legtimos y qu hbitos es preciso desarrollar para alcanzarlos. A esos hbitos, que llamamos virtudes, ponan los griegos por nombres aretai, excelencias. Excelente era para el mundo griego el que destacaba por respeto a sus compaeros en el buen ejercicio de una actividad. Excelente

  • 19

    sera aqu el que compite consigo mismo para ofrecer un buen producto profesional, el que no se conforma con la mediocridad de quien nicamente aspira a eludir acusaciones legales de negligencia. (CORTINA, 1998, p.2).

    Feuerwerker (2003, p. 24) afirma que as universidades vivem um

    momento em que buscam ampliar sua relevncia social. Destaca que [...] a

    produo de conhecimento e a formao profissional esto marcadas pela

    especializao, pela fragmentao e pelos interesses econmicos hegemnicos, e

    assinala que, no campo da sade, [...] indispensvel que a produo do

    conhecimento, formao profissional e prestao de servios sejam tomadas de

    elementos indissociveis de uma nova prtica.

    As novas diretrizes curriculares para os cursos da rea da sade,

    apoiadas pelo Ministrio da Sade, nascem como esperana de uma nova prtica

    teraputica. Elas esto orientadas para a formao de [...] profissionais crticos,

    capazes de aprender a aprender, de trabalhar em equipe, de levar em conta a

    realidade social para prestar ateno humana e de qualidade (FEUERWERKER,

    2003, p. 24). A proposta de mudana tem como desafio pedaggico superar

    paradigmas profissionais voltados ao uso de tecnologias, aos procedimentos

    funcionais e especializao, portanto, inseridos em uma viso fragmentada de

    mundo, para ento desenvolver a possibilidade de colaborar com o ensino pautado

    sobre reflexes ticas acerca dos contedos que em cada rea do conhecimento

    passam a existir. Assim, destaca-se o ensino da Biotica como fator indispensvel

    na formao profissional da sade, pois esse campo de estudo focaliza-se nas

    reflexes acerca dos problemas que persistem e que emergem com o avano

    cientfico, procurando apontar solues prticas.

    Garrafa e Pessini (2003) afirmam que, apesar da Biotica ser tardia no

    Brasil, e s ganhar fora, principalmente, a partir dos anos 90, muitos currculos,

    especialmente dos profissionais cujo campo de atuao est vinculado s cincias

    da sade e da vida, tm procurado ir alm da deontologia, passando a contemplar

    contedos relacionados Biotica. No entanto, Morano (2003, p. 28) aponta que o

    ensino da tica na graduao, em especial mdica, percorreu [...] o mesmo

    caminho do ensino mdico como um todo, atendendo s exigncias do modelo

    biomdico implantado nas sociedades ocidentais. corroborando com essa idia,

    Rego (2003) assinala existir resistncia das faculdades de cincias da sade, em

  • 20

    especial a medicina, em trocar os velhos modelos burocrticos, disciplinares e

    fragmentados, de quase cinquenta anos atrs, por novas iniciativas.

    Rego (2003), referindo-se ao ensino mdico, aponta para o crescente

    nmero de novas faculdades, especialmente as privadas, criadas, algumas vezes,

    por ideais mercantilistas, que contratam professores desatualizados, face s novas

    necessidades ticas da sociedade atual e, muitas vezes, no so preparados para o

    ensino da tica.

    Alm do crescimento de faculdades, novas demandas motivam a criao

    de novos cursos. Tesser e Barros (2008, p. 915) apontam que h um interesse

    crescente em mltiplos setores sociais no ocidente dirigido s chamadas medicinas

    alternativas e complementares. Esses interesses so fomentados pela insatisfao

    e pelos limites tidos com a biomedicina, bem como problemas de acesso e custo, e

    tambm por mrito prprio, sendo que diversas dessas prticas e tcnicas so

    reconhecidas internacionalmente na sade pblica e, especialmente no Brasil,

    impulsionada pela atual Poltica Nacional de Prticas Integrativas e Complementares

    (TESSER e BARROS, 2008). Um exemplo o caso do curso de graduao em

    Naturologia, o qual preenche uma lacuna existente no universo acadmico brasileiro:

    cria espao necessrio para a produo de novas teorias e prticas na rea de

    sade, pois se prope resgatar, pesquisar e aplicar terapias naturais, sob tica tica

    e ecolgica, embasada no aproveitamento sustentvel dos recursos naturais do pas

    (SILVA, 2004).

    Existem, at o presente momento, trs cursos de Naturologia no Brasil,

    sendo que apenas dois so reconhecidos pelo Ministrio da Educao e Cultura

    (MEC). O fato da terceira universidade no ter seu curso reconhecido deve-se ao

    mesmo no ter ainda formado nenhuma turma de bacharis em Naturologia. A

    universidade pioneira do Brasil a criar o curso foi a Universidade do Sul de Santa

    Catarina UNISUL, em 1998. Posteriormente, em 2002, a Universidade Anhembi

    Morumbi UAM criou o segundo curso de Naturologia do pas, sendo a pioneira no

    Estado de So Paulo. Recentemente, em 2009, a Universidade Potiguar - UnP,

    localizada no Rio Grande do Norte, criou o terceiro curso no pas (UNISUL, 2008a;

    UAM, 2008a; UNP, 2009).

    Os trs cursos de Naturologia possuem uma base epistemolgica

    semelhante: estudam e aplicam as prticas naturais balizadas atravs de dois

  • 21

    fundamentos filosficos milenares: Medicina Tradicional Chinesa e a Medicina

    Ayurveda, alm de outras perspectivas de vrias escolas de filosofia e de psicologia

    ocidentais contemporneas, como a Medicina Antroposfica, em sua maioria,

    voltadas viso ecolgica (HELLMANN e WEDEKIN, 2008).

    Dentre as prticas naturais integrativas e complementares4 estudadas

    nesse curso encontram-se a: fitoterapia, aromaterapia, hidroterapia, arteterapia,

    geoterapia, cromoterapia, massoterapia, reflexologia, musicoterapia, Florais,

    iridologia, tcnicas corporais, entre outras.

    A Naturopatia tambm faz uso das prticas naturais acima descritas. Os

    princpios filosficos da Naturopatia remotam a Hipcrates, pai da biomedicina, que

    predizia ser o corpo que se curava por si prprio, cabendo ao mdico fortalecer o

    potencial de cura inerente ao homem. Por outro lado, o que diferencia a

    Naturopatia da Naturologia que a primeira foca-se na doena e a segunda na

    sade (FIALHO, 1999). A sade, para a Naturologia, uma viso que procura no

    fragmentar o ser humano, concebendo-o em sua integralidade. Assim, a Naturologia: No trata s a sade fsica, mas tambm a sade mental; no se dirige apenas para o indivduo, mas a toda a comunidade; no se limita ao homem, mas questiona e incorpora o seu habitat. Nesse sentido, o de sade total, que se pode perceber a diferena entre a prtica naturolgica e a naturoptica. O naturlogo vai alm do naturopata, no se restringe ao indivduo, ou ao fsico desse indivduo, mas busca o holos, o todo em que esse indivduo est inserido. (FIALHO, 1999, p. 3 - 4).

    A Naturologia tem em seu nascimento um olhar voltado para a

    integralidade da sade humana e no apenas enquanto unidade singular de vida,

    mas tambm como resultado da inter-relao com a coletividade e a natureza,

    apontando para a necessidade se um pensamento holstico. Nesse sentido, Fialho

    (1999, p. 5) afirma que:

    Procurando resgatar a leveza, a graa, o respeito pelo diferente, a solidariedade e a colaborao na preservao do patrimnio comum, restabelece-se uma tica cosmolgica. O Naturlogo tambm um ambientalista com uma viso singular e significativa do que seja poluio e do respeito que se deve s geraes futuras.

    Tal como o surgimento da Biotica, a qual se deveu manifestao

    pblica dos conflitos ticos relacionados aos abusos da cincia, descaracterizao

    4 Diz-se prticas complementares quelas usadas juntas com prticas da biomedicina; integrativas: quando so usadas conjuntamente baseadas em avaliaes cientficas de segurana e eficcia (TESSER e BARROS, 2008).

  • 22

    da assistncia mdico-sanitrio e necessidade de novos valores ticos (DINIZ e

    GUILHEM, 2002), a Naturologia nasceu de forma semelhante, impulsionada pela

    necessidade atual [...] de alguns outros conceitos no processo sade-doena, como

    a intuio, a energia vital, o holismo entre outros, impondo-se a necessidade de

    repensar a prtica dentro de um novo espao tico (TESSER e BARROS, 2008, p.

    917).

    A Naturologia, ento, surgiu como um campo na rea da sade que se

    tem estruturado especialmente nos ltimos dez anos. Bourdieu (2001) apresenta a

    noo de campo como objetos e espaos que configuram jogos de disputas e poder.

    Em relao ao campo cientfico, Bourdieu (1983) apresenta a luta que ocorre nesses

    espaos pela disputa da capacidade tcnica (autoridade) e a legitimao social

    (autorizao) frente s diferentes formas do conhecimento humano: O campo cientfico, enquanto sistema de relaes objetivas entre posies adquiridas (em lutas anteriores) o lugar, o espao de jogo de uma luta concorrencial. O que est em jogo especificamente nessa luta o monoplio da autoridade cientfica definida, de maneira inseparvel, como capacidade tcnica e poder social; ou, se quisermos, o monoplio da competncia cientfica, compreendida enquanto capacidade de falar e agir legitimamente (isto , de maneira autorizada e com autoridade), que socialmente outorgada a um agente determinado." (BOURDIEU, 1983 p. 122-123).

    Como todas as sociedades esto interessadas na minimizao das

    enfermidades, existem disputas entre diferentes formas de cuidado que buscam

    reconhecimento social, importncia simblica e recursos econmicos e tcnicos

    (TESSER e BARROS, 2008). Assim sendo, objetos e espaos de disputas so

    comuns nos campos, em especial nos de atuao profissional na sade, como vem

    ocorrendo na rea das terapias alternativas, integrativas e complementares, a

    exemplo da Naturologia. Ainda assim, o Naturlogo no algum que veio tomar o

    lugar do mdico, mas um especialista cujo saber pode se somar a de outros

    profissionais que atuam nas reas da sade [...] (FIALHO, 1999, p. 5).

    Para cumprir os objetivos propostos pela Naturologia, no contexto da

    sade coletiva, principalmente os pautados pelas vises ecolgicas, ticas e de

    promoo sade, importante que os futuros profissionais sejam capacitados a

    enfrentar os desafios impostos pela cultura contempornea, em especial no contexto

    social brasileiro, local onde a Naturologia se instaura. Para tanto, um dos pontos de

    partida a formao profissional tica, e a Biotica, como um movimento renovador,

  • 23

    fortalecedor da tica, torna-se uma abordagem imprescindvel no processo de

    ensino-aprendizagem no mbito da Naturologia.

    Faz-se mister que o ensino da Biotica nos cursos de graduao do

    Brasil, aqui, em especial, o curso de Naturologia, sejam pautados por referenciais

    bioticos, pensados a partir das necessidades cotidianas da sade coletiva. Nesse

    sentido, surge a preocupao relacionada formao do naturlogo no que diz

    respeito ao equacionamento dos temas ticos presentes no cotidiano dos seres

    humanos, em especial dos brasileiros, uma vez que o curso insere-se no contexto

    da sade coletiva e vem ganhando espao na sade pblica nacional.

    Assim sendo, define-se a questo central da presente pesquisa: conhecer

    quais so os referenciais bioticos presentes no ensino da graduao de Naturologia

    no Brasil e discutir sobre suas implicaes para a formao profissional do bacharel

    em Naturologia socialmente comprometido.

    1.1 Objetivo Geral:

    Discutir, luz da Biotica Social, os referenciais de anlise em Biotica

    presentes no ensino de graduao em Naturologia no Brasil e suas implicaes para

    a formao do naturlogo.

    1.2 Objetivos especficos:

    1.1.1 Identificar os principais temas de Biotica presentes no ensino de graduao

    em Naturologia no Brasil.

    1.1.2 Buscar elementos que permitam inferir quais so os referenciais de anlise

    em Biotica presentes no ensino de graduao em Naturologia.

    1.1.3 Discutir os referenciais de anlise em Biotica identificados nos cursos de

    Naturologia, tendo como referncia a Biotica social.

  • 24

    1.3 Justificativa

    Esta pesquisa pretendeu discutir os referenciais de anlise em Biotica

    presentes no ensino de uma graduao da rea da sade relativamente nova: a

    Naturologia. Esse debate insere-se em um momento em que as terapias ditas

    alternativas, complementares e integrativas tm ganho espao na sociedade

    contempornea, inclusive incorporadas pelo Sistema nico de Sade (SUS),

    necessitando, portanto, de discusso sria e aprofundada.

    Considerando-se os princpios do SUS, integralidade, universalidade e

    equidade, a utilizao das medicinas tradicionais e das terapias complementares e

    integrativas podem se tornar uma aliada efetiva. No entanto, a implementao

    efetiva dessas prticas na sociedade atual como forma de resgatar valores, em

    especial ecolgicos e sociais, ou mesmo no SUS, [...] para fazer frente ao desafio

    da sua concretizao, faz-se necessrio lidar com as questes de ordem tica

    vivenciadas nos servios de sade, especialmente na ateno bsica, a qual tem

    sido preterida pelas reflexes Bioticas (ZOBOLI, 2004, p. 1691).

    Dentre os temas ticos comuns da prtica diria que tm sido

    postergados na literatura Biotica, Zoboli (2004) aponta os verificados na relao do

    profissional com o usurio e/ou com a famlia (tais como: a relao teraputica

    propriamente dita destacando-se as dificuldades em estabelecer os limites da

    relao profissional/usurio, os limites da interferncia da equipe de sade no estilo

    de vida dos usurios, no prejulgamento dos usurios por parte dos profissionais de

    sade e outros; o projeto teraputico destacando-se as prescries de

    medicamentos que os usurios no podero comprar; a informao como informar

    o usurio para conseguir sua adeso ao tratamento, omisso de informaes ao

    usurio, acesso dos profissionais de sade a informaes relativas vida particular,

    e outros), alm dos problemas ticos vivenciados na relao da equipe e nas

    relaes com a organizao e o sistema de sade.

    Tesser e Barros (2008) apontam que as medicinas alternativas e

    complementares inovam: ao considerar o sujeito doente como centro do cuidado e

    focarem na relao cuidador-paciente; na busca de teraputicas menos invasivas,

    menos dependente da tecnologia e com igual ou maior eficcia nas situaes mais

  • 25

    gerais e comuns de adoecimento; em um modelo de sade que incentiva a

    autonomia do paciente e que tem como categoria central a sade e no a doena.

    Ainda que o uso de algumas prticas no convencionais pode contribuir

    no sentido de sensibilizar para uma forma mais humanizadora no processo de cuidar

    (WALDOW, 2001, p. 84), o modismo atual presente na sociedade, o qual tem

    levado ao consumo de tcnicas e tratamentos complementares dentro da lgica do

    mercado, da medicalizao e da higiomania5 [...] (TESSER; BARROS, 2008, p.

    919), pode desvirtuar os valores ticos presentes nessas prticas.

    O debate acerca dos referenciais bioticos presentes no curso de

    Naturologia contribui para refletir sobre a forma como tem sido utilizado o

    conhecimento das prticas naturais frente aos temas ticos presentes na sociedade

    atual. Ressalta-se que o naturlogo no atua apenas em esfera privada, pois a

    Naturologia j realidade em unidades bsicas de sade e em outras instncias

    pblicas de sade de diversas cidades brasileiras.

    Tesser e Barros (2008) defendem a oferta das medicinas alternativas,

    complementares e integrativas no SUS como [...] cultivo de democracia e ecologia

    epistemolgicas sustentveis e estratgia de manejo da medicalizao na

    construo da universalidade, equidade e integralidade [...] (p. 920).

    Para que o processo de ensino-aprendizagem possa ser consolidado no

    curso de Naturologia, tambm nos cursos da rea da sade em geral, como meio de

    desenvolver conscincia tica nos profissionais e de promover o respeito

    incondicional ao prximo e qui ao cosmos, consideram-se de suma importncia

    estudos que aprofundem a temtica do ensino e da aprendizagem da Biotica em

    seus vrios aspectos.

    Esse trabalho, portanto, apresenta relevncia do ponto de vista cientfico,

    j que se constitui em acervo bibliogrfico sobre temticas ainda pouco discutidas:

    Naturologia, Biotica Social e ensino da Biotica na rea da sade, subsidiando

    outras pesquisas como fonte de informao; do ponto de vista social, por contribuir

    com a reflexo tica a partir de um referencial terico de cunho social; e do ponto de

    vista poltico, por favorecer a discusso sobre a tica na formao de profissionais

    que futuramente podero tornar-se pessoas comprometidas com o exerccio da

    cidadania.

    5 Higiomania trata-se da preocupao excessiva que a pessoa tem com a sua prpria sade. Fundamenta-se na responsabilizao do indivduo perante sua sade (NOGUEIRA, 2003).

  • 26

    2 REFERENCIAL TERICO

    Para conhecer os referenciais de anlise em Biotica presentes no ensino

    de graduao em Naturologia e discuti-los sob a tica da Biotica social, o recorte

    da literatura imprescindvel como subsdio para compreenso do cenrio

    conceitual (Biotica) e do cenrio contextual (Naturologia).

    Para tanto, apresenta-se primeiramente o cenrio conceitual. Inicia-se

    com a conceituao da Biotica e sua evoluo histrica desde a origem at a

    atualidade. A contextualizao histrica da Biotica importante para se entender

    os referenciais de anlise que percorrem esse campo de estudo, uma vez que so

    diversos e foram sendo construdos cada qual em um momento histrico e em uma

    realidade cultural especfica, caracterizando-se num processo de natureza terica e

    poltica. Apresenta-se as dimenses da Biotica atravs da exposio dos temas a

    qual esssa rea de estudo se debrua, e, a seguir, a diversidade de referenciais na

    Biotica que balizam a tomada de deciso frente aos temas apresentada, incluindo

    o enfoque da Biotica Social.

    Na sequncia, apresenta-se o cenrio contextual: a graduao de

    Naturologia no Brasil. Discorre-se sobre caractersticas peculiares dessa graduao,

    expem-se algumas das disciplinas estudadas e traa-se a convergncia entre a

    Naturologia e a sade pblica.

    2.1 Biotica

    A Biotica um espao de reflexo e prxis que se encontra em

    constante aperfeioamento atravs das contribuies de diferentes espaos

    acadmicos. A Biotica prioriza conflitos ticos referentes s cincias da vida e da

    sade (REICH, 1995). Trata-se de tica aplicada, caracterizada a partir da

    sociedade, da cultura e dos valores morais da civilizao contempornea (CLOTET,

    1997). Nesse sentido, a Biotica pode ser considerada nova, porque introduz

    questes trazidas especialmente dos avanos tecnolgicos no campo da vida, que

    no estavam previstos em consideraes anteriores, como necessidade de proteger

  • 27

    a vida humana face s inovaes tcnico-cientficas nas reas das cincias da vida

    (ANJOS, 2001).

    Dessa forma, o nascimento da Biotica pode ser considerado um

    movimento renovador, fortalecedor da tica. Esse campo de estudo tende a traduzir

    a filosofia moral6 para uma linguagem mais ao alcance daqueles que atuam

    especialmente nas reas da sade e da vida, facilitando aplic-la. No perodo inicial

    do surgimento da Biotica Diniz e Guilhem (2002) assinalam alguns fatos, tais como:

    o Cdigo de Nuremberg, a Declarao de Helsinque e as denncias frequentes de

    abusos cometidos por pesquisas biomdicas, enquanto marcos histricos os quais

    contriburam para a consolidao desse ramo acadmico.

    O Cdigo de Nuremberg, datado de 1947, por exemplo, um marco

    histrico por ser o primeiro documento internacional de regulamentao das

    pesquisas envolvendo seres humanos. Esse documento resultou do processo de

    nazistas da II Guerra Mundial. Ao final dessa guerra, em 1945, instaurou-se o

    Tribunal Militar Internacional e, em 1946, iniciou-se o julgamento de vinte e trs

    acusados pelos crimes cometidos durante a guerra contra ciganos, judeus,

    poloneses e russos. Dos vinte e trs acusados, vinte eram mdicos que haviam

    realizado experimentos biomdicos com prisioneiros nos campos de concentrao.

    Tal cdigo resultou em documento com dez itens que resumem normas para

    experimentos mdicos com participantes humanos (DINIZ e GUILHEM, 2002).

    A Declarao de Helsinki, por sua vez, foi elaborada pela Associao

    Mdica Mundial que reconheceu falhas no Cdigo de Nuremberg e props

    mudanas em tal cdigo. Essa declarao foi adotada na 18 Assemblia Mdica

    Mundial, ocorrida em Helsinki, Finlndia, em junho 1964. Aps essa data, o mesmo

    cdigo foi revisto mais cinco vezes (Japo: 1975; Itlia: 1983; Hong Kong: 1989,

    frica do Sul: 1996, Esccia: 2000). A ltima reviso, realizada em 2000, foi feita

    aps crticas direcionadas a estudos que testaram medicamentos como o AZT para

    o vrus HIV, conduzidos na frica, e que foram controlados por placebo e j haviam

    sido estabelecidos protocolos mdicos profilticos comprovados (DINIZ e GUILHEM,

    2002). Aps o ano de 2000, foram acrescentadas duas notas esclarecedoras, uma

    em 2002 e outra em 2004 (RAMOS, 2008). Recentemente, em maro de 2008

    reuniu-se, novamente em Helsinki, um grupo de trabalho responsvel por consolidar

    6 A filosofia moral distingue tica de moral e discute, problematiza e interpreta o significado dos diferentes valores morais (CHAU, 2000).

  • 28

    sugestes para a reviso da referida declarao, composto por representantes de

    diversas nacionalidades, incluindo o Brasil. Entre os principais pontos discutidos,

    referente a pesquisas clnicas envolvendo seres humanos, encontram-se a utilizao

    de placebo e a questo que dizer respeito ao acesso do medicamento ao final do

    estudo pelos participantes desse. A nova verso do texto foi submetida aprovao

    na Assemblia Geral da Associao Mdica Mundial em outubro de 2008 em Seul,

    Coria do Sul (JAMB, 2008a).

    O resultado da reviso ocorrida em Seul, 2008, no item 33 da Declarao,

    informa que aps concluso dos estudos os pacientes nele includos tero acesso a

    intervenes identificadas no estudo como benficas ou a outros cuidados

    adequados ou benefcios. No entanto, a utilizao de placebo em pesquisas

    envolvendo seres humanos, quando justificado metodologicamente e sem expor o

    paciente a riscos, poderia ser utilizado. Para a Associao Mdica Brasileira, o

    resultado dessa reviso foi [...] um documento bastante slido, atualizado e

    disponvel para o balizamento tico (JAMB, 2008b, p. 31). No entanto, a utilizao

    de placebos foi permitida (mesmo que com ressalvas) o que possibilita a propenso

    novos abusos da indstria farmacutica em pesquisas, configurando-se em um

    ponto de vista favorvel s indstrias farmacuticas e no populao vulnervel

    dos pases do hemisfrio sul.

    Entre as denncias de abusos em pesquisas e procedimentos biomdicos

    que desempenharam papel importante na consolidao da Biotica, Albert Jonsen

    (1993), pontua trs acontecimentos. O primeiro, foi a publicao do artigo na revista

    Life, em 1962, intitulado Eles decidem quem vive, quem morre, da jornalista Shana

    Alexander. Esse artigo relatava a criao de um comit de tica hospitalar, o Comit

    de Seattle, o qual definia as prioridades para a alocao de recursos em sade. O

    comit havia elaborado critrios de seleo de pacientes que necessitavam de

    hemodilise para um pequeno grupo de pessoas leigas. Esse fato assinalou a

    ruptura entre a Biotica e a tradicional tica mdica, at ento de domnio exclusivo

    do profissional de sade, principalmente mdicos.

    O segundo acontecimento foi a divulgao do artigo, de Henry Beecher,

    intitulado tica e pesquisa clnica, publicado em 1966 no The New England

    Journal of Medicine. O estudo de Beecher partiu da compilao original de 50

    artigos, nos quais encontrou 22 relatos de pesquisas realizadas por instituies

  • 29

    governamentais e companhias de medicamentos em que os alvos eram os

    chamados cidados de segunda classe. A pesquisa demonstrou que apenas dois

    dos 50 artigos compilados possuam termo de consentimento informado e constatou

    abusos, como maus tratos e violaes ticas, demonstrando que a imoralidade em

    pesquisa biomdica no era exclusiva dos mdicos nazistas, tal como os novos

    cientistas acreditavam.

    O terceiro evento que Jonsen (1993) apontou como significativo foi a

    manifestao pblica contra o transplante realizado pelo cirurgio cardaco Christian

    Barnard, da frica do Sul, em 1967. Bernard transferiu o corao de uma pessoa

    quase morta para um paciente com doena cardaca terminal. A ocorrncia gerou

    discusso sobre como Barnard poderia garantir que o doador estava realmente

    morto no momento do transplante. Tal fato levou a Escola Mdica da Universidade

    de Harvard, em 1968, a definir critrios para a morte cerebral, na tentativa de

    controlar casos semelhantes.

    A consolidao acadmica da Biotica iniciou-se principalmente nos EUA.

    Alm do neologismo criado pelos americanos Potter e/ou Hellegers, outro fator

    importante na consolidao da Biotica, como assim assinalam Diniz e Guilhem

    (2002) foi a instituio, pelo Governo e o Congresso estadunidense, de um comit

    nacional com o objetivo de criar diretrizes ticas para pesquisas. Esse comit

    nasceu das necessidades das denncias dos abusos realizados com pesquisa,

    especialmente do caso Tuskegee.

    O caso Tuskegee consistiu na denncia, em 1972, dos abusos de uma

    pesquisa realizada no sudoeste dos Estados Unidos, ocorrida durante o perodo de

    1932 a 1972, com o objetivo de conhecer a histria natural da sfilis. Cerca de 400

    homens negros e pobres, que possuam sfilis latente, foram acompanhados no

    decorrer dos anos, sem o devido tratamento. Mesmo aps a descoberta da

    penicilina, o estudo no foi encerrado, e os homens foram acompanhados at a

    morte ou at a interrupo da pesquisa, devido a denunciados abusos. Em

    consequncia desse caso, em 1974, criou-se a Comisso Nacional para Proteo de

    Sujeitos Humanos nas Pesquisas Biomdicas e Comportamentais. Em 1978, tal

    comisso proporcionou o relatrio de princpios ticos, o qual ficou conhecido como:

    Relatrio Belmont: Princpios ticos e Diretrizes para a Proteo de Sujeitos

    Humanos nas Pesquisas.

  • 30

    Nesse relatrio, foram eleitos trs princpios bsicos ticos, pertencentes

    histria das tradies morais do ocidente: (1) o respeito pelas pessoas, (2) a

    beneficncia e (3) a justia. A divulgao desse relatrio representou o

    estabelecimento definitivo da Biotica. A partir desse momento, teve incio a

    formalizao definitiva da Biotica como um novo campo disciplinar (DINIZ e

    GUILHEM, 2002, p.23). Aps o Relatrio Belmont, Tom Beauchamp e James

    Childress propuseram a teoria principialista como um modelo de estudo na rea da

    Biotica. Tambm, Albert Jonsen e Stephen Toulmin, que participaram da

    elaborao do Relatrio, apresentaram o modelo de estudo da casustica.

    De acordo com Garrafa (2005c), o desenvolvimento histrico da Biotica

    ocorre com base em quatro etapas. Primeiro, a etapa de fundao, nos anos 70,

    quando se construram as bases tericas estruturais para a prtica da Biotica (em

    especial decorrente do Relatrio Belmont). A segunda etapa caracteriza-se pela

    expanso e consolidao, na dcada de 80, pois a Biotica se expandiu pelo mundo

    atravs de eventos, livros e revistas cientficas especializadas, destacando, nesse

    momento, o estabelecimento da teoria principialista, a mais conhecida na Biotica. O

    terceiro momento foi a reviso crtica, perodo posterior aos anos 90 at 2005,

    especialmente pelo surgimento de crticas ao principialismo e pela crescente

    necessidade de novas perspectivas para se pensar, de modo tico, outros aspectos

    que demandam ateno e que ultrapassam a abordagem por princpios. A quarta e

    ltima etapa seria o momento atual, o perodo da ampliao conceitual, que se

    caracteriza aps a homologao, em 19 de outubro de 2005, em Paris, da

    Declarao Universal de Biotica e Direitos Humanos da UNESCO (Organizao

    das Naes Unidas para a educao, a cincia e a cultura), ampliando a atuao da

    Biotica para alm da temtica biomdica-tecnolgica, atingindo os campos social e

    ambiental, retornando ao sentido original da Biotica, tal como props Potter.

    2.1.1 As Dimenses da Biotica

    Hellegers apresentou a Biotica como tica da vida, restrita ao estudo

    dos conflitos ticos decorrentes da aplicao das biotecnologias ao homem e

    relao entre mdico-paciente. Potter, por sua vez, fixou Biotica o sentido

    ecolgico de "cincia da sobrevivncia", preocupando-se com o bem-estar dos seres

  • 31

    humanos, dos animais no-humanos e do meio ambiente. Nesse sentido, alguns

    autores assumem a definio de macrobiotica para designar a preocupao dessa

    disciplina com as questes que envolvem a sobrevivncia do planeta ecologia,

    grandes debates polticos, culturais e sociais, dessa forma, pertencentes ao legado

    de Potter; e microbiotica, ou Biotica clnica, voltada aos problemas ticos

    referentes ao relacionamento entre os profissionais de sade e os pacientes e entre

    as instituies e as pesquisas biomdicas de forma geral, conforme o legado de

    Hellengers (PESSINI, 2005).

    Berlinguer (1991) assinala que os estudiosos da rea de Biotica, em sua

    grande maioria, elegeram como temas centrais de debates os que emergem,

    especialmente a partir do desenvolvimento da biomedicina e da evoluo tcnico-

    cientfica em geral (eutansia, transplantes, reproduo assistida, clulas tronco,

    engenharia gentica). O autor ento denuncia que os problemas os quais persistem

    a tal evoluo, esses se tornam cotidianos, tais como a fome, a pobreza, o acesso

    precrio sade, entre outros, e tm sido marginalizados por alguns enfoques feitos

    na Biotica.

    A Ctedra UNESCO de Biotica da Universidade de Braslia sistematiza a

    compreenso da rea de estudo e abrangncia da Biotica, a partir de duas grandes

    reas de atuao, conforme sua historicidade: a Biotica das situaes emergentes

    e a Biotica das situaes persistentes (GARRAFA, 2005c).

    Na Biotica das situaes emergentes, so relacionados os temas

    surgidos nos ltimos 50 anos, derivados da evoluo biotecnicocientfica. Dentre

    esses temas, mencionam-se todos os relacionados s pesquisas cientficas

    envolvendo seres humanos; os temas derivados das implicaes relacionadas

    engenharia gentica, na qual se inclui a medicina preditiva e a terapia gnica; as

    doaes e transplantes de rgos e tecidos humanos; a sade reprodutiva,

    especialmente acerca da fecundao assistida, mas tambm assuntos como a

    seleo e descarte de embries, a eugenia (escolha de sexo e determinadas

    caractersticas fsicas do futuro beb), as mes de aluguel e a clonagem; questes

    pautadas na biossegurana; entre outras.

    A Biotica das situaes persistentes, por sua vez, trata e analisa os

    temas cotidianos que se referem vida das milhares de pessoas e que persistem na

    atualidade desse os tempos remotos. Aqui, entram todos os temas relacionados

  • 32

    excluso social; s discriminaes de gnero e etnia, entre outras; aos temas da

    equidade, da universalidade do acesso sade e da alocao de recursos

    escassos; aos direitos humanos, cidadania e democracia; s cacotansias; ao

    aborto e eutansia. Essas duas ltimas so tratadas por alguns autores como

    situaes emergentes; no entanto, para a Ctedra UNESCO de Biotica da UnB,

    so classificadas como persistentes, pois se tratam de problemas os quais persistem

    no debate tico desde os tempos remotos.

    A ampliao do campo de atuao da Biotica denota que essa [...] vai alm de temas ticos na medicina para incluir assuntos da sade pblica, preocupaes sobre populaes, gentica, meio ambiente sanitrio, prticas e tecnologias reprodutivas, sade e bem-estar animal e semelhantes. (ANJOS, 2001, p.21).

    Pessini e Barchifontaine (2005) trazem em seu livro Problemas atuais de Biotica uma lista de temas especficos dos quais a Biotica se ocupa. Dentre a listagem, destacam-se, entre outros temas que envolvem a vida em nvel individual

    ou coletivo: ecologia; pesquisas com seres humanos; polticas pblicas e

    populacionais; biologia, gentica e engenharia gentica; tcnicas de reproduo

    assistida; aborto; transplantes; morte, morrer e cuidados paliativos.

    Schramm, Anjos e Zoboli (2007) revelam que a caracterstica mais

    marcante da Biotica brasileira a extensa literatura no que se refere relao

    entre Biotica e sade pblica. Consequentemente, apontam para a complexidade

    do tema: De fato, a problemtica Biotica em sade pblica ampla e complexa, tanto no Brasil como no Mundo, devido em particular ao processo de globalizao da sade e que, longe de universalizar o acesso aos cuidados, cria amplos bolses de excludos e de sujeitos vulnerados. (SCHRAMM, ANJOS e ZOBOLI, 2007, p.34).

    A Biotica pode tornar-se, dependendo da forma que essa for

    direcionada, uma ferramenta para a resoluo, ou pelo menos para a diminuio,

    dos problemas enfrentados no campo da sade pblica. Em se tratando da sade

    pblica no Brasil: [...] torna-se imprescindvel relembrar o que representa o Sistema de Sade - SUS, no contexto do sistema de sade brasileiro, visto que seus princpios fundamentais da Universalidade de cobertura, Igualdade de acesso e Integralidade da assistncia constituem princpios de alto teor biotico que permitem estabelecer as bases de uma gesto moralmente legtima e socialmente aceitvel. (KLIGERMAN, 2002, p.305).

  • 33

    Sendo assim, as crescentes mudanas ocorridas no sistema de sade

    pblica brasileira, [...] por representar um processo de mudana na prtica da

    ateno sade que exige dos profissionais, gestores e usurios transformaes

    atitudinais e culturais, requer uma reviravolta tica (ZOBOLI, 2004, p.1691).

    Kligermann (2002) menciona que os conflitos ticos, envolvidos na sade

    pblica, buscam ser resolvidos por diversas correntes filosficas. Nesse sentido,

    com o intuito de promover o debate dos diferentes referenciais de anlise da

    Biotica na interface com a sade pblica, Zoboli (2003b) apresenta quatro enfoques

    centrais da Biotica do principialismo, da casustica, das virtudes e do cuidado e

    aponta crtica a esses referenciais no que dedilha as questes de sade pblica.

    Para Zoboli (2003b), tais referenciais so produzidos para pases centrais

    desenvolvidos e boa parte desses baseada em uma linguagem para tomada de

    decises no mbito individual.

    Haja vista que coexistem vrios referenciais de anlises em Biotica, tm-

    se, portanto, vrias formas de balizar as aes frente a um mesmo dilema tico.

    importante que para fortalecer a sade coletiva, h necessidade de voltar o foco da

    Biotica para o contexto de desigualdades sociais, o qual marca a sade na Amrica

    Latina. [...] necessrio aproximar-se desses referenciais com vistas a habilit-los

    como instrumentais de transformao desta realidade e no como meio de justific-

    la (ZOBOLI, 2003b, p.34).

    2.1.1.1 A Diversidade de Referenciais Tericos em Biotica

    A Biotica, por aflorar em contexto interdisciplinar, permite a pluralizao

    de contedos bioticos, quer sejam relativos s dimenses micro e macrossocial,

    quer sejam relacionados aos problemas de situaes emergentes ou persistentes.

    Seja como for, para o equacionamento frente a um determinado tema tico, existe

    uma variedade de metodologias, o que aponta para a existncia da diversidade de

    referenciais tericos em Biotica.

    Partindo de consideraes de Diego Gracia, Mrcio Fabri dos Anjos

    (2001, p.24) assinala que, para fundamentar a Biotica, necessrio sondar

    distintas correntes filosficas de interpretao do homem, considerando que (...)

  • 34

    no se pode fugir ao fato de que a tica da vida se alimenta de concepes que nos

    remetem interpretao e compreenso filosfica do ser humano e de sua vida.

    Assim como existem variadas correntes filosficas, existem mltiplos

    enfoques de anlise em Biotica, tal como mostra Neves (1996), Anjos (2001),

    Schramm (2002), Kligermann (2002) e Zoboli (2003b).

    Neves (1996) sistematiza duas perspectivas principais de anlise

    Biotica. Uma seria o ponto de vista anglo-americano, mais voltado esfera do

    privado, pelo fato da nfase na autonomia da pessoa singular, em que aparecem

    com mais frequncia os microproblemas formados por questes cuja resoluo

    demanda de ao imediata e decisiva para um indivduo. A outra, a perspectiva

    Europia (especialmente da Europa latina), em que os interesses da esfera pblica

    so mais visveis; portanto, essa perspectiva concentra mais fortemente a sua

    ateno nos macroproblemas. Assim, a autora indica os modelos tericos de

    reflexo e anlise mais aplicados em Biotica no panorama mundial. Entre as

    perspectivas de anlises, inclinadas ao pensamento tico anglo-americano,

    encontram-se os modelos: principialista, libertrio, virtudes, casustico, do cuidado, o

    modelo contemporneo do direito natural e o modelo contratualista. No modelo

    europeu destaca-se a perspectiva personalista.

    Partindo especialmente das consideraes de Neves (1996), o que ela

    designou modelos explicativos em Biotica, Anjos (2001, p. 26-29) descreve sobre

    a abrangncia e o dinamismo da Biotica. O ltimo autor traz a denominao

    tendncias de anlise em Biotica para apontar as dez escolas principais que

    concretizam as percepes e nfases dadas na atualidade nesse campo de estudo.

    O autor considera os modelos apontados por Neves (1996), substitui o modelo do

    cuidado pelo feminista, e acrescenta a perspectiva hermenutica.

    Schramm (2002) assinala que durante as dcadas de 70 e 80 surgiram

    vrias concepes concorrentes na Biotica. O autor menciona algumas das

    supracitadas correntes (principialismo; casustica; tica das virtudes; tica do

    cuidado; libertarianismo; comunitarismo; personalismo; hermenutica) e aponta

    outras, como a tica narrativa, a tica discursiva e a tica prtica. Essa ltima, de

    inspirao utilitarista, desenvolvida, sobretudo, por Peter Singer (1998).

  • 35

    Kligermann (2002) ensina que os conflitos ticos buscam ser resolvidos

    por diversas correntes filosficas, tais como as do utilitarismo, do liberalismo e

    tambm do comunitarismo.

    Nesse mesmo sentido, Zoboli (2003b), descreve os diferentes enfoques

    bioticos como sendo referenciais de anlise em Biotica. Com a finalidade de

    introduzir o debate dos diferentes referenciais de anlise da Biotica na interface

    com a sade pblica, a autora apresenta quatro enfoques bioticos centrais do

    principialismo, da casustica, das virtudes e do cuidado.

    Nota-se que a discusso no panorama mundial pauta-se de diferentes

    perspectivas. Por sua vez, a Biotica no Brasil traz tambm caractersticas

    peculiares. A Biotica brasileira percebeu a necessidade de ir alm do principialismo

    e [...] buscou outros conceitos e referenciais que correspondessem realidade mais

    complexa vivenciada no Brasil e no prprio contexto mundial (ANJOS, 2007, p.24).

    Siqueira, Porto e Fortes (2007) informam que o reducionismo geral da

    Biotica, em especial a tendncia principialista, no atingiu os bioeticistas

    brasileiros, que passaram a formular reflexes e propostas bioticas para melhor

    atender s necessidades da comunidade brasileira, considerando especialmente a

    extrema desigualdade social no pas. A Biotica no Brasil tem sua histria recente,

    est em constante expanso, vem ganhando espao e sendo reconhecida por seus

    servios sociedade. Na verdade, a Biotica, no Brasil, busca se afimar no

    contexto das necessidades da sade coletiva.

    Em relao ao processo de criao, reflexo e consolidao da Biotica

    brasileira, [...] fundamental enfatizar a importncia da Reforma Sanitria que j apontava os rumos para a reflexo crtica que marca a Biotica brasileira, mostrando que os problemas enfrentados pela rea da sade no poderiam ser resolvidos apenas na clnica, uma vez que tinham origem na pobreza e na desigualdade social, na qual vivia a imensa maioria dos brasileiros. (SIQUEIRA, PORTO e FORTES 2007, p.163).

    No pensamento biotico brasileiro, Siqueira, Porto e Fortes (2007) fazem

    referncia a seis escolas: (1) Biotica de Reflexo Autnoma, de enfoque liberalista;

    (2) Biotica de Proteo e (3) Biotica de Interveno, referenciais libertrios; (4)

    Biotica e Teologia da Libertao, de enfoque das virtudes; (5) Biotica Feminista,

    do enfoque de mesmo nome; e (6) Biotica de Proteo Ambiental, referencial

    naturalista.

  • 36

    Por ser um campo de reflexo, discusso e articulao com diferentes

    campos do saber, a Biotica no rejeita a reflexo tica acumulada por milnios [...]

    (FIGUEIREDO; GARRAFA; PORTILLO, 2008, p. 53). Assim sendo, alm dos j

    descritos referenciais de anlise em Biotica, existem outras reflexes ticas

    especficas como a teoria do dever de Immanuel Kant (2005), a tica hedonista de

    Epicuro (1973), e as contribuies de John S. Mill (1976), Nietzche (2002). Ainda

    que exista uma multiplicidade de referenciais tericos em tica e Biotica, comum

    que os profissionais confundam a tica com a deontologia. Assim, autores tm

    apontado que nos currculos dos cursos da rea da sade, o modelo pautado nos

    cdigos de tica profissional (cdigos deontolgicos) presente no apenas nos

    currculos das graduaes, como tambm no pensamento dos profissionais

    (ZOBOLI, 2003a; SEGRE, 2002).

    Para efeito deste trabalho, adotou-se o nome referenciais de anlises em

    Biotica ou ainda enfoques bioticos para designar as diferentes correntes de

    pensamentos existentes frente ao equacionamento de um mesmo tema. Apesar do

    fato de os diversos referenciais de anlise serem apresentados por distintos autores

    de maneira semelhante, como vistos nas descries de Neves (1996), Anjos (2001),

    Schramm (2002), Kligermann (2002) e Zoboli (2003b), h algumas pequenas

    divergncias entre os autores na apresentao dessas correntes. Esse fato vivel,

    pois no h como se classificar claramente os estilos de pensamentos em caixas

    especficas, pois sempre haver diferenas entre os autores e pelo fato de poder

    existir diferentes correntes filosficas fundamentando um mesmo referencial de

    anlise biotico.

    Como exemplo, cita-se a abordagem da tica Prtica, de Peter Singer

    (1998), e a Biotica da Interveno, de Volnei Garrafa. Embora ambos possam ser

    considerados utilitaristas, ambos apresentam divergncias entre si, at porque foram

    criados em diferentes contextos econmicos e scio-culturais. Esse exemplo serve

    para justificar a apresentao dos referenciais tericos de anlise em Biotica que

    do suporte a este estudo7.

    7 Algumas vezes, referenciais foram agrupados a critrio do Autor deste trabalho, conforme a literatura estudada. Como exemplo, para discutir o referencial Biotica Social, reuniram-se vrios referenciais de cunho social, como a Biotica da Interveno, da Proteo, Cotidiana, Biotica e Teologia da Libertao e Biotica Antissexista, Antirracista e Libertria.

  • 37

    Visto que vrios so os enfoques presentes na Biotica, foram escolhidos

    seis referenciais para a elaborao deste estudo. Apresenta-se, a seguir, os

    referenciais: (1) do principialismo, (2) das virtudes, (3) do cuidado, (4) naturalista, (5)

    da tica profissional e (6) Biotica social.

    As escolhas desses referenciais partiram primeiramente da hiptese de

    que alguns desses pudessem estar presentes no ensino da Naturologia no Brasil,

    sendo j descritos no projeto inicial desta pesquisa. O enfoque da tica profissional

    foi descrito aps a necessidade percebida perante a realizao da mesma.

    Igualmente, outros referenciais, como o da casustica, no apareceram ou foram

    insignificantes no ensino da Naturologia no Brasil, e esses foram os fatores que

    levaram a no ser dada a devida ateno s explicaes e s fundamentaes

    dessas no corpo desse trabalho.

    Vale ressaltar que a Deontologia no um referencial de anlise em

    Biotica. No entanto, ainda grande o nmero de profissionais que confundem a

    tica com os cdigos de tica profissional.

    A seguir, apresentam-se os seis enfoques centrais que serviram de

    referncia terica para esta pesquisa.

    2.1.2 O Enfoque Principialista

    A teoria principialista na Biotica um dos referenciais mais difundidos e

    dominantes na rea, chegando a ser confundida com a prpria Biotica (DINIZ e

    GUILHEM, 2002). O principialismo volta-se mais tica biomdica, em especial

    prtica clnica, sendo Tom L. Beauchamp e James F. Childress os expoentes desse

    enfoque.

    Beauchamp e Childress (2002) diferenciam moralidade da moral comum.

    A primeira refere-se s normas da conduta humanas tidas como certas ou erradas

    dentro de um consenso social, e a segunda compreende apenas as normas que

    todas as pessoas moralmente idneas aceitam, as quais transcendem costumes e

    atitudes culturais locais. Os autores apontam que na moral comum possvel

    encontrar princpios bsicos para a tica biomdica e propem quatro princpios

    como forma de orientar as anlises dos problemas ticos: (1) autonomia, (2)

  • 38

    beneficncia, (3) no-maleficncia e (4) justia, todos importantes de uma mesma

    forma. Afirmam que todo princpio deve ser preciso, plausvel, completo e

    independente. Consideram que os princpios so prima facie, ou seja, devem ser

    cumpridos prioritariamente. Ainda assim, os autores reconhecem que os princpios

    podem conflitar entre si em determinadas situaes, uma vez que entre eles no h

    uma hierarquia, tendo ento espao para a mediao. Esses princpios propostos

    pelos autores no se constituem em uma teoria moral geral, porm proporcionam

    um arcabouo para reconhecer e refletir acerca dos dilemas ticos (BEAUCHAMP e

    CHILDRESS, 2002).

    A fundamentao do enfoque principialista tomada para o presente

    estudo baseada, especialmente, nos quatro princpios descritos por Beauchamp e

    Childress em seu livro Principles of Biomedical Ethics8.

    Para comear a discusso dos quatro princpios, inicia-se estudando o do

    respeito autonomia. Autonomia, termo derivado do grego auto (prprio) e nomos

    (lei, regra, norma), refere-se capacidade de o ser humano decidir o que bom ou

    o que seu bem-estar. Portanto, significa autogoverno, determinao de cada

    pessoa em tomar decises que dizem respeito sua prpria vida.

    Entender a autonomia como auto-determinao de um individuo apenas

    uma das formas de leitura possvel desse sintagma nominal. Assim, na discusso

    Biotica principialista a incluso do outro na questo da autonomia trouxe nova

    perspectiva de entender tal princpio que alia a ao individual com o componente

    social. Nesse sentido, que surge a responsabilidade pelo respeito pessoa.

    Assim, o princpio do respeito autonomia significa respeitar a vontade particular do

    sujeito. Significa, ainda, o respeito autonomia individual, bem como ao direito

    informao, privacidade, confidencialidade das informaes e ao consentimento

    livre e esclarecido, bem como a recusa informada.

    Respeitar a autonomia alheia valorizar as opinies e escolhas do outro,

    evitando a represso de suas aes (a menos que essas sejam prejudiciais para

    terceiros). Da mesma forma, demonstrar falta de respeito para com um indivduo

    autnomo negar-lhe a liberdade de agir conforme suas prprias apreciaes.

    8 Publicado em 1978 nos Estados Unidos; em 2001, j estava na sua 5 edio. A edio utilizada na apresentao deste referencial terico foi traduzida para o portugus a partir da sua 5 edio e publicada pelas Edies Loyola, em 2002, com o ttulo de Princpios de tica Biomdica.

  • 39

    Para os autores, as diferentes noes e descries de autonomia

    concordam em dois pontos especficos. O primeiro diz respeito liberdade,

    percebida como independncia de foras controladoras, e o segundo trata da

    competncia, entendida como a capacidade para a ao a qual se tem um propsito.

    Assim, a autonomia no exclusivamente individualista, pois a sua presena ou

    ausncia analisada em funo do que condiciona os atos dos atores imbricados no

    dilema. A percepo da autonomia est implicada em um contnuo espao que vai

    desde a presena plena da autonomia sua ausncia total.

    As decises para serem autnomas precisam refletir um grau substancial

    de compreenso e de liberdade, alm do agente estar livre de constrangimento. A

    autonomia ainda individual, porm h a perspectiva relacional, apontada em

    especial pelas vises femininas, as quais defendem que todos os sujeitos so

    socialmente inseridos e sua identidade construda no contexto relacional.

    Beauchamp e Childress assinalam que a interpretao do que significa

    respeito autonomia compreende o reconhecimento da obrigao moral de

    assegurar o direito de escolha, de aceitar ou no, mediante as informaes que

    esses recebem, por exemplo, dos profissionais de sade. Assim, tem-se que os

    profissionais devem sempre informar e perguntar aos seus pacientes acerca de seus

    desgnios e de suas decises. Dessa forma, respeito autonomia torna-se

    obrigao do profissional da sade e no apenas um ideal; e a escolha autnoma,

    por sua vez, constitui-se em um direito do paciente, no em um dever.

    Compreender o outro como ser autnomo implica em aceitar que o outro

    possa ter diferentes opinies, que tem direito de fazer suas escolhas e de agir

    conforme seus valores. Alm do mais, os profissionais tm o dever de facilitar as

    aes autnomas de terceiros, cooperando para a sua realizao. Tal noo traz

    obrigaes aos profissionais, como o de dizer a verdade, de obter o consentimento

    antes das intervenes, de respeitar a privacidade, de proteger informaes

    confidenciais e, caso solicitado, auxiliar as pessoas a tomarem decises.