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86 Resumo Este trabalho apresenta a teoria das categorias conforme elaboradas por Aristóteles, Kant e Ranganathan. Procura subsídios que permitam identificá-las como princípios fundamentais e imprescindíveis para a organização do conhecimento. As três perspectivas são confrontadas para estabelecer as diferenças e semelhanças, tendo em vista os objetivos de cada sistema categorial. Conclui que Aristóteles concebe seus princípios fundamentais para expressarem os modos do ser, ao passo que Kant os relaciona como modos do pensar. Por sua vez, Ranganathan formula as categorias como modos de classificar. Palavras-chave Categorias. Classificação filosófica. Teoria da classificação facetada. Organização do conhecimento. Reflexões sobre os sistemas categoriais de Aristóteles, Kant e Ranganathan Michel Maya Aranalde Bacharel e licenciado em filosofia e bacharel em biblioteconomia pela UFRGS. Bibliotecário-documentalista da Biblioteca Setorial de Ciências Sociais e Humanidades da UFRGS. E-mail: [email protected] Reflections on the categorical systems of Aristotle, Kant and Ranganathan Abstract This paper presents the theory of the categories as developed by Aristotle, Kant and Ranganathan. Subsidies are sought for in order to identify them as fundamental and essential principles for organization of knowledge. Three perspectives are confronted for establishing the differences and similarities in view of the objectives of each categorical system. The conclusion is that Aristotle conceives his principles as fundamental for expressing the ways of being, whereas Kant lists them as ways of thinking. In his turn, Ranganathan formulates the categories as ways of classifying. Keywords Categories. Phylosophycal classification. Faceted classification theory. Organization of knowledge. Ci. Inf., Brasília, v. 38, n. 1, p. 86-108, jan./abr. 2009

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Resumo

Este trabalho apresenta a teoria das categoriasconforme elaboradas por Aristóteles, Kant eRanganathan. Procura subsídios que permitamidentificá-las como princípios fundamentais eimprescindíveis para a organização do conhecimento.As três perspectivas são confrontadas para estabeleceras diferenças e semelhanças, tendo em vista osobjetivos de cada sistema categorial. Conclui queAristóteles concebe seus princípios fundamentais paraexpressarem os modos do ser, ao passo que Kant osrelaciona como modos do pensar. Por sua vez,Ranganathan formula as categorias como modos declassificar.

Palavras-chave

Categorias. Classificação filosófica. Teoria daclassificação facetada. Organização do conhecimento.

Reflexões sobre os sistemas categoriais de Aristóteles,Kant e Ranganathan

Michel Maya AranaldeBacharel e licenciado em filosofia e bacharel em biblioteconomia pela UFRGS. Bibliotecário-documentalista da Biblioteca Setorial deCiências Sociais e Humanidades da UFRGS.E-mail: [email protected]

Reflections on the categorical systems ofAristotle, Kant and Ranganathan

Abstract

This paper presents the theory of the categories asdeveloped by Aristotle, Kant and Ranganathan.Subsidies are sought for in order to identify them asfundamental and essential principles for organization ofknowledge. Three perspectives are confronted forestablishing the differences and similarities in view ofthe objectives of each categorical system. Theconclusion is that Aristotle conceives his principles asfundamental for expressing the ways of being, whereasKant lists them as ways of thinking. In his turn,Ranganathan formulates the categories as ways ofclassifying.

Keywords

Categories. Phylosophycal classification. Facetedclassification theory. Organization of knowledge.

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O que chamamos princípio é quase sempre o fime alcançar o fim é alcançar um princípio.

Qualquer ação é um passo rumo ao todo, ao fogo,uma descida à garganta do mar

ou à pedra indecifrável – e daí é que partimos.

Thomas Stearns Eliot

INTRODUÇÃO

Conhecer e reconhecer o mundo circundante, asrelações e interações estabelecidas ou porestabelecer com ele constituem aspiraçõesessencialmente humanas. Desde os primórdios, oser humano cria sistemas de símbolos comoinstrumentais que lhe permitam entender suaposição e papel no mundo, refletindo sobre suasexperiências, buscando interpretá-las, compreendê-las e, desta forma, articular, organizar, sintetizar euniversalizar o conhecimento extraído delas.

A gestão de informações se caracteriza, entre outrasatividades igualmente importantes, pela reflexãosobre formas de ordenar o conhecimento. Assim,um dos seus focos de atenção recai exatamentesobre o problema da classificação e organizaçãodo saber registrado em seus mais variados tipos desuportes, pois é necessário identificar, selecionar edisponibilizar o patrimônio intelectual dahumanidade de modo organizado e preciso.

De maneira simplificada, pode-se dizer queclassificar significa identificar entidades, reunindoas semelhantes, separando as diferentes e, por meiodeste processo, organizá-las. Esta organização, éclaro, não ocorre espontaneamente, mas vemprimeiro através do pensamento, tendo suaconsecução na forma de uma ação racional. Nesseprocesso intelectual, as categorias são concebidascomo elementos possibilitadores de sua plenaefetivação.

As categorias são identificadas como conceitoselementares, isto é, como princípios que permitemidentificar as notas essenciais que caracterizam um

objeto do conhecimento. A partir desta operaçãomental de identificação, é possível formularconceitos empíricos, ou seja, buscar umaequivalência entre como o objeto se apresenta e arepresentação mental que se faz dele e de suasrelações com outros objetos. As categorias sãoconcebidas como metaconceitos que permitem aefetiva conceitualização de objetos passíveis deserem conhecidos, organizados e classificados.Portanto, elas são elementos intermediários entreos conceitos e a realidade cognoscível.

Formular representações do conhecimento é umacapacidade de que o pensamento humano dispõepara organizar e classificar a realidade. Esteprocesso inicia pelo uso de categorias, as quais sãoexpressões lógico-linguísticas de determinadajuntura da realidade; o uso de tais expressõespossibilita ordenar as informações referentes aosdiversos modos como a compreendemos. Com isto,as categorias se apresentam como instrumentosimprescindíveis para orientar as ações dosprofissionais que trabalham com a organização dainformação.

Partindo destes pressupostos pretende-se, com esteartigo, contribuir para uma reflexão sobre oprocesso de organização das informações tendo ofoco direcionado para as categorias caracterizadascomo os princípios classificatórios que possibilitama consecução desta tarefa. Para tanto, procura-seestabelecer relações entre as categoriasapresentadas em dois sistemas filosóficos declassificação – o aristotélico e o kantiano –,juntamente com as categorias formuladas pelobibliotecário indiano Shiyali RamamritaRanganathan para orientar a identificação,classificação e organização do conhecimentoregistrado.

O CONTEXTO DO ESTUDO

A escolha dos autores abordados neste artigo sepautou por dois motivos básicos. O primeiro dizrespeito ao fato de os três pensadores estaremenvolvidos com práticas biblioteconômicas.O segundo motivo está relacionado à constatação

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de que os autores elaboraram formulações teóricasreconhecidamente relevantes que indicam ascategorias como princípios básicos e essenciais paraa organização do conhecimento.

Pioneiro na apresentação de um sistema categorial,Aristóteles nasceu no primeiro ano da 99ª olimpíada(384a.C)1 em Estagira, situada na costa oriental daMacedônia, à época colônia setentrional da Grécia.Na adolescência, partiu rumo a Atenas para estudarcom Platão na Academia, sendo chamado por elede “o leitor” pelos “[...] hábitos do estagirita de lere pesquisar as obras científico-literárias diretamentenos textos que compunham a tradição helênica [...]”(BITTAR, 2003, p. 18).

Zingano reafirma este testemunho e ocomplementa ao destacar que:

[...] Aristóteles estudava tanto que foi apelidado,já nos tempos da Academia, de o leitor.Aristóteles lia, e muito, pois em todas as suasobras demonstra um grande conhecimento dospensadores que o precederam; foi ele também,segundo alguns testemunhos, quem porprimeiro constituiu uma biblioteca, e com baseem suas práticas foi criada a famosa Bibliotecade Alexandria (ZINGANO, 2002, p. 29 – grifodo autor).

O autor reconhece que os indícios deste feito nãopodem se constituir como fato inquestionável, massão muito verossímeis. O fato é que, mais tarde,Aristóteles fundou o Liceu, sua própria escola,destacando-se, entre outras atividades, pelasestratégias que desenvolveu para definir eorganizar o saber existente, elaborando refinadosistema de organização do conhecimento.

Outro especialista em Aristóteles endossa esteponto ao salientar que no Liceu também serealizavam pesquisas científicas. Ademais, foi olocal em que se reuniu material que deu origem a

[...] uma importante biblioteca. Assim, uma dasatividades mais destacadas dos membros doLiceu consistia em reunir informações de todosos ramos do saber (PELLEGRIN, 2006, p. 18).

O estagirita, a partir de sua concepçãoenciclopédica do saber, foi o responsável pelaidentificação de vários ramos da ciência e de seusobjetos de estudo, com imensa produção intelectualque gerou “[...] entre outras coisas, até mesmo umlugar para estocar tanta engenhosidade ecriatividade: a biblioteca.” (ZINGANO, 2005, p.67). Os estudos do filósofo grego abrangeram osmais diferentes temas, com impressionante perspi-cácia. Fonseca (2005, p. 80) afirma ser plausível

[...] supor que nenhum outro pensador, emqualquer tempo, tenha chegado a saber esistematizar uma proporção tão vasta de tudo oque havia para se saber em sua época.

Immanuel Kant, por sua vez, nasceu em 1724 nacidade de Königsberg, Prússia Oriental, atualmentedenominada Kaliningrado, nunca tendo de lá seafastado. Apesar da extrema pobreza de sua família,dedicou-se aos estudos de modo exemplar,ingressando no seleto círculo universitário aos 16anos, de onde seguiu a carreira acadêmica.

Segundo Caygill (2000b, p. 40), o pensador alemãoexerceu atividades adicionais “[...] como a desubdiretor da Biblioteca Real e a de curador de umacoleção particular de história natural.”. O autorcitado informa ainda que essa atividade rendeu aKant o seu primeiro salário anual integral epagamentos em espécie: trigo, cerveja e lenha.Afora isto, pode-se dizer que, além de exercerfunções de bibliotecário, o filósofo foi docenteprivado, isto é, professor particular para os filhosdas famílias mais abastadas.

O último dos três pensadores aqui estudados,Shiyali Ramamrita Ranganathan, nasceu em 1892,na pequena aldeia de Shialy, na Índia meridional.Foi acima de tudo um estudioso: bacharel e mestreem matemática pelo Madras Christian College,diplomou-se ainda como professor de língua

1 Cauquelin (1995) indica que a cultura helênica estabeleceu umsistema de medida de tempo em que a noção básica era a Olimpíada.Cada uma correspondia ao período de quatro anos, representandoo intervalo de tempo entre dois jogos olímpicos.

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inglesa, lecionando em diversos colégios de Madras.Chamado para exercer as funções de bibliotecárioda Madras University, foi submetido ao que hojechamaríamos de uma especialização em bibliote-conomia em prestigiada universidade inglesa.

Os períodos de estudos na Inglaterra e a própriaprática profissional lhe permitiram refletir sobre osproblemas enfrentados pelos bibliotecários natarefa de organizar o conhecimento registrado. Asreflexões dele se cristalizam, como bem salientaVickery (1980), nos maiores desenvolvimentosteóricos apresentados para a teoria da classificaçãodo século 20. A contribuição do bibliotecárioindiano é fruto de longo estudo frequentementereformulado e aprimorado, resultando que tantoseu esforço intelectual, quanto os resultadosreconhecidamente importantes a que chegou oapontam como o grande teórico da bibliotecono-mia e da ciência da informação, sendo consideradointernacionalmente como o introdutor do métodocientífico nesses ramos do conhecimento.

A concepção dos pensadores sobre as categoriasserá apresentada na sequência do artigo. Noentanto, é importante destacar que a análise dastrês concepções não pretende constituir umaprodução filosófica, mas sim uma reflexão e umatentativa de identificar problemas, soluções eperspectivas envolvidas na classificação e naorganização do conhecimento. Assim, tem-se emvista oferecer ao profissional da informação umavisão ampla deste processo, permitindo percebero que há de primordial nos respectivos sistemas enos esforços dos autores aqui abordados emcumprir seus objetivos.

CATEGORIAS

De forma bem abrangente, categoria designa

[...] em geral, qualquer noção que sirva comoregra para a investigação ou para sua expressãolinguística em um campo qualquer(ABBAGNANO, 1974, p. 147).

Poderíamos completar a frase com a expressão “doconhecimento”, tendo em vista que as categorias,

como objeto de estudo deste artigo, são concebidascomo conceitos mais elementares a partir dos quaisse podem formar outros conceitos.

As categorias se constituem como condição depossibilidade para certos juízos básicos queemitimos sobre o mundo na tentativa de interpretá-lo e compreendê-lo. Elas permitem descrever omundo e as coisas que o compõem. Partindo de talperspectiva, podem ser compreendidas comounidades cognitivas que guiam a apreensão damultiplicidade, pois é sob tais unidades quedistinguimos e classificamos os vários modos emque o ser se apresenta, operando a separação, aconjunção e a classificação do variegado de seresque preenche o mundo.

A classificação revela um processo da mente quebusca agrupar as coisas conforme seus graus desemelhança e separá-las conforme seus graus dedessemelhança, sendo ela inerente ao modo comoo ser humano se coloca no mundo para tentarcompreendê-lo. Isto posto, é necessário ressaltar aimportância de categorizar e de classificar para oviver humano. Nas palavras de Dewey:

Classificar é, na verdade, tão útil quanto natural.A multidão indefinida de eventos particulares emutáveis é enfrentada pela mente como atosde definição, inventariação, listagem, redução averbetes comuns e separação em grupos (1922,apud CASSIRER, 1994).2

Ora, se classificar pressupõe categorizar, ascategorias enquanto elementos imprescindíveispara a classificação são as maneiras como se podeidentificar e falar das coisas, possibilitando aelaboração de classes mais gerais em que sãoordenados os seus predicados. A formação destasclasses gerais pressupõe a delimitação das notascaracterísticas das coisas, isto é, de traços fixos,mediante os quais elas podem ser reconhecidascomo semelhantes ou dessemelhantes, coincidentes

2 DEWEY, John. Human, Nature and Coduct. New York: Holt & Co.,1922, p. 131 apud CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem:introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: MartinsFontes, 1994, p. 113-4.

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ou não coincidentes, possibilitando reuni-las emuma classe similar, separando as distintas e asdistribuindo em outras classes. É exatamente istoque as categorias permitem: dizer o que é e o quenão é.

As categorias são apresentadas neste trabalhosegundo a definição oferecida por Caygill (2000a,p. 50 – grifos do autor) como “as formas de acordocom as quais os objetos de experiência sãoestruturados e ordenados. O termo grego clássicoKategorein significava ‘acusar’, ‘dizer de’ ou ‘julgar’[...]”. Assim, as categorias são caracterizadas comorecortes que o pensamento humano faz darealidade, sendo um produto lógico, isto é, umproduto do pensamento e de sua expressão: alinguagem. Como unidades cognitivas, elas são,portanto, princípios fundamentais para os processosintelectuais de identificar, entender e organizar ascoisas do mundo. Como explicita Shera (1969, p.42 – grifos do autor):

A análise em qualquer nível traz à baila certas‘noções específicas’ que constituem o fundo detodo pensamento, e muito antes de estar oindivíduo cônscio destas ideias como fatos emsi próprios, ele as empregará no seu pensamento.Resumindo, pensa-se mediante categorias muitoantes de pensar sobre elas. Uma das preocupaçõesda lógica é revelar estas ‘noções específicas’,isolá-las e identificá-las como ‘categorias’ paraque possam ser transformadas em objetos deestudo intrínseco e em instrumentos úteis aqualquer processo de classificação.

O primeiro trabalho sistemático de elaboração ede abordagem de categorias para a organização doconhecimento nos foi oferecido por Aristóteles,como será apresentado na sequência. Após aimportante identificação das categorias comoinstrumentos para conhecimento do mundo, estaconcepção caiu gradualmente em desuso. Muitodisto se deve à tentativa dos pensadores medievais,profundos conhecedores da filosofia grega, detentar adequar e reconciliar a terminologiaaristotélica à escolástica. É bem verdade que

diversos estudiosos medievais interpretaram ereformularam as categorias aristotélicas,concebendo-as como ‘gêneros supremos’ eoferecendo importantes subsídios para a reflexãofilosófica.

Entretanto, coube ao filósofo alemão ImmanuelKant efetuar o resgate de tais categorias e salientara importância delas. Ressalta Caygill (2000b, p. 11)que o filósofo

[...] deu um grande passo reintroduzindo naterminologia filosófica alemã uma série depalavras e conceitos gregos que haviam caídoem desuso, como categoria [...].

O ponto de Kant em seu resgate é demonstrar quea elaboração de categorias para explicar opensamento humano se reveste de autoridade porsi só, não constituindo, absolutamente, umaposição arbitrária. Kant se dedica a rever aformulação aristotélica das categorias, reelaborá-las, justificá-las e apresentá-las em uma tábua decategorias em que elas se relacionam reciproca-mente e adquirem sentido.

O bibliotecário indiano Ranganathan, por seu turno,concebe e elabora as categorias em sentidobastante restrito, mas não menos importante: noâmbito de identificação, classificação e organizaçãodos registros produzidos pelos seres humanos emsuas atividades teóricas e práticas. Esclarece Souza(1998) que o objetivo específico e justificadamentepragmático das categorias ranganathianas éoferecer bases para certo tipo de organização doconhecimento.

Ranganathan concebe que apenas uma classificaçãodos registros humanos pode e deve ser feita paraatender a todos os propósitos. Para efetuar estatarefa, indica que qualquer assunto a serclassificado será sempre a manifestação de cincocategorias básicas ou fundamentais, caracterizadascomo conceitos de alta generalidade e largaaplicação, os quais servem de estrutura a umesquema de classificação, pois sob eles se podemreunir outros conceitos.

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Por causa das características anteriormenteabordadas, as categorias fundamentais podem seraplicadas à classificação do conhecimentoexistente. Além disto, possibilitam a criação deferramentas destinadas a resolver os problemasenfrentados nos processos de produção,representação e organização do conhecimento,como os tesauros e sistemas de classificaçãodocumentária.

Concepção aristotélica

A organização do conhecimento sempre foi umapreocupação do ser humano. As tentativas deresolução dos problemas surgidos na sua realizaçãoderam origem a diversos sistemas de classificaçãoapresentados como instrumentos auxiliares paraefetivação desta grandiosa e difícil tarefa. Osregistros humanos atribuem ao estagiritaAristóteles, influenciado por seu mestre Platão, aprimeira abordagem relacionada ao tema.

Salienta Vickery (1980, p. 188) que o sistema declassificação elaborado pelo filósofo “[...] foi aestrutura do conhecimento por aproximadamentedois mil anos [...]”, servindo de modelo para muitossistemas de classificação e sendo adaptadoconforme os pressupostos básicos e objetivos decada um dos novos sistemas desenvolvidos desdeentão.

O sistema aristotélico de classificação surgiu pelanecessidade de abarcar e expressar a realidade demodo organizado e preciso. Para isto, tal sistemabuscou a identificação e o estabelecimento de con-ceitos básicos que orientassem os agrupamentos eas partições do real operado pelo pensamento hu-mano, ou seja, de categorias primordiais. Esse tra-balho do filósofo grego, no que se refere à funçãodas categorias na organização e na classificação doconhecimento existente, mostra-se, ainda hoje,como importante objeto de estudo para fundamen-tar e compreender a teoria da classificação.

A classificação embasada pelas categoriaselaboradas por Aristóteles busca responder àquestão sobre o que há no mundo. Entretanto, não

se trata simplesmente de inventariar as coisas queestão ao redor, pois

[...] o que se quer saber é quais são os elementosbásicos ou primordiais do mundo, aquilo doqual tudo o mais é feito e no qual tudo um diase dissolve (ZINGANO, 2002, p. 29).

No sistema aristotélico, as categorias servem defundamento ao conhecimento das coisas. Elas sãoos princípios básicos que tornam o conhecimentopossível, partindo de uma perspectiva que concebeo mundo como um todo integrado de causas eefeitos, em que as coisas e as suas propriedadesessenciais, seus estados, processos e relações podeme devem ser reveladas pelo trabalho intelectual.

Desta perspectiva, utilizar as categorias é identificarunidades básicas de sentido. Essas unidadespermitem apreender conceitualmente os objetos edar definições deles. Assim, Aristóteles estabeleceunidades conceituais capazes de dar conta dadiversidade e da multiplicidade que o mundoapresenta. O ser não segue um só registro, mas secinde em diferentes tipos de ‘gêneros supremos’,ou seja, em categorias. A categoria primordial é ada ‘substância’, à qual as demais fazem referência.

No tocante à apresentação aristotélica, seráutilizada principalmente a Metafísica (1998), pois,apesar de as categorias serem apresentadas tambémna obra denominada Categories (1995) – Tratado dasCategorias, a última é motivo de disputa entre osespecialistas na área. Mansion (2005) indica queesse tratado é uma obra de autenticidade discutívele que o número das categorias não está fixo.

Driscoll (2005), por sua vez, acredita naautenticidade do Tratado das Categorias, masconcede que é uma obra da juventude do pensador,enquanto a Metafísica é uma obra indubitavelmentemadura do filósofo grego. O fato é que Aristótelesapresenta as categorias em número de oito na Físicae na Metafísica, ao passo que, no Tratado dasCategorias, apresenta em número de dez. Sem entrardiretamente na disputa, optou-se pela apresentaçãofeita na Metafísica.

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Aristóteles anuncia que “[...] o ser se diz de muitosmodos [...]” (1998, p. 151 – tradução nossa). Taismodos são os seguintes: segundo ato e potência,segundo o acidente, segundo o verdadeiro e o falsoe segundo cada uma das categorias, identificadaspelo filósofo como “figuras da predicação” (p. 308).

As figuras da predicação são as formas como sepode falar do ser e são apresentadas como “[...] oquê, de que qualidade, de que tamanho, onde,quando e se alguma outra significa do mesmomodo.” (p. 308-9), ou seja, substância, qualidade,quantidade e relação. Também são utilizados ostermos atributos e ação, com a identificação dasdemais formas, como a inclusão da mudança e dascondições espaço-temporais.

Em síntese, as figuras da predicação significam ascoisas:

[...] em quantos são os modos em que se diz,tantos são os significados do ser [...] quanto aospredicados, uns significam essências, outrosqualidade, outros quantidade, outros relação,

outros agir ou padecer, outros lugar e outrostempo, o ser significa o mesmo que cada umdestes (ARISTÓTELES, 1998, p. 245 –tradução nossa).

A partir disto, no que concerne às formascategoriais, o ser se diz de oito modosinterrelacionados:

a) substância: que é o modo principal do ser, eque serve de fundamento a todos os outros modos,a saber:b) qualidade;c) quantidade;d) relação;e) agir;f) sofrer ;g) lugar;h) tempo.

A figura 1 apresenta um esquema da classificaçãoda realidade inspirado nos ensinamentos deAristóteles (1998) e dele extraído.

FIGURA 1As categorias aristotélicas

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A categoria da substância3 é a principal dentre ascategorias e à qual todas as outras fazem referência.Para o filósofo, o termo ‘substância’ é atribuído

[...] a uma categoria de coisas, distinguida noseio do próprio real. Ele separa nos seres aquiloque é substância daquilo que não é por meio deuma definição que fixa os caracteres própriosdela (MANSION, 2005, p. 75).

A substância é o ser no sentido primeiro efundamental e, por esta razão, figura no topo dalista das categorias. As oito categorias são recortesque o pensamento humano faz da realidade, sendoelas um produto lógico, isto é, um produto dopensamento e de sua expressão, a linguagem,fidelíssimo às junturas existentes na própriarealidade. Isto é possível, pois, aos olhos deAristóteles, a linguagem está perfeitamente coladaao mundo, sendo, assim, capaz de revelá-lo.

O uso da linguagem, seja através da escrita ou dafala, é efetivado basicamente por proposições. Taisproposições são constituídas minimamente peloque Aristóteles chama de um nome e um verbo, ouno linguajar mais recente, de um sujeito e umpredicado. Quando se diz que “Sócrates é branco”,‘Sócrates’ figura como sujeito e ‘é branco’ comopredicado. Falar de Sócrates desse modo éidentificá-lo como substância e ‘branco’ como uma

qualidade pertencente a ela. Por sua vez, a ‘bran-cura’ desta substância não pode subsistir por si só,sendo inteiramente dependente da substância.

O mesmo que ocorre com a brancura se dá com asdemais categorias que designam seres cujaexistência é sempre parasitária à existência dasubstância: por exemplo, o peso e a estatura(categoria da quantidade) de Sócrates dependemde Sócrates para existirem. O tipo de existênciadas coisas pertencentes à categoria da relação, taiscomo “ser mais alto que”, “ser maior que”, “ser odobro de”, depende da existência de pelo menosduas coisas que existem por si, ou seja, de duassubstâncias. Assim, quando uma proposição afirmaque Sócrates é mais alto que Xantipa, a relação‘mais alto que’ depende tanto da existência deSócrates quanto da de Xantipa, pois o termorelacional, a altura, como já fora dito, não podeexistir independentemente do ser de Sócrates e doser de Xantipa.

As coisas que recaem sob a categoria da açãodependem igualmente, para existirem, de algo queexiste como substância. A ação de podar ou dequeimar uma árvore, por exemplo, depende de umsujeito substancial: um homem que opere a podaou ateie o fogo. Se considerarmos a mesma situaçãodo ponto de vista daquilo que sofre a ação de serpodado ou queimado, a mesma dependência, emrelação à categoria da substância, torna-se clarapara a categoria do ‘sofrer’, pois o fato de umaárvore ser podada ou queimada, por exemplo,depende da existência da árvore, a qual é umasubstância.

Idêntica relação parasitária se dá entre as categoriasdo lugar e do tempo em relação à categoria dasubstância. Os predicados que designam ocupaçãode lugar no espaço dependem, evidentemente, deum sujeito substancial ou, pelo menos, de umsujeito que faça as vezes de uma substância, mesmoque, a rigor, não o seja, como é o caso de todos osartefatos, por exemplo. Esse sujeito substancial estásempre em algum lugar, tal como quando se dizque Aristóteles está no Liceu e que Sócrates estána praça.

3 Aristóteles, em sua Metafísica, almeja fazer uma ontologia geralcujo fio condutor é a questão do que é ‘ser primeiro’, ou seja, o queé ser em sentido mais fundamental. Esta questão encontra comoresposta (parcial) as substâncias naturais do mundo. Assim, osartefatos, ou seja, o que é produzido pela espécie humana, não são‘substância’ em sentido estrito e próprio, mas apenas em sentidoderivado. Tal sentido se explica na medida em que podemos observaruma semelhança entre a estrutura das substâncias e a dos artefatos,pois ambas são compostas de matéria e forma. Tomando comoexemplo um livro, observa-se que ele é composto de uma matéria ede uma forma, que lhe permite ser identificado como o que é, talcomo ocorre com as substâncias naturais. Aplicando as categoriasao artefato livro, temos o seguinte: ‘o livro é verde’ (“substância”+ qualidade); ‘o livro pesa quinhentos gramas e mede vinte e cincocentímetros de altura’ (“substância” + quantidade); ‘o livro verdetem o dobro do peso do livro azul’ (“substâncias” + relação); ‘olivro foi restaurado’ (“substância” + sofrer); ‘o livro está naBiblioteca de Alexandria’ (“substância” + lugar); ‘o livro foipublicado em 2008’ (“substância” + tempo). A categoria da açãonão encontra paralelo entre os artefatos, uma vez que eles nãopossuem potência para agir, mas apenas para sofrer.

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Do mesmo modo, todos os predicados pertencentesà categoria do tempo remetem, em última instância,a algo que pertence à categoria da substância.Tendo tudo isto em vista, para poder ser um espelhoda realidade, a linguagem precisa estabelecer umcomportamento distinto entre a categoria dasubstância e as demais, visto que a primeira é serem sentido primordial, ‘o ser por si’, pois é delaque depende a existência de todos os outros serescategoriais, ‘os seres não por si’. É por esta razãoque o representado por ela funcionará como sujeitodas proposições e os acidentes como predicados.Deste modo, pode-se observar que as categoriasrevelam a condição ontológica da realidade sobrea qual se pensa e se fala por meio delas.

As categorias aristotélicas se mostram, portanto,como unidades cognitivas que guiam a apreensãoda multiplicidade, pois é sob tais unidades quedistinguimos e classificamos os vários modos emque o ser se apresenta. Por exemplo, os conceitosque nós temos de homem, de cavalo, de árvorepodem ser subsumidos sob um conceito mais geral:a categoria da substância e assim sucessivamentecom as demais categorias. Nota-se, então, que paraAristóteles as categorias operam a separação e aclassificação do variegado de seres que preenche omundo.

Reformulação kantiana

Tal como Aristóteles, Immanuel Kant foi deimportância fundamental para a sistematização doconhecimento: o filósofo alemão se coloca ao ladodo estagirita no sentido de que elaborou sua análisetanto partindo da multiplicidade que o mundoapresenta, quanto buscando princípios de unidadecapazes de propiciar o conhecer. Seu laborintelectual contemplou pesquisas e estudos sobreo saber humano, redefinindo conceitos,reformulando teorias e estabelecendo novasformas de ver o mundo. Desse modo, tentousintetizar os vários padrões de conhecimentoexistentes na época, que identificou comoracionalismo, empirismo, idealismo e realismo.Além disto, buscou oferecer respostas satisfatórias

à posição dos céticos. Nas palavras do filósofo,somente uma crítica bem fundamentada poderia

[...] cortar pela raiz o materialismo, o fatalismo,o ateísmo, a incredulidade dos espíritos fortes,o fanatismo e a superstição, que se podem tornarnocivos a todos (KANT, 1997, p. 30).

A crítica efetuada e a síntese proposta operam umareflexão sobre a razão, concebida como ordenadorade todo conhecimento, questionando o valor dela,investigando criticamente as condições pelas quaisse pode conhecer, bem como inquirir sobre oslimites para este conhecimento, guiado porprincípios organizadores com o uso lógico doentendimento pelas categorias. Desta maneira, aposição kantiana também se opõe a tododogmatismo, compreendido como o procedimentointelectual “[...] sem uma crítica prévia de suacapacidade.” (KANT, 1997, p. 30).

À medida que criticou os pressupostos teóricos decada um dos modelos de pensamento apresentados,Kant elaborou sua própria concepção, denominada‘idealismo transcendental’, propiciando verdadeirarevolução na filosofia e nas ciências. Por‘idealismo’, entende-se o estudo das representaçõesde existências enquanto adequadas a ideias. Por‘transcendental’, o filósofo concebe todoconhecimento em relação não com tais existências,mas na maneira como o ser humano pode conhecê-las. Logo, o foco da investigação recai sobre aestrutura cognitiva humana e suas formas derepresentar as coisas do mundo.

O idealismo transcendental concebe que o intelectoestá ativamente envolvido com as coisas queexperimenta, isto é, as coisas capazes de seremconhecidas passam por um processo de organizaçãoe de classificação propiciado pelo uso das categoriasmentais, as quais se caracterizam comocomponentes inerentes ao aparato intelectualhumano, não se constituindo a partir do contatocom os objetos, mas, pelo contrário, sendo elaspróprias as condições pelas quais esses objetospodem ser conhecidos.

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Disto se segue uma diferença fundamental daconcepção aristotélica: o pensador alemãoreconhece a importância e a grandiosidade dotrabalho desenvolvido pelo estagirita, mas a análisede Aristóteles o coloca ora na classe dos realistas,ora na classe dos empiristas, indicando que qualqueruma das duas posições contém certa dose deingenuidade. A explicação kantiana é que osempiristas reduzem todo conhecimento àexperiência sensível. Por seu turno, os realistasacreditam num acesso imediato e direto aos objetosdo conhecimento. Kant critica ambas as concep-ções, estabelecendo critérios para o conhecimentoe concebendo seus objetos como coisas em si efenômenos, como será explicitado na sequência.

Ao estabelecer os critérios para o conhecimento,Kant propõe uma reformulação das categoriasaristotélicas, buscando torná-las dependentes dasformas do juízo. A nova concepção kantiana tomatais formas como as maneiras fundamentais depensar os objetos de acordo com as estruturassegundo as quais a mente humana pode concebê-los, entendê-los e expressá-los através dalinguagem. A análise das categorias kantianas temcomo foco principal a Crítica da Razão Pura, obraem que Kant apresenta sua “Tábua das Catego-rias” (1997, p. 110-1), mas busca subsídios tam-bém nos Prolegômenos a Toda Metafísica Futura,em que as categorias também são abordadas.

A seção ‘Analítica Transcendental’ da Crítica expõeuma argumentação sobre as condições do conhecer,pretendendo limitar o conhecimento legítimo àscondições da experiência humana. Nela, Kantapresenta o que concebe como categorias a priori4

ou conceitos puros, que são exatamente ascategorias de que este artigo trata.

A crítica kantiana centra sua reflexão filosófica nosujeito e nas suas capacidades cognitivas. Assim,o problema que se coloca diz respeito a como épossível conhecer. Para o pensador, não é porque

o sujeito percebe as coisas exteriores a si mesmo eexteriores umas às outras que forma a estrutura deespaço. É porque possui o espaço com umaestrutura inerente à sua sensibilidade que o sujeitopode perceber objetos relacionados espacialmente,ou seja, o sujeito possui em si tal estrutura. Domesmo modo, o tempo também é inerente ao sujeitocognoscente. É a estrutura temporal que permiterepresentar as coisas simultânea e/ousucessivamente.

O espaço e o tempo5 não são consideradoscategorias, mas formas elementares puras dasensibilidade. Sendo identificadas como formas daintuição, elas representam a maneira como umaconsciência se relaciona e experimenta objetos eeventos tanto espacialmente extensivos quantotemporalmente sucessivos. Abbagnano (1994,p. 65) esclarece que essas formas não são “[...]qualidades das coisas, mas condições da nossaintuição delas”. Logo, o sujeito cognoscente nãopode perceber nada que não esteja submetido àscondições espaço-temporais.

Estas formas da intuição e as categorias doentendimento acompanham o ser humano nosprocessos de conhecer e de reconhecer o mundo eos fenômenos que o constituem. De umaperspectiva ideal, a ciência baseada nestascategorias é igualmente universal, constituindo umsistema de conhecimento que se aplica a qualquerfenômeno porque é acessível a qualquerconsciência que observe tais fenômenos.

Pode-se perceber outra diferença marcante emrelação à concepção aristotélica, visto que oestagirita considera o espaço e o tempo comocategorias fundamentais e Kant (1997, p. 25) as

4 A priori é uma expressão oriunda do latim que significa antes,anterior. Na terminologia kantiana, ela assume o justo significadode independentemente de toda experiência.

5 Os conceitos de espaço e de tempo são essenciais ao idealismotranscendental e a elaboração kantiana sobre eles é extremamenterica e complexa. Entretanto, a abordagem aprofundada deste temaacabaria por desvirtuar o foco deste trabalho. Conforme Torretti,“a Crítica da Razão Pura caracteriza o espaço como forma dosentido externo; o tempo, analogamente, como forma do sentidointerno.” (1967, p. 209). Este comentador oferece texto minuciosoe apurado sobre a idealidade do espaço e do tempo, no qual aconsidera como “fundamento da filosofia crítica de Kant.” (p. 489).Para aprofundar o assunto, é sugerida a leitura da obra citada.

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considera como estruturas inerentes ao aparatocognitivo humano, sendo:

[...] apenas formas da intuição sensível, isto é,somente condições da existência das coisascomo fenômenos e que, além disso, não possuí-mos conceitos do entendimento e, portanto, tãopoucos elementos para o conhecimento dascoisas, senão quando nos pode ser dada aintuição correspondente a esses conceitos.

Os conceitos do entendimento são exatamente ascategorias, mas assumem um sentido diferente daelaboração aristotélica. A reformulação dascategorias efetuada pelo pensador alemão pretendeestabelecer fundamentos que permitam investigare identificar as faculdades e capacidades humanas,explicitando a que objetos se aplicam já que setratam de faculdades distintas cujo foco se direcionaa objetos também distintos. Tais faculdades sãoapresentadas como sensibilidade, entendimento erazão, sendo critérios mediante os quais se efetuaa passagem do entender ao conhecer que será, emlinhas muito gerais, exposta na sequência.

Para Kant, é essencial distinguir os objetos dasrespectivas faculdades, bem como os modosdistintos de considerar cada objeto para esclareceras condições do conhecimento humano.O entendimento, “[...] faculdade da conexão dasintuições dadas numa experiência [...]” (KANT,2003, p. 94) em sua subordinação ao âmbito dasensibilidade, requer que um objeto sensível, quese apresenta a um sujeito cognoscente, seja intuídosensivelmente, isto é, esteja submetido às formasespaço-temporais da sensibilidade.

Ao que aparece a um sujeito cognoscente,respeitando as formas da intuição sensível, Kantdenomina fenômeno, em contraposição à coisa emsi, que está além da sensibilidade e, em funçãodesta razão, além da possibilidade de ser intuída.O fenômeno é o limite da experiência. Este limiteé dado no sentido de que tudo que podemosconhecer está submetido às condições espaço-temporais. Porém, isto não significa negarexistência às coisas externas ao sujeito que podem

estar inacessíveis à sua estrutura cognitiva. ParaKant, tais coisas têm uma realidade que ultrapassatal estrutura cognitiva.

Por ‘cognição’ se adota, neste trabalho, a definiçãoelaborada por Moreira e Masini (1982, p. 3):6

É o processo através do qual o mundo designificados tem origem. À medida que o ser sesitua no mundo, estabelece relações designificação, isto é, atribui significados àrealidade em que se encontra. Esses significadosnão são entidades estáticas, mas pontos departida para a atribuição de outros significados.Tem origem, então, a estrutura cognitiva (osprimeiros significados), constituindo-se nospontos básicos de ancoragem dos quais derivamoutros significados.

Por sua vez, o que foi denominado ‘pontos básicosde ancoragem’ deve ser entendido como unidadesde sentido formadas a partir da incorporação, àestrutura cognitiva, de elementos comoinformações ou ideias, que sejam relevantes paraa aquisição de novos conhecimentos e para aorganização destes, de forma a, progressivamente,generalizarem-se, formando conceitos. Esteprocesso de conceitualização, que significasubsumir impressões particulares a representaçõese conceitos gerais

[...] visa essencialmente a romper o isolamentodo dado ‘aqui e agora’, para relacioná-lo comoutra coisa e reuni-lo aos demais numa ordeminclusiva, na unidade de um ‘sistema’(CASSIRER, 1992, p. 43).

Esta conceitualização é elaborada pelos sujeitosdo conhecimento. Da perspectiva cognitivakantiana, o sujeito é

[...] veículo de todos os conceitos em geral [...],e de uma perspectiva transcendental, [...] serve

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6 MOREIRA, M. A.; MASINI, E. F. S. AprendizagemSignificativa: a teoria de David Ausbel. São Paulo: Moraes, 1982,p. 3 apud BOCK, Ana Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA,Maria de Lourdes Trassi. Psicologias: uma introdução ao estudode psicologia. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 117.

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para apresentar todo pensamento comopertencente à consciência (KANT, 1997, p.327).

Esse sujeito é a própria possibilidade doconhecimento, mas não apenas porque pensa, pois,desta maneira, o máximo que poderia exprimir éque pensa que pensa. O sujeito conhece porque écapaz de unificar os dados do conhecimento numaconsciência, isto é, o sujeito cognoscente poderealizar um uso teórico das categorias parasubordinar o múltiplo sensível, formular suas ideiase submetê-las à unidade da consciência.

O pensamento pertence à consciência e é veículoda experiência, isto é, a consciência acompanhatoda experiência. Entretanto, a causa destaconsciência não pode ser dada pela experiência.O sujeito kantiano é “[...] a unidade da consciência,que serve de fundamento às categorias.” (KANT,1997, p. 359).

Para Kant, as categorias são estruturas lógicascomuns a todos os seres humanos. São pura forma.No caso, a forma lógica por meio da qual se formamos juízos, expressando a maneira como se fala dascoisas do mundo. Assim, as categorias secaracterizam como instrumentos para a produçãodo saber, sendo conceitos básicos e elementares e,portanto, simples e não-analisáveis.

Elas são estruturas cognitivas vazias e, destaperspectiva, possibilitam representar o objeto doconhecimento segundo o que constitui o seuconceito, isto é, as notas características queindicam o que ele é. Entretanto, o conceito doobjeto já é a posteriori, enquanto as categorias são apriori por serem a própria condição para umaconceitualização dos objetos do conhecimento.

Como expõe Abbagnano (1974, p. 148), ascategorias

são os modos por meio dos quais se manifesta aatividade do entendimento, que consiste essen-cialmente em ordenar diversas representaçõessob uma representação comum, isto é, julgar..

Como já foi adiantado, elas são as formas do juízo,pois a exposição kantiana deriva todas as categoriasde cada uma das formas apresentadas na “Tábuados Juízos” (KANT, 1997, p. 104). É a partir delaque emergem as categorias. O que relaciona ascategorias com os juízos é a síntese, ou seja, o quedá unidade a uma multiplicidade, pois é a sínteseque permite reunir diversas representações sob umconceito mais geral que expresse suas característicasessenciais.

As categorias kantianas possuem duascaracterísticas básicas. Em primeiro lugar, elas seaplicam unicamente na relação sujeito-objeto, daqual o resultado é o conhecimento dos fenômenos,isto é, do que está de acordo com a capacidade doentendimento humano. Em segundo lugar, elas sãoas determinações objetivas desta relação e, dessemodo, aplicam-se a qualquer ser humano.

A Tábua das Categorias se constitui de 12conceitos distribuídos em quatro grandes grupos:quantidade, qualidade, relação e modalidade. Osdois primeiros dizem respeito às categoriasmatemáticas, e os outros dois são caracterizadoscomo categorias dinâmicas. A caracterização estárelacionada aos juízos, ou seja, à maneira como sefala dos objetos, sendo que o objeto das categoriasmatemáticas são os objetos da intuição. Emcontrapartida, as categorias dinâmicas dizemrespeito à existência dos objetos em suas relaçõesentre si e com o entendimento. Cada grupo sesubdivide em três categorias, sendo que as duasprimeiras formam uma dicotomia, ou seja, umaoposição, enquanto a terceira resulta da síntese dasduas, isto é, da combinação entre elas.

A apresentação kantiana é a seguinte:

a) quantidade: unidade, pluralidade e totalidade;

b) qualidade: realidade, negação e limitação;

c) relação: inerência-subsistência, causalidade-dependência e comunidade;

d) modalidade: possibilidade–impossibilidade,existência–não-existência e necessidade-contingência.

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O fundamento de todo conhecimento remete àscategorias de quantidade, pois elas são concebidascomo exigências lógicas e critérios para o saber.A unidade representa a medida e a pluralidaderepresenta a multiplicidade. A totalidade, por suavez, representa a pluralidade considerada comounidade, ou seja, a síntese das duas outras formascategoriais.

A realidade é a primeira das categorias de qualidadee corresponde à função afirmativa do juízo. Elaindica aquilo cujo conceito em si próprio é um ser,sendo apenas por intermédio dela que os objetospodem ser identificados como algo. Tem poroposição a negação, que indica um não-ser.A limitação, terceira categoria, mapeia até queponto algo pode ser o que é e, assim, revela asíntese da realidade com a negação.

Das categorias de relação, a inerência/subsistênciaé a que Aristóteles compreendia como substância(a categoria primordial) e acidente (as demaiscategorias aristotélicas). Por sua vez, causalidade/dependência corresponde à causa e efeito com ospredicáveis da força, ação e sofrer. Finalmente,comunidade diz respeito à ação recíproca entreagente e paciente, com os predicáveis de presençae de resistência. Esta forma categorial expressa a

causalidade de uma substância e os efeitos recípro-cos de suas determinações com outras substâncias.

As categorias modais prescrevem como os objetospodem ser determinados em termos depossibilidade, existência e necessidade, ou seja, nãodeterminam o objeto, pois isto só pode ser feitopelas outras categorias: quantidade, qualidade erelação, mas, em contrapartida, elas determinam aforma como se concebe este objeto. A existência,a possibilidade e a necessidade indicam o modocomo se fala dos objetos, sendo que nenhuma temprioridade sobre as outras. A terceira categoria, anecessidade, é a síntese da realidade dada pelaprópria possibilidade: em outras palavras, ela seafigura em síntese das duas outras formascategoriais.

A seguir, uma representação gráfica da apresen-tação kantiana. Aqui é importante esclarecer quea numeração e a posição dos grupos e das categoriassão fiéis à tábua das categorias. Apesar da estruturada apresentação, não existe relação hierárquicaentre os diferentes grupos categorias, nem entre ascategorias. Elas são concebidas como igualmentefundamentais. A figura 2, com pequenas alteraçõesformais, encontra-se na Crítica da Razão Pura(KANT, 1997, p. 110-1):

FIGURA 2As categorias kantianas

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Ele indica que as categorias necessitam de umesquema, definido como “[...] a condição geral pelaqual unicamente a categoria pode ser aplicada aqualquer objeto” (1997, p. 182-3), e revela comoelas são utilizadas. Esta condição é satisfeitaquando a imaginação fornece a um conceito a suaimagem. Nesse procedimento mental, arepresentação da categoria de quantidade é onúmero, da qualidade é a ‘coisidade’ (a essênciaque faz a coisa ser o que é, ou seja, suascaracterísticas fundamentais), que indica realidade,negação e limitação. Já a representação da relaçãoé a permanência, sucessão e simultaneidade. A damodalidade, por seu turno, é a existência no tempo,sendo que pode ser em um tempo qualquer,exprimindo possibilidade; em tempo determinado,expressando realidade; ou em todos os tempos,representando a necessidade.

Com isto, temos a representação espaço-temporalque reaparece nas categorias kantianas como“esquema”, ou seja, como condicionada pelascategorias, mas não como constituinte delas. Estaé uma entre tantas distinções que afasta areformulação kantiana das categorias aristotélicas.Ranganathan, ao conceber suas categorias, recolocao tempo e o espaço como categorias fundamentais,como veremos na sequência.

Perspectiva de Ranganathan

Shiyali Ramamrita Ranganathan é considerado ogrande teórico da classificação bibliográfica. Dosseus estudos e reflexões surgiu um trabalhoinovador e solidamente fundamentado. É bemverdade que diversos estudiosos desenvolveramtrabalhos relevantes para a teoria da classificação,mas Xiao (1994) considera que osclassificacionistas anteriores construíram esquemastendo por base sistemas de áreas especializadas.Assim, não aprofundaram a própria teoria edeixaram lacunas na fundamentação destesesquemas.

Campos (2001, p. 32) ressalta e complementa esseponto ao afirmar que os sistemas anteriores ao deRanganathan só permitiam representar oconhecimento já estabelecido, pois neles “[...] nãoocorre a ligação entre o conhecimento e asclassificações, mas entre os assuntos dosdocumentos e as classificações”. É exatamentecomo alternativa a esta concepção rígida e carentede fundamentos científicos que Ranganathandesenvolve um trabalho que busca compatibilizaruma classificação flexível, expansiva e prática combases reconhecidamente científicas, sem tornar osistema inconsistente ou inviável. A compati-bilização destes elementos permitirá uma únicaclassificação capaz de atender a todos ospropósitos. Nela, os esquemas e as característicasutilizadas como base para a elaboração de facetassão sempre manifestações de cinco categoriasbásicas.

Por ‘categoria’, a perspectiva ranganathianacompreende um conceito de alta generalidade e delarga aplicação que serve de estrutura a um esquemade classificação, pois sob este esquema se podereunir outros conceitos. Devido a taiscaracterísticas, categorias fundamentais podem seraplicáveis a grande parte do conhecimentoexistente.

‘Faceta’, por sua vez, é a manifestação dascategorias em classes distintas. As facetaspertencem aos assuntos dos documentos, sendo oresultado da aplicação de características queformam um conjunto cujo nome é o termo maisgeral. Sob uma faceta recaem componentessubordinados, mas com características particulares.

As bases formuladas para o estabelecimento daclassificação objetivada por Ranganathan incluemprincípios que envolvem três planos de trabalho: odas ideias, o verbal e o notacional. A este trabalhointeressa mais o primeiro nível, no qual se encontraa estratégia de classificação cristalizada naelaboração das categorias fundamentais,conhecidas pelo acrônimo PMEST –Personalidade, Matéria, Energia, Espaço e Tempo.

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Cada letra se refere à inicial de uma das cincocategorias, conforme a denominação da línguainglesa, idioma em que Ranganathan escreveu suasobras.

A aplicação das categorias está direcionada parauma análise estrutural da organizaçãodocumentária como resposta às questões sobrecomo os assuntos são formados. Inicialmente foramdefinidos conjuntos de conceitos que permitissemidentificar os assuntos e classificá-los comcoerência e consistência. Os conjuntos foramdenominados ‘universos originais’, cada qualcontendo uma série de características reveladorasde uma faceta do universo do conhecimento que,por sua vez, serão sempre manifestações dascategorias fundamentais PMEST.

O caminho para se chegar aos princípios últimosde uma classificação que abarcasse odesenvolvimento do próprio conhecimento e suaprojeção em novas áreas aponta para cinco direçõesapresentadas em Prolegomena (1967, p. 351-358),que são, respectivamente:

a) dissecação: resulta em classes coordenadas ouem ordem de classes;

b) laminação: resulta em classes compostas;

c) desnudação: resulta em classes subordinadasou em cadeias de classes;

d) montagem flexível;

e) superposição: que resulta em combinação declasses através de reunião e agregação.7

Definindo os caminhos para a elaboração de novasclasses e

[...] estudando atentamente o tipo de faceta aser encontrado em diferentes classes básicas, ele

pode determinar que, apesar de suas aparentesdiferenças superficiais, essas facetas poderiamser acomodadas em cinco grandes grupos(FOSKETT, 1973, p. 265).

O estudo e a avaliação dos níveis do universo deassuntos conduzem à formulação de algunsprincípios gerais. Segundo Ranganathan (1967, p.396 – tradução nossa), deve-se “[...] pararbrevemente no nível final. Mas em que níveldevemos parar?” O próprio pensador responde:“[...] até que encontremos somente cinco ideiasgenéricas ou seminais finais.”. Sobre essas ideiasnão se pode julgar a verdade ou a falsidade, pois,se elas provarem sua utilidade, devem apenas serpostuladas e servir de instrumento de trabalho.Logo, elas são apenas supostas, não podendo serobjetos de definições.

Ora, a análise precisa parar em um ponto firmepara que o trabalho de classificação comece, vistoque uma regressão ao infinito impossibilita a ação.Tal ponto se revela satisfatório com oestabelecimento de cinco ideias que permitem oinício do trabalho de classificação. O próprioRanganathan reconhece que, se tais ideias não serevelarem mais úteis, podem e devem sermodificadas. Entretanto, baseando a classificaçãoprática nelas, como o método postulacional

os assuntos caem em uma sequência útil [...] e oesquema resultante para a classificação é umaClassificação Livremente Facetada em cadasentido do termo (1967, p. 397 – traduçãonossa).

Resta ainda a questão de saber por que o número écinco. Ranganathan (1967) afirma que qualquerpessoa tem total liberdade para formular o númerode categorias que quiser, desde que elas sejamempiricamente testadas. Para tanto, sugere que seclassifiquem alguns milhares de artigos: se osresultados forem satisfatórios, o novo postuladopode ser aceito. Ou seja, ressalta o critério dautilidade, pois é este o fundamento das categoriasranganathianas: que sejam úteis ao processo

7 Vickery (1980) considera que a superposição poderia ser subsumidaao modo de montagem flexível, pois é um instrumento para estaelaboração, juntamente com a reunião e a agregação. Assim, seriamquatro as direções para a formação dos assuntos.

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classificatório, até porque é preciso começar dealgum ponto e esse ponto é indicado como anecessidade de submissão do potencialmenteinfinito universo de assuntos a termos mais geraisque lhes dêem sentido e enquadramento dentro daperspectiva de classificação do conhecimentoregistrado.

Com isto, Ranganathan (1967, p. 399 – traduçãonossa) apresenta o seu postulado das categoriasfundamentais: “Há cinco e somente cincocategorias fundamentais: Tempo, Espaço, Energia,Matéria e Personalidade”. Ressalta ainda que seucontexto se restringe à classificação bibliográfica,na qual o significado dessas categorias indicasomente as facetas de um assunto, estando,portanto, longe da aplicação em disciplinas comoa metafísica e a física, objetos das categoriasformuladas por Aristóteles e Kant, como vimos.

As categorias são indivisíveis e, portanto,fundamentais. Assim, “não podemos saber o queas ‘Categorias Fundamentais’ são.”(RANGANATHAN, 1967, p. 398 – traduçãonossa). Elas são definidas somente pelaenumeração. O essencial é que elas podem e devemoriginar novas categorias. Entretanto, as últimassão sempre a posteriori, isto é, resultado da aplicaçãodos princípios primeiros às entidades. Portanto, elasprecisam da observação e da experiência. Por meiodisto, todos os assuntos poderiam ser subsumidosàs categorias fundamentais ‘PMEST’, as quais sãoapresentadas na sequência com breve tentativa deexplicação, apesar da dificuldade de definiçõesindicada pelo seu autor:

a) P (personalidade): é constituída de entidades,seus tipos ou espécies e respectivas partes ouórgãos. Por este motivo, pode-se identificar osconceitos de entidade, coisa, todo, produto final,tipos ou espécies, partes ou órgãos com essacategoria fundamental. Ela é considerada porRanganathan como indefinível;

b) M (matéria): compreende o material de que sãofeitas as coisas e as suas respectivas propriedades.Engloba os elementos constitutivos, estrutura,forma, matéria e propriedades. Inclui tantopropriedades materiais quanto abstratas. Porexemplo: madeira que constitui uma mesa, assimcomo sua forma e cor;

c) E (energia): indica tanto qualquer tipo de açãocomo também reações, processos, operações eproblemas;

d) S (espaço): traduz o aspecto espacial geográficodos assuntos analisados que recaem sob essacategoria. Inclui divisões geográficas de continente,de país etc;

e) T (tempo): refere-se ao aspecto cronológico dosassuntos e à limitação de períodos, séculos, décadasetc.

A dificuldade em determinar um número adequadode categorias que abrangessem a totalidade dosassuntos possíveis para uma classificaçãobibliográfica

[...] levou Ranganathan ao seu conceito decategorias ‘fundamentais’ das quais todas ascategorias particulares são manifestações. Ascinco categorias fundamentais por ele citadasacham-se numa ordem que ele declarou ser de‘concretividade decrescente’ [...] (VICKERY,1980, p. 53).

Para analisar o que seria tal ordem, serão oferecidosexemplos que permitam compreender que tipo deobjeto se subsume a cada uma das categoriasfundamentais. O objetivo primordial das categoriasde Ranganathan é exatamente permitir a subsunçãode particulares a uma classe mais geral paraconhecê-los e organizá-los. Imagine-se, portanto,um documento impresso na forma de livro e quetrate da arte de catalogar, publicado em PortoAlegre, em 2008. A Personalidade incluiria a‘Biblioteconomia’; a Matéria, ‘Livro’; a Energia,‘Catalogação’; o Espaço seria Porto Alegre e, parafinalizar, o Tempo seria o ano de 2008.

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Tendo em vista a noção de ‘concretividadedecrescente’, parece problemático admitir queBiblioteconomia, que é uma abstração efetuada apartir da matéria – no caso, livro – seja maisconcreta que a própria matéria que deu origem aesse conceito mais geral. Em verdade, Ranganathannão oferece uma definição exata da categoria‘Personalidade’, na qual justamente recairia o termoescolhido como exemplo.

Foskett reconhece que

[...] é difícil definir Personalidade, mas é fácilcompreender o que ela é; ela corresponde àquiloque chamamos de faceta primária enormalmente inclui coisas (1973, P. 266).

Vickery (1980), por sua vez, salienta que, além dafalta de uma definição mais palpável, a teoria seressente da carência de uma análise mais apuradade suas relações com as demais categorias. Emtermos gerais, no entanto, considera-asinstrumentos úteis e satisfatórios para uma análiseadequada dos assuntos de um documento, pois,como princípios elementares, servem de orientaçãopara que a análise possa ser iniciada. Portanto, elassão a base para que se possa efetuar uma análisede qualquer material a ser classificado no âmbito

da documentação, independentemente da suaforma e do seu suporte.

Analisando os exemplos oferecidos anteriormente,pode-se facilmente constatar que as categoriaselaboradas por Ranganathan buscam responder àsquestões fundamentais do ‘por quê’, ‘o quê’, ‘como’,‘onde’ e ‘quando’. Dessa perspectiva, aconcretividade proposta pelo bibliotecário indianoganha sentido. A causa – isto é, o ‘por quê’ – énecessariamente mais concreta que o seu efeito,ou seja, o ‘o quê’. Assim, o ramo do conhecimentode que surge uma nova entidade é mais concretodo que a própria entidade, por ser a causa dela.

A publicação de um livro sobre catalogação é umefeito da existência de um ramo do conhecimentoque estuda e organiza os materiais bibliográficos.A partir daí, novas questões se seguem e podemser respondidas pelas categorias fundamentais que,como o próprio nome indica, são fundadoras epossibilitadoras do uso de novas categorias delasderivadas.

Na figura 3, a representação gráfica baseada naapresentação de Ranganathan (1967, p. 399-401)e de acordo com a ordem de concretividade.

FIGURA 3As categorias ranganathianas

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É importante ressaltar que Ranganathan inverte aestratégia de Aristóteles: enquanto o estagiritaentendia que as demais categorias são derivadas efazem referência à categoria da Substância, que éautoevidente, o indiano estabelece a categoriaPersonalidade como “indefinível”. Para o primeiro,como vimos, o que não é por si, ou seja, substância,é não por si, isto é, acidente e, portanto, incluídoem alguma das demais categorias, segundo suasnotas características. Ranganathan, emcontraposição ao filósofo grego, concebe que, coma utilização do método residual,

[...] a manifestação da categoria fundamental‘Personalidade’ é facilmente determinável pornão ser de ‘Tempo’, de ‘Espaço’, de ‘Energia’ou ‘Matéria’ [...] este é o método dos resíduos(1967, p. 401 – tradução nossa).

Ora, como o postulado das categorias fundamentaisexpressa que há cinco e somente cinco categoriasfundamentais, toda manifestação que não recairsobre as outras quatro, mais facilmentedetermináveis, recairá sobre a categoriaPersonalidade. Entretanto, Ranganathan concedeque, em alguns casos, tal determinação pode serevelar problemática, mas ela tende a se resolvercom a prática e o consequente aumento daexperiência na identificação dos assuntossuscetíveis de uma classificação bibliográfica.

INTER-RELAÇÕES ENTRE OS SISTEMAS

A identificação de conexões entre as concepçõesde categoria dos três pensadores estudados buscadestacar a importância dos processos deorganização e classificação do conhecimento eindicar as dificuldades inerentes desta tarefa. Emoutras palavras, a plena realização dessa tarefa passalonge de ser algo trivial e corriqueiro, dependendode critérios bem fundamentados, racionais e de umimenso trabalho intelectual. Foi exatamente parailustrar essas afirmações que os sistemas categoriaisforam apresentados e analisados. Tudo isso tendoem vista indicar a necessidade de valorizar otrabalho dos profissionais da informação

envolvidos nas práticas de organizar e classificar oconhecimento.

O profissional da informação está envolvido comconhecimentos multidisciplinares em crescimentoconstante. Para suprir os novos desafios é essencialidentificar aspectos de afinidades que as partesconstituintes do conhecimento mantêm entre si.A estratégia do uso de categorias mostra-se capazde suprir essa necessidade, conforme apresentadoanteriormente. Foi essa razão que motivou a análisedas diferentes concepções de categorias abordadase o estabelecimento de inter-relações entre elas.

Os três sistemas de organização do conhecimentoelegem as categoriais como elementosimprescindíveis e primordiais. As diferenças dizemrespeito principalmente aos objetivos de cadasistema, ou seja, a formulação e o uso dascategorias estão condicionados aos objetivos efinalidades de cada concepção intelectual.Entretanto, as categorias são colocadas semprecomo princípios básicos que possibilitamidentificar, classificar e organizar o conhecimentohumano.

A apresentação dos sistemas categoriais indica queAristóteles extrai suas categorias da própriarealidade, da qual são a expressão mais geral,enquanto Kant deriva as suas da lógica formal,entendida como a estrutura do pensamento. Háuma diferença fundamental entre as duasconcepções, pois o sentido aristotélico

É evidentemente muito diferente daquele querevestirá este termo com Kant. As categoriasde Aristóteles não são conceitos a priori. Nemmesmo, de início, conceitos simplesmentepensados são conceitos postos em operação nosjuízos. Muitos predicados convêm, de fato, auma mesma realidade, mas não exprimem amesma coisa de seu sujeito. É, evidentemente,diferente dizer que Sócrates, por exemplo, é umhomem, ou dizer que ele é branco, afirmar queele mede tantos côvados ou que ele é filho deSofronisco, que está em Atenas etc. Os

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predicados de todos estes juízos não se unemda mesma maneira ao sujeito, eles representammodos de ser distintos. É classificando estespredicados diversos sob um pequeno númerode títulos que Aristóteles obteve sua tabela dascategorias (MANSION, 2005, p. 78).

As categorias aristotélicas também constituemprincípios lógicos, mas são produto do pensamentoem sua conjunção com a experiência. Assim, sãopreenchidas com atributos do ser.

Já as kantianas não têm conteúdo empírico porquese caracterizam como formas de raciocínio: sãopura forma lógica sob as quais se podem produziroutros conceitos, no caso, os conceitos empíricos.Desta maneira, elas são formas sintetizadoras deconteúdos. Segundo o filósofo alemão:

O entendimento esgota-se totalmente nessasfunções e a sua capacidade mede-se totalmentepor elas. Chamaremos a estes conceitoscategorias, como Aristóteles, já que o nossopropósito é, de início, idêntico ao seu, emborana execução dele se afaste consideravelmente(KANT, 1997, p. 108).

Ora, a reformulação por Kant se afasta daperspectiva aristotélica, porque, por si mesmas, ascategorias kantianas são apenas funções lógicas,mas, em harmonia com a sensibilidade, tornampossíveis os juízos sobre a experiência. Portanto,todo conhecimento é derivado de princípios lógicos– no caso, as categorias – e das formas da linguagemexpressas nos juízos que emitimos sobre as coisas.

Os juízos unificam o múltiplo, ao passo que ascategorias são as unidades básicas através das quaisesta unificação se processa. Elas são concebidascomo contributos para a formação dos juízos: épartindo desta perspectiva que o filósofo alemãoas formula para fornecerem um inventárioexaustivo de como é possível conhecer, pois sómediante elas se “[...] pode compreender algo nodiverso da intuição” (KANT, 1997, p. 111).

Como vimos, também é verdade que paraAristóteles as categorias estão relacionadas aosjuízos, isto é, às formas como se fala das coisas.Entretanto, a diferença fundamental reside no fatode que para Kant o princípio que orienta adescoberta das categorias reside no sujeitocognoscente e nas suas capacidades cognitivas,enquanto para Aristóteles a descoberta se faz apartir da própria realidade, já que a linguagem éexpressão fidelíssima dela, sendo as categoriasoperadas a partir do confronto com a realidade.

Kant reformula estes conceitos fundamentaisexplicitando que eles não se formam a partir docontato com a realidade, ou seja, não sãoproduzidos pelos objetos da experiência, pois sãoindependentes, apesar de deverem necessariamenteconcordar com tais objetos e, por consequência,concordar com a própria realidade. É por isto quesão denominadas ‘a priori’, pois são operações dopensar humano que contêm todas as outras,permitindo colocar a multiplicidade dasrepresentações sob uma unidade do pensar. Estaunificação se dá por meio dos juízos que, com oauxílio das categorias, permitem referir às váriasmaneiras como a multiplicidade pode ser unificada.

Outra diferença fundamental está no fato de Kant,ao contrário de Aristóteles, não considerar o espaçoe o tempo como categorias, mas como condições epressupostos para o conhecimento dos seres como auxílio delas. Kant concebe estas condições comoprincípios universais inerentes a toda e qualquerforma de experiência humana. Portanto, comovimos, o espaço e o tempo são considerados nãocomo categorias, mas como condiçõesfundamentais para a experiência.

Ranganathan, por seu turno, resgata as noções deespaço e de tempo para as formas categoriais, poisseu objetivo, assim como o do célebre estagirita,também é avaliar os objetos, segundo ascaracterísticas básicas deles – isto é, o que faz elesserem o que são – e suas relações fundamentais,como estar, permanecer, relacionar-se com outrosou mudar:

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As categorias de Aristóteles, retomadas comligeiras alterações por Ranganathan e quepropiciam a análise dos conceitos em ângulosdiversos de abordagem, as facetas, têm sidoconsideradas por muitos como uma alternativapara a organização semântica (ALVARENGA,2006, p. 97).

As categorias de Aristóteles e de Ranganathan sãodeclaradamente ontológicas, ao passo que askantianas são manifestações puramente lógicas,embora revelem fundamentos ontológicos.8

A perspectiva ontológica e a abordagem dosdiversos aspectos que envolvem o ser exigem asnoções de tempo e de espaço como fundamentaistanto para identificar objetos em geral quanto paraa identificação dos assuntos que compõem umdocumento. Nos dois casos, a determinaçãoespaço-temporal é tão comum quantoimprescindível.

O resgate do espaço e do tempo como formascategoriais distancia o pensador indiano de Kant,pois ele não pretende estabelecer as condiçõessegundo as quais o conhecimento se processa naexperiência humana. O objetivo primordial dele éa organização e a classificação do conhecimentoregistrado. Entretanto, a determinação desseobjetivo também o afasta de Aristóteles, quepretende identificar e avaliar os objetos do mundode maneira geral.

Ranganathan direciona o foco da sua investigaçãopara os assuntos dos documentos e os métodosválidos para sua classificação e expressãolinguística. A questão é que para disponibilizar

informações organizadas não há outro caminho anão ser classificar o conteúdo do que se quertransmitir dentro de uma classe determinada quecontenha um certo grupo de entidades. Esteprocedimento exige, necessariamente, umageneralização que se reflete nas formas categoriais,a partir das quais se podem identificar asparticularidades de cada entidade analisada aosubsumi-la àqueles conceitos de larga aplicação.

As categorias ranganathianas buscam apreender asdiversas perspectivas possíveis do conhecimentoregistrado por meio de ideias mais gerais,elementares e essenciais de que são constituídas.Para isto, partindo da categoria ‘Personalidade’,pode-se chegar a novas categorias que permitamidentificar os diferentes aspectos e particularidadesdos documentos, estruturando seus conteúdos eindo de conceitos fundamentais mais gerais paraos mais específicos: desse modo, aumenta-segradualmente a complexidade dos assuntos.

Ranganathan e Aristóteles procuram organizar oconhecimento do mundo partindo da própriarealidade, buscando as classes mais gerais nas quaisele pode ser inicialmente classificado. Estas classesdão origem a novas classes que são,necessariamente, a posteriori, pois se revelam comoproduto da aplicação dos princípios primeiros àsentidades analisadas.

As categorias de Ranganathan se constituem apartir da realidade, da observação e da experiência.Portanto, elas são categorias empíricas. Importanteressaltar que, mesmo relacionadas às categoriasfilosóficas ocidentais, o mestre indiano sofreugrande influência do pensamento oriental na suaconcepção de conhecimento. O próprio hinduísmoe o budismo, filosofias de vida predominantes naÍndia, apresentam categorias próprias para odesvelamento da realidade. Assim, é importantedestacar que:

Para a classificação do conhecimento,Ranganathan adotou um estilo aforístico,aproximando-se do princípio de ‘unidade do

8 Sob certos aspectos, as categorias kantianas também sãoontológicas. É difícil efetuar uma separação precisa entre ontologiae epistemologia no sistema kantiano. Kant afirma que “[...] oorgulhoso nome de ontologia, que se arroga a pretensão de oferecer,em doutrina sistemática, conhecimentos a priori das coisas em si[...] tem de ser substituído pela mais modesta denominação desimples analítica do entendimento puro.”. (KANT, 1997, p. 264 –CRP, A 247, B 303). O ponto em questão revela apenas que, naabordagem kantiana, os princípios apresentados se aplicam apenasaos objetos da experiência humana, e não às coisas em geral. Assim,a sua ‘Analítica Transcendental’ também apresenta fundamentosontológicos, mas em sentido restrito ao conhecimento humano.

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pensamento atômico’. Essa tendência deveu-se exclusivamente à sua familiaridade com opensamento indiano e com a literatura védica.Acredita-se que a gênese do seu pensar estavaem sua visão holística do universo influenciadapelas culturas brâmane, chinesa e também pelaastrologia (NAVES, 2006, p. 41).

É muito provável que a elaboração das categoriasde Ranganathan tenha se orientado também poroutras ideias não concebidas como princípiosfilosóficos. Entretanto, o objetivo deste trabalhofoi apresentar as categorias e analisá-las segundocada um dos autores escolhidos. Fica aqui aindicação dessas outras influências, no que dizrespeito às categorias, para outros trabalhosrelacionados ao tema que tenham em vista aperspectiva de concebê-las como fundamentos paraa organização do conhecimento.

CONCLUSÕES

A apresentação das categorias à luz de três teoriasdistintas e a sua consequente interpretação buscousalientar a importância dos princípios fundamentaispara a organização do conhecimento. Para tanto,foram abordados os trabalhos desenvolvidos porAristóteles, Kant e Ranganathan no que se referemà noção de categoria e à função que desempenhamem cada um dos sistemas destes pensadores.

Para cada um destes autores, as categorias foramidentificadas como essenciais para a elaboração dosrespectivos sistemas e para a elucidação dequestões relativas ao conhecimento humano, sejade uma perspectiva que pretenda abarcar atotalidade da realidade, as condições da cogniçãohumana ou mesmo o saber registrado em suas maisdiferentes formas.

Aristóteles concebe as categorias como ‘modos doser’, mas para Kant elas são ‘modos de pensar’. JáRanganathan as elabora como ‘modos declassificar’. A explicitação e a interpretação destesdiferentes modos funcionais buscaram justificar ahipótese inicial que salienta a importância dascategorias como unidades cognitivas instrumentais

essenciais para organização e classificação doconhecimento.

As três concepções as indicam como princípiosfundamentais, ou seja, como formas lógicas quepossibilitam atingir os objetivos estabelecidos porcada um dos pensadores no desenvolvimento dosseus respectivos trabalhos teóricos. O primeiro,Aristóteles, apresenta um estudo dos entes maisgerais da realidade, expresso na formulação decategorias através das quais podemos compreenderas coisas que compõem o mundo. Já o segundo,Kant, indica que as categorias não podem serelaboradas a partir das coisas, mas sim a partir daestrutura lógica do próprio pensamento. Por suavez, Ranganathan as elabora com a funçãoespecífica de permitir a identificação, aclassificação e a organização dos registrosproduzidos pelos seres humanos.

Como foi visto, Aristóteles e Ranganathanformulam categorias que entram em operação apartir do confronto do pensamento com aexperiência, buscando ordená-la, enquanto Kantelabora categorias puramente formais. As últimascorrespondem a conceitos puros ou a priori, sendoque é através deles que se podem elaborar outrosconceitos relacionados à experiência, ou seja, osconceitos empíricos.

Há duas classes de conceitos: os a priori, pura formalógica do pensar, e os a posteriori, por entrarem emoperação a partir do contato com a realidade e osobjetos que a compõem, sendo, desta forma,empíricos. Os conceitos empíricos são extraídosda experiência e, portanto, a posteriori. Entretanto,o conceito empírico está submetido ao conceitopuro, ou seja, o seu processo de constituição seefetiva mediante a comparação, ref lexão eabstração oferecido pelas categorias. A diferença,como o trabalho indicou, é que os conceitos a priorise restringem à esfera do pensamento, ao passo queos conceitos a posteriori entram em operação a partirde uma experiência efetiva e com o auxílio dosconceitos puros oriundos da lógica.

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As categorias de Aristóteles e de Ranganathanfuncionam como postulados que exercem a funçãode orientar o pensamento em confronto com amultiplicidade que se lhe apresenta, seja de objetosdo mundo, como no caso do primeiro, seja deassuntos contidos em documentos, como é o casodo segundo. Portanto, são conceitos de altageneralidade e que originam novos conceitos.

Um conceito identifica traços semelhantes que sesobressaem, enquanto os casuais se diluem entresi. Os traços são ressaltados no momento em quecoincidem entre si através da avaliação decaracterísticas básicas que permitem efetuar oestabelecimento de relações, pois, ao se relaciona-rem as características de um objeto com outro, bus-ca-se uma conexão entre eles. Aí então é possívelconhecer e classificar os objetos. É por esta razãoque a teoria das categorias, sejam elas concebidascomo princípios puramente lógicos ou ontológicos,revela-se como essencial ao estudo e à aplicaçãoda classificação. Ao indicar que classificar eorganizar pressupõe unidades mínimas de sentido,o trabalho ressaltou que o reconhecimento daimportância de uma teoria das categorias se mostra,ainda hoje, capaz de lançar luz sobre problemasenfrentados pelos profissionais da informação.

A fundamentação das categorias elaborada porRanganathan indica caminhos para que oprofissional da informação encontre subsídioscoerentes e consistentes no sentido de efetuar umaclassificação com qualidade, eficácia e eficiência.Por seu turno, a elaboração aristotélica permite aeste profissional ter uma visão ampla daclassificação do conhecimento e das dificuldadesinerentes a ela. A reflexão sobre o levantamentode problemas filosóficos referentes às formas dese falar das coisas do mundo e às soluçõespropostas pelo filósofo grego pode ser de grandevalia para o classificador que pretenda aprofundarconhecimentos e, consequentemente, melhorar suaspráticas. Também a contribuição kantiana é desuma importância, pois indica a relevância de umaabordagem epistemológica sobre o processo deconstituição do pensamento humano.

Os textos de Kant e Aristóteles que envolvem ascategorias apresentam muito mais sutilezas ecomplexidade do que este trabalho pretendeumostrar. Entretanto, reconhecendo a importânciadestes textos e a relevância deles para a teoria daclassificação, permitiu-se aqui efetuar recortes depontos considerados fundamentais para estabelecerrelações com as ideias de Ranganathan. Apesar dadificuldade inerente aos assuntos tratados, espera-se ter contribuído de alguma forma para umareflexão sobre a temática abordada.

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Artigo submetido em 01/11/2008 e aceito em 11/05/2009.

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