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CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 99-114, Jan./Abr. 2012 99 Marcelo C. Rosa REFORMA AGRÁRIA E LAND REFORM: movimentos sociais e o sentido de ser um sem-terra no Brasil e na África do Sul 1 Marcelo C. Rosa * Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa comparada sobre a atuação do Landless People´s Movement (LPM), da África do Sul, e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem- Terra (MST), realizada entre 2005 e 2009. No lado brasileiro, impera a ideia de reforma agrária, ou seja, uma ação política voltada para o uso produtivo ou agrícola da terra, que tem, como pano de fundo, critérios legais de produtividade. Na parte sul-africana, vemos o embate se estruturar sob a nomenclatura de land reform, slogan que remete a uma mudança na distri- buição do território, visando à reparação das injustiças cometidas pelos governos do apartheid. Sendo assim, indicamos que esses dois casos comportam tipos diferentes de sujeitos da ação política. Tendo como referentes agentes históricos distintos, os movimentos sob análise, nesses dois países, procuram se legitimar por meio de diferentes “grandezas” que justificam suas existências e suas lutas. Neste artigo, procuraremos apresentar as especificidades de cada um dos sem-terras desses movimentos, a partir das suas formas sociais de “engrandecimento e justificação social” diante de suas bases e do Estado. PALAVRAS-CHAVE: sem-terra, reforma agrária, África do Sul, movimentos sociais, MST. INTRODUÇÃO 2 A comparação entre o Movimento dos Tra- balhadores Rurais Sem-Terra do Brasil (MST) e o Landless Peoples Movement da África do Sul (LPM) já foi tema de Rosa (2007, 2008) e Balleti et al. (2008). 3 O primeiro comparou a relação desses movimentos com o Estado. O segundo procurou elencar as diferenças na forma de organização e mobilização de cada um, apontando para os pos- síveis limites das redes de movimentos sociais for- madas nos últimos anos. Esses textos partem da premissa de que os movimentos são comparáveis porque ambos representam os sem-terra em cada um dos países. O que nenhum deles parece colo- car em questão é justamente o fato de que terra e sem-terra podem não ter o mesmo sentido e o mes- mo significado político em cada um dos países. Se os sentidos dos objetos aos quais se dedicam, em suas lutas, não são necessariamente os mesmos, os próprios movimentos podem, ao fim e a ao cabo, não ser exatamente equivalentes. A comparação, no caso aqui proposto, não partirá, portanto, da aceitação da categoria sem-terra como equivalente universal, mas de sua reconstrução feita pelas pis- tas deixadas pelas agências dos próprios movimen- tos no espaço público. A análise, que todavia se pretende compa- rativa, tomará como foco, seguindo os passos de Boltanski (2000), a situação de disputa na qual cada um dos movimentos emerge como representante de demandantes por terra. Na visão desse autor, * Professor do Departamento de Sociologia da Universida- de de Brasília – UnB. Pesquisador do CNPq. Campus Uni- versitário Darcy Ribeiro - ICC Centro - Asa Norte. Cep: 70910-900 – Brasilia – DF – Brasil. [email protected] 1 A pesquisa que sustenta este texto foi realizada com apoio do CNPq e da Fundação Ford. Essa pesquisa vem sendo realizada conjuntamente com Antonádia Borges a quem agradeço por ter me introduzido e debatido diversas ideias que estão no texto e também por sua cuidadosa revisão. Sou grato também aos pareceristas anônimos que ajuda- ram a esclarecer diversos pontos do artigo. 2 Neste texto, não trataremos da organização desses movi- mentos, de suas ações coletivas ou formas de recruta- mento. Apesar de importantes, tais questões extrapolam os limites da discussão sobre a noção de sem-terra em cada país. 3 Ao contrário do que as informações dos entrevistados do artigo de Balleti et al (2008) sugerem, nossa investigação contesta a afirmação de que o LPM esteja morto. Tendo realizado pesquisa contínua com membros desse movi- mento entre 2005 e 2010, observei mudanças nas táticas e estratégias do movimento, bem como uma regionalização de suas ações na província de Kwazulu-Natal. Esse proces- so parece ter levado à crescente distinção entre o LPM e o MST, objeto de outro texto, em elaboração.

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Marcelo C. Rosa*

Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa comparada sobre a atuação do LandlessPeople´s Movement (LPM), da África do Sul, e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), realizada entre 2005 e 2009. No lado brasileiro, impera a ideia de reformaagrária, ou seja, uma ação política voltada para o uso produtivo ou agrícola da terra, que tem,como pano de fundo, critérios legais de produtividade. Na parte sul-africana, vemos o embatese estruturar sob a nomenclatura de land reform, slogan que remete a uma mudança na distri-buição do território, visando à reparação das injustiças cometidas pelos governos do apartheid.Sendo assim, indicamos que esses dois casos comportam tipos diferentes de sujeitos da açãopolítica. Tendo como referentes agentes históricos distintos, os movimentos sob análise, nessesdois países, procuram se legitimar por meio de diferentes “grandezas” que justificam suasexistências e suas lutas. Neste artigo, procuraremos apresentar as especificidades de cada umdos sem-terras desses movimentos, a partir das suas formas sociais de “engrandecimento ejustificação social” diante de suas bases e do Estado.PALAVRAS-CHAVE: sem-terra, reforma agrária, África do Sul, movimentos sociais, MST.

INTRODUÇÃO2

A comparação entre o Movimento dos Tra-balhadores Rurais Sem-Terra do Brasil (MST) e oLandless Peoples Movement da África do Sul (LPM)já foi tema de Rosa (2007, 2008) e Balleti et al.(2008).3 O primeiro comparou a relação dessesmovimentos com o Estado. O segundo procurou

elencar as diferenças na forma de organização emobilização de cada um, apontando para os pos-síveis limites das redes de movimentos sociais for-madas nos últimos anos. Esses textos partem dapremissa de que os movimentos são comparáveisporque ambos representam os sem-terra em cadaum dos países. O que nenhum deles parece colo-car em questão é justamente o fato de que terra esem-terra podem não ter o mesmo sentido e o mes-mo significado político em cada um dos países. Seos sentidos dos objetos aos quais se dedicam, emsuas lutas, não são necessariamente os mesmos,os próprios movimentos podem, ao fim e a ao cabo,não ser exatamente equivalentes. A comparação,no caso aqui proposto, não partirá, portanto, daaceitação da categoria sem-terra como equivalenteuniversal, mas de sua reconstrução feita pelas pis-tas deixadas pelas agências dos próprios movimen-tos no espaço público.

A análise, que todavia se pretende compa-rativa, tomará como foco, seguindo os passos deBoltanski (2000), a situação de disputa na qual cadaum dos movimentos emerge como representantede demandantes por terra. Na visão desse autor,

* Professor do Departamento de Sociologia da Universida-de de Brasília – UnB. Pesquisador do CNPq. Campus Uni-versitário Darcy Ribeiro - ICC Centro - Asa Norte. Cep:70910-900 – Brasilia – DF – Brasil. [email protected]

1 A pesquisa que sustenta este texto foi realizada com apoiodo CNPq e da Fundação Ford. Essa pesquisa vem sendorealizada conjuntamente com Antonádia Borges a quemagradeço por ter me introduzido e debatido diversas ideiasque estão no texto e também por sua cuidadosa revisão.Sou grato também aos pareceristas anônimos que ajuda-ram a esclarecer diversos pontos do artigo.

2 Neste texto, não trataremos da organização desses movi-mentos, de suas ações coletivas ou formas de recruta-mento. Apesar de importantes, tais questões extrapolamos limites da discussão sobre a noção de sem-terra emcada país.

3 Ao contrário do que as informações dos entrevistados doartigo de Balleti et al (2008) sugerem, nossa investigaçãocontesta a afirmação de que o LPM esteja morto. Tendorealizado pesquisa contínua com membros desse movi-mento entre 2005 e 2010, observei mudanças nas táticas eestratégias do movimento, bem como uma regionalizaçãode suas ações na província de Kwazulu-Natal. Esse proces-so parece ter levado à crescente distinção entre o LPM e oMST, objeto de outro texto, em elaboração.

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nessas situações os sujeitos envolvidos são cha-mados a explicitamente apresentar provas de suagrandeza e de sua importância. Tais provas permi-tiriam, ao dessingularizar a posição dos actantes,4

constituir aquilo que Latour (2005) chama de cole-tivos. Nessa perspectiva, tanto MST como LPMseriam coletivos que se organizam associando a noçãode sem-terra a ações, símbolos, discursos, docu-mentos e histórias que, por sua vez, constituemsentidos específicos a cada movimento. Será pormeio da análise desses objetos, postos nas provasconstituídas em situações públicas, que procurare-mos, ao longo do texto, descrever os diferentes con-juntos que, em cada Movimento, dão sentido socialaos sem-terra no Brasil e na África do Sul.

Partindo dessas premissas, procuramosapontar especialmente para o fato, negligenciadonas comparações já citadas, de que, se existemdiferenças cruciais nos termos empregados em cadapaís, as relações entre terra e sem-terra não podemser tomadas como estáveis, inequívocas ouunívocas: enquanto o movimento brasileiro lutapor “reforma agrária”, o movimento sul-africanoluta por uma “reforma da terra”. Por fim, defende-remos a hipótese central de que questões raciaispróprias de cada país e a relação com a agriculturasão elementos-chave para o entendimento dessadiferença entre a terra e o sem-terra em cada lugar.

QUANDO OS MOVIMENTOS SE ENCONTRAM

Para começar nossa análise, é preciso con-siderar que a comparação entre MST e LPM não

existe apenas na cabeça dos pesquisadores que sededicaram a conhecê-los melhor. Desde a funda-ção do LPM, os dois movimentos têm mantidointercâmbios, no Brasil e na África do Sul, pormeio da La Via Campesina, movimento internaci-onal ao qual ambos são filiados. A própria pesqui-sa que deu origem a este texto foi desenvolvida apartir da etnografia de uma das viagens que mili-tantes brasileiros fizeram à África do Sul e dosdilemas que emergiram no contato cotidiano entreas duas organizações.

Em 2005, eu acompanhava um grupo demilitantes do Movimento dos Trabalhadores Ru-rais Sem Terra (MST) que visitava o Landless People´s

Movement (LPM) na África do Sul.5 Durante umdos encontros iniciais, na província de Kwazulu-Natal, com pessoas ligadas ao movimento, a pri-meira pergunta feita ao representante do MST foi aseguinte: Por que há brancos (como o próprio mili-

tante que discursava) no MST?6 O questionamentoabalou não apenas o militante como o pesquisadorque o acompanhava. Até aquele momento, para omilitante e para mim, a associação entre sem-terra esujeitos brancos era absolutamente normal. Afinal,conhecendo a história do MST, sabíamos que omovimento nascera entre os colonos7 brancos queorganizaram ocupações de terras públicas no sul

4 O termo actante, tão familiar aos leitores de Bruno Latour,foi cunhado pelo linguista Algirdas Julien Greimas. Gros-so modo, é plausível afirmar que seu modelo “actancial”inspira-se nas teorias de Vladimir Propp acerca das estru-turas narrativas. Embora a abordagem estruturalista lhesseja, desde um olhar panorâmico, comum, Greimas sus-tentou que o actante ocupa papéis actanciais a dependerda trajetória da narrativa. Portanto um actante não é omesmo que um personagem e, consequentemente, nãopode ser caracterizada de forma isolada, independente-mente da trama. A formulação de Greimas foi apropria-da por diversos intelectuais, posteriormente descritoscomo dedicados a pensar a “crise do sujeito”, como JuliaKristeva. Na obra de Latour, esse incômodo com ahegemonia do sujeito como único ator plausível se dissi-pa com a aposta no conceito de actante, passível de serdefinido somente no processo de recomposição do social.

5 Agradeço ao MST e aos militantes Vanderlei Martini eInês Pinheiro, por me permitirem acompanhá-los emsua viagem pela África do Sul e compartilhar, com eles,as surpresas e angústias de lidar com a questão da terranaquele país. As inquietações que dão origem a estetexto são produtos coletivos das inúmeras conversas esituações que tivemos durante um mês de convivência,viajando entre as várias províncias sul-africanas. Peçodesculpas se as conclusões deste texto não puderemrefletir com exatidão o processo de aprendizado que ti-vemos naquele período. Agradeço também a MangalisoKubheka e a Thobekile Radebe pela generosidade de per-mitir minha visita.

6 Nesse encontro, havia um militante branco e uma militan-te negra do MST. Ele, nascido no Rio Grande do Sul, masradicado em Minas Gerais, e ela, do estado do Maranhão.

7 Colono é um termo que se refere a quem se reconhececomo descendente de imigrantes alemães, italianos, po-loneses, entre outros, que chegaram ao Brasil entre osséculos XIX e XX para viver e se dedicar a atividadeslaborais no campo. Esta nota é importante por indicarque a narrativa histórica privilegiada por esses narrado-res busca a Europa dos camponeses como seu berço etambém porque sublinha os aspectos positivos (leia-se,produtivos) da ocupação colonial contemporânea noBrasil, obliterando a violência desse processo, em espe-cial no que tange à construção da imagem de terrasdevolutas, improdutivas, sem gente, à espera de seremcultivadas por sujeitos aptos, ou seja, os colonos.

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do Brasil, no final da década de 1970.8 Apesar dis-so, quase nunca se vê, em textos sociológicos ounos próprios relatos do movimento, a cor da pelecaracterizando os sem-terra deste lado do Atlântico.O LPM, por sua vez, era formado, em sua totalida-de, por pessoas negras que, no pós-apartheid, rei-vindicam a posse formal das terras em que viviamou em que viveram antes de serem removidas peloregime racista. Não demoraria muito para compre-endermos que a questão não era simples e remete-ria aos próprios fundamentos da ação de ambos osmovimentos. A cor do sem-terra, como veremos naspartes seguintes, passaria a se impor para o enten-dimento não apenas das bases de sua ação coletiva,mas, principalmente, do que se entende como lutapor terra em ambos os lugares.

Juntamente com a cor do sem-terra, chega-mos a outro ponto importante que distingue essesmovimentos em seus discursos e documentos: oslogan de sua luta. No Brasil, todos os documen-tos do MST e discursos coletados durante a pes-quisa se referem a uma luta por reforma agrária. Jána África do Sul, usando os mesmos procedimen-tos de pesquisa, nos deparamos com a referência àland reform, ou seja, reforma da terra.

Tomando como objeto de análise as formaspelas quais os militantes, os movimentos, os soci-ólogos e os governos justificam e engrandecem (nosentido de atribuir escalas e magnitudes para defi-nir relevâncias e importância de maneira relacional,como descreve Boltanski, 2000) suas ações em es-quemas teóricos, raciais, slogans, documentos esímbolos, pretendemos demonstrar que a associa-ção entre a cor dos sem-terras e suas respectivaslutas pode ser um caminho fértil para o melhorconhecimento do sentido de suas ações. Essa com-paração visa, mais do que a esclarecer e definir overdadeiro significado dessas lutas, a criar obstá-culos e desafios epistemológicos essenciais, nosentido proposto por Stengers (2002), para aque-les que estão acostumados ao campo dos estudosrurais no Brasil e na África do Sul.

Em termos metodológicos, a forma de expo-

sição desse problema deriva das perspectivas de-senvolvidas por Luc Boltanski e Laurent Thevenot,dentre outros, em torno de uma sociologia das açõessociais normativas, orientadas pelas justificaçõespostas em prática pelas pessoas em momentos dedisputa. Mais especificamente, procuraremos seguirsua sugestão de analisar a “maneira pela qual aspessoas criam causas, boas causas, causas coleti-vas” e como essas operações dependem sempre deum engrandecimento das pessoas, dos discursos ede todos os demais objetos postos nessa contenda(Boltanski, 2000, p.26 et passim). Para esses auto-res, a fim de se tornar grande, outros poderiam di-zer “digno” de participar em uma disputa, as pes-soas agenciam objetos e situações em estados soci-ais, de forma a criar equivalências cognoscíveis pe-los partícipes. São as reconstruções desses estadosque permitem que as relações sociais sejam analisa-das a partir de tais paradigmas, que não são parâmetrosde ação política extrínsecos aos contexto investigado,mas, ao contrário, tecidos conceitualmente pelos su-jeitos em luta. O fundamental, nesse tipo de constru-ção sociológica, é o reconhecimento pelos actantes dasprovas que são apresentadas de maneira legítima parajustificar a existência e a construção de uma determi-nada relação social. Tomando de empréstimo a ideiade Bruno Latour (2005) de que devemos reconstruiras associações que permitem a existência social denosso objeto de pesquisa, procuramos demonstrar asformas como as ações de movimentos se conectamcom a história e com a sociologia de cada país.

Em nosso caso, estaremos colocando em pers-pectiva a forma pela qual, na situação acima descrita,os sem-terra da África do Sul e do Brasil, usando umconjunto específico de provas (como cores, sloganse, também, conceitos sociológicos), em situações igual-mente particulares, organizam o que temos chamadogenericamente de lutas por terra.

A HOMOLOGIA ENTRE SEM-TERRA E AGRÁ-RIO: discursos e narrativas como provas

O primeiro passo é tomar como ponto departida uma análise das formas como o MST, por

8 Maiores detalhes sobre essas ocupações estão desenvol-vidos em Rosa (2009) e Sigaud, Rosa e Macedo (2008).

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meio de seus militantes e documentos, se justificacomo um actante grande ou valorizado nas lutaspor terra no Brasil. Quais são os objetos e as pro-vas que lhe permitem mobilizar pessoas, recursose teorias que, ao tornarem-no cognoscíveis, criamo próprio valor público do sem-terra na situaçãode emergência desse movimento?

Tendo em vista que nossa pesquisa teve comoquestão inicial uma comparação institucional dosmovimentos e de seus respectivos lugares de açãoem cada um dos países, procuramos utilizar, comomaterial analítico, os informes produzidos sobrequem são e o que demandam os sem-terra de cadapaís de seus respectivos Estados, a fim de cons-truir uma resposta possível a essas questões.

QUEM SÃO OS SEM-TERRAS DO MST?

Nesta seção, apresentaremos textos produ-zidos pelo MST ou por seus membros que bus-cam definir seus objetivos e suas bases sociais.Escrevendo para uma publicação que tenta darconta das várias acepções que o termo terra podeganhar no Brasil, Ademar Bogo, uma das princi-pais lideranças nacionais do MST, assim define oque seriam os sem-terras na sua perspectiva: “Ini-cialmente é um substantivo composto que designaa condição social de quem vive do trabalho agríco-la e tem aptidão para o mesmo, mas não possuisua própria terra.” (Bogo, 2004, p.419).

Na proposta de reforma agrária do MST de1995, republicada em uma coletânea organizadapor outro de seus principais líderes, encontramosoutra definição que alude aos mesmos elementos:

Quem consideramos sem terra: trabalhadores ru-rais que trabalham a terra nas seguintes condi-ções: parceiros, meeiros, arrendatários, agrega-dos, chacreiros, posseiros, ocupantes, assalaria-dos permanentes e temporários e pequenos pro-prietários com menos de 5 hectares. (Stédile,2005, p.178).

Mesmo distantes no tempo, nos dois mo-mentos discursivos, o MST se apresenta diantede outros sujeitos (em um caso, o público univer-

sitário e, no outro, um segmento maior da socieda-de, incluindo o Estado) de forma a ser considera-do legítimo. Ambas as definições são bem próxi-mas àquelas que leremos nos primeiros manifes-tos dos acampamentos de sem-terra no sul do Bra-sil, encontradas no livro de Méliga e Janson (1982)e na tese de Gehlen (1983), dentre outros.

Tomando as formas de apresentação escritaem cada um dos casos, podemos pensar cada umdos elementos associados à condição de sem terracomo um objeto que é usado como prova de suagrandeza (ou dignidade) pública. Nessas situações,o trabalho produtivo na terra – resultado da apti-dão para atividade rural – aparece como a justifi-cativa para que se venha a receber um lote. A dis-puta, que levará a certo tipo de ação política porparte do movimento e por parte do Estado, comoveremos abaixo, se torna possível justamente apartir do reconhecimento – pelo MST e por ou-tros actantes – da relação obrigatória de equivalên-cia entre terra e espaço produtivo para a agricultu-

ra .9 É importante notar que o sem-terra e a terra

não podem ser vistos ou analisados em tais mani-festos como coisas que possuem um valor próprioou independente de sua relação com outros obje-tos. Ambos precisam ser engrandecidos por ou-tros elementos, como trabalho e agricultura, quepermitem sua diferenciação diante de um outro tipode terra e de um outro tipo de sem-terra: aquela

que não é usada para a agricultura e aquele sujeitoque, apesar de não possuir terras, não trabalha ounão tem aptidão para usá-la produtivamente.

Definindo-se como sujeito a partir dessasassociações, o MST, nos mesmos documentos,aponta como sua principal demanda e seu princi-pal objetivo a realização de uma “reforma agrária”que faça parte da elaboração de um “novo modeloagrícola” para o país.

9 É importante notar que “Terra para quem nela trabalha”foi um dos slogans do MST adotado entre 1984 e 1988.

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Entender, a partir da sua expressão em dis-cursos públicos do Movimento, o sentido dessasprovas e associações entre a figura do sem-terra etodos estes objetos que povoam os documentosdo MST, não é possível sem que consideremosessas características como construídas a partir deuma disputa.

Na leitura de seus documentos, a disputaprincipal do MST se trava contra o “latifúndio”,como modelo produtivo e como unidade política.Em todos os documentos publicizados pelo MSTao longo dos últimos 20 anos, esse é o inimigo a secombater: a grande propriedade, associada a di-versas outras provas cujas grandezas10 seriam sem-pre negativas como:

É importante notar que as categorias queconstroem o sem-terra do MST não são necessari-amente correspondentes àquelas usadas para des-tituir de valor seus contendores. Não estamos emum jogo de oposições, no qual os elementos teri-am uma relação de equivalência permanente, cal-cada em uma oposição substantiva. Trata-se bemmais de uma contenda na qual se joga em diversasfrentes, associando todos os elementos disponíveispara a caracterização de um determinado estado delegitimidade do sem-terra ou de deslegitimação dolatifúndio.

Para um melhor entendimento dos quadrosacima apresentados, precisamos ter em mente queo sem-terra não foi uma criação do MST e seu ini-migo, o “latifúndio”, tampouco. Esses termos fa-zem parte de um agenciamento que leva em contao valor atribuído a eles em uma determinada situ-ação social. Em Rosa (2009), procuramos demons-trar que a categoria sem-terra surge da interaçãoentre demandas por terra e políticas de Estado,

mais precisamente, forma-se como uma categoriapara determinadas políticas públicas. Naquelemomento, apontamos o governo de Leonel Brizola,no Rio Grande do Sul (1959-1963), como uma dasfontes primordiais do termo.11 No referido contex-to, o sem-terra era identificado como um agricultorpobre, que não tinha acesso à terra. A principalcausa disso, apontada em diversos documentosdaquele governo, era a predominância do latifún-dio na região. Paulo Schilling, um dos responsá-veis pelo programa de reforma agrária daquele go-verno e também um dos fundadores do primeiromovimento a usar a expressão sem-terra – o Movi-mento dos Agricultores Sem Terra (MASTER), fun-dado no estado do Rio Grande do Sul em 1960 –define assim a situação:

Partindo da premissa inquestionável de que ainfraestrutura agrária [...] está condenada e devedesaparecer, vejamos inicialmente quais os obje-tivos a alcançar com a reforma agrária:1) eliminação do latifúndio [...] como instituiçãoe latifundiário como classe (Schilling, [1965],2005, p.234).

Outro elemento que não pode ser despreza-do nesse coletivo de provas e actantes é a formacomo o Estado, por meio de sua legislação quepermite o acesso legal à terra, atrela os termos re-forma agrária e sem-terra. No Estatuto da Terra (Leinº4.504, de 30 de novembro de 1964), principalinstrumento legal vigente para lidar com as deman-das de movimentos como o MST, encontramos asseguintes passagens:

Art. 25. As terras adquiridas pelo Poder Público,nos termos desta Lei, deverão ser vendidas, aten-didas as condições de maioridade, sanidade e debons antecedentes, ou de reabilitação, de acordocom a seguinte ordem de preferência:I - ao proprietário do imóvel desapropriado, des-de que venha a explorar a parcela, diretamenteou por intermédio de sua família;II - aos que trabalhem no imóvel desapropriadocomo posseiros, assalariados, parceiros ou arren-datários;

10 Os objetos relacionados no quadro representam ele-mentos associados ao latifúndio em documentos do MSTdatados de 1985, de 1995 e de 2009.

11 O trabalho de Bernard Alves (2010) avança substanti-vamente na compreensão da origem do termo no Brasil,sendo uma referência fundamental para entendermos oconjunto de associações que estavam presentes quandoda constituição original do termo.

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III - aos agricultores cujas propriedades não al-cancem a dimensão da propriedade familiar daregião;IV - aos agricultores cujas propriedades sejamcomprovadamente insuficientes para o sustentopróprio e o de sua família;V - aos tecnicamente habilitados na forma dálegislação em vigor, ou que tenham comprovadacompetência para a prática das atividades agrí-colas.§ 1° Na ordem de preferência de que trata esteartigo, terão prioridade os chefes de família nu-merosas cujos membros se proponham a exer-cer atividade agrícola na área a ser distribuída.§ 2º Só poderão adquirir lotes os trabalhadoressem terra, salvo as exceções previstas nesta Lei.(grifos meus).

Como vemos, para o Estado brasileiro, so-mente poderá ocorrer reforma agrária se existiremsem-terras que sejam trabalhadores competentespara realizar práticas agrícolas. Ao trazer esses ele-mentos variados, queremos ressaltar que o MST,quando surge (em 1985) e tenta se impor comoactante legítimo nas disputas por terra, procuraagenciar elementos que possam ser identificadospor outros como justificadores de sua ações eengrandecedores ou dignificadores de sua conduta.Ao pretender tomar para si a representação dos sem-terra, o MST carregou uma série de provas que da-vam conta da importância dessa tarefa e que haviasido posta em jogo em outras disputas passadas.

Se a relação entre sem-terra e latifúndio jáera clara, por exemplo, no governo de Brizola, aconstrução do latifúndio como um problema paraa nação brasileira se devia também ao legado que asociologia e as ciências sociais nacionais, de formamais geral, deixaram desde seus primeiros momen-tos. A esse legado o MST se filia publicamente pormeio de seus veículos editoriais.

O reconhecimento de certos aspectos dochamado pensamento social brasileiro e das gran-dezas por ele acionadas é posto em jogo pelo MST,como podemos evidenciar na coletânea “A ques-tão agrária no Brasil”, organizada por João PedroStédile (principal liderança do movimento) epublicada pela editora também ligada ao movimen-to. Nos cinco volumes organizados, temos mani-festos de movimentos e de partidos políticos colo-cados lado a lado com textos acadêmicos sobre os

dilemas dos processos sociais agrários para a es-querda brasileira. A publicação, literalmente, as-socia visões intelectuais e políticas que ajudam alegitimar a causa defendida pelo MST; a principaldelas, sem dúvida, é a condenação do latifúndiocomo matriz social, política e econômica. Tal asso-ciação permite ao movimento se apresentar critica-mente diante de sua base, dos acadêmicos e do pró-prio Estado (actantes que também se orientam pe-los mesmos termos, quando se referem à questãoda terra no Brasil), legitimando um campo cognitivodefinido pela expressão “questão agrária”.

Esse breve apanhado, a partir do múltiplouniverso de objetos postos à prova em diversassituações na qual a terra aparece com um elementofundamental, é importante para compreendermostambém porque, no Brasil ela é sempre associadaà realização de uma reforma agrária. Se a terra apa-rece invariavelmente relacionada à questão agrá-

ria, nada mais lógico que os programas políticos eacadêmicos (especialmente os publicados na cole-tânea de Stédile) deem ênfase à reforma agrária

como uma ação legítima e necessária.É preciso esclarecer que, ao abordar esse

universo de objetos que constituem as chamadaslutas por terra no Brasil dos últimos 50 anos, nãoestou lhe atribuindo uma origem, e sim uma pos-sível associação que nos ajude a compreender ocaso que questão. Não defendo, portanto, a ideiade que devamos fazer uma sociogênese dos ter-mos que aqui usamos, como faz Elias (1989) comos termos cultura e civilização, por exemplo. Naperspectiva teórica adotada neste texto, o intento éapenas mostrar como tem feito o próprio MST empublicações recentes, que esse sem-terra branco –como o militante sul-africano nos chamou a aten-ção – é fruto de uma situação específica. Ele é oagente possível, em nossa narrativa histórica, paraconduzir uma transformação da estrutura agrária eagrícola do país, porque, ao longo do tempo, osagricultores comerciais reconhecidos e representa-dos como ideais – principalmente os grandes, mastambém os pequenos – foram sempre aqueles depele branca.

O que vimos até agora é que o MST incor-

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pora, em suas justificações, formas e fórmulas his-tóricas já conhecidas. Por meio de um conjuntoespecífico delas, cria, assim, um “regime deengajamento” em sua luta (Thévenot, 2006). Nes-se contexto, é preciso notar que a possibilidade deum militante vir a se sentir digno de participar domovimento passa pela dessingularização da suasituação individual (do corpo biológico ou dos li-mites de um movimento, partido ou instituição),tornada plausível e possível graças ao agenciamentocorreto do universo de objetos que vimos acima.Ser sem-terra no Brasil, ao menos no campodiscursivo, implica incorporar a relação com a ter-ra que mantinham os colonos do sul do país, quese atribuem uma origem europeia, e, gradualmen-te, outras categorias de agricultores conclamadosàs fileiras do MST ao longo dos últimos 25 anos.Sem conexão com esses objetos (como trabalho eagricultura), suas ações não seriam cognoscíveiscomo dignas (grandes) e poderiam ser vistas comoilegítimas ou injustas por outras parcelas da soci-edade ou do Estado.

Em outras palavras, vimos que os sem-terrado MST são o resultado de um agenciamento denarrativas históricas, interpretações sociológicas,marcos legais e situações sociais que estabelece-ram uma condição para sua ação. Nesses termos,sem passar pelo crivo da questão agrária e da re-

forma agrária, não há justificativa social comparti-lhada para ação dos sem-terra do MST. Tais consi-derações podem ser vistas como naturais e óbviaspara aqueles acostumados com os estudos dessemovimento. Porém, quando tomamos contato comoutras realidades, como a sul-africana, essa rela-ção de homologia entre sem-terra e agrário desapa-rece por completo.

QUEM SÃO OS SEM-TERRA DO LPM

Seguindo o caminho trilhado para conhe-cer a forma pela qual o sem-terra do MST se apre-senta e se legitima no Brasil e fora dele, passamosagora para o outro lado do Atlântico e para as as-sociações que envolvem as ações dos landless (sem-

terra, em inglês).Em sua constituição interina, feita para apre-

sentar o movimento para fora, mas também paraaqueles que gostariam de se associar à sua causa, oLPM (Landless People´s Movement) define clara-mente quem são seus sem-terras:

Nós somos o povo que nasceu do choque entre ocolonialismo e neocolonialismo, da invasão denossa terra pelos países mais ricos do mundo, doroubo de nossos recursos naturais e da explora-ção forçada do trabalho pelos colonizadores.Nós somos o povo que nasceu do apartheid, dasremoções forçadas de nossos campos e casas, dapobreza nas áreas rurais, da opressão nas fazen-das e da fome, da negligência e da doença nosBantustões. Nós sofremos com o trabalhomigrante que levou nossas famílias e comunida-des ao colapso. Nós passamos fome em decorrên-cia do desemprego e dos baixos salários. Nós te-mos visto o parco desenvolvimento de nossas cri-anças em decorrência da falta de condições sani-tárias, água e comida. Nós temos visto nossa terrasecar e ser levada pelo vento, porque fomos for-çados a viver em lugares cada vez menores.

E, em sua carta de demandas, reivindicamque: “toda a população negra da África do Sul queprecisa de terra deve ter o direito à reforma da ter-ra, pois nós todos a perdemos durante ocolonialismo e o apartheid.”

Aceitando que esses documentos são formasde justificação que permitem ou que permitiram aoLPM tomar um lugar de importância nas disputaspor terra nos últimos anos, percebemos, logo emum primeiro momento, que as associações realiza-das são muito diferentes das encontradas nos dis-cursos do MST, anteriormente apresentadas.

O objeto fundamental apresentado é ocolonialismo (e sua variação contemporânea, oneocolonialismo) como o processo histórico maisamplo para a compreensão do estado atual da ques-tão da terra. Para o LPM, a condição da situaçãosocial de sem-terra foi resultado do processo deocupação do território hoje pertencente ao seu paíspor holandeses e ingleses, dentre outros, ao longodos últimos séculos. O termo definidor da açãocolonial não é outro senão o roubo das terras habi-tadas pelos “africanos” ou “indigenous people”,categorias que aparecem em distintas ocasiões como

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sinônimas.12 A partir do roubo originário, novosobjetos seriam postos em relação com a terra, comoo preconceito racial, a pobreza, a fome, a migraçãoe o trabalho forçado.13

Todavia o colonialismo não aparece sozinhonessa contenda. Sua principal associação é com oapartheid, regime que instaurou oficialmente adiferença de cor como uma diferença social naÁfrica do Sul. Para o LPM, o apartheid não começoucom a chegada ao poder do Partido Nacionalistaem 1948 e com a instalação formal do regimesegregacionista. O movimento reconhece que asituação colonial se tornou, ainda mais complicadaa partir de instauração das leis que deliberavamsobre os limites para uso do solo permitidos à partenegra da população. O Natives Land Act de 1913restringia a possibilidade de propriedade negra daterra às chamadas reservas (territórios demarcadosespecificamente para populações negras africanas)e, em termos percentuais, limitava essas áreas aapenas 10% do território do país. Ao Natives Land

Act se seguiu uma legislação ainda mais restritiva,que criou os meios para um massivo processo deremoção de pessoas negras de área rurais e urbanas,com a concomitante transferência de suas terraspara as mãos de fazendeiros brancos, em umprocesso contínuo que teve seu ápice nas décadasde 1960 e 1970. O único tipo de propriedade ruralde terra que se permitia à população negra era, porassim dizer, “comunal”, nas reservas administradaspor autoridades tradicionais (chefes locaisempossados pelo governo do apartheid), cujaprincipal função era deliberar sobre a alocaçãodas terras sob sua responsabilidade.14

Um salto histórico é necessário paracompreendermos que essas questões elevaram o temada terra ao centro dos debates políticos sul-africanosmuito antes da existência do LPM. Durante todo operíodo do apartheid e, especialmente, a partir dadécada de 1970, organizações não governamentais(ONGs) atuavam na contestação das ações do governoracista de remoção e alocação indiscriminada de terrasrurais e urbanas. Uma das mais importantes foi aAssociation for Rural Advancement (AFRA),fundada em 1979 para contestar as remoções decomunidades negras para as reservas oubantustões15 na área da antiga província de Natal.Dos projetos promovidos pela AFRA, surgiram osprimeiros comitês de pessoas afetadas pelaspolíticas de terra do apartheid. De tais comitêssaíram as principais lideranças do Landless People´s

Movement, mais de 20 anos depois.16

Essas ONGs e suas campanhas procuraramassociar as práticas discriminatórias de remoçãoàs condições de vida deterioradas tanto nas zonasde reservas quando nos espaços urbanos(townships), para onde muitas das famílias foramdeslocadas. Tendo vários de seus membros comomilitantes de partidos de oposição, foram as de-mandas dessas ONGs que, segundo James (2007,p.34), orientaram as políticas do Congresso Nacio-nal Africano (ANC) nas suas negociações para ofinal do apartheid.17

A questão da terra colocou, de um lado, osproprietários brancos que defendiam uma política

12 Além dos documentos escritos, alguns dos termos aquiutilizados foram ouvidos em discursos, conversas e en-contros que envolviam a participação de membros do LPM.

13 Na África do Sul, foram criados albergues, nas chama-das townships, para abrigar moradores, em geral ho-mens, das reservas ou bantustões que migravam paratrabalhar, principalmente nas minas. Para esses traba-lhadores, o salário era calculado sem levar em contasuas despesas com a família, pois sua reprodução socialdeveria se dar com a terra alocada em tais reservas.

14 Sobre a alocação de terras por chefes tradicionais, ver otrabalho de Ntsebeza (2005). Segundo James (2007), aimposição dos chefes tradicionais como autoridades paraalocação de terra nas reservas foi obra do “The BantuAuthorities Act” de 1951.

15 A AFRA tem sua base de atuação apenas na província deKwazulu-Natal, uma das nove que passaram a compor opaís ao final do apartheid.

16 “Muitos dos debates iniciais sobre a reforma da terraignoram a participação dos sem-terras. Os sem-terrasmarginalizados apenas ganharam acesso aos debates so-bre esse tipo de política por meio de eventos patrocina-dos por ONGs, como a campanha “De volta para a terra”,de 1993, e a Conferência de Terras da Comunidade, de1994. Ambos os eventos foram organizados pelo Comi-tê Nacional da Terra (NLC), uma ONG de defesa dosdireitos à terra com sede em Johhanesburg”. (Alexander,2004, p.13). Tradução do autor.

17 As ONGs tiveram um papel particularmente importan-te na elaboração e implementação do programa de refor-ma da terra. Elas emergiram em um contexto no qual ascomunidades ameaçadas de remoção (trabalhadores ru-rais expulsos de fazendas onde trabalhavam e viviam oupequenos proprietários removidos pela políticaeliminadora dos chamados black spots) necessitavamde ajuda para se defender das ações do Estado”. (James,2007, p.35). Versão do autor.

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agrária presentista que salvaguardasse os interes-ses do setor comercial e, de outro, as ONGs quepostulavam uma política de terras orientada porum passado de perda ou “despossessão” racial-mente orientada.18 O resultado dessa controvérsiafoi a incorporação da questão da terra na constitui-ção do país, da seguinte forma:

Uma pessoa ou comunidade cuja posse da terratenha se tornado legalmente frágil como resultadode práticas ou das leis racialmente discriminatóriasdo passado tem o direito, por um Ato do Parlamen-to, a uma posse que seja legalmente assegurada oua uma reparação compatível.Uma pessoa ou comunidade cuja propriedadefoi tomada depois de 19 de junho de 1913, comoresultado das práticas ou leis discriminatórias,tem o direito, por um Ato do Parlamento, a umaposse que seja legal ou a uma compensação com-patível (James, 2007, p.5).

A questão da terra foi vista como uma ques-tão de reparação de direitos sociais ao contingentede pessoas agredidas pelas políticas segregacionistas.Antes de tudo, visava-se a garantir a equidade emtermos de posse do território. Uma série de leis,atos e emendas constitucionais veio a regulamen-tar essa política, cujo objetivo mais geral era retornar30% das terras do país para as mãos de pessoasnegras.19 Para muitos dos analistas locais, essa for-ma de incorporação do direito à terra ao texto cons-titucional ficou conhecida como o rights based

approach.20

Em um documento apresentado no ano de2006 pela ministra da agricultura, em um eventoorganizado pela Food and Agriculture Organization

(FAO), vemos claramente os sentidos que a políti-ca de terras sul-africana adquire para o própriogoverno:

Despertando em uma sexta-feira pela manhã,dia 20 de junho de 1913, os nativos da África doSul se encontraram, não verdadeiramente comoescravos, mas como párias em sua terra natal.

Essas são as palavras do senhor Sol Plaatjie, oprimeiro secretário geral do Congresso NacionalAfricano, retiradas de seu livro “A vida nativa naÁfrica do Sul”. Naquela data, o decreto 27 de1913 delineou uma divisão clara entre as ex-plorações brancas e negras, segregandoterritorialmente europeus e africanos. Lavourasnegras somente seriam permitidas nas “reservasnativas”, compreendendo 8% das terras de todasas terras daquele tempo. Em 1936, o Decreto deAssociações e Terras Nativas (decreto 18 de 1936)adicionaria mais 6 milhões de hectares, desti-nando um total de 13,7% da área total do pais.Em 1994, o mesmo padrão altamente desigualde propriedade da terra continua vigente. Esse éo legado do apartheid que o novo governo demo-crático começou a tentar resolver quando che-gou ao poder (DLA, 2006).

Se a questão da terra foi sendo tratada pe-los actantes (ONGs, Estado e pesquisadores) daforma como vimos acima, nada mais lógico que aassociação entre o colonialismo e o apartheid –entendidos como processo de destituição – comofundamental para o conceito e o sentimento dosem-terra sul-africano no pós-apartheid. Na Áfricado Sul, o processo de perda de terras é fortementeassociado à perda de direitos formais de uso dosolo do país. É nesse contexto de associações quedevemos colocar as definições lançadas pelo LPMem seus manifestos a partir de 2001. As provas eos objetos de que o movimento tem lançado mãotornam sua ação justificável diante de uma quadrode disputas que se estabeleceu na África do Suldos últimos 100 anos, e que alcança seu ápice aofinal do apartheid. A referência ao texto clássicode Sol Plaatjie é, nesse caso, equivalente às narra-tivas sociológicas brasileiras citadas acima. “Native

Life in South Africa” ajudou a conformar osparâmetros dentro dos quais a relação com a terraseria enquadrada e narrada sociologicamente na-quele país.21

Ao contrário do que observamos no casodo MST, em nenhum momento o LPM apoia suasprovas em alicerces como trabalho, produção ouagricultura. Seus inimigos públicos também nãosão os latifúndios. Não porque os membros do LPM

18 Uma breve descrição dessas negociações e da posiçãoadotada pelo ANC pode ser encontrada em Ntsebeza(2005).

19 Sobre a legislação referente ao tema da terra na África doSul, ver Claassens e Cousins (2008).

20 Em português, “uma abordagem baseada na garantia dedireitos”.

21 Essa narrativa é classificada por Walker (2008) como a“master narrative”, que orienta toda a estrutura do pro-grama de reforma da terra sul-africana.

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não se interessem pela terra ou porque os latifundi-ários não sejam um entrave à sua luta. A ausênciadesse tipo de prova não invalida que tenham aspi-rações agrárias, mas nos mostra qual o universo degrandezas legítimas na situação de demandas porreparação das injustiças do passado.

OBJETOS POSTOS À PROVA: bandeiras eseus significados

Como apontou Lygia Sigaud (2000), ohasteamento de uma bandeira se tornou, no Bra-sil, um elemento central das disputas por terra.Colocar bandeira em uma área ocupada aponta qualo movimento e qual o tipo de organização de cadaacampamento. No caso sul-africano, não há ocu-pações de terras ou acampamentos, mas manifes-tações tais como marchas, sit-in em prédios públi-cos, velórios e julgamentos.22 Em todos esses ca-sos, as bandeiras são o sinal diacrítico que apontao autor e tipo de demanda que está sendo realiza-da. Ela indica que tipo de coletividade e que tipode questão estão postas em jogo.

Ao lançar o olhar, como na Figura 1, paraas duas bandeiras, reconhecemos facilmente cor-respondências entre elas. Suas cores,proporcionalidades e figuras deixam claro quea bandeira dos sul-africanos tem alguma re-lação com a do movimento brasileiro.23

Como podemos ver na foto acima, ti-rada no dia em que o LPM promoveu e co-memorou o enterro de uma de suas militan-tes sem a permissão do fazendeiro (dono daárea onde residia sua família), as bandeirasdizem não apenas de quem é o protesto, mascom quem os manifestantes se aliam (Borges,2011). De fato, a bandeira do MST apareceu

em todos os eventos públicos do LPM entre 2005e 2009. Apesar de tremularem juntas e serem mui-to similares, as duas bandeiras são, no entanto,ícones e conjuntos que refletem também os distin-tos contextos nacionais de disputa. Suas diferen-ças e similaridades também nos ajudarão a trazernovos elementos para nossa análise sobre os sen-tidos de ser sem-terra.

Ambos os movimentos, em seus documen-tos públicos, atribuem um lugar específico paraexplicar o significado de suas flâmulas, tanto pe-las cores, como pelas imagens utilizadas. Em cadaum dos casos, como veremos abaixo, elementosque poderiam ser pensados como similares adqui-rem sentidos muito diferentes quando utilizadospara justificar a luta de cada movimento.

Para o MST, a bandeira adotada a partir de1987 é composta pelo seguinte conjunto de sím-bolos e significados: vermelho, que representa osangue que corre em nossas veias e a disposiçãode lutar pela Reforma Agrária e pela transformaçãoda sociedade; branco, que representa a paz pelaqual lutamos e que somente será conquistada quan-do houver justiça social para todos; o verde repre-senta a esperança de vitória a cada latifúndio queconquistamos; o preto representa o nosso luto e a

nossa homenagem a todos os trabalhadores e tra-balhadoras que tombaram, lutando pela nova so-ciedade; o mapa do Brasil representa que o MSTestá organizado nacionalmente e que a luta pela

Figura 1 – Bandeiras do LPM e do MST em protesto organizado peloLPM em 2007, na província de Kwazulu-Natal.

22 Ao longo dos últimos cinco anos, as ações maisfrequentes que envolveram o LPM eram os en-terros de pessoas ligadas ao movimento que vivi-am dentro de fazendas de brancos que não permitiamesse tipo de ritual; e também mobilizações para acompa-nhar julgamentos judiciais de casos de conflitos entredonos de terras e moradores de fazenda.

23 O texto de Mnxitama (2006), um dos fundadores doLPM, deixa claro como o movimento foi influenciadopor seu parceiro brasileiro.

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Reforma Agrária deve chegar a todo o país; traba-

lhador e trabalhadora representam a necessidadeda luta ser feita por mulheres e homens, pelas fa-mílias inteiras; o facão representa as ferramentasde trabalho, de luta e de resistência.

Na constituição interina do LPM, as cores eobjetos aparecem definidos na seguinte ordem eda seguinte forma: preto – pelas massas; verde –pela nossa terra; vermelho – pelo sangue derrama-do por nossa terra; branco – pela paz que lutamose que será conseguida assim que houver terra ealimentos para todos; logomarca – o logo do LPMdeverá ser uma mulher e um homem liderandouma marcha de sem-terras sobre um fundo verme-lho e verde, colocados dentro do símbolo do po-der das mulheres, cercado pelo nome do Landless

People´s Movement e pelo slogan: Terra já! Organi-zar e unir! A mulher deverá estar segurando umabandeira do LPM em uma mão e com o punho daoutra mão cerrado. O homem deverá estar segu-rando uma ferramenta agrícola e com o punho daoutra mão cerrado.

Figura 2: Logomarcas do LPM e do MST.

Comparando a forma como as bandeira sãoapresentadas, encontramos algumas semelhançase também muitas diferenças que nos remetem aoscontextos de luta descritos na parte anterior. Entreas semelhanças, vemos o branco como sinônimode paz, o fato de mulheres e homens estarem ladoa lado (o homem sempre com o instrumento detrabalho na mão) e até o vermelho do sangue queanima e é derramado nas lutas por terra.

As diferenças começam a aparecer no pró-

prio ordenamento das cores: no caso de LPM re-vela o sentido da pergunta que abre este texto. Aprimeira cor mencionada é a preta. Ela serve parasimbolizar as massas e não o luto, como no casodo MST. A luta do LPM, assim como atesta a corda pele do homem e da mulher presentes no seulogo, é uma luta dos negros sul-africanos. Já nologo do MST, temos um homem e uma mulherbrancos conferindo legitimidade à sua luta.

A cor dos personagens e o uso da cor verdenos revela uma ordem de grandezas de suma im-portância na história de cada luta. Enquanto, para oMST, o verde significa a terra conquistada do lati-fúndio, para o LPM, a terra é aquela pertence aosnativos da África do Sul, desde antes da coloniza-ção. Isso nos conduz ao próprio tempo histórico noqual se inscrevem essas definições. O MST não re-clama uma terra que já foi de seus representados,como o faz o LPM, seguindo a lógica do memoráveltexto de Sol Plaatjie. O MST quer tomar, para si,uma terra agora ocupada pela grande lavoura.

COLONIALISMO E COLONIZAÇÃO: quando oindígena é ou não sem-terra

Outro elemento que parece ser impor-tante para compreender os distintos regimesde justificação em ambos os países é o uso determos como colonização e colonialismo.Quando o sem-terra sul-africano perguntou aoseu colega brasileiro sobre as razões de umbranco se considerar e ser considerado umlegítimo sem-terra no Brasil, era também a es-sas diferenças que ele aludia. Como vimos,

na sua bandeira, nos seus documentos e nos seusdiscursos, o LPM agencia uma série de objetos queprocuram provar que a situação atual de seus mem-bros é fruto direto do colonialismo.

No universo de grandezas no qual se ins-creve o MST e suas demandas, a questão colonialganha obrigatoriamente outros contornos. Se lem-brarmos que a mobilização que deu origem aomovimento era chamada de “movimento dos colo-nos”, podemos começar a entender que o MST não

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pode negar o colonialismo, sob pena de invalidarsua própria existência: o colono, no discurso do MST,é aquele que também sofre os efeitos deletérios dagrande propriedade agrícola. Outra vez, as provasapresentadas pelo MST não surgem do autointeresse,mas de um universo de grandezas muito peculiar.Se, na África do Sul, o termo corrente é colonialismo,no Brasil, temos adotado – em termos de sociologia ede movimentos sociais – muito mais frequentementea ideia de colonização.24 Sem precisar retornar aomundo dos clássicos do pensamento social brasilei-ro, anteriormente referido, poderíamos apenas lem-brar que suas críticas ao latifúndio se fundam naassociação desse tipo de uso da terra a um processoespecífico de colonização: aquela baseada na grandelavoura de exportação. Em momento algum, como érecorrente na literatura sul-africana, a sociologia e osmovimentos políticos brasileiros colocam em xequeo colonialismo como prática ilegítima. Alguns auto-res, como Sérgio Buarque de Hollanda, por exem-plo, criticaram o tipo de colonização e administraçãoimplantado por Portugal, comparando nosso casocom os das colônias espanholas. Porém ocolonialismo, em si, não foi posto em questão. Nessachave de pensamento, o que interessa é compreen-der os limites e pensar em maneiras de reconstruirou redirecionar o processo de colonização, que foiuma matriz ingrata.

Não precisamos fazer muito esforço paracompreender que o sem-terra, assim como os ci-entistas sociais brasileiros consideram, são fru-tos do processo colonial, mas nem um nem outrose associam a uma ideia de nativos ou indíge-nas.25 Isso não significa que o MST não reconhe-ça as lutas por terras de outros agentes como osindígenas e descendentes de escravos africanos(quilombolas). Pelo contrário, o MST expressapublicamente a legitimidade desses grupos e desuas lutas, mas, por questões históricas, não osclassifica como sem-terras.

É exatamente o contrário disso que ocorreno caso sul-africano. Como a população negra é amaioria (muito mais no LPM do que dentre os in-telectuais que publicam sobre ele), categorias comoessas são tomadas de assalto dos colonizadorespara constituírem armas de grandeza sem igual.Ser nativo, ser negro, ser africano é ser vítima daexpropriação mais do que qualquer outro, e essacondição de grandeza anula qualquer objeto liga-do ao mundo da produção, do mercado ou da eco-nomia. A reforma de terra (defendida pelo LPM)remete, assim, a um universo de grandezas quenão encontra equivalente na ideia de reforma agrá-ria, entendida no sentido de aptidão para agricul-tura, como vimos em uma das definições ofereci-das por uma liderança do MST.

No universo sul-africano, a relação com aterra ultrapassa a cronologia da nação – como cons-tatam, com incompreensível estupefação, autorascomo Walker (2008) e James (2007) – e leva a umareivindicação que coloca em disputa o próprio sen-tido da terra como unidade de produção. No Bra-sil, o que está em disputa é o tipo e qualidade daprodução (em seus diversos sentidos sociológicos)que irá se desenvolver. O que se defende é umaprodução que permita uma maior divisão socialdo uso da propriedade e da terra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: a reforma agrária,a questão da terra e a sociologia branca

Não há qualquer novidade em dizer que asociologia é uma ciência social branca – em todosos sentidos possíveis. Talvez a principal diferençacom a antropologia social mais tradicional(colonialista) é que essa última era uma ciência dosbrancos sobre os não-brancos – outrora chamadosaté de nativos; enquanto que a sociologia semprese pensou como uma ciência dos brancos sobreeles mesmos.26 O fato de já sabermos isso, no en-24 É digno de nota o fato de teorias como o pós-colonialismo

e o de-colonialismo terem pouca influência em nossasociologia, comparado com o que acontece na África, Ásiae boa parte dos demais países da América Latina.

25 É importante notar que, até os dias de hoje, foram poucosos representantes da população indígena brasileira que setornaram cientistas sociais ou líderes políticos nacionais.

26 Certamente, a sociologia nunca usou o termo brancopara se definir. Ao invés disso, preferiu termos ou pro-cessos como modernidade, secularização, revolução ouracionalização, que nunca deixaram de se confundir coma cor dos sujeitos que os engendravam.

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tanto, não nos levou a incorporar esse obstáculoepistemológico ao centro de nossas reflexões eações políticas. Ao contrário, a naturalizaçãohegemônica e opressora de uma cor, uma forma depensar, de trocar, de reivindicar e de se organizarofuscou qualquer dissonância empírica que viessea desestabilizar essa mesma epistemologia branca,única autorizada para pensarmos nossos objetos.

A questão levantada pelo sem-terra sul-afri-cano para seus colegas brasileiros trazia esse obs-táculo em toda sua potência. Nenhum brasileiroali presente – pesquisador ou militante – jamaishavia pensado naqueles termos. Neste texto, pro-curamos mostrar como a análise daquela situaçãopode ser interpretada, nas palavras de Boltanski(2000), como uma disputa na qual a cor do sem-terra foi usada para justificar a luta do LPM. Aomesmo tempo, ela serviu para tensionar o papeldo militante branco do MST e para despertar umaanálise dos objetos e das provas que constituem aprópria sociologia das lutas por terra no Brasil ena África do Sul do último século.

Quando Moyo e Yeros (2005) cunham a ex-pressão recuperando a terra para descrever o res-surgimento dos movimentos rurais no que agoravem sendo chamado de sul, eles estão descreven-do um processo de mobilização cujo ícone maior éesse objeto chamado terra. Ao estudar o encontroentre dois dos movimentos que também aparecemna obra desses autores, percebemos que, apesarde estarem orientados pelo mesmo ícone (a terra) efazerem da sua falta uma identidade de mobilização,os agenciamentos empreendidos localmente sãobastante diferentes. As grandezas associadas à ter-ra são de magnitudes incomparáveis. Tais diferen-ças apontam para um conjunto de objetos e pro-vas que tem servido para justificar que exista umaquestão da terra e, principalmente, de movimen-tos que lutam por ela. Além disso, entram, nessasdisputas, actantes como o Estado, ONGs e os pró-prios cientistas sociais, para limitar os exemplosao escopo do que tratamos neste texto.

Tornar a questão da terra como central noBrasil é associá-la diretamente a uma transforma-ção do espaço social em direção a uma forma dife-

rente de organização produtiva. Vimos, ao longodo texto, que, em suas atividades críticas, o MSTtem lançado mão de termos como o latifúndio, agri-cultura e principalmente reforma agrária como ob-jetos que os legitimam diante daqueles que dese-jam mobilizar e também diante de actantes comoos governos, os acadêmicos e outras organizações.Associando, de forma dinâmica, termos que, paramuitos dos analistas do caso brasileiro, sempre for-maram parte de um mesmo conjunto, o MST nosdá pistas para entender quais as grandezas de serum sem-terra. Tais grandezas não são exatamentecongruentes com duas questões fundamentais parao LPM: o fato de serem indígenas e negros.

O significado da cor preta na bandeira doLPM foi peça essencial para conhecermos melhoras equivalências sul-africanas em relação à experi-ência brasileira. Lá, o sem-terra é, sobretudo, ne-gro. Ser negro na África do Sul é ser vítima docolonialismo e do apartheid. Ser negro é ser indí-gena e querer ter uma terra que foi roubada de seusancestrais (Borges, 2011). A associação entre essesdiferentes objetos utilizados em situações de dis-puta por terra constroem um sentido de justiçaque passa por uma reforma do espaço rural quenão pode ser equivalente ao agrário. O objeto agrá-rio (nas mesmas equivalências que aparecem nocaso do MST, por exemplo) não deixa de ter valorna África do Sul, porém, tendo em vista o fato deserem os colonizadores brancos que, nessa mesmadisputa, o mobilizam nesse sentido, sua grandeza émenor. É menor porque, além de ser sinônimo debranco, o agrário é também equivalente aocolonialismo naquele contexto político específico.

Entenderemos melhor ainda essas disputasse pensarmos que, na África do Sul, há um minis-tério dedicado aos “assuntos da terra” e que nelese encontram todas as políticas de reorganizaçãoda distribuição do território no pós-apartheid.27

Enquanto isso, no Brasil, o ministério responsá-vel pelo mesmo objeto se dedica ao “desenvolvi-mento agrário”.

As breves referências ao encontro entre

27 Department of Land Affairs.

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Landless People´s Movement e o Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem-Terra mostram como asociologia sempre esteve muito mais equipada econfortável para tratar do MST e do agrário, doque do LPM e da terra. Esse desconforto não serefletiu apenas no estranhamento da associaçãoentre sem-terras e indígenas, que foi imposto a mime ao MST na pesquisa. Ele permeia todos os traba-lhos recentes que procuraram compreender os sen-tidos e os impactos do compromisso com aredistribuição de 30% do solo sul-africano. Auto-res como Ntsebeza (2007) tentam chamar a atençãopara o fato de que a questão da terra é sobretudouma questão de direitos e que não se podedesconectar essa questão dos programas de Esta-do. Por outro lado, autores como Cousins (2009),Walker (2008) e James (2007), reproduzindo ummodo equivalente ao brasileiro de olhar para aquestão da terra, irão concentrar suas análises nafalha do Estado em transformar a questão da terraem questão agrária, ou seja, em promover aquiloque chamam de desenvolvimento rural.28 Essedesencontro talvez seja o mesmo experimentadopelo militante do MST quando visitou seus cole-gas do LPM. Na África do Sul, o sem-terra e suaslutas não são necessariamente agentes do desen-volvimento agrário. Já no Brasil, não há dúvidasde que o MST tem desempenhado esse papel.

Desse contraste, aprendemos que é precisoter cuidado para não considerar as lutas dos sem-terra como se justificáveis apenas quando associa-das ao agrário, como vemos predominar na socio-logia em geral (excluindo a etnologia e os emergen-tes estudos sobre quilombolas no Brasil, que nun-ca aparecem associados à ideia de sem-terra). Fu-gir dessa associação – política e sociológica – nospermitiria ver que esses movimentos, agora asso-ciados, possuem projetos políticos distintos parao futuro dos sem-terras que representam. Um éorientado para a reforma agrária; o outro para a

reforma da terra. E isso não só não os afasta, comocria obstáculos epistemológicos estimulantes paraas ciências sociais.

(Recebido para publicação em 22 de março de 2011)(Aceito em 11 de maio de 2011)

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28 Esses autores concentram suas críticas na ideia de landreform como um política pública de garantia de direitos(rights based aproach). Para eles as políticas do governosul-africano e as lutas do LPM (James, 2007) não têmsido capazes transformar as condições materiais de exis-tência nas zonas rurais do Brasil.

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Marcelo C. Rosa – Doutor em Sociologia. Professor Adjunto no Departamento de Sociologia da Universidade deBrasília – UNB. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na mesma universidade. PesquisadorBolsista de Produtividade Nivel 2 do CNPq. Atuou como professor vistante na Universidade de Cape Town (Africado Sul) e na Universidade de Buenos Aires (Argentina). Tem experiência na área de Sociologia, atuando principalmentenos seguintes temas: teoria sociológica, movimentos sociais, mudança social. Nos últimos anos suas atividades deensino e pesquisa têm sido direcionadas para uma sociologia das formas não-exemplares que as ações coletivas e oEstado ganham nos países africanos e latino-americanos. É coordenador do Laboratório de Sociologia Não-exemplar.

RÉFORME AGRAIRE ET LAND REFORM: lesmouvements sociaux et la raison d’être un

paysan sans-terre au Brésil et en Afrique du Sud

Marcelo C. Rosa

Cette étude présente les résultats d’unerecherche comparative faite entre 2005 et 2009 surle rôle des Landless People´s Movement (LPM), enAfrique du Sud, et le Mouvement des TravailleursRuraux Sans Terre (MST) au Brésil. Du côtébrésilien l’idée de réforme agraire domine, c’est-à-dire celle d’une action politique visant uneutilisation productive ou agricole des terres avec,comme toile de fond, des critères légaux deproductivité. En Afrique du Sud, la lutte se basesur une nomemclature de land reform, slogan quifait appel à un changement au niveau de ladistribution des terres afin de réparer les injusticescommises par les gouvenements de l’apartheid. Ilest donc important de faire remarquer que ces deuxcas se rapportent à des types différents de sujetsde l’action politique. Vu notre référence à des agentshistoriques distincts, nous pouvons dire que lesmouvements analysés dans ces deux pays cherchentleur légitimation dans des “grandiosités”différentes, qui justifient leur existence et leursluttes. Dans cet article, sous essayerons de montrerles spécificités de chaque paysan sans terreappartenant à ces mouvements, à partir de leursmanières de “se mettre en valeur et de se justifiersocialement” face à leurs bases et à l’État.

MOTS-CLÉS: paysans sans-terre, réforme agraire,Afrique du Sud, mouvements sociaux, MST.

AGRARIAN REFORM AND LAND REFORM:social movements and the sense of being alandless worker in Brazil and South Africa

Marcelo C. Rosa

This article presents the results of acomparative research developed between 2005 and2009 on the actions of the South African LandlessPeople’s Movement (LPM) and the Brazilian LandlessRural Workers’ Movement (MST). In Brazil, theconcept of an agrarian reform prevails, that is, apolitical action towards a productive agriculturaluse of the land, having the productivity criteria asits main frame of reference. In South Africa, theconflict is structured under the term of land reform,a slogan that refers to the changes in territorydistribution, aiming to make up for the harm causedby apartheid. Thus, we point out that each caseinvolves different types of subjects within theirpolitical actions. By having different historical agentsas their reference, the movements analyzed in bothcountries attempt to gain legitimacy through parti-cular dimensions that justify their existence andstruggle. In this article, we intend to show thespecificities of the landless workers in eachmovement, according to the forms of “socialelevation and justification” regarding their peersand the State.

KEY-WORDS: landless workers, agrarian reform, SouthAfrica, social movements, MST.