Reforma política no Brasil

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

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Unidade de GovernoCoordenador: Francisco Gaetani

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Leonardo AvritzerFátima Anastasia

Organizadores

Belo HorizonteEditora UFMGEditora UFMGEditora UFMGEditora UFMGEditora UFMG

2006

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Elaborada pela Central de Controle de Qualidade da Catalogação da Biblioteca Universitária da UFMG

© 2006, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento | © 2006, Editora UFMGEste livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.

R322 Reforma política no Brasil / Leonardo Avritzer, Fátima Anastasia(organizadores). – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.271 p. ; il. –

Inclui referências.ISBN: 85-7041-536-2

1. Brasil – Política e Governo. 2. Brasil – História. I. Avritzer, Leonardo.II. Anastasia, Fátima.

CDD: 981CDU: 981

Coordenação Técnica: Francisco Gaetani (PNUD)Editoração de textos: Ana Maria de Moraes

Revisão e normalização: Maria do Carmo Leite RibeiroRevisão de provas: Michel Gannam e Marco Marinho

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Apresentação

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)vem através desta publicação contribuir para a discussão sobre aspossibilidades de aperfeiçoamento da democracia no Brasil. O paísé hoje uma democracia consolidada e vibrante, exemplo para ocontinente latino-americano, e objeto de admiração e respeito emtodo o mundo. Transcorridas mais de duas décadas do processode redemocratização, não se verifica no país nenhum temor quantoà possibilidade de retrocessos autoritários. As crises políticas ocor-ridas nesses anos foram todas superadas dentro do marco consti-tucional, sem colocar em risco as instituições democráticas, cujaconstrução é uma conquista permanente de toda a nação brasileira.

O Brasil tornou-se conhecido internacionalmente também pelasinovações no campo da democracia cidadã, isto é, na esfera dademocracia que vai além dos processos eleitorais periódicos dachamada democracia representativa. A multiplicação das experi-ências de orçamento participativo no âmbito local, a criação deconselhos com participação social no âmbito de diversas políticaspúblicas, as experiências de descentralização das políticas sociaise a institucionalização de uma instância de diálogo com os movi-mentos sociais no âmbito do Executivo são exemplos de como oBrasil vem contribuindo para o enriquecimento da prática democrá-tica no continente e no mundo.

O PNUD é a favor de um debate qualificado sobre os dilemas eopções do país no que se refere ao seu sistema político. Esta publi-cação é uma contribuição ao diálogo nacional sobre o tema e destina-se ao mundo político, a organizações da sociedade civil, àsuniversidades, aos meios de comunicação e à sociedade brasileira,em geral. Dado seu caráter didático e informativo, trata-se, também,de uma contribuição que não é prisioneira de debates marcadospelo imediatismo, pois visa possibilitar escolhas conscientes, umameta desejável para a consolidação de processos democráticosfundados essencialmente na disputa política. Trata-se de um esforçode contribuição do PNUD ao debate sobre a reforma política noBrasil. Este é um assunto recorrente desde a Constituição de 1988,sinalizando que algumas das escolhas do país em relação ao temaainda não estão consolidadas ou, talvez, devam ser objeto de recon-sideração.

A iniciativa constitui-se em um seguimento de duas outras impor-tantes contribuições do PNUD ao debate sobre democracia: o Rela-tório Internacional sobre Desenvolvimento Humano de 2002“Aprofundar a Democracia num Mundo Fragmentado” e o Informeda Diretoria para América Latina e Caribe “Democracia na AméricaLatina – Rumo a uma Democracia de Cidadãos e Cidadãs”, lançadodois anos atrás com o apoio da União Européia. Ambos os relatóriosalcançaram grande repercussão em escala continental e mundial

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ao abordarem o tema da relação dos siste-mas políticos nacionais e a qualidade doprocesso democrático.

Muito se discute sobre a funcionalidadede sistemas políticos em abstrato. Mas,quando se trata de vincular este debate aosdesafios de um país como o Brasil — queenfrenta simultâneamente os imperativos decombater a pobreza e crescer —, as coisasjá não são tão simples. Os grandes desafi-os da democracia brasileira são o combateà desigualdade e a promoção do desenvol-vimento, simultâneamente. A construção deum sistema político que favoreça um proje-to de governabilidade comprometida comestes dois projetos é um desafio nacional.

A forma que o PNUD encontrou de apoiaresta discussão foi optando por disseminaro debate e os dilemas nele envolvidos. Asociedade precisa apropriar-se das escolhasque conduzem ao sistema político que agoverna. Optou-se por desagregar os diver-sos ingredientes da discussão sobre refor-ma política e mapear as posições existentessobre cada um deles. A intenção foi escla-recer as divergências, não processá-las, por-que esta tarefa é da sociedade brasileira e desua classe política. O produto deste traba-lho, contido no livro, é um conjunto de textosque elucidam dilemas e proporcionam aná-lises do cenário brasileiro no que se refere

aos desafios afetos ao funcionamento do sis-tema político.

A iniciativa foi desenvolvida com o apoiode diversos integrantes da comunidade decientistas políticos, economistas e sociólo-gos da academia brasileira, que se dispu-seram a participar do projeto. A edição destetrabalho se deu em parceria com a Universi-dade Federal de Minas Gerais, instituição àqual pertencem os organizadores desta publi-cação, que organizaram a estrutura do livro ea articulação das contribuições. A publicaçãonão é um documento oficial do PNUD, embo-ra a iniciativa seja de sua responsabilidade, eos textos sejam de responsabilidade dosrespectivos autores.

A publicação é constituída por dois tiposde contribuições: artigos e verbetes. Os arti-gos que abrem e fecham o livro tratam dequestões sobre a democracia cidadã e so-bre a funcionalidade — ou não — do sistemapolítico brasileiro, além de uma contribuiçãoao debate a partir de um outro país latino-americano — o México — que traz um olharcomparativo. Os verbetes referem-se a diver-sos temas, mais ou menos relacionados como debate sobre a reforma política no país. Oconjunto das contribuições proporciona umavisão do mosaico que é a discussão da re-forma política do país e das posições emdisputa.

PNUD Brasil julho 2006

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Sumário

Introdução 11

Parte IReforma Política no Brasile na América Latina 15

A Reforma da Representação 17Fátima AnastasiaFelipe Nunes

Reforma Política e Participação no Brasil 35Leonardo Avritzer

Reforma Política em PerspectivaComparada na América do Sul 45

Carlos Ranulfo Melo

Transição e Governabilidadenas Democracias Mexicana e Brasileira 63

Alberto J. OlveraTradução: Áurea Cristina Mota

Parte IIEntendendo as MudançasNecessárias no Sistema Político 71

1. Republicanismo 73

Republicanismo 73Heloisa Maria Murgel Starling

Financiamento de Campanha(público versus privado) 77

Renato Janine Ribeiro

Corrupção e Estado de Direito 82Newton Bignotto

Voto Obrigatório 86Cícero Araújo

CPIs e Investigação Política 90Fábio Wanderley Reis

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2. Participação e Opinião Pública 94

Iniciativa Popular 94Sonia Fleury

Plebiscito e Referendum 99Cláudia Feres Faria

Política de Cotas 103Céli Regina Jardim Pinto

Regulação das Pesquisas 107Rachel Meneguello

Regulação da Mídia 111Regina MotaFrancisco Tavares

Corporativismo 116Renato Raul Boschi

3. Método de Constituiçãodas Instâncias Decisórias 123

Federalismo 123Marta Arretche

Sistema Eleitoral 128Antônio Octávio Cintra

Lista Aberta – Lista Fechada 133Jairo Nicolau

Número e Distribuição de Cadeirasna Câmara dos Deputados 137

David SamuelsTradução: Cláudia Feres Faria

Coligações Eleitorais 142David Fleischer

Justiça Eleitoral 147Matthew Taylor

O Financiamento de Campanhas Eleitorais 153Bruno Wilhelm Speck

O Bicameralismo em Perspectiva Comparada 159Mariana LlanosFrancisco SánchezTradução: Daniela Paiva de Almeida Pacheco

Suplentes de Parlamentares 165Charles PessanhaAna Luiza Backes

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4. Regras Decisórias 170

Poderes de Agenda do Presidente 170Magna Inácio

Modalidades e Procedimentos de Votaçãonas Modernas Casas Legislativas 175

Sabino Fleury

Pertencimento do Mandato 180Maria Hermínia Tavares de Almeida

Migração Partidária 183André Marenco

Cláusula de Barreira 188Mônica Mata Machado de Castro

Reforma Constitucional 192Gláucio Soares

Emendas Parlamentares 197Marcus Melo

Emendas Constitucionais 202Cláudio Gonçalves Couto

Orçamento Público no Brasil Democrático 207Paulo Calmon

Autonomia/Independênciados Bancos Centrais 212

William Ricardo de Sá

Independência do Banco Central:Incompatibilidade entre Teoria e Prática 216

Marco Aurélio CroccoFrederico G. Jayme Jr.

Parte IIIO Presidencialismo de CoalizãoPrecisa ser Mudado? 221

Governos de Coalizão no SistemaPresidencial: o Caso do Brasil soba Égide da Constituição de 1988 223

Fabiano Santos

Presidencialismo e Governo de Coalizão 237Fernando Limongi

Críticas ao Presidencialismo de Coalizãono Brasil: Processos InstitucionalmenteConstritos ou Individualmente Dirigidos? 269

Lucio R. Rennó

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Introdução

Leonardo AvritzerFátima Anastasia

A reforma política pode ser entendida, de forma mais restrita,como reorganização de regras para competições eleitorais periódi-cas, tal como tem sido o caso no Brasil pós-democratização, oupode ser entendida, também, como uma reorganização mais am-pla do sistema político brasileiro. Neste caso, vale a pena distinguirentre a reforma das instituições políticas, a reforma do comporta-mento político e a reforma dos padrões de interação política. NoBrasil pós-democratização, a agenda da reforma política foi mu-dando: no começo dos anos 90 ainda eram discutidos amplostraços da organização das instituições políticas, como foi o caso doplebiscito sobre o parlamentarismo. A partir do final da década de90, a idéia de reforma política foi se consolidando em torno dediferentes pontos: a reorganização ampla das regras do sistemapolítico e da forma de financiamento de campanha, a criação denovas instituições capazes de aumentar a participação e os dife-rentes padrões de interação entre instituições representativas eparticipativas.

Não existe, até o momento, um consenso sobre quais são ascausas das crises periódicas que atravessam o sistema políticobrasileiro. Esta publicação tenta responder a essa indagação, proble-matizando três conjuntos de questões: o primeiro deles refere-se àmaneira como o sistema representativo e as formas de participaçãoestão estruturados no Brasil. A Parte I deste livro busca estabeleceralgumas bases para uma compreensão mais ampla do sistema derepresentação e de participação vigente no país e apresenta su-gestões para o seu aprimoramento. O segundo conjunto de ques-tões, abordado em 31 verbetes apresentados na Parte II, refere-se àorigem e ao funcionamento das instituições republicanas e demo-cráticas no Brasil e aos temas que freqüentam, ou deveriam fre-qüentar, a agenda da reforma política no país. Esses verbetes estãoagrupados segundo as diferentes abordagens que os informam.

O republicanismo, como interpretação do sistema político, ofe-rece instrumentos para uma investigação analítica capaz de trazerà tona elementos conceituais próprios às sociedades democráticas,tais como o voto obrigatório ou facultativo, ou a questão da corrupção.Ele permite, também, devolver densidade à idéia de interessescompartilhados, de ação pública dos cidadãos, de definição dosmodos de agregação e uso do bem público.

A análise institucional, por sua vez, busca identificar os efeitosproduzidos pelos procedimentos democráticos, sob certas condições,

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e os impactos prováveis das alterações nasregras do jogo presentes na agenda da re-forma, seja sobre o comportamento dos ato-res políticos e seus padrões de interação,seja sobre os resultados do jogo político.

O terceiro elemento central para o debatesobre reforma política diz respeito ao arranjoinstitucional brasileiro, denominado por SérgioAbranches de presidencialismo de coalizão,e aos seus problemas. Nesse arranjo, o pre-sidente se elege por maioria absoluta, maso seu partido dificilmente consegue umabancada com mais de 20% das cadeirasna Câmara dos Deputados. Apesar de boaparte da intelectualidade na área de ciênciapolítica no Brasil considerar o presidencia-lismo de coalizão como um sistema exitoso(Figueiredo; Limongi, 1999), há, também, umgrupo significativo de críticos do sistema,especialmente na ciência política norte-ame-ricana, que questionam o sucesso do presi-dencialismo de coalizão no Brasil (Mainwaring,1999; Ames, 2003).

A crise política atual recoloca a discussãosobre o êxito do presidencialismo de coali-zão por dois motivos: em primeiro lugar por-que ela põe em questão o método deformação de coalizões. Coalizões podem serconstruídas no processo eleitoral, tendo porprincipal “cimento” o voto, que é o recursomais legítimo sob a democracia. Porém, sobo presidencialismo com multipartidarismo erepresentação proporcional, dificilmente sairádas urnas uma coalizão governativa majori-tária. Portanto, a transformação da coalizãoeleitoral vitoriosa em coalizão governativamajoritária exigirá a mobilização de outrosrecursos. Embora se saiba que a persuasãoe a produção do consenso, resultante doprocesso deliberativo, são recursos funda-mentais da política democrática, sabe-se,também, que no Brasil esses recursos têmsido usados de forma parcimoniosa, espe-cialmente dada a natureza das coalizõespolíticas que têm sido organizadas comvistas ao exercício do governo: a grandemaioria, para não dizer a totalidade, dascoalizões construídas no pós-88, no Brasil,caracterizou-se por ser composta por par-ceiros com pouca afinidade ideológica e

programática, situação que veio a tornar-semais aguda sob o atual governo.

A questão do presidencialismo de coali-zão remete ao fato de o Brasil ser, entre ospaíses da América Latina, um dos que con-solidou o seu sistema político mais tardia-mente. O sistema político pós-autoritarismona Argentina, no Chile e no Uruguai implicoua volta ao sistema de partidos existente noperíodo democrático anterior. No caso doMéxico não houve ruptura entre o sistemade partidos que já operava no período auto-ritário e o sistema pós-democratização. Nocaso brasileiro, as identidades partidárias pre-gressas não foram recuperadas e um novosistema partidário emergiu no contexto daredemocratização da ordem política. Nestapublicação, apresentamos diferentes artigoscomparando a situação política brasileiracom a latino-americana dando destaque aoproblema da reforma política em perspec-tiva comparada.

Finalmente, vale perguntar, reformar paraquê? É importante sublinhar que a reformadas instituições políticas no Brasil será bemsucedida se contribuir para o aperfeiçoamentoe o aprofundamento da ordem democrática,incidindo positivamente sobre o comporta-mento político dos atores em interação esobre os resultados produzidos.

Estrutura

Este livro sobre reforma política no Brasilestá dividido em três partes: uma primeiraparte compreende considerações geraissobre o funcionamento do sistema políticono Brasil e na América Latina; a última parteprocura apresentar a controvérsia que atra-vessa a ciência política brasileira no que serefere ao presidencialismo de coalizão. Entreas duas partes, o conjunto de 31 verbetestem como objetivo oferecer ao leitor inte-ressado na reforma do sistema político umaintrodução didática ao amplo cardápio dequestões envolvidas nesse tema. Os ver-betes estão organizados em quatro seções:republicanismo, participação, constituiçãodas instâncias decisórias e regras decisórias.

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13Introdução | Leonardo Avritzer | Fátima Anastasia

Os verbetes sobre o republicanismo, talcomo foi apontado acima, têm como objeti-vo mostrar que há uma dimensão republica-na que pode estar mais presente naorganização do sistema político no Brasil.Eles representam não apenas uma inovaçãona discussão sobre reforma política, que usual-mente não aborda esta dimensão, mas, tam-bém, uma inovação na maneira como aciência política brasileira vem tratando dessetema. Nesse sentido, a concepção que orientaos verbetes é a de que as orientações teóricase os temas amplos da organização políticapodem ser articulados. O leitor deste livropoderá perceber que, freqüentemente, nocaso do sistema político brasileiro, é possívelidentificar a falta de um elemento cultural outeórico gerando uma prática política poucoprodutiva do ponto de vista institucional.

O segundo grupo de verbetes trata dediversas dimensões da participação políti-ca. Esses verbetes abordam desde o funci-onamento das instituições participativas noBrasil, tal como é o caso dos verbetes sobreplebiscito e referendum, até o caso do cor-porativismo. Mais uma vez, esses verbetestratam de questões que usualmente não sãoconsideradas objeto da reforma política. Noentanto, práticas participativas estão cadavez mais presentes no sistema político bra-sileiro, e o seu papel tende a ser ampliadonos próximos tempos devido ao amplo man-dato constitucional que está por trás das for-mas de participação no Brasil democrático.Nesse sentido, tanto no caso do republica-nismo quanto da participação, a orientaçãodos coordenadores deste relatório foi a deampliar o escopo da reforma de modo afornecer ao leitor uma visão mais compreen-siva dos problemas envolvidos no funciona-mento do sistema político brasileiro.

Temos, ainda, dois grupos de questõesrelacionadas aos processos de constituiçãodas instâncias decisórias e de definição dasregras decisórias. Esses são os temas maisusualmente ligados à temática da reformapolítica. Mais uma vez, optamos por um trata-mento amplo desses temas com verbetessobre federalismo; sistema eleitoral; listas;

número de parlamentares no CongressoNacional; coligações eleitorais; justiça elei-toral; financiamento de campanha; bicame-ralismo e suplência de Senador. Nesseprimeiro grupo de verbetes, relacionados aométodo de formação das instâncias decisó-rias, o leitor encontrará para cada tema umadefinição do assunto ou das alternativas empauta e do seu funcionamento no Brasil. Oúltimo grupo de verbetes trata das regrasque presidem as decisões políticas no paíse envolve os seguintes assuntos: poderesde agenda do Presidente; natureza do votodos parlamentares; pertencimento do man-dato; migração partidária; cláusula de bar-reira; revisão constitucional; emendasparlamentares; emendas constitucionais;orçamento público; independência do BancoCentral. Nesse caso, temos a presença deassuntos eminentemente polêmicos abor-dados em alguns casos por mais de umapessoa expressando a diversidade de posi-ções sobre o assunto na comunidade aca-dêmica brasileira.

Esta publicação está destinado a mem-bros do sistema político, a jornalistas eàquela parcela da opinião pública que sepreocupa em pensar como melhorar o sis-tema político no nosso país. Cada um des-ses leitores encontrará, nas três seções dolivro, a matéria-prima necessária para pen-sar o sistema político brasileiro. Como orga-nizar essa matéria-prima para que oresultado final seja diferente daquele quetemos hoje é uma tarefa a que os organiza-dores deste volume não se propuseram.Acreditamos que diferentes propostas dereforma possam emergir da sua leitura.Esperamos ter dado a nossa modesta contri-buição para que essa reforma ocorra e paraque ela seja capaz de produzir um sistemapolítico mais transparente, mais cidadão emais em sintonia com o país e com sua opi-nião pública.

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Reforma Política no Brasile na América Latina

ParteI

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A Reforma da Representação

Fátima AnastasiaFelipe Nunes

Introdução

Neste artigo se discutirá a reforma da representação política.Por representação política se entende o conjunto de relações esta-belecidas entre os cidadãos e os governantes eleitos. Os primeirossão, nas democracias, os sujeitos detentores de soberania políticae a utilizam para autorizar outros, os governantes, a agirem em seunome e no nome de seus melhores

1 interesses. Os cidadãos são

os mandantes, os governantes são os mandatários, estejam elesno Poder Executivo — presidente, governador, prefeito — ou no Po-der Legislativo — senadores, deputados federais, deputados esta-duais ou vereadores.

Segundo Robert Dahl (1991), foi a invenção da representaçãoque permitiu a vigência da democracia nas sociedades contempo-râneas, que são complexas e heterogêneas, compostas por mi-lhões de pessoas e atravessadas por múltiplas clivagens e fontesplurais de formação de identidades coletivas.

Em sociedades como estas o exercício exclusivo da democra-cia direta, como se fazia na polis grega, seria inviável. Ainda quefosse factível — considerando-se os recursos tecnológicos hoje dis-poníveis —, a utilização exclusiva de tal procedimento seria indese-jável, já que não permitiria que as decisões tomadas pelascoletividades fossem resultados de processos de discussão e dedeliberação política, essenciais para a formação e a transformaçãodas preferências políticas. A democracia exclusivamente direta serestringiria à agregação de preferências dadas e se revestiria deum caráter plebiscitário.

A invenção da representação foi a solução encontrada (Sartori,1994)

2 para diminuir concomitantemente os “custos internos” e os

“riscos externos” associados ao processo decisório. Os primeiros(custos internos) crescem com o aumento do número de decisorese se referem aos recursos mobilizados para se permitir a participaçãoampliada dos cidadãos. Vale citar, a título de exemplo, a quanti-dade e a variedade de recursos que são empregados para realizar

1 A expressão “melhores interesses dos cidadãos” foi retirada de PRZEWORSKI,MANIN e STOKES (1999). Nas palavras dos autores: “Governos sãorepresentativos se eles fazem o que é melhor para o povo, se eles agem nomelhor interesse de, pelo menos, uma maioria dos cidadãos.”

2 A argumentação desenvolvida neste parágrafo e no seguinte está baseada emSARTORI, 1994, capítulo 8: “A teoria da democracia como processo decisório.”

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eleições presidenciais em um país como oBrasil. Os segundos (riscos externos) cres-cem com a diminuição do número de deci-sores e são, fundamentalmente, os riscosde tirania, corrupção e incompetência.

Como afirma Sartori, o que seria desejá-vel — a diminuição concomitante dos cus-tos internos e dos riscos externos — seriainalcançável se fosse considerada exclusi-vamente a variável número de decisores.Porém, a introdução de novas variáveis naequação das decisões políticas permite quea adoção do método representativo e de re-gras de decisão baseadas nos princípios daigualdade política e da soberania da maioriapossibilite a diminuição simultânea doscustos internos e dos riscos externos.

A solução propiciada pelo método repre-sentativo ensejou, porém, a produção denovos e diferentes problemas, relacionados:(1) à natureza dos laços que unem represen-tados e representantes; (2) à capacidade deos primeiros vocalizarem suas preferênciasperante os segundos e fiscalizarem e moni-torarem suas ações e omissões; (3) e à von-tade e à capacidade de os segundosefetivamente agirem em nome dos cidadãose na defesa de seus melhores interesses.

Portanto, desde que foi “inventada”, arepresentação tem sido objeto de inúmerascontrovérsias e acirrados debates, além deser recorrentemente “reinventada”, com vis-tas ao aprofundamento e ao aperfeiçoamentodas ordens políticas contemporâneas. Nasdemocracias representativas a discussãosobre reforma política remete imediata-mente, ainda que não exclusivamente, aotema da reforma da representação.

O que reformar? Quando se fala em refor-ma política, se pensa, em geral, em reformadas instituições políticas. No entanto, outrasacepções podem ser atribuídas à expres-são: reforma do comportamento político,reforma dos padrões de interação política,reforma da correlação de forças políticas,reforma das condições sob as quais atuamas instituições políticas. Todas essas ques-tões constituem importantes dimensões dojogo da representação porque: (1) incidem

sobre as capacidades dos cidadãos e dosrepresentantes de jogarem tal jogo com legiti-midade e eficácia e (2) afetam a distribuiçãode preferências e de recursos entre os atorese os resultados do jogo político.

Por que reformar? Para garantir que a re-presentação seja cada vez mais democrática.A ampliação e o aperfeiçoamento da repre-sentação democrática remetem ao desafiode transformar a democracia em um con-junto de interações iterativas entre represen-tantes e representados, desenvolvidas emum contexto decisório contínuo e institucio-nalizado.

Como fazer? Transformando as CasasLegislativas em “cidades mágicas” (Fishkin,1995), ou seja, locais de deliberação políticaque permitam e incentivem a interação en-tre representação e participação políticas,que facultem aos cidadãos a vocalizaçãocontinuada de suas preferências perante oslegisladores e que lhes garantam o acom-panhamento e o monitoramento permanentedos movimentos de seus representantes.

Estas são as questões e os temas trata-dos neste artigo. Na primeira seção são de-senvolvidas algumas considerações denatureza teórica, com vistas a subsidiar aargumentação subseqüente (segunda seção),relativa ao processo e à produção legislativose aos seus impactos sobre a representaçãopolítica. A terceira seção aborda o desenvol-vimento da agenda da reforma política noBrasil, no período compreendido entre 1990e 2006. As conclusões trazem um balançodas propostas em discussão e dos efeitosesperados de sua aprovação, à luz da matrizteórica apresentada anteriormente.

1. Lijphart revisitado

Em Modelos de democracia (2003), Lijphartpropõe interessante esquema analítico quepermite classificar as democracias contem-porâneas em dois diferentes modelos, omajoritário e o consensual. Para tanto, eleconstrói dois eixos — o primeiro relativo àdimensão Executivo/partidos, e o segundo

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expressivo da dimensão federalismo/unitarismo — e distribui entreestes eixos dez características relacionadas à distribuição de po-deres entre os atores relevantes. O modelo majoritário é desenhadoa partir da lógica da concentração de poderes nas mãos de maioriasgovernativas e o modelo consensual se pauta pela dispersão depoderes e pela garantia da expressão político-institucional das mi-norias. Nas palavras do autor:

O modelo majoritário concentra o poder político nas mãos de umapequena maioria, e muitas vezes, mesmo, de uma maioria simples(plurality), em vez de uma maioria absoluta (...) ao passo que o modeloconsensual tenta compartilhar, dispersar e limitar o poder de váriasmaneiras. Uma outra diferença, relacionada a esta última, é que omodelo majoritário é exclusivo, competitivo e combativo, enquanto omodelo consensual se caracteriza pela abrangência, a negociação e aconcessão (“democracia de negociação”) (Lijphart, 2003, p. 18).

O Quadro I sintetiza o esquema analítico de Lijphart:

Segundo Lijphart, o contraste entre os dois modelos permiteconstatar que o desempenho do modelo consensual é superior aodo modelo majoritário,

3 seja no que se refere à representatividade e

à legitimidade da ordem, seja no que diz respeito à sua eficácia eeficiência. Propõe-se, aqui, que a reforma da representação deveorientar-se para a consecução das características mais afins aoconsensualismo e deve referir-se: (1) à reforma do método de for-mação dos órgãos decisórios; (2) à reforma das regras de tomadade decisões; (3) à reforma da composição dos órgãos decisórios;(4) à reforma do funcionamento, ou da operação efetiva, das insti-tuições políticas.

3 Nas palavras de Lijphart: “as democracias majoritárias, principalmente no que serefere à dimensão Executivo-partidos, não ultrapassam o desempenho das deconsenso, quanto à administração macroeconômica e ao controle da violência —na verdade, estas últimas apresentam um resultado ligeiramente melhor —, masas democracias de consenso ultrapassam de fato, claramente, o desempenhodas majoritárias quanto à qualidade e à representatividade democráticas, comotambém quanto ao que eu chamei de generosidade e benevolência na orientaçãode suas políticas públicas. Na segunda dimensão, as instituições federais dademocracia de consenso dão vantagens óbvias aos países grandes, e os bancoscentrais independentes que fazem parte desse mesmo conjunto de característicasconsensuais servem, de fato, ao propósito de controlar a inflação” (p. 339).

Fonte: Elaboração própria a partir de “Modelos de Democracia” de Lijphart, 2003.

PoderExecutivo

GrandesCoalizões

Governounipartidáriocom maioria

estrita

Relação entreos Poderes

Separação comchecks andbalances

Fusão epredomínio

do Executivo

SistemaPartidário

Multi-partidário

Bipartidário

SistemaEleitoral

RepresentaçãoProporcional

Majoritário

Consensual

Majoritário

Grupos deInteresse

Corporativistas

Pluralistas

PoderLegislativo

BicameralSimétrico

BicameralAssimétrico

(ouUnicameral)

Federalismo/Unitarismo

Federalismo

Unitarismo

Executivo / PartidosEmendaConst./

Veto

MaioriaQualific.

MaioriaAbsoluta

RevisãoConstit.

Independ

Depend

BancoCentral

Independ

Depend

Federalismo / Unitarismo

Quadro I - Modelos Consensual e Majoritário (Lijphart, 2003)

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Vale, não obstante, assinalar, a partir daobservação do Quadro I, que os critérios uti-lizados por Lijphart para classificar as de-mocracias atuais em consensuais oumajoritárias não distinguem tais dimensões.Quando ele se refere ao Poder Executivo, porexemplo, o critério utilizado remete à com-posição da instância decisória (grandescoalizões versus governo unipartidário commaioria estrita). Já quando trata do PoderLegislativo, o critério relaciona-se às regrasdecisórias (bicameralismo simétrico versusassimétrico) ao passo que a classificaçãodo sistema eleitoral está informada pelo mé-todo de formação das Casas Legislativas(sistema proporcional versus sistema majo-ritário).

Partindo-se da suposição de que sejapossível produzir ganhos analíticos atravésda distinção entre as dimensões menciona-das — método de formação das instânciasdecisórias; regras de tomada de decisão;composição das instâncias decisórias; ope-ração efetiva das instituições — propõe-se,nesta seção, revisitar Lijphart e apresentarum esquema analítico apoiado em quatroeixos de análise em substituição aos doiseixos propostos pelo autor.

O primeiro eixo, relativo ao método de for-mação das instâncias decisórias, englobaria:

1) Formas de Governo (monarquia4 versus

república): a distinção, aqui, se refere aosprocedimentos através dos quais são esco-lhidos os chefes de Estado. Nas monarquiaso princípio que informa tal definição é a tra-dição, o procedimento é o da sucessão porhereditariedade e o cargo é vitalício, enquan-to nas repúblicas democráticas o chefe deEstado e o chefe de governo são escolhidosatravés de algum tipo de procedimento elei-toral e os seus mandatos são limitados notempo e em seu escopo.

2) Sistemas de Governo (presidencialismoversus parlamentarismo): sob o presidencia-lismo existem mecanismos que garantem aintervenção dos cidadãos na definição dosocupantes dos cargos executivos, enquan-to no parlamentarismo o primeiro-ministronão é eleito diretamente pelos cidadãos.

O importante a salientar, no que se refere aestes diferentes procedimentos, é que noprimeiro se constituem duas correntes deaccountability, enquanto no segundo háapenas uma corrente de accountability(Amorim; Strom, 2006). O primeiro, portanto,faculta maior dispersão de poder do que osegundo, já que pode ensejar, como o temfeito, o fenômeno conhecido por governodividido, caracterizado pelo fato de o partidoou a coalizão política que dá suporte aoPresidente não controlar a maioria das ca-deiras legislativas.

3) Organização Político-Administrativa (fede-ralismo versus unitarismo): tendo em vistasuas características tendentes à descentra-lização do poder entre os diferentes entes fe-derativos, o federalismo combina melhor como modelo consensual e o unitarismo com omodelo majoritário (Lijphart, 2003). Em am-bos os casos, deve-se atentar para os proce-dimentos (eleições diretas ou indiretas;indicações; nomeações, etc.) que informama escolha dos representantes no âmbitosubnacional, seja para cargos executivos (go-vernadores, prefeitos), seja para cargoslegislativos (deputados estaduais, vereado-res). Eleições diretas para todos os cargos eníveis de governo são procedimentos quese coadunam melhor com o consensua-lismo, enquanto eleições indiretas, indica-ções ou nomeações pelo poder centralseriam procedimentos mais afins ao mode-lo majoritário.

4) Sistema Eleitoral: define os procedimentosde escolha dos ocupantes das cadeiraslegislativas. Sistemas eleitorais podem variarquanto ao tipo — proporcional de listas aber-tas, flexíveis ou fechadas; majoritários; oucombinações entre eles, denominadas pelaliteratura de sistemas mistos — e quanto àsdeterminações relacionadas aos critérios deelegibilidade e de realização de campanhaeleitoral, especialmente no que se refere aoseu financiamento e à propaganda eleitoral.

4 “(...) para se ter um regime monárquico é necessária a existência de umapessoa estável no vértice da organização estatal com as características deperpetuidade e de irrevogabilidade: o monarca é tal desde o momento desua elevação ao trono até sua morte, exceto o caso de voluntária abdicação.Para expulsá-lo do poder é preciso uma verdadeira revolução” (COLLIVA,1986, p. 776).

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5) Tipo de Cameralismo: as democraciascontemporâneas podem ser unicamerais oubicamerais. O unicameralismo coaduna-semelhor com o modelo majoritário. No casodo bicameralismo, trata-se de examinar ométodo de constituição das Casas Legislativase verificar se há congruência ou incongruên-cia entre os sistemas eleitorais utilizadospara a eleição de cada câmara. Considerando-se os tipos Proporcional e Majoritário, seriampossíveis as seguintes combinações:

No que se refere à distribuição de po-deres entre os agentes relevantes, pode-seafirmar que o sistema de representaçãoproporcional é o mais conducente à dis-persão. O sistema majoritário caracteriza-sepela concentração do poder nas mãos dasmaiorias governativas. Portanto, a classifi-cação dos legislativos bicamerais emmais, ou menos, consensuais pode servisualizada através do continuum:

MM MP PM PP

Majoritário Consensual

O segundo eixo refere-se às regras deci-sórias que presidem a tomada de decisõesnas democracias e que afetam a distribui-ção de direitos, recursos e atribuições entreos atores, englobando:

1) as regras que definem as prerrogativas eos poderes legislativos e não legislativos doPoder Executivo. Poderes concentrados nasmãos do Executivo são típicos do modelomajoritário;

2) as regras que definem a distribuição deatribuições e competências do PoderLegislativo, englobando: a) as que se refe-rem a cada uma das câmaras, no caso dobicameralismo, produzindo bicameralismo

Câmara Alta

Proporcional Majoritário

Congruente (PP) Incongruente (PM)

Incongruente (MP) Congruente (MM)

Quadro II - Bicameralismo Congruente e Incongruente

Fonte: Elaboração própria.

CâmaraBaixa

Proporcional

Majoritário

simétrico (consensualismo) ou assimétrico(majoritarismo); b) as que distribuem direi-tos, atribuições e recursos parlamentares,no interior de cada Casa Legislativa, entrelegisladores individuais, grupos de legisla-dores (comissões, bancadas partidárias, Co-légio de Líderes, Frentes Parlamentares) e oPlenário. Poderes concentrados nas mãos delideranças partidárias e processos decisóriosque têm no Plenário seu fórum privilegiadocombinam com o modelo majoritário; dis-persão de poderes entre os parlamentaresindividuais e sistema de comissões robustocaracterizam o modelo consensual;

3) as regras que definem as relações entreos poderes Executivo e Legislativo, obser-vando-se se há separação entre os poderese checks and balances (consensualismo) oufusão de poderes e predomínio do Executi-vo (majoritarismo);

4) as regras para proposição e aprovação deemendas constitucionais, se maioria absoluta(majoritarismo) ou qualificada (consensua-lismo);

5) as regras que informam processos de re-visão constitucional, verificando-se se a revi-são é feita por órgão independente (modeloconsensual) ou não (modelo majoritário);

6) as regras que informam o status do BancoCentral, se dependente (majoritarismo) ouindependente do governo central (consen-sualismo).

O terceiro eixo refere-se à composiçãodas instâncias decisórias, que é uma variá-vel dependente da interação entre o métodode formação das instâncias decisórias, asregras decisórias e a distribuição de prefe-rências e recursos entre os atores. Este eixoenglobaria:

1) a composição do Poder Executivo, tendoem vista a presença de coalizões governativas— seja no parlamentarismo ou no presiden-cialismo (modelo consensual) — ou a pre-sença de governo unipartidário com maioriaestrita (modelo majoritário);

2) a configuração do sistema partidário, semultipartidarismo (modelo consensual) oubipartidarismo (modelo majoritário), já que

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nas democracias os sistemas bipartidáriosnão o são por imposição legal, mas resultamda interação entre as instituições e as esco-lhas políticas dos atores;

3) a composição do Poder Legislativo, seexpressiva da pluralidade de identidades,interesses e preferências presentes na socie-dade e aberta à representação das minoriasou do predomínio de um partido majoritário,seja ele governista ou oposicionista;

4) no caso de governos de coalizão, a com-posição e a natureza das mesmas, obser-vando-se a sua contigüidade no espectropolítico-ideológico (Inácio, 2006) e os recursosutilizados para cimentá-las. Coalizões contí-guas e resultantes, fundamentalmente, dacompetição eleitoral coadunam-se melhorcom o consensualismo, por contraste comcoalizões ad hoc e/ou intermitentes econstruídas a partir de práticas distribu-tivistas.

O quarto eixo refere-se à operação efetivadas instâncias decisórias, que constitui variá-vel dependente das interações entre os trêsprimeiros eixos. Neste eixo estão englobados:

1) Relação entre os Poderes: Equilíbrio entreos poderes x predomínio do Executivo. Aconcentração de poderes de agenda e deveto nas mãos do Poder Executivo é caracte-rística do majoritarismo, enquanto a distri-buição equilibrada desses poderes entreExecutivo e Legislativo coaduna-se melhorcom o consensualismo.

2) Padrões de interação entre os atores dacoalizão governativa: coesão x disciplina xdistributivismo (fisiologismo, clientelismo,patronagem).

3) Padrões de interação entre governo eoposição(ões): cooperação x competição.

4) Sistema Partidário: dinâmica bipartidária xpluralismo moderado x pluralismo polari-zado (Sartori, 1994; Santos, 1986).

A análise do arranjo institucional brasilei-ro pós-88 à luz da matriz analítica propostapermite verificar que tal arranjo expressa umacombinação de características do modeloconsensual, decorrentes do método de cons-

tituição das instâncias decisórias, com ca-racterísticas do modelo majoritário, decor-rentes das regras de tomada de decisões.

O Brasil é uma República, presidencia-lista, federativa, com representação propor-cional e multipartidarismo. O Poder Legislativoé bicameral: na Câmara dos Deputados,eleita através do sistema proporcional de lis-tas abertas, se fazem representar os cida-dãos, enquanto no Senado Federal, eleitoatravés do sistema majoritário, se fazem re-presentar os estados da Federação (três se-nadores para cada estado da Federação).

Tais características são, todas elas, ten-dentes à dispersão de poder entre os atoresrelevantes, garantem a participação institu-cionalizada das minorias e facultam a ex-pressão da heterogeneidade e do pluralismosocietais. Portanto, no que se refere ao eixométodo de constituição das instâncias deci-sórias, o Brasil pode ser classificado comopertencente ao modelo consensual de demo-cracia.

Vale, no entanto, ressaltar que algunsprocedimentos adotados nas eleições pro-porcionais provocam distorções na represen-tação e precisariam ser modificados paragarantir a observância do princípio deigualdade política entre os cidadãos. Os dis-tritos eleitorais, no Brasil, coincidem com osestados da Federação, e a Constituição de1988 determinou um número mínimo de oito,e máximo de setenta representantes por cadadistrito. Na prática, isso acarreta uma sub-representação dos cidadãos de São Paulo ea sobre-representação dos eleitores dos es-tados menos populosos, como Acre e Ro-raima. A legislação eleitoral faculta, ainda, acelebração de coligações para eleições pro-porcionais, gerando uma disjunção entre osistema partidário eleitoral e o sistema par-tidário parlamentar (Lima Jr., 1993; Lima Jr.;Anastasia, 1999).

Quando se analisa o segundo eixo — re-gras de tomada de decisão —, percebe-sea operação de um padrão bastante distinto.Embora haja procedimentos que se coadu-nam com o consensualismo, a estes se so-mam características mais afins ao modelo

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majoritário, que comprometem, muitas ve-zes, a operação efetiva do princípio de dis-persão de poder que informa o modeloconsensual.

No âmbito do modelo consensual, o ar-ranjo institucional brasileiro prevê as seguin-tes regras decisórias:

1. bicameralismo simétrico;

2. separação de poderes e freios e contrape-sos institucionais (checks and balances);

3. regra de maioria qualificada para realizaçãode alterações (emendas) constitucionais.

Porém, as características majoritárias seimpõem. Como tem sido assinalado pela li-teratura (Figueiredo; Limongi, 1999; Santos,2003; Anastasia; Melo; Santos, 2004), aConstituição de 1988 concentra poderes le-gislativos e não legislativos nas mãos do Pre-sidente: poder de decreto constitucional(medidas provisórias) e delegado; prerroga-tiva de iniciar legislação em determinadasmatérias, especialmente aquelas de nature-za orçamentária; possibilidade de pedir ur-gência para a tramitação de proposiçõeslegislativas de suas autoria; poder de no-meação de titulares para importantes car-gos da burocracia pública, a começar detodos os ministros de Estado; controle so-bre a liberação de recursos orçamentários,dado o caráter autorizativo do orçamento bra-sileiro.

Ademais, a revisão constitucional é feitapelo próprio Poder Legislativo e não por umórgão independente; o Banco Central nãogoza de autonomia operacional perante oPoder Executivo, e o Regimento Interno daCâmara dos Deputados concentra poderesde agenda nas mãos das lideranças parti-dárias e incentiva o comportamento disci-plinado dos legisladores.

A composição das instâncias decisóriase sua operação efetiva expressam a combi-nação entre os dois primeiros eixos — mé-todo de constituição das instâncias decisóriase regras de tomada de decisão —, e a distri-

buição de preferências e recursos entre osatores relevantes: cidadãos, representanteseleitos e burocracia pública. Como se sabe,tal combinação, no caso brasileiro, ganha aforma de um presidencialismo de coalizãocom alta fragmentação do sistema partidá-rio parlamentar e com predominância legis-lativa do Poder Executivo.

A formação e a manutenção das coali-zões governativas têm se constituído emgrandes desafios para os presidentes brasi-leiros. As coalizões vencedoras no âmbitodas eleições têm sido, geralmente, insufici-entes para fornecer a base parlamentar desustentação dos governos. Dito em outraspalavras: o recurso mais legítimo, nas demo-cracias, para cimentar tais coalizões, o voto,não tem produzido o número necessário decadeiras no Congresso Federal. Diante dis-so, os presidentes têm mobilizado outrosrecursos para aumentar o número de apoia-dores, como, por exemplo, distribuição decargos (patronagem) e liberação de emen-das orçamentárias.

Os fundamentos e os efeitos desse ar-ranjo institucional são motivos de acirradacontrovérsia na literatura especializada.

5

Com vistas a identificar o que, nesse arranjo,deve ser modificado, como e em que direção,o presente volume apresenta um conjuntoextenso de artigos e verbetes que examinamo tema da reforma política. As questõesabordadas foram escolhidas seja porqueestão presentes na agenda política brasi-leira, seja porque deveriam estar, segundoa opinião de vários analistas, partindo-se dosuposto de que o objetivo buscado é o doaperfeiçoamento da democracia brasileira.

As próximas seções deste artigo exami-narão mais detidamente um dos aspectosdesse arranjo: aquele referido ao exercícioda representação política e às suas cone-xões com a participação política institucio-nalizada. Em sintonia com Lijphart (2003),propõe-se que qualquer proposta de refor-ma da representação deve ter como meta ofortalecimento das características consensu-ais da ordem política brasileira.

5 A terceira parte deste volume reproduz e comenta esses debates.

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2. Processo eprodução legislativos6

Propõe-se, aqui, que o desafio contidona reforma da representação refere-se àtransformação das Casas Legislativas em“cidades mágicas”, ou seja, em loci privile-giados de expressão e de processamentoinstitucional do melhor interesse dos cida-dãos.

Magic town (Cidade mágica) é o nomede um filme de Jimmy Stewart, citado porJames Fishkin (1995), sobre uma cidade fic-tícia do Meio Oeste americano que consti-tuía, por um “milagre matemático”, umaamostra representativa da população ame-ricana.

Fishkin chama a atenção para o fato deque, quando tal descoberta vem a público,a população da cidade, ciente de seu papelde “barômetro perfeito da opinião nacional”ou, em outras palavras, de “capital da opiniãopública americana”, começa a desenvolverum crescente senso de responsabilidade, ase informar o melhor possível e a debatercuidadosamente todas as questões sobreas quais ela é chamada a opinar.

Obviamente, esses movimentos exporãoos habitantes da cidade a um processo dediscussão e de deliberação que resultará naprodução de uma opinião pública, em Magictown, muito melhor fundamentada e maissofisticada do que a do cidadão medianoamericano. E, portanto, crescentementedivergente da opinião majoritária na socie-dade americana, o que causará um conjuntode problemas e reviravoltas na cidade, queapimentam o enredo do filme, mas não vemao caso no momento.

O exemplo que se tomou emprestado deFishkin ressalta o impacto provocado nasopiniões e preferências dos cidadãos deMagic town por sua exposição à pluralidadede pontos de vista e de perspectivas queinformam os diferentes argumentos. O de-bate e a deliberação pública acarretaram al-terações nas definições dos cidadãosrelativamente a quais eram e onde estavamos seus melhores interesses.

A transformação das Casas Legislativasem “cidades mágicas” requer a observân-cia dos seguintes pressupostos:

1. que elas, assim como todos os órgãosdecisórios que abrigam, sejam constituídasatravés do método de representação demo-crática;

7

2. que elas promovam, de fato, a realizaçãoda oitava condição das poliarquias, de Dahl,relacionada aos interstícios eleitorais;

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3. que elas promovam constantemente ainteração dos legisladores com os outrosatores — cidadãos, líderes de coalizões —através de canais institucionalizados edeliberativos;

4. que elas tenham suficiente desenvolvi-mento institucional para fornecer aos repre-sentantes eleitos a base informacionalampliada (Sen, 2000) requerida para a con-secução dos melhores interesses dos cida-dãos.

Como fazer? Sabe-se que, nas demo-cracias representativas, as duas mais im-portantes atribuições dos parlamentares sãoas de legislar e de fiscalizar. É a eles quecabe a responsabilidade de representar omelhor interesse dos cidadãos, produzindopolíticas expressivas do consenso possívelsobre qual é e onde está esse interesse e,ademais, a eles cabe também a tarefa demonitorar e fiscalizar o Poder Executivo, paragarantir que tais políticas se traduzam emresultados que garantam a consecução detais interesses.

Para tanto, é necessário formar, no interi-or das Casas Legislativas, uma opinião in-formada, constantemente submetida aodebate público e passível de ser alterada

6 As três primeiras páginas desta seção reproduzem trechos do artigo deautoria de ANASTASIA e INÁCIO, intitulado “Democracia, Poder Legislativo,interesses e capacidades”, 2006. No prelo.

7 Ver, a respeito, SARTORI (1994, capítulo 8). “Wanderley Guilherme dos Santos(1998) propõe distinguir com clareza o que separa autoritarismos dedemocracias, por um lado, e sistemas representativos de não representativos,por outro. Afinal, sabe-se, desde os gregos, que é logicamente plausível, epassível de corroboração no mundo real, a existência de democracias nãorepresentativas — a pólis grega — e de sistemas representativos nãodemocráticos, ou oligárquicos: todos aqueles que não cumprem o requisitobásico da observância do sufrágio universal” (ANASTASIA; MELO; SANTOS,2004).

8 “8. Durante o estágio entre votações: 8.1. Todas as decisões tomadas entreeleições são subordinadas ou executórias àquelas tomadas durante o períodode eleição, isto é, as eleições são, em certo sentido, controladoras; 8.2. Ouas novas decisões, tomadas durante o período entre eleições, são pautadaspelas sete condições precedentes, operando, no entanto, sob circunstânciasinstitucionais muito diferentes; 8.3. Ou ambas as coisas” (DAHL, 1989).

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por conseqüência desta exposição, de for-ma a aproximá-la, o máximo possível, daexpressão do melhor interesse público.

As atribuições de legislar e de fiscalizardevem ser realizadas, como é sabido des-de Stuart Mill, através da deliberação entrepares. Porém, a identificação do melhor in-teresse público exige a construção de umabase informacional ampliada (Sen, 2000),capaz de abrigar a multiplicidade de identi-dades, preferências e demandas caracterís-ticas das sociedades atuais, e de sinalizá-laspara os legisladores, libertando-os dos la-ços exclusivos com a sua constituency ecapacitando-os a falar, agir e decidir emnome do conjunto dos cidadãos abrangidospela Casa Legislativa.

Para realizar suas atribuições de legislare de fiscalizar, os parlamentares desempe-nham atividades variadas que envolvem, emmaior ou menor grau, deliberação e decisãopolítica e, muitas vezes, interações continu-adas com outros atores, tais como os líde-res de coalizões, os titulares de cargos noPoder Executivo e os cidadãos.

No interior do processo legislativo, ascomissões são as principais instâncias dedeliberação. O sistema de comissões exis-te para proporcionar ganhos informacionaispara os legisladores e para o Plenário. Ascomissões funcionam como comitês: locaisespecializados de discussão e deliberaçãosobre determinados temas, com a virtudede propiciar interações face a face entre osseus membros (Sartori, 1994). Portanto, ascomissões são, por excelência, os lociapropriados para a promoção da interaçãoinstitucionalizada e deliberativa entre repre-sentação e participação política. Nas pala-vras de Arnold:

As comissões são o verdadeiro coração doprocesso legislativo. A maior parte dosuspense sobre o que o Congresso fará acada ano encontra-se mais nas comissões,

que aprovam dez por cento das proposiçõesque são introduzidas, do que no conjunto daCasa, que aprova 98 por cento das leis quechegam ao Plenário (Arnold, 2004, p. 154).

Cada uma das Casas Legislativas quecompõem o Congresso Nacional — Câmarados Deputados e Senado Federal — possuiComissões Parlamentares, permanentes outemporárias, com funções legislativas e fiscali-zadoras, na forma definida pela ConstituiçãoFederal e por seus Regimentos Internos. Nocumprimento dessas duas funções básicas,de elaboração das leis e de acompanha-mento das ações administrativas, no âmbitodo Poder Executivo, as comissões promo-vem, também, debates e discussões coma participação da sociedade em geral, sobreos temas ou assuntos de seu interesse.

O papel desempenhado pelas comis-sões na organização interna do CongressoNacional, embora importante, deveria ganharmaior centralidade.

9 Tal postulação se justi-

fica pelo seu caráter deliberativo e pelo fatode que nelas se situam os principais meca-nismos que facultam a participação dos ci-dadãos no processo legislativo, existindo,inclusive, em várias Casas Legislativas bra-sileiras, comissões que admitem sugestõesde grupos organizados da sociedade civil e,muitas vezes, as transformam em proposi-ções legislativas. A título de exemplo, valecitar a Comissão de Legislação Participativa(CLP) da Câmara dos Deputados.

Criada em maio de 2001, a Comissão deLegislação Participativa tem por objetivosfacultar aos cidadãos acesso ao sistema deprodução legal do País e aproximar repre-sentantes e representados no Poder Legis-lativo Federal.

A CLP tem por atribuição o recebimentode sugestões legislativas da sociedade civilorganizada (associações, sindicatos, entida-des, órgãos de classe, ONGs, etc.), excetode partidos políticos. Também podem apre-sentar sugestões legislativas os órgãos eentidades da administração pública direta eindireta, com participação paritária da soci-edade civil, como, por exemplo, os conse-lhos temáticos setoriais (da educação, da9 Ver, a respeito, o artigo de Santos, neste volume.

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saúde, da assistência social, etc.). Se apro-vadas, as sugestões se transformam emproposições de autoria da Comissão e pas-sam a tramitar em regime de prioridade naCâmara dos Deputados.

Antes da criação da CLP, a Constituiçãojá previa a possibilidade de apresentaçãode projetos de iniciativa popular (art. 61, pa-rágrafo 2º), mas a norma constitucional exi-ge que a proposta seja subscrita por, nomínimo, um por cento do eleitorado nacio-nal (o que equivale atualmente a cerca de1,15 milhão de eleitores), distribuído por, pelomenos, cinco Estados da Federação, comnão menos de três décimos por cento doseleitores de cada um deles. Essa exigênciadificulta a apresentação de propostas. Tan-to que, nos 15 anos de vigência da Carta de1988, apenas três projetos de iniciativa po-pular foram apresentados à Câmara — osPLs 2710/92, 4146/93 e 1517/99.

Por contraste, através

desta Comissão, a Câmara dos Deputadosabriu à sociedade civil um portal de acesso aosistema de produção das normas que integramo ordenamento jurídico do País, chamando ocidadão comum, os homens e as mulheresrepresentados pelos Deputados Federais,a levar diretamente ao Parlamento sua per-cepção dos problemas, demandas e neces-sidades da vida real e cotidiana (Cartilhada Comissão de Legislação Participativa,2005, p. 7).

Em cinco anos (2001-2005)10

de trabalho,a CLP recebeu 362 sugestões legislativas,sendo que 275 delas, ou 75,9%, referem-sea pedidos de alteração ou de inclusão deproposições legislativas; 22,3% das suges-tões propõem emendas ao orçamento daUnião, solicitando transferência de renda paracidades ou instituições específicas. Emen-das ao Plano Plurianual e à Lei de DiretrizesOrçamentárias não somaram 2% das suges-tões. É importante ressaltar que 2002 e 2005foram os anos em que a CLP recebeu maissugestões, 59 e 107, respectivamente.

11

Das 362 sugestões encaminhadas à CLPentre 2001 e 2005, 182 foram apreciadas e

113 transformadas em proposição e encami-nhadas à Mesa da Câmara para tramitar naCasa. Destas 113, 53,98% se tornaram Pro-jetos de Lei; 5,31% Projetos de Lei Comple-mentar, e 22,12% Emendas ao Orçamento.Esses números apontam o bom desempe-nho da CLP no que se refere à incorporaçãode demandas da sociedade civil.

12

Pretende-se enfatizar, através desteexemplo, que nas democracias contempo-râneas a deliberação não é atributo exclusi-vo quer dos processos representativos, querdaqueles participativos. A deliberação deveestar presente, necessariamente, em ambosos pólos — representação e participação —assim como nos canais através dos quaisrepresentação e participação se comunicame interagem.

Portanto, não apenas as Casas Legislati-vas devem ser instâncias deliberativas, jáque o que nelas se delibera deve ecoar ereverberar, da melhor forma possível, os pro-cessos de deliberação em curso nas enti-dades de participação política da sociedadecivil. Para tanto, requer-se que haja canaispermanentes, institucionalizados e delibe-rativos de interação entre as instâncias derepresentação e de participação política.

3. A reforma em marcha

Como fazer? No contexto da nova ordemdemocrática brasileira, a reforma política temfreqüentado a agenda pública brasileira jádesde a promulgação da Constituição de1988, que previa, em seu texto, a realização

10 A partir deste parágrafo, serão descritos e analisados alguns dados relativosao comportamento, aos procedimentos e à produção legislativa no Brasil. Astabelas de onde essas informações foram retiradas estão disponíveis noAnexo 1, no final deste artigo.

11 A análise das sugestões apreciadas na CLP aponta que aproximadamentemetade delas foi aprovada (46,15%) e metade foi rejeitada (44,5%). Das 182sugestões que já foram apreciadas, nove receberam o parecer deprejudicialidade, ou seja, diziam respeito a matérias que já estavam emtramitação via outro Projeto de Lei ou Emenda. O ano em que a comissãoconseguiu apreciar o maior número de sugestões (70) foi 2003, tendo sido amaioria delas (38) rejeitada.

12 Faz-se necessário, ainda, analisar o conteúdo dessas sugestões. Das 275sugestões encaminhadas à CLP, a maioria absoluta refere-se à regulação,independentemente de sua autoria.

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27A Reforma da Representação | Fátima Anastasia | Felipe Nunes

de plebiscito sobre forma e sistema de gover-no e uma revisão constitucional, ambos em1993 (art. 3º das Disposições Transitórias).

13

Ademais desses dispositivos constitu-cionais, várias iniciativas sobre a reformada representação foram propostas à consi-deração dos legisladores. Entre 1989 e2005,

14 cerca de 180 proposições legislativas

tramitaram no Congresso Nacional, a grandemaioria delas de iniciativa de legisladoresindividuais (deputados ou senadores).

É interessante observar que há uma con-centração de apresentação de propostas dereforma no período mais recente, especial-mente nos três últimos anos, o que explicapor que tais proposições, em sua maioria,estejam ainda em tramitação e apenas 11delas tenham sido transformadas em nor-mas jurídicas.

Algumas das proposições que se torna-ram leis provocaram importantes impactossobre o comportamento dos atores, a dinâ-mica de interação entre eles e seus resulta-dos: (a) a Proposição 1/1995, que foitransformada em emenda constitucional, per-mite a reeleição do Presidente da Repúbli-ca, dos governadores de Estado e do Distrito

Federal e dos prefeitos; (b) a Proposição 427/1997 estabelece critérios para edição e ree-dição de medidas provisórias (EC 32 de2001); (c) o Projeto de Iniciativa Popular, quetramitou como Proposição 1517/1999 e foitransformado em norma jurídica, estabele-ce punição para o crime de compra de vo-tos, prevendo a possibilidade de cassaçãode registro do candidato que doar, oferecerou prometer bem ou vantagem pessoal emtroca do voto (Lei da Captação do Sufrágio);(d) e, finalmente, a Proposição 548/2002 dánova redação ao parágrafo 1

o do artigo 17

da Constituição Federal, disciplinando ascoligações eleitorais.

Há temas que têm sido, recorrente-mente, objetos de iniciativas dos legislado-res: fidelidade partidária, listas partidárias,propaganda eleitoral, pesquisas eleitorais,financiamento de campanhas, coligaçõeseleitorais, ainda que, muitas vezes, essasiniciativas tenham sinais trocados.

15

Vale, no entanto, assinalar, a partir daanálise de alguns dados produzidos no âm-bito da Pesquisa sobre Elites ParlamentaresIbero-Americanas (Módulo Brasil)

16, que há

alguma convergência de opiniões entre oslegisladores quanto à natureza e à desejabi-lidade de algumas medidas relacionadas aotema da representação política.

No que se refere ao sistema eleitoral,verifica-se a existência de clara preferência,por parte da maioria dos deputados, pelosistema proporcional, “que garanta a repre-sentação eqüitativa de todas as forças polí-ticas”, por contraste com a adoção de umsistema majoritário, “que garanta governosfortes e efetivos”.

A questão relacionada ao tipo de listapartidária já desperta maiores controvérsias,ainda que a maior minoria (aproximadamente40% dos respondentes) declare preferir a lis-ta aberta — caracterizada como um “siste-ma de voto personalizado que garanta umarelação próxima entre o eleitor e seus repre-sentantes” — ao “sistema de voto de listafechada, que favoreça a formação de parti-dos fortes e coesos” (23%). Cerca de 18%dos legisladores escolheram uma posição

13 “Art. 3º. A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados dapromulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros doCongresso Nacional, em sessão unicameral.”

14 Foi possível localizar, através do site da Câmara dos Deputados, 180proposições legislativas relacionadas ao tema da reforma da representação,apresentadas entre 1989 e 2005.

15 A título de exemplo, examinem-se as ementas de algumas dessasproposições:• Proposição 242/2000 “dá nova redação aos arts. 17 e 55 da ConstituiçãoFederal, que dispõem sobre fidelidade partidária, promovendo a perda docargo eletivo nas hipóteses de o ocupante deixar o partido pelo qual foi eleitoe de grave violação da disciplina partidária”;• Proposição 254/2004 “retira do texto constitucional a exigência de filiaçãopartidária como condição de elegibilidade”;• Proposição 461/2005 “cria novo instrumento de democracia participativa naConstituição Federal, a fim de possibilitar a autoconvocação popular pararealização de plebiscito”;• Proposição 669/1999 “altera o artigo 6º da Lei 9.504, de 30 de setembro de1997, impedindo a celebração de coligações para eleição proporcional”;• Proposição 1974/1999 “altera o artigo 9º da Lei 9.504, de 30 de setembrode 1997, aumentando para dois anos o prazo de filiação partidária com vistasa cargo eletivo”;• Proposição 3949/2000 “cria o voto em lista partidária preordenada paraeleições proporcionais”.

16 Pesquisa realizada junto aos deputados federais através da cooperação entreo Centro de Estudos Legislativos do Departamento de Ciência Política (CEL-DCP) da UFMG e o Instituto Interuniversitário de Estúdios de Iberoamérica yPortugal, da Universidad de Salamanca, Espanha. Foi construída uma amostrade 134 legisladores, estruturada por quotas partidárias. Os questionáriosforam aplicados no período compreendido entre julho e dezembro de 2005.As tabelas que apresentam os dados examinados nesta seção encontram-seno Anexo I.

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2727

28

intermediária da escala, sinalizando suaspreferências, provavelmente, pela adoção delistas flexíveis, que sejam previamente or-denadas pelo partido, mas que admitam ainterferência do eleitor no reposicionamentodos candidatos no interior da lista, caso sejade seu interesse.

Percebeu-se a existência de um consensoforte entre os deputados federais quanto àsconexões existentes entre democracia e par-tidos políticos, que sinaliza a concordânciados mesmos com o exercício do monopólioda representação pelos partidos políticos. Aesmagadora maioria de 80% dos responden-tes declarou concordar muito com a frase“sem partidos não pode existir democracia”.Vale observar que esse consenso atravessaos partidos políticos, só se mostrando umpouco mais frágil no interior do PL.

Não obstante, 64% dos legisladores con-cordam com a assertiva de que “poucaspessoas identificam-se verdadeiramentecom os partidos”, e 33% concordam que“existe um crescente distanciamento entresociedade e partido no Brasil”. Além disso,quando perguntados sobre suas escolhasrelacionadas a questões que expressemconflitos entre a posição do seu partido e ado seu estado, 45,5% dos parlamentares (amaior incidência de respostas) declarou vo-tar “sempre de acordo com as necessida-des de seu estado”, por contraste com 20,9%que disseram votar “sempre com o partido”— destacando-se, aí, os deputados petis-tas (52,2%) —, e 20,1% que afirmam quesua posição “depende dos temas”.

A pesquisa indagou também, dos res-pondentes, suas opiniões relacionadas aostemas da fidelidade e da disciplina partidá-ria. Embora a disciplina seja uma questãomais polêmica, que divide a opinião dos filia-dos a diferentes partidos, a fidelidade parti-dária parece ser um comportamentovalorizado, o que se revela bastante curiosoem uma Casa Legislativa que tem na mi-gração partidária uma prática recorrente(Melo, 2004): aproximadamente 60% dos res-pondentes pensam que, ao desvincular-sedo partido pelo qual se elegeu, o deputado

deveria “renunciar à sua cadeira para que ou-tro membro do partido ocupe seu lugar”.

A opinião declarada pela maioria nãoconseguiu, no entanto, transformar-se emorientação para a ação, já que as propostasque visam reforçar a fidelidade partidária nãolograram, até o momento, obter aprovaçãono plenário da Câmara dos Deputados.

Conclusão: Propostas de reformada representação eefeitos esperados

Neste artigo foram abordados temas equestões relacionados à representação polí-tica. Na primeira seção propôs-se revisitarLijphart, com o intuito de oferecer eixos analí-ticos que permitam distinguir as característi-cas dos modelos majoritário e consensual quese referem ao método de constituição dasinstâncias decisórias, às regras decisórias,à composição e ao funcionamento efetivo detais instâncias. No entanto, o argumento cen-tral daquele autor, segundo o qual o modeloconsensual é mais democrático do que omodelo majoritário, foi resguardado e fun-damentou as análises desenvolvidas na se-gunda e na terceira seções sobre o exercícioda representação política no Brasil e sobreas propostas de reforma que freqüentam aagenda dos legisladores brasileiros.

Portanto, as indagações sobre o que re-formar e como fazer devem ser respondi-das tendo por parâmetro o objetivo de tornara representação mais democrática. Nestaperspectiva, as características que promo-vem a dispersão de poder entre os diferen-tes atores devem ser mantidas e, ondenecessário, aperfeiçoadas: República presi-dencialista, bicameral, com representaçãoproporcional e multipartidarismo.

Porém, os procedimentos responsáveispor distorções na representação, tais comonúmeros máximo e mínimo de legisladorespor estado da Federação e coligações paraeleições proporcionais deveriam ser altera-dos. Além disso, considera-se que a demo-cracia brasileira ganharia com a substituição

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2728

29A Reforma da Representação | Fátima Anastasia | Felipe Nunes

das listas abertas por listas flexíveis ou fe-chadas, desde que se garantisse a realiza-ção de prévias democráticas para acomposição das listas partidárias. Com issoseria possível fortalecer essas agremiações,controlar o poder das oligarquias partidáriase ampliar a identificação dos cidadãos comos partidos políticos.

No que diz respeito às regras decisóriasseria necessário promover uma distribuiçãomais equilibrada dos poderes de agenda eveto entre os poderes Executivo e Legislativoe entre os atores, no interior das CasasLegislativas; aumentar a centralidade do sis-tema de comissões; aperfeiçoar os instru-mentos de accountability vertical e fortaleceros instrumentos que permitam a vocalização

de preferências dos cidadãos perante osrepresentantes eleitos.

Os cidadãos teriam maior capacidade defiscalizar seus representantes se os legisla-dores tivessem que se manifestar sempreatravés do voto aberto

17 e se houvesse

mecanismos que aumentassem os custosrelacionados às migrações partidárias. A dis-seminação e o aperfeiçoamento de meca-nismos institucionalizados de interlocuçãoentre cidadãos e representantes eleitos, naarena legislativa, diminuiriam a assimetriainformacional entre estes atores e tornariammais plurais as fontes de informação doslegisladores, capacitando-os para conhecerquais são e como representar os melhoresinteresses dos cidadãos.

Referências

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17 No Congresso americano, cada legislador deve levantar-se, manifestar-se afavor ou contra determinada proposta (yea ou nay) para que seu voto seja contadoe registrado para a posteridade (ARNOLD, 2004, p. 125).

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2729

30

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TIPO

Projetos de Lei, Requerimentos de Audiência Pública, etc.

Emendas de Orçamento

Emendas ao PPA

Emendas à LDO

TOTAL

2001

24

11

-

-

35

2002

59

21

-

-

80

2003

57

16

1

-

74

2004

28

12

-

-

40

2005

107

21

-

5

133

TOTAL

275 (75,9%)

81 (22,3%)

1 (0,27%)

5 (1,43%)

362 (100%)

Tabela 1 - Nº de sugestões recebidas pela Comissão de Legislação Participativada Câmara dos Deputados, Brasil, 2001-2005

Fonte: Cartilha da Comissão de Legislação Participativa. Câmara dos Deputados, 2005.

Anexo I

Fonte: Cartilha da Comissão de Legislação Participativa. Câmara dos Deputados, 2005.Nota: No número total de sugestões apreciadas (Tab. 2) não estão computadas as emendasorçamentária, à LDO e ao PPA.

Tabela 2 - Nº de sugestões apreciadas na Comissão de Legislação Participativada Câmara dos Deputados, Brasil, 2001-2005

TIPO

Aprovadas

Rejeitadas

Prejudicadas

Devolvidas

TOTAL

2001

3

-

-

2

5

2002

27

20

-

1

48

2003

27

38

-

5

70

2004

13

12

8

-

33

2005

14

11

1

-

26

TOTAL

84 (46,15%)

81 (44,5%)

9 (4,94%)

8 (4,39%)

182 (100%)

Tabela 3 - Sugestões Transformadas em Proposições pela Comissão deLegislação Participativa da Câmara dos Deputados, Brasil, 2001-2005

Fonte: Cartilha da Comissão de Legislação Participativa. Câmara dos Deputados, 2005.Nota: A categoria “Outros” (Tab. 3) inclui 4 emendas (à LDO e ao PPA) e 4 sugestõestransformadas em proposições.

TIPO

Projeto de Lei

Projeto de Lei Complementar

Emenda a Projeto de Lei

Indicação

Requerimento de AudiênciaPública e Seminário

Requerimento de Informação

Emenda ao Orçamento

Outros

TOTAL

2001

1

1

-

-

-

-

5

-

7

2002

20

4

-

2

2

1

5

-

34

2003

22

1

-

-

1

-

5

1

30

2004

10

-

1

1

-

-

5

-

17

2005

8

-

2

-

3

-

5

7

25

TOTAL

61 (53,98%)

6 (5,31%)

3 (2,65%)

3 (2,65%)

6 (5,31%)

1 (0,88%)

25 (22,12%)

8(7,07%)

113

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2730

31A Reforma da Representação | Fátima Anastasia | Felipe Nunes

Total

31,7%

42,2%

1910,6%

7943,9%

7541,7%

180100,0%

Autor de Proposição

Comissão

-

-

-

125,0%

375,0%

4100,0%

Senador,Individualmente

-

17,7%

17,7%

969,2%

215,4%

13100,0%

Deputado,Individualmente

31,8%

31,8%

1811,0%

6942,3%

7042,9%

163100,0%

Legislatura (ano)

1989

1990 - 1994

1995 - 1998

1999 - 2002

2003 - 2005

Total

Tabela 4 - Autor de Proposições Relativas à Reforma Política, por Legislatura,Câmara dos Deputados, Brasil, 1989-2005

Fonte: Elaboração própria, a partir de informações coletadas em www.camara.gov.br, no período compreendido entre 25 de maio e 05 de junho de 2006.

Tabela 5 - Opiniões sobre Sistemas Eleitorais, por Deputados Agregados segundo Filiação Partidária,Câmara dos Deputados, Brasil, 2005

Sistema proporcional esistema majoritário

(1)

(2)

(3)

(4)

(5)

(6)

(7)

(8)

(9)

(10)

N.S.

Total

PDT

266,7%

-

-

-

-

133,3%

-

-

-

-

-

3100,0%

PT

730,4%

313,0%

313,0%

28,7%

28,7%

313,0%

14,3%

28,7%

-

-

-

23100,0%

PTB

642,9%

-

17,1%

-

321,4%

17,1%

-

214,3%

-

17,1%

-

14100,0%

PMDB

840,0%

15,0%

315,0%

15,0%

15,0%

-

15,0%

15,0%

15,0%

210,0%

15,0%

20100,0%

PL

541,7%

18,3%

18,3%

-

-

-

-

-

-

541,7%

-

12100,0%

PFL

637,5%

-

16,3%

-

743,8%

-

16,3%

16,3%

-

-

-

16100,0%

PSDB

650,0%

-

216,7%

-

433,3%

-

-

-

-

-

-

12100,0%

PCdoB

2100,0%

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

2100,0%

OUTROS

1546,9%

-

412,5%

-

721,9%

26,3%

26,3%

-

-

26,3%

-

32100,0%

Total

5742,5%

53,7%

1511,2%

32,2%

2417,9%

75,2%

53,7%

64,5%

10,7%

107,5%

10,7%

134100,0%

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de Dados Representação Política e Qualidade da Democracia – Instituto Interuniversitario de Estudios de Iberoamérica y Portugal/Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, 2005.

(1) Sistema Proporcional que garanta a representação eqüitativa de todas as forças políticas.

(10) Sistema majoritário que garanta governos fortes e efetivos.

PARTIDOS

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2731

32

Tabela 6 - Tipo Preferido de Lista Eleitoral, por Deputados Agregados segundo Filiação Partidária, Câmara dos Deputados, Brasil, 2005

Sistemas de voto

(1)

(3)

(4)

(5)

(6)

(7)

(8)

(9)

(10)

N.S.

Total

PDT

266,7%

-

-

-

-

133,3%

-

-

-

-

3100,0%

PT

28,7%

14,3%

-

730,4%

14,3%

417,4%

521,7%

-

313,0%

-

23100,0%

PTB

964,3%

17,1%

-

214,3%

-

-

-

-

214,3%

-

14100,0%

PMDB

630,0%

15,0%

15,0%

315,0%

-

-

-

210,0%

630,0%

15,0%

20100,0%

PL

1083,3%

-

-

216,7%

-

-

-

-

-

-

12100,0%

PFL

318,8%

-

-

531,3%

-

-

-

16,3%

637,5%

16,3%

16100,0%

PSDB

18,3%

-

-

433,3%

18,3%

-

-

-

650,0%

-

12100,0%

PCdoB

2100,0%

-

-

-

-

-

-

-

-

-

2100,0%

OUTROS

1856,3%

13,1%

-

13,1%

13,1%

-

39,4%

-

825,0%

-

32100,0%

Total

5339,6%

43,0%

10,7%

2417,9%

32,2%

53,7%

86,0%

32,2%

3123,1%

21,5%

134100,0%

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de Dados Representação Política e Qualidade da Democracia – Instituto Interuniversitario de Estudios de Iberoamérica y Portugal/Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, 2005.

(1) Sistema de voto personalizado que garanta uma relação próxima entre o eleitor e seus representantes.

(10) Sistema de voto de lista fechada que favoreça a formação de partidos fortes e coesos.

PARTIDOS

Tabela 7 - Opiniões sobre Democracia e Partidos Políticos, por Deputados Agregados segundo Filiação Partidária, Câmara dos Deputados, Brasil, 2005

Se concorda ou nãocom a frase:Sem partidos não podeexistir democracia

Discorda

Concorda Pouco

Concorda mais ou menos

Concorda muito

N.S.

N.R

Total

PDT

-

-

-

3100 %

-

-

3100 %

PT

28,7%

-

313,0%

1878,3%

-

-

23100 %

PTB

-

-

321,4%

1178,6%

-

-

14100 %

PMDB

-

15,0%

15,0%

1890,0%

-

-

20100 %

PL

216,7%

-

325,0%

758,3%

-

-

12100 %

PFL

-

-

16,3%

1593,8%

-

-

16100 %

PSDB

18,3%

-

18,3%

1083,3%

-

-

12100 %

PCdoB

-

-

-

2100,0%

-

-

2100 %

OUTROS

39,4%

13,1%

39,4%

2371,9%

13,1%

13,1%

32100 %

Total

86,0%

21,5%

1511,2%

10779,9%

10,7%

10,7%

134100 %

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de Dados Representação Política e Qualidade da Democracia – Instituto Interuniversitario de Estudios de Iberoamérica y Portugal/Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, 2005.

PARTIDOS

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2732

33A Reforma da Representação | Fátima Anastasia | Felipe Nunes

Tabela 8 - Comportamento Parlamentar, por Deputados Agregados segundo Filiação Partidária, Câmara dos Deputados, Brasil, 2005

Quando há conflitosentre a posição dopartido e a do seuestado, você vota:

Sempre com o partido

Sempre de acordo com asnecessidades de seu estado

Não comparece à votação

Depende dos temas

N.S.A

N.R.

Total

PDT

-

133,3%

-

133,3%

133,3%

-

3100 %

PT

1252,2%

313,0%

-

313,0%

313,0%

28,7%

23100 %

PTB

17,1%

1071,4%

-

321,4%

-

-

14100 %

PMDB

315,0%

1260,0%

-

420,0%

-

15,0%

20100 %

PL

-

758,3%

18,3%

325,0%

18,3%

-

12100 %

PFL

425,0%

743,8%

-

212,5%

212,5%

16,3%

16100 %

PSDB

325,0%

325,0%

-

433,3%

216,7%

-

12100 %

PCdoB

-

-

-

2100,0%

-

-

2100 %

OUTROS

515,6%

1856,3%

-

515,6%

39,4%

13,1%

32100 %

Total

2820,9%

6145,5%

10,7%

2720,1%

129,0%

53,7%

134100 %

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de Dados Representação Política e Qualidade da Democracia – Instituto Interuniversitario de Estudios de Iberoamérica y Portugal/Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, 2005.

PARTIDOS

Tabela 9 - Opiniões sobre Disciplina Partidária por Deputados Agregados segundo Filiação Partidária, Câmara dos Deputados, Brasil, 2005

Disciplina partidária

Deveria se exigir sempre adisciplina de voto na bancada

partidária

Deveria se permitirsempre que cada deputado dê

seu voto de

Alguns temas deveriam estarsujeitos à disciplina partidária

Total

PDT

3100%

-

-

3100%

PT

521,7%

-

1878,3%

23100,0%

PTB

642,9%

17,1%

750,0%

14100 %

PMDB

1050,0%

315,0%

735,0%

20100 %

PL

325,0%

325,0%

650,0%

12100 %

PFL

743,8%

318,8%

637,5%

16100 %

PSDB

758,3%

18,3%

433,3%

12100 %

PCdoB

-

-

2100,0%

2100 %

OUTROS

825,0%

1237,5%

1237,5%

32100 %

Total

4936,6%

2317,2%

6246,3%

134100 %

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de Dados Representação Política e Qualidade da Democracia – Instituto Interuniversitario de Estudios de Iberoamérica y Portugal/Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, 2005.

PARTIDOS

Tabela 10 - Opiniões sobre Fidelidade Partidária, por Deputados Agregados segundo Filiação Partidária, Câmara dos Deputados, Brasil, 2005

O que o deputadodeveria fazer aodesvincular-sedo partido?

Conservar sua cadeira e seintegrar a outra bancada

Renunciar à sua cadeira paraque outro membro do partido

ocupe seu lugar

N.R.

Total

PDT

-

3100%

-

3100%

PT

521,7%

1669,6%

28,7%

23100,0%

PTB

535,7%

964,3%

-

14100 %

PMDB

630,0%

1470,0%

-

20100 %

PL

866,7%

325,0%

-

12100 %

PFL

212,5%

1381,3%

16,3%

16100 %

PSDB

650,0%

650,0%

-

12100 %

PCdoB

-

150,0%

150,0%

2100 %

OUTROS

1650,0%

1546,9%

13,1%

32100 %

Total

4835,8%

8059,7%

53,7%

134100 %

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de Dados Representação Política e Qualidade da Democracia – Instituto Interuniversitario de Estudios de Iberoamérica y Portugal/Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, 2005.

PARTIDOS

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Reforma Política eParticipação no Brasil

Leonardo Avritzer

O sistema político gerado pela Constituição de 1988 é um siste-ma híbrido que incorporou na sua organização amplas formas departicipação no plano do processo decisório federal, assim como,no plano local. Duas formas principais de participação foram gera-das pela Constituição de 1988: uma primeira, a participação diretaatravés da expressão da soberania por meio de plebiscitos, refe-rendo e iniciativas populares, parece ter sido a preferência do legis-lador constitucional, ainda que o seu exercício pós-Constituição de1988 não tenha sido muito grande. Uma segunda forma de participa-ção, centrada no nível local, proliferou como decorrência da incorpo-ração da participação exigida por alguns capítulos de políticas sociaisda Constituição de 1988, em particular, os capítulos da seguridadesocial e da reforma urbana. Neste artigo irei, em primeiro lugar, des-crever a institucionalidade participativa presente na Constituição de1988, para, em seguida, analisar as instituições participativas gera-das pela Constituição.

A Constituição de 1988 propôs, na sua arquitetura mais genéri-ca, uma combinação entre formas de representação e formas departicipação. Essa combinação está expressa na redação do artigo14, incisos I, II e III, que assegura que “[a] soberania popular seráexercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, comvalor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: plebiscito;referendo [e] iniciativa popular”. Assim, o Brasil, a partir de 1988,passou a integrar um grupo bastante seleto de países que não têmna representação o monopólio das formas de expressão políticainstitucionalizadas. Do ponto de vista da arquitetura política, pou-cos países têm essa formulação presente no plano constitucional,ainda que um número relativamente grande de países tenha pre-sente essa combinação entre representação e participação na suaestrutura política.

1

A tentativa de combinação entre participação e representaçãoestá prevista também para os estados e municípios no artigo 27 daConstituição de 1988 que estabelece que “[a] lei disporá sobre ainiciativa popular no processo legislativo estadual” e no artigo 29,

1 Os Estados Unidos são o exemplo mais clássico de um país cuja constituiçãonão fala das formas de participação no nível local. Formas de participação localexistem na região de New England desde o período da colônia e forampreservadas no momento da constituição do poder central enquanto poderrepresentativo. Vide MANSBRIDGE, 1980. A França tem uma arquitetura políticadistinta com os governos locais tendo sido proibidos até a reforma políticarealizada por Mitterand em 1981 (GAUDIN, 1999). Entre os países emdesenvolvimento a Índia é o país que mais tem instituições participativas. VejaHELLER; ISAAC, 2002.

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2735

36

incisos XII e XIII, sobre os Municípios, quedispõe que [o] Município reger-se-á por leiorgânica, (...) atendidos os princípios esta-belecidos nesta Constituição, na Constitui-ção do respectivo Estado e os seguintespreceitos: “... iniciativa popular de projetosde lei de interesse específico do município,da cidade ou de bairros, através de mani-festação de, pelo menos, cinco por centodo eleitorado...”. Assim, não se trata, quan-do falamos de participação, apenas de umartigo isolado na formulação das formas deexpressão da soberania popular mas deuma arquitetura que se desdobra para osentes federados. É interessante notar, tam-bém, que a exigência de participação nãose esgota nos níveis do Poder Executivo, masabrange também o Legislativo. O artigo 61da Constituição de 1988 assegura que “[a]iniciativa popular pode ser exercida pela apre-sentação à Câmara dos Deputados de pro-jeto de lei subscrito por, no mínimo, um porcento do eleitorado nacional distribuído pelomenos por cinco estados, com não menosde três décimos por cento dos eleitores decada um deles”. Sendo assim, as formas deexercício direto da soberania, plebiscito, refe-rendo e iniciativa popular estão amplamenteincorporadas no texto constitucional aindaque elas tenham sido pouco exercidas noBrasil democrático.

Há uma segunda forma de participaçãoque está prevista na Constituição de 1988que é a de atores ou entidades da socieda-de civil na deliberação sobre políticas públi-cas. Essas formas presentes nos capítulosda seguridade social e da reforma urbanatornaram-se amplamente difundidas no Bra-sil democrático. Em relação à gestão daspolíticas públicas, o artigo 194, parágrafoúnico, inciso VII, a respeito da SeguridadeSocial, assegura o “caráter democrático edescentralizado da administração, median-te gestão quadripartite, com participação dostrabalhadores, dos empregadores, dosaposentados e do governo nos órgãos cole-giados”. O artigo 204, inciso II, sobre a As-sistência Social, prescreve a “participaçãoda população, por meio de organizaçõesrepresentativas, na formulação das políticas

e no controle das ações em todos os níveis”.Finalmente, o artigo 227, parágrafo 1º, acer-ca da Família, da Criança, do Adolescente edo Idoso, dispõe que “ [o] Estado promove-rá programas de assistência integral à saú-de da criança e do adolescente, admitida aparticipação de entidades não-governamen-tais (...)” (Avritzer; Dolabella, 2005). O artigo186 sobre a reforma urbana requer a elabo-ração de planos diretores municipais emtodas as cidades com mais de 20 mil habi-tantes. Nesse caso, apenas a legislaçãoinfraconstitucional, o assim chamado “Esta-tuto da Cidade”, requer a participação dapopulação na elaboração dos planos direto-res (Caldeira; Holston, 2004; Avritzer, 2006).Assim, o próprio processo constituinte setornou a origem de um conjunto de institui-ções híbridas que foram normatizadas nosanos 90, tais como os conselhos de políticae tutelares ou as formas de participação anível local. Em seguida, iremos analisar oimpacto de cada uma das legislações parti-cipativas no Brasil democrático.

Plebiscito e referendum:uma breve incursão sobre o seuuso político no Brasil democrático

Os mecanismos de democracia direta,em especial, o plebiscito, o referendum

2 e a

iniciativa popular de lei, não foram as for-mas de participação ampliada mais utiliza-das no Brasil democrático. Um plebiscito eum referendo foram convocados no Brasildemocrático, o primeiro, acerca da forma degoverno, e o segundo, sobre a comercializa-ção das armas de fogo. Foram propostastrês leis de iniciativa popular, todas elas apro-vadas ainda que através de processos dife-renciados na Câmara dos Deputados.

Vale a pena, apesar das poucas experiên-cias em curso, discutir os três tipos de utilização

2 Vale a pena para os objetivos deste artigo diferenciar plebiscito de referendum.Ainda que os dois sejam uma consulta direta à população sobre aspectospolíticos, o que os diferencia é que o plebiscito é uma decisão soberana dapopulação tomada diretamente, que irá gerar uma lei, ao passo que oreferendum é uma ratificação pela via eleitoral de uma lei ou de partes de umalei já aprovada pelo Poder Legislativo.

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37Reforma Política e Participação no Brasil | Leonardo Avritzer

dos mecanismos de democracia direta noBrasil democrático. O primeiro experimentoutilizado no Brasil para que a população semanifestasse diretamente foi o plebiscito daforma de governo, mais conhecido como oplebiscito sobre o parlamentarismo. Apesardo ineditismo da maioria das formas de con-sulta geradas pela Constituição de 1988, oplebiscito sobre a forma de governo não era,em si, inédito. Um outro plebiscito foi feitono Brasil em 1963 no contexto da crise quelevou ao final da primeira experiência demo-crática (Lamounier, 1991). O plebiscito de1993 foi realizado em um contexto de cons-trução institucional e sua inclusão no debatepolítico brasileiro deveu-se mais à influênciade alguns cientistas políticos, em particularJuan Linz, no processo de construção insti-tucional

3 do que a um debate mais expres-

sivo no interior da opinião pública. No final, oposicionamento da população acabou obe-decendo mais à dinâmica política de curtoprazo, na qual Luis Inácio Lula da Silva lidera-va a corrida presidencial naquele momento.A decisão pela manutenção do presidencia-lismo parece ter sido acertada, pelo menosem relação à preocupação de Linz, já queas diversas crises entre o Presidente e oCongresso, em particular a crise atual vividapelo governo Lula, não parecem ter afetadoa estabilidade institucional do país.

No que diz respeito ao referendum, o Bra-sil democrático teve apenas um caso, quefoi o do referendum sobre a comercializaçãode armas de fogo, realizado no ano de 2005.A origem do referendum sobre o desarma-mento pode ser localizada em um impassesurgido durante a elaboração do estatuto dodesarmamento. Naquele momento, entre as

diversas iniciativas debatidas para desarmara população apareceu a proposta de proibira comercialização de armas para toda apopulação civil, proposta essa que encon-trou oposição em grupos conservadores doCongresso Nacional. O referendum foi entãoconvocado não no sentido de ratificar umalei e sim com o objetivo de transferir para apopulação uma decisão que causava impas-se no Parlamento (Brasil, 2003). Mais umavez o posicionamento da população no refe-rendum foi influenciado por questões políti-cas de curto prazo, em particular a forte crisepolítica enfrentada pelo governo Lula, quefez com que esse se ausentasse do debatesobre o assunto. O resultado do referendumfoi a derrota da proibição do porte e comer-cialização de armas por civis, uma derrotacontundente para os defensores da proibi-ção no interior do sistema político e princi-palmente no campo da sociedade civil.

4

Assim, se analisamos as duas experiênciasprincipais de manifestação direta da popu-lação no Brasil democrático, podemos verque elas acabaram obedecendo a dinâmi-cas de curto prazo do país ou do sistemapolítico no pouco uso que foi feito dessesinstrumentos.

Entre todas as formas de democraciadireta, a mais utilizada no Brasil democráticofoi a iniciativa popular de lei. A iniciativapopular de lei pode ser apresentada ao Con-gresso Nacional desde que subscrita por 1%do eleitorado distribuído por, pelo menos,cinco estados, com não menos de 0,3% doeleitorado em cada um deles (Pessanha,2004). Foram apresentados, até o momen-to, três projetos de iniciativa popular de leino Congresso Nacional e alguns poucos pro-jetos nos legislativos estaduais dos estadosde Minas Gerais e Rio Grande do Sul, paraos quais existem dados disponíveis. Os trêsprojetos apresentados foram: corrupção elei-toral com um milhão de assinaturas, projetoapresentado pela CNBB; mudança na lei decrimes hediondos, com 1,3 milhão de assi-naturas; e projeto sobre o fundo nacional dahabitação popular, com um pouco mais detrês milhões de assinaturas. Entre os três

3 A principal influência foi Juan Linz, para quem há uma incompatibilidade entreos poderes do Presidente e o da maioria parlamentar, gerando uma crise nosistema político. Veja COUTINHO.

4 É possível argumentar que a derrota da proibição do porte de armas foi aprincipal derrota dos setores organizados da população brasileira desde ademocratização. Do lado da sociedade civil organizada existia um consensoquase absoluto a favor da proibição, consenso esse que abrangia todas asprincipais religiões e Igrejas, assim como as entidades laicas mais influentesda sociedade civil. É interessante também apontar que o padrão de votovigente no país foi completamente alterado pelo referendum, tanto no quese refere às supostas regiões mais progressistas no que diz respeito a assuntossociais (Rio Grande do Sul e Sudeste) quanto pela composição social doeleitorado. Os setores mais pobres, geralmente chamados de despolitizados,foram os setores a favor da proibição do porte de armas.

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2737

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projetos, apenas o primeiro se tornou lei apartir de uma rápida tramitação no CongressoNacional, e os outros dois se tornaram leis apartir da sua proposição por parlamentares.

As duas outras iniciativas de lei que fo-ram apresentadas ao Congresso, mudançana lei dos crimes hediondos e o projeto dofundo nacional da moradia, se tornaram leispor processos mistos, envolvendo a iniciati-va popular e a ação de parlamentares. Noprimeiro caso, a iniciativa popular de lei pro-pôs aumentar a pena para crimes hedion-dos e suprimir a possibilidade de umsegundo julgamento em caso de condena-ção. Foram coletadas mais de um milhãode assinaturas pelos seus patrocinadores,

5

mas o projeto tinha problemas formais liga-dos à coleta de assinaturas. No entanto, orelator do projeto de lei sobre o tema incor-porou as sugestões do projeto de iniciativapopular, resultando na Lei 8.930, de 6 desetembro de 1994, que deu nova redação àlei dos crimes hediondos (Sgarbi; Assad).O outro projeto, o da moradia popular, foiapresentado em 2004, e aprovado em to-das as comissões das Câmaras dos Depu-tados. Nesse momento ele tramita noSenado Federal.

Através de uma rápida comparação en-tre os mecanismos de exercício direto dasoberania popular é possível perceber que oplebiscito e o referendum não foram muitoutilizados no Brasil democrático e, quandoforam, acabaram sendo convocados emdecorrência de conflitos internos ao PoderLegislativo. O instituto de soberania diretaque realmente se destaca é o da iniciativapopular de lei. Ainda que ele não tenha sidomuito utilizado, quando o foi, ele acrescen-tou uma lógica societária ao sistema políti-co. Entre os três casos, pelo menos doisexpressam fortes movimentos da socieda-de civil, a CNBB e o Movimento Nacional deLuta pela Moradia. O terceiro movimentoexpressa uma personalidade pública capazde dar visibilidade mediática ao movimen-to. No entanto, não há dúvidas de que dadaa amplitude da legislação, os três mecanis-mos são pouco utilizados no nível nacional eainda menos no estadual.

6 Whitaker argu-

menta que na forma atual da legislação so-bre a iniciativa popular os casos são pou-cos, e a possibilidade de anulação posteriorda legislação é grande devido a incertezasdo processo de conferência de assinaturas.Ele sugere a transferência para as comissõesde participação dos legislativos da sistema-tização das iniciativas populares e a sua pro-posição pelos próprios parlamentares, talcomo já acontece no plano federal e emalguns legislativos estaduais (Whitaker,2003). O que iremos mostrar, em seguida,é que os mecanismos participativos efeti-vamente utilizados no Brasil são aqueles li-gados a deliberações no campo daspolíticas públicas.

Conselhos e orçamentosparticipativos: a participaçãonas políticas públicas

As instituições participativas que real-mente se multiplicaram no Brasil democrá-tico são os conselhos de políticas e osorçamentos participativos. Os conselhos depolítica são resultado das legislações espe-cíficas ou infraconstitucionais que regulamen-tam os artigos da Constituição de 1988 sobrea saúde, a assistência social, a criança e oadolescente e as políticas urbanas. As prin-cipais legislações participativas surgiram apartir da Lei Orgânica da Saúde (LOS), daLei Orgânica da Assistência Social (LOAS),do Estatuto da Criança e do Adolescente edo Estatuto da Cidade. Cada uma dessaslegislações estabeleceu a participação deuma forma diferente, mas a partir dos anos90, todas essas formas de participação fi-caram conhecidas como conselhos. Pode-mos definir os conselhos como instituiçõeshíbridas nas quais há participação de atores

5 Entre os patrocinadores da iniciativa de lei sobre crimes hediondos encontram-sefamílias de pessoas assassinadas de forma brutal. A adesão da autora detelenovelas Glória Pérez foi importante para a tramitação da iniciativa popularde lei sobre crimes hediondos.

6 Existem pouquíssimos casos de iniciativa popular nos legislativos estaduais.O Movimento Nacional de Luta pela Moradia conseguiu aprovar um fundoestadual da moradia popular em Minas Gerais que é, até o momento, a únicainiciativa popular de lei aprovada no estado. O mesmo movimento nãoconseguiu aprovar uma proposta de lei semelhante no estado de São Paulo.A iniciativa popular de lei proposta pelo movimento de moradia naqueleestado foi considerada inconstitucional no seu processo de tramitação.

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39Reforma Política e Participação no Brasil | Leonardo Avritzer

do Executivo7 e de atores da sociedade civil relacionados com a

área temática na qual o conselho atua. O formato institucional dos

conselhos, em todas as áreas mencionadas, é definido por legislaçãolocal, ainda que os parâmetros para a elaboração dessa legislaçãosejam dados pela legislação federal. Todos esses conselhos ado-tam a paridade como princípio, ainda que a forma específica daparidade varie de área temática para área temática. Assim, no casodos conselhos de saúde, os usuários ocuparam metade da repre-sentação, no caso da assistência social e dos conselhos da criança edo adolescente, entidades da sociedade civil ocupam metade dasvagas no conselho. O que é importante perceber é que há umagrande variação no que se denomina de entidades da sociedadecivil nesses casos, variação essa que se torna ainda maior no casodos conselhos de meio ambiente que existem em diversos estadosda Federação. O Gráfico 1 mostra os dados do IBGE acerca donúmero de conselhos existentes no Brasil em 2001:

7 Existem alguns poucos conselhos no Brasil que têm representantes do PoderLegislativo, mas na maioria dos casos isso não ocorre. Já há jurisprudência deque eles pertencem à estrutura do Poder Executivo.

8 O método através do qual o IBGE chegou a esses números é questionável.O IBGE trabalhou apenas com informação das prefeituras sobre a existênciadesses conselhos. Esse método é limitado uma vez que já existem evidênciasna literatura de conselhos formalmente organizados, mas que não se reúnemnem ao menos uma vez por ano ou de conselhos que são organizados peloprefeito e não desempenham nenhum papel fiscalizador ou deliberativo napolítica pública em questão. AVRITZER; CUNHA; CUNHA, 2003.

9 Nem todos os conselhos de educação têm o mesmo papel no Brasil. Há umatendência dos conselhos de educação de se tornarem em alguns casosinstância normativa e reguladora das instituições educativas existentes noestado. Tal fato mostra que mesmo a legislação atual sobre conselhos não ésistemática e não envolve a adoção de padrões semelhantes de tomadas dedecisão.

Fonte: Pesquisa de Informações Básicas Municipais – IBGE, 2001.

Saúde

Assistência Social

Direitos da Criança e do Adolescente

Educação

Trabalho

Meio Ambiente

Turismo

Cultura

Habitação

Política Urbana

Transportes

Orçamento

98%

93%

77%

73%

34%

29%

22%

13%

11%

6%

5%

5%

Gráfico 1Número de Conselhos Municipais no Brasil

O Gráfico 1 não deixa dúvidas sobre a proliferação de conselhosno Brasil democrático.

8 De acordo com os dados do IBGE, existem

conselhos de saúde e de assistência social na quase totalidadedos municípios brasileiros. Conselhos da criança e do adolescentee de educação

9 são menos presentes no país, e há uma grande

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2739

40

variação na sua presença nas diferentes re-giões do país. As regiões Norte e Nordestesão as que ainda não apresentam uma redecompletamente constituída de conselhos,com um número de conselhos da criança edo adolescente e do meio ambiente significa-tivamente menor do que as demais regiões. Éimportante também mencionar que os da-dos do IBGE não distinguem entre a infor-mação sobre a presença de conselhos e suaefetividade pensada, seja em termos donúmero de reuniões realizadas por ano, sejapela sua capacidade de pautar a delibera-ção da política pública a ele vinculada. Da-dos parciais de pesquisa para algumasregiões do país revelam essa discrepância,que sugere que alguns conselhos não sereúnem ou, em alguns casos, não chegamnem ao menos a existir efetivamente (Avritzer,Cunha; Cunha, 2003).

Ainda que não existam dados conclusi-vos sobre o papel dos conselhos na mudan-ça do padrão de políticas públicas nas áreasnas quais eles estão melhor estruturados,alguns indicadores parciais merecem sermencionados. No caso dos conselhos desaúde e de assistência social há uma ten-dência democratizadora da ação dos con-selhos nos lugares em que eles são maisatuantes. Essa tendência envolve o levanta-mento de um conjunto de queixas e deman-das sobre o funcionamento de postos desaúde, que acaba tendo um efeito positivosobre a organização da política pública. Es-ses casos envolvem principalmente grandescapitais com organização significativa dosconselhos de saúde (Coelho; Veríssimo,2004; Avritzer, 2004; Cortes, 2002). Há tam-bém evidências de organização mais efici-ente das políticas públicas na área daassistência social. A partir da resolução doConselho Nacional de Assistência Social deredistribuir os recursos de emendas de par-lamentares a partir de critérios técnicos, háuma tendência mais racional de distribuiçãodos recursos federais na área. Assim, aindaque não tenha havido até o momento umaavaliação nacional do papel dos conselhos,existem evidências parciais de um funcio-

namento exitoso em algumas grandes cida-des ou no caso do papel desempenhadopor alguns conselhos nacionais, como os dasaúde e da assistência social.

A outra instituição participativa que temse destacado no Brasil democrático é oOrçamento Participativo (OP), a única entreas instituições discutidas neste artigo cujacriação não é decorrência direta da Consti-tuição de 1988. O orçamento participativo éuma forma de balancear a articulação entrerepresentação e participação ampla da po-pulação através da cessão da soberania poraqueles que a detêm enquanto resultado deum processo eleitoral. A decisão de iniciar oOP é sempre do prefeito. A soberania passaa ser partilhada com um conjunto de assem-bléias regionais e temáticas que operam apartir de critérios de livre participação. Todosos cidadãos são tornados, automaticamente,membros das assembléias regionais e temá-ticas com igual poder de deliberação. A prin-cipal experiência de OP, até esse momento,ocorreu na cidade de Porto Alegre a partir de1990. Belo Horizonte, São Paulo e Recife sãooutras capitais de porte que também têm oorçamento participativo. As experiências deorçamento participativo tiveram até 1997 umcunho fundamentalmente partidário, uma vezque a sua grande maioria esteve vinculadaao Partido dos Trabalhadores. A partir de1997 há uma tendência à expansão do orça-mento participativo e à sua pluralização nouniverso partidário. Existiam em 2004 170experiências de orçamento participativoespalhadas pelo país da seguinte forma:

Mapa 1 – OPs Gestão 2001 - 2004

Fonte: Avritzer, 2006.

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2740

41Reforma Política e Participação no Brasil | Leonardo Avritzer

É possível perceber uma concentraçãoregional dos casos de OP nos estados doRio Grande do Sul, São Paulo e Minas Geraise uma baixa presença de casos nos esta-dos das regiões Norte e Nordeste. Vale apena pensar mais vagarosamente sobre osmotivos da concentração de casos de OPnesses estados. A melhor explicação seriaum misto de elementos de uma cultura po-lítica mais participativa (Avritzer, 2006) comelementos da dinâmica política local. Os ca-sos mais fortes de OP até 2004 estavamconcentrados no estado do Rio Grande doSul, um estado com uma tradição políticamais igualitária e onde o Partido dos Traba-lhadores se destacou no começo dos anos90 como introdutor de políticas participati-vas. Os casos dos estados de São Paulo eMinas Gerais parecem ser bastante diferen-tes, e a proliferação dos casos de OP pareceestar mais ligada à dinâmica local da vidapolítica. No estado de São Paulo, administra-ções não petistas que se seguiram a admi-nistrações petistas, em geral, deramcontinuidade às experiências de orçamentoparticipativo em curso. O mesmo parece serverdadeiro no estado de Minas Gerais, emcidades importantes como Betim e Ipatinga.

É possível também perceber uma plura-lização dos partidos cujos prefeitos adotamo orçamento participativo. Entre os casos deorçamento participativo existentes até 1997,havia 53 experiências no Brasil, 62% entreelas concentradas em administrações doPartido dos Trabalhadores e 72% entre elasconcentradas no campo de esquerda (PSB,PDT e PCdoB). Entre 2000 e 2004, foram re-gistradas 170 experiências de OP no Brasil,47% dentre elas concentradas no Partido dosTrabalhadores e 57% no campo de esquerda.(Avritzer, 2006) O principal fenômeno obser-vado nesse período é o crescimento do nú-mero de experiências feitas no espectropolítico centrista, isto é, por partidos comoo PMDB e o PSDB. Assim, o que é possívelperceber em relação às experiências de par-ticipação como o OP é que elas têm se am-pliado no Brasil tanto no seu número quantona sua influência política. Originalmente,

parte de um repertório político limitado apartidos de esquerda, em especial, ao PT,essas experiências hoje atingem o espec-tro do centro e da esquerda e envolvem umnúmero significativo de partidos políticos. Noentanto, o que vale a pena avaliar é o impac-to dessas formas de participação no siste-ma político como um todo, ou seja, se defato ocorreu no Brasil pós-1988 a combina-ção entre representação e participação alme-jada pelo legislador constitucional.

Participação e representaçãono Brasil democrático

Como mostramos anteriormente, a arqui-tetura institucional do Brasil democrático éhíbrida, e privilegia a combinação entre re-presentação e participação. No entanto, ofato de combinar representação e participa-ção não quer dizer que as duas formas desoberania política foram combinadas nos lu-gares adequados e na proporção correta.Duas observações mais gerais podem serfeitas sobre essa combinação no Brasil de-mocrático: em primeiro lugar, as instituiçõesde democracia semidireta, tais como o ple-biscito, o referendum e a iniciativa popular,permaneceram muito mais vinculadas ao fun-cionamento do Congresso Nacional ou doslegislativos estaduais do que seria desejá-vel ou do que acontece em outros países. Oplebiscito de 1993 e o referendum de 2005surgiram a partir de polêmicas internas àConstituinte de 1988 e ao Congresso Nacio-nal e não conseguiram substituir essa lógi-ca da disputa interna por uma lógica alémda representação, na qual os mecanismosde democracia semidireta obedecem a umnexo mais societário. A mesma coisa podeser afirmada em relação à iniciativa popularde leis: as poucas experiências de iniciativade lei foram prejudicadas por um procedi-mento pouco claro de tramitação no Con-gresso, que não deu à iniciativa prioridadena tramitação legislativa, apesar do enormeesforço envolvido na coleta de mais de ummilhão de assinaturas. Nesse sentido, é

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2741

42

possível apontar como o problema maior paraa proliferação das formas de participaçãodireta, a dependência que elas ficaram, nasua formulação constitucional, de autorizaçãodo Congresso Nacional. O ideal em relação aessas formas amplas de consulta da popu-lação é que elas sejam amplamente inde-pendentes do Poder Legislativo, e que, como tempo, adquiram uma lógica própria.

O segundo tema analisado neste artigo,o da proliferação das formas de participaçãono nível local, parece apontar na direção con-trária. Os orçamentos participativos e osconselhos se tornaram as formas principaisde participação no Brasil democrático. Noentanto, essas novas formas locais de parti-cipação não têm se articulado bem com oslegislativos locais, que têm sido, via de regra,postos em um segundo plano na sua capa-cidade decisória. Essas instituições, cujasprerrogativas e capacidade de decisão são,em geral, baixas, não têm sido capazes dese articular com as formas de participaçãoe têm perdido legitimidade na política local.

O ideal seria que os arranjos participativoslocais tivessem algum tipo de participaçãode representantes dos Legislativos. Paraisso, faz-se necessária uma mudança norma-tiva, já que a legislação existente entendeos conselhos de políticas como parte daestrutura do Executivo, o que, a nosso ver,parecer ser um equívoco. Assim, à guisa deconclusão, podemos afirmar que apesar daintenção do legislador constituinte de criarformas híbridas de relação entre a partici-pação e a representação, esse objetivo aindanão foi alcançado no Brasil democrático. Édesejável que nos próximos anos as formasde democracia semidiretas adquiram auto-nomia em relação à dinâmica do CongressoNacional, assim como é desejável que osarranjos participativos locais se articulemmelhor com os legislativos locais. Somenteassim cada uma das formas de exercícioda soberania, a participação e a represen-tação, poderão complementar déficits ouincompletudes presentes na outra.

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43Reforma Política e Participação no Brasil | Leonardo Avritzer

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Reforma Política em PerspectivaComparada na América do Sul

Carlos Ranulfo Melo

Introdução

Os últimos vinte anos foram marcantes para a América do Sul.Boa parte de seus países restabeleceu as regras do jogo democrá-tico, mas, na grande maioria dos casos, teve que fazê-lo em meioa um quadro de enorme desigualdade social, agravado por criseseconômicas e pela falência do antigo modelo de desenvolvimentocentrado no Estado. Submetidas a duros testes, as jovens demo-cracias da região atravessaram períodos de intensa crise política esofreram, em alguns países, ameaças de retrocesso. Mesmo na-queles casos em que a experiência democrática não chegou a serinterrompida pelo ciclo de golpes militares, como a Colômbia e aVenezuela, o sistema político atravessou os anos 80 emitindo cla-ros sinais de instabilidade e perda de representatividade.

Em resposta a esse conjunto de fatores, os países sul-america-nos vêm passando por um intenso movimento de inovação e expe-rimentação institucional. A depender do país, esse processoenvolveu a convocação de uma Assembléia Constituinte, a realiza-ção de um conjunto de reformas constitucionais e/ou mudanças nalegislação ordinária.

1

Este artigo centrará sua atenção em um subconjunto dessasmudanças: as reformas nos sistemas eleitorais. Praticamente to-dos os países do continente modificaram algumas das regras sobas quais são eleitos os membros dos Poderes Legislativo e Execu-tivo.

2 Ocorreram alterações na forma de eleição do Presidente (se

por maioria absoluta ou simples) e/ou na duração do mandato. Emalguns países a reeleição passou a ser admitida, e eleições diretaspara governadores e prefeitos foram introduzidas. Calendários elei-torais sofreram alterações, fazendo com que as eleições nos dife-rentes níveis, nacional ou subnacional, deixassem de coincidir. Noque tange ao Poder Legislativo, alguns países transitaram do bica-meralismo para o unicameralismo, extinguindo o Senado. Outrosmodificaram o número de membros e o processo de composição

1 Brasil (1988), Colômbia (1991), Equador (1998) e Venezuela (1999) convocaramConstituintes. A Venezuela o fez depois de haver experimentado uma sériede reformas pontuais em sua constituição entre o final dos anos 80 e meadosdos anos 90. Argentina e Bolívia em 1994, o Uruguai em 1996 e,recentemente, o Chile em 2005, realizaram reformas constitucionais no cursode processos legislativos ordinários.

2 A afirmação não inclui o Suriname, a Guiana e a Guiana Francesa.

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dessa Casa. Finalmente, no que se refere àCâmara dos Deputados, foram registradasa introdução de sistemas eleitorais mistos,a modificação no número dos representan-tes e a alteração do número de cadeiras emdisputa nos distritos.

O texto está organizado da seguinte ma-neira: na primeira seção é feita uma breveabordagem acerca dos problemas envolvi-dos nos processos de reforma político-elei-toral e das condições que podem favorecer,ou dificultar, a sua ocorrência. A seguir sãodiscutidos e comparados os casos da Argen-tina, Bolívia, Brasil, Chile, Uruguai e Vene-zuela.

3 Para cada país são apresentados os

atores responsáveis pela condução das re-formas, o tipo de constrangimento — insti-tucional e/ou social — sob o qual atuavam,e analisados os resultados. Na conclusão, éfeito um rápido balanço dos seis processosreformistas.

O jogo da reforma eleitoral

A democracia pode ser entendida comoum tipo de jogo em que a incerteza é institu-cionalizada (Przeworski, 1994). Arranjos ins-titucionais possuem impacto sobre oresultado dos conflitos políticos, fazendo comque determinados resultados sejam descar-tados, delimitando o leque dos desfechospossíveis e apontando aqueles que são osmais prováveis. Isso é tanto mais verdadeiroquanto mais consolidado se mostre deter-minado arranjo: a institucionalização é “oprocesso através do qual as organizaçõesadquirem valor e estabilidade” (Huntington,1975, p. 24).

Um processo de reforma eleitoral é umtipo de mudança institucional que pode en-volver, nas palavras de Tsebelis (1998), alte-rações no conjunto de jogadores, nasjogadas permitidas, na seqüência do jogoe/ou na informação disponível para cada jo-gada. Trata-se, geralmente, de um jogo mar-cado pela incerteza (Norris, 2000). Oconhecimento adquirido pelos atores políti-cos — que aprenderam a lidar com as re-

gras vigentes e sob estas condições esta-beleceram suas estratégias — perde partede seu valor. A mudança nas regras exigiráum novo aprendizado. Mais importante, ain-da, sob as novas regras, os resultados po-dem ser de difícil previsão. Mesmo que sejapossível avaliar a possibilidade de ganhosimediatos ligados ao contexto em que serealiza a reforma, a situação pode se alterarcom o tempo: não se pode prever como re-agirá o conjunto dos atores à medida quetodos se familiarizem com as novidades; nãose sabe exatamente como se combinarão(em termos de efeito sobre o processo polí-tico) as novas e as antigas instituições; nãose pode impedir a interferência de fenôme-nos diversos que anulem ou minimizem osefeitos esperados. Em outras palavras, comotoda mudança institucional, uma reformaeleitoral é um tipo de investimento de longoprazo (Tsebelis, 1998), o que torna mais difí-cil o controle do processo e aumenta a chancede que sejam produzidas conseqüênciasnão intencionais.

A experiência recente das democraciasconsolidadas fornece exemplos de reformaseleitorais cujos objetivos foram plenamentealcançados e outras onde o fracasso foiretumbante. No primeiro caso encontra-se aNova Zelândia que, a partir de 1993 e após arealização de dois referendos, transitou deum sistema eleitoral majoritário de tipo in-glês para um sistema misto, ao estilo ale-mão.

4 O objetivo dos reformadores era

possibilitar o acesso dos partidos minoritá-rios à House of Representatives e, com isso,conferir maior representatividade ao sistemapolítico (Denemark, 1996; Lima Júnior, 1999).

3 Como ficará claro, os países serão agrupados dois a dois: Argentina e Uruguai;Bolívia e Venezuela; Brasil e Chile. A escolha dos países se justifica por seremexpressivos de diferentes contextos de reforma.

4 Os deputados neozelandeses eram eleitos até então em 99 distritos, cadaum deles elegendo um representante para a Câmara. A partir das eleições de1996, metade dos deputados passou a ser eleito por meio de voto proporcionalem lista fechada. A outra metade continuou a ser eleita de forma majoritária.O eleitor passou a contar com dois votos, um reservado à disputa no distritoe outro à disputa entre as listas partidárias. O número de votos dados naslistas serve como referência para o cálculo das cadeiras atribuídas aos partidos,o que assegura que os resultados da eleição sejam proporcionais, corrigindoa distorção típica dos sistemas majoritários puros. O sistema misto foi introduzidopelos alemães em 1949.

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O objetivo foi alcançado, e a partir das elei-ções seguintes a Nova Zelândia passou aapresentar um sistema multipartidário.

5

A Itália ilustra o segundo caso. Tambémem 1993 e novamente após a realização dereferendos, os legisladores italianos substi-tuíram o sistema de representação propor-cional em vigor desde o pós-guerra por umsistema misto.

6 O objetivo era reduzir a frag-

mentação partidária e aumentar o grau deestabilidade governamental (Morlino, 1996).Mas a mudança no sistema, segundo Pas-quino (1997), apenas reforçou uma tendên-cia, já em curso, de desalinhamento eleitorale crise do sistema partidário, que terminou,como se sabe, por implodir pouco tempodepois. A partir de 1994 as eleições italia-nas passaram a ser polarizadas por duasgrandes coalizões, de centro-esquerda ecentro-direita, dentro das quais se abrigavaum enorme número de novas organizaçõespartidárias. Em 2005 a Itália, por iniciativado governo Berlusconi, voltou a adotar o sis-tema de representação proporcional paraCâmara e Senado.

7

A incerteza inerente ao processo reformistapode dificultar a construção de uma coali-zão capaz de conduzi-lo. Mesmo que taiscoalizões contem com apoios no poder Exe-cutivo e na sociedade, a adesão de umamaioria de congressistas se mostra essen-cial para o sucesso da empreitada. Legisla-dores, como se sabe, são especialmentepreocupados com sua reeleição, e não sedeve esperar que adiram a projetos que co-loquem em risco sua sobrevivência política.Dessa forma, os atores interessados em li-derar processos reformistas devem lançar

mão de estratégias de persuasão e de modi-ficação (Arnold, 1990). O objetivo das primei-ras é não só o de convencer os legisladoresquanto à justeza das propostas em pauta,mas principalmente o de tranqüilizá-los quan-to a seus impactos eleitorais. Quanto às se-gundas, trata-se de modificar aspectos daproposta ou de tornar sua implementaçãogradual, de modo a contemplar as preferên-cias de seus liderados, atrair novos adeptose, se possível, dissuadir oponentes.

Finalmente, é preciso levar em conta oarranjo institucional em tela. Democraciasque se organizam com base em arranjosconsensuais (Lijphart, 2003), ou proporcio-nais (Powell, 2000), tendem a ampliar o nú-mero e a pluralidade dos representantespresentes no processo de produção de polí-ticas, o que aponta para a necessidade deconformação de maiorias mais amplas epara processos decisórios mais negociadose incrementais. Democracias que, por outrolado, se baseiam em uma concepção majo-ritária tendem a concentrar poderes nasmãos de uma maioria estrita, diminuindo onúmero de atores com poder de negocia-ção e, em função disso, podendo tornar maisfáceis os processos de mudanças, aindaque, no limite, também possam gerar deci-sões menos representativas.

O impacto do arranjo institucional podeainda ser maior ou menor a depender do graude desinstitucionalização exigido pela pro-posta reformista. Evidentemente, reformaspolíticas baseadas em projetos de lei ordi-nária são mais fáceis de serem aprovadasdo que aquelas que exigem alterações cons-titucionais. Neste último caso, o sucesso daempreitada reformista poderá depender, ain-da, do quórum necessário para a realizaçãode emendas constitucionais. Exigências demaiorias mais elevadas conferem às dife-rentes minorias maior poder de veto sobreas mudanças.

Apesar de permanecerem cercadas deincertezas, reformas eleitorais têm sido fre-qüentes nos últimos vinte anos. E se issoocorre deve-se a que os resultados obtidospelos arranjos eleitorais vigentes passam a

5 O domínio absoluto dos partidos Trabalhista e Nacional foi questionado. Naseleições de 2002, a Câmara dos Deputados neozelandesa chegou ao seumomento de maior fragmentação, apresentando um número efetivo departidos (N) igual a 4,6. Em 2005, a fragmentação voltou a diminuir e o valorde N baixou para 3,0.

6 O sistema misto na versão italiana distingue-se da matriz alemã pelo fato deque 75% dos eleitos são escolhidos nos distritos, restando apenas 25% dasvagas a serem preenchidas a partir das listas partidárias.

7 O novo sistema italiano traz como inovação um “bônus de maioria”, de modoa garantir que a coalizão mais votada não possua menos do que 340 (em 630)cadeiras na Câmara dos Deputados. Evidentemente, Berlusconi esperavaque sua coalizão chegasse em primeiro lugar. O sistema estabelece aindaque coalizões partidárias necessitam obter pelo menos 10% da votaçãonacional (votos válidos) para ter direito a assento no Legislativo. No caso departidos que concorram sozinhos, a exigência cai para 4%.

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ser percebidos como desvantajosos paraatores políticos dotados de poder de agen-da e veto. E ainda que estes não se lancemde imediato em busca de novas regras, trata-rão de introduzir o tema e iniciar o processode construção de uma coalizão reformista.Nesse caso, a possibilidade de que o proje-to reformador avance aumenta à medida quetais atores possuam preferências institucio-nais alternativas plenamente desenvolvidas(Tsebelis, 1998).

A percepção quanto à indesejabilidadedos resultados gerados por determinado sis-tema eleitoral pode estar restrita à elite polí-tica ou disseminada pela sociedade. Noprimeiro caso, trata-se de verificar se o incô-modo é grande o suficiente para que os ato-res arquem com o custo de construir umacoalizão. No segundo, é preciso verificar aocorrência ou não de um movimento de opi-nião pública capaz de sensibilizar o sistemarepresentativo.

Se o movimento de reforma eleitoral res-tringe-se ao universo da elite política, sendodébil a pressão advinda da sociedade, o graude liberdade da primeira aumenta. Nessecaso, sempre que a maioria articulada emtorno da proposta reformista se sentir emcondições de prever as suas conseqüênciasela procurará desenhar instituições que abeneficiem em detrimento de outros interes-ses.

8 Como veremos, é possível enquadrar

os casos da Argentina e do Uruguai nestasituação.

Diante de um movimento na opinião pú-blica forte o suficiente para exigir as mudan-ças, a margem de manobra dos representantesdiminui. Ainda que estes, temendo pela perdade legitimidade do sistema e pela sua pró-pria sobrevivência política, procurem assu-mir a dianteira do processo, o grau deincerteza quanto aos resultados e a possibi-lidade de perda de controle sobre a dinâmi-ca do jogo aumentam de modo considerável.Dos países aqui analisados, Venezuela eBolívia exemplificam essa possibilidade.

Finalmente, é possível também que, naausência de pressões sociais

9 e diante da

incapacidade dos atores políticos emconstruir uma coalizão estável, a agenda

reformista mantenha-se na pauta, mas asreformas não se viabilizem, ou se realizemde forma pontual, ou muito tardia. Aqui épossível se encaixar os casos do Brasil e doChile.

O processo de reforma em seispaíses sul-americanos

Argentina e Uruguai

Argentina e Uruguai realizaram uma re-forma constitucional nos anos de 1994 e1996, respectivamente. Nos dois casos, ainiciativa partiu do governo — Carlos Menem,no primeiro, e Julio Maria Sanguineti, no se-gundo. A Constituição argentina determina,tanto hoje como à época, que a necessidadeda reforma seja declarada por 2/3 de seusmembros, sendo então convocada umaConstituinte exclusiva. No Uruguai, a refor-ma deve ser aprovada por 2/3 da Assem-bléia e submetida a referendo.

O principal impulsionador da reformaargentina foi o presidente Carlos Menem,do Partido Justicialista (PJ), que buscavaintroduzir na Constituição o direito à reeleição.Ocorre que a União Cívica Radical (UCR)aliada a alguns partidos de centro-esquerdacontrolava mais de 1/3 da Câmara dos Depu-tados, o que tornava necessária a negociação.Menem tinha como forçá-la — podia convo-car um referendo não vinculatório do qualcertamente sairia vitorioso —, mas não comoevitá-la. Do outro lado, ainda que encontrassealguma resistência no interior de seu partido(UCR), Raúl Alfonsín interessava-se por ne-gociar algumas mudanças. O resultado foio chamado Pacto de Olivos, assinado pelosdois líderes no final de 1993.

8 De acordo com TSEBELIS (1998), quando atores políticos que projetaminstituições podem prever suas conseqüências para determinados grupos, atendência é que as instituições resultantes sejam de tipo redistributivo, ouseja, seu objetivo seria o de melhorar a situação de um grupo em detrimentode outro. Evidentemente, nunca é possível eliminar a incerteza e tanto osatores podem errar no seu exercício de projeção, como aquilo que se apresentavantajoso no curto prazo pode se tornar prejudicial mais adiante.

9 Em todos os países aqui analisados, o tema da reforma política encontra-sesempre presente na imprensa, nos meios acadêmicos, e nos círculos ondese discute política sem que, necessariamente, dê origem a um movimentode opinião pública capaz de sensibilizar o sistema político.

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No que se refere ao sistema eleitoral, asprincipais modificações na Constituição ar-gentina foram (Jones, 1997; Novarro, 2001;Anastasia; Melo; Santos, 2004):

• A reeleição passou a ser permitida, mas omandato presidencial foi reduzido de seispara quatro anos. Além disso, o Presidentepassou a ser eleito de forma direta e emsistema de dois turnos, desde que o primei-ro colocado não obtenha pelo menos 45%dos votos válidos, ou um mínimo de 40%,acrescido de uma vantagem de pelo menos10% sobre o segundo colocado. Até 1989, aeleição do chefe do Executivo Federal erafeita em um só turno por um Colégio Eleito-ral cujos eleitores eram escolhidos em 24distritos plurinominais (23 províncias mais acapital federal), sob as mesmas regras vigen-tes para a Câmara dos Deputados.

10

• No Senado, cada província passou a contarcom três senadores eleitos diretamente paramandatos de seis anos. As duas primeirascadeiras são reservadas ao partido que ob-tém a maioria dos votos, enquanto a terceiravaga cabe à primeira minoria. A cada doisanos, um terço das 24 províncias renovamseus representantes. Até então eram elei-tos dois senadores por província para ummandato de nove anos. A eleição ocorria deforma indireta nas assembléias provinciais.

• No contexto de um reforço à organizaçãofederativa do país, Buenos Aires adquiriumaior autonomia administrativa e passou ater seu prefeito eleito diretamente. Até en-tão o ocupante do cargo era indicado peloPresidente da República.

No Uruguai, a reforma da Constituição foipatrocinada pelos dois partidos tradicionais— Nacional e Colorado —

11 e apoiada por

uma pequena organização de centro-esquer-da, o Nuevo Espacio. Juntos, os três parti-dos controlavam pouco mais de 2/3 doCongresso. A motivação imediata da refor-ma era clara: dificultar o acesso da FrenteAmpla (FA) ao governo. A FA, originada deuma confluência de organizações de esquer-da, emergira como terceiro partido uruguaioem 1971 e, após o fim da ditadura militar(1973-1984), manteve crescimento ininter-rupto, chegando a pouco mais de 30% dosvotos em 1994. Na eleição presidencial da-quele ano, realizada em um só turno, a vo-tação de seu candidato, Tabaré Vázquez,ficou a menos de 2% do primeiro colorado,Sanguinetti, do partido Colorado. Sofrendoa oposição da FA, a reforma foi aprovada, esubmetida a referendo, venceu com 50,4%dos votos, pouco mais do que o exigido pelaConstituição (Lanzaro, 2001).

As principais modificações no sistemaeleitoral uruguaio foram as seguintes:

• Adoção da regra de dois turnos para a elei-ção presidencial;

• Estabelecimento de uma candidatura úni-ca por partido. Tradicionalmente o sistemapolítico uruguaio admitia que as facções par-tidárias lançassem candidaturas próprias paraa presidência da República, assim como lis-tas distintas para a Câmara e Senado. O totalde votos de cada partido na eleição presi-dencial era obtido pela soma de seus diver-sos candidatos, sendo vitorioso o partido cujosomatório fosse majoritário e declarado pre-sidente o candidato mais votado no interiordeste;

• Obrigatoriedade de que os candidatospresidenciais sejam escolhidos por meio deeleições internas abertas. As eleições pas-saram a ser realizadas simultaneamente emtodos os partidos no último domingo do mêsde abril anterior às eleições gerais;

• Modificação no calendário eleitoral, de for-ma que as eleições municipais passaram ase realizar seis meses após a presidencial.

12

10 Além disso, o Presidente passou a contar com poder de veto parcial e teveexplicitamente reconhecido o direito de editar decretos de urgência. Deacordo com a lei, o decreto deveria ser submetido em dez dias à consideraçãode uma comissão bicameral a quem caberia analisá-lo antes da apreciaçãopelo plenário. Passados mais de onze anos após a reforma essa comissão nãofoi criada (QUIROGA, 2005). Ao mesmo tempo, e atenuando parcialmente atransferência de poderes ao Executivo, a nova Constituição institui a figura doChefe de Gabinete, o qual é indicado pelo Presidente, mas pode ser removidopelo voto da maioria absoluta nas duas Casas Legislativas (JONES, 1997).

11 O regime uruguaio sempre se caracterizou pela força de seus dois partidos,criados ainda no século 19, e pelo seu caráter consociativo. O paísexperimentou períodos de governo colegiado, e após os anos 30 passou aser comum a participação da oposição no governo, qualquer que fosse opartido vencedor.

12 Ademais das modificações no sistema eleitoral, a reforma reforçou a posiçãodo Poder Executivo diante do Legislativo elevando para 3/5 o quórumnecessário para derrubada do veto (LANZARO, 2001; ANASTASIA; MELO;SANTOS, 2004).

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Nos dois países os objetivos de curtíssi-mo prazo dos atores que conduziram o pro-cesso de reforma foram alcançados. CarlosMenem se reelegeu presidente em 1995,mas as mudanças realizadas em 1994 am-pliaram o espaço institucional da oposição(Jones, 1997) e contribuíram para que pelaprimeira vez na história argentina um “tercei-ro partido” ultrapassasse uma das organiza-ções tradicionais. O candidato presidencialda FREPASO — uma organização de cen-tro-esquerda que contava entre seus funda-dores com dissidentes do PJ — superou avotação da UCR e praticamente igualou asua força na Câmara dos Deputados. Naseleições seguintes, em 1999, uma aliançaentre a UCR e a FREPASO imporia ao justicia-lismo sua maior derrota em todos os tem-pos (Anastasia; Melo; Santos, 2004).

A comparação entre os arranjos institu-cionais antes e depois de 1994 não deixamargem para dúvida. A reeleição, a introdu-ção do segundo turno e o fim do ColégioEleitoral nas eleições presidenciais, as elei-ções diretas para a prefeitura de Buenos Ai-res e para o Senado, bem como a ampliaçãodeste último, fizeram com que o sistemapolítico argentino ganhasse pontos em ter-mos de representatividade e accountability.Tais mudanças não foram suficientes, noentanto, para evitar que no calor da crise quese abateu sobre o país em 2001 e que levouà renúncia do presidente De la Rua, os ar-gentinos saíssem às ruas aos gritos de“que se van todos”. Ainda que a crise tenhasido resolvida por meios institucionais, nãoresta dúvida de que os acontecimentos aba-laram profundamente a legitimidade dospartidos e de líderes políticos nacionais.

13

No Uruguai, os partidos Colorado e Nacio-nal conseguiram impedir que Tabaré Vázquezchegasse à presidência da República em1999. O candidato da Frente Ampla venceuo primeiro turno, com 38,5% dos votos, masperdeu no segundo para o candidato dopartido Colorado, apoiado pelo Nacional,Jorge Batlle, por 54,1% a 45,9%. Na eleiçãoseguinte, contudo, a esquerda manteve suatrajetória ascendente, e Vázquez venceu aseleições no primeiro turno, obtendo ainda

maioria de 51,5% na Câmara e 56,7% noSenado.

Resultados eleitorais à parte, as mudan-ças no arranjo institucional também reforçama democracia uruguaia nos quesitos de repre-sentatividade e accountability. Com a intro-dução do segundo turno e da candidaturaúnica por partido deixou de existir a possi-bilidade da eleição de presidentes minori-tários no país. Nas eleições de 1989 e 1994,os presidentes uruguaios haviam sido elei-tos com 22,6% e 24,7% dos votos, respec-tivamente. Da mesma forma, a introduçãode eleições internas abertas para a escolhados candidatos presidenciais representouuma considerável oxigenação de um siste-ma político desde sempre acostumado à di-nâmica das listas fechadas. Trata-se demedida que contribui para o aumento do graude inclusividade do sistema político; de umavanço na direção apontada pela quarta con-dição da poliarquia de Dahl

14 (1989), na me-

dida em que aumenta o número de pessoascom algum poder de definição das alternati-vas colocadas à votação (Anastasia; Melo;Santos, 2004).

Venezuela e Bolívia

De acordo com Robert Dahl (1989), sobdeterminadas condições não há arranjo de-mocrático que consiga se estabilizar. Os ca-sos da Venezuela e, em menor grau, daBolívia são exemplos de situações em quea elite política, ao perceber a redução dograu de legitimidade do arranjo institucionalem tela e sentindo aumentar a pressão socialpor mudanças, assume a dianteira do pro-cesso de reformas, mas termina por perdero controle do processo. Os dois casos me-recem um pouco mais de atenção.

13 A crise de 2001 levou ao desmantelamento da FREPASO e ao encolhimentoexpressivo da UCR, que na eleição presidencial de 2003 conseguiu apenas3% dos votos, embora tenha mantido alguma força no Congresso. CarlosMenem também sentiu o gosto da crise: nas eleições de 2003 obteve poucomais de 20% dos votos, muito longe dos 49,7% de 1995.

14 De acordo com Dahl, entre as condições que permitem o avanço das poliarquiasrumo aos objetivos de soberania popular e igualdade política está a de que“qualquer membro que perceba um conjunto de alternativas, pelo menos umadas quais considera preferível a qualquer daquelas na ocasião apresentadas,pode inseri-la(s) entre as apresentadas à votação” (1989, p. 72).

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A estabilidade do presidencialismo vene-zuelano, após o pacto de Punto Fijo, em 1958,e até o final dos anos 80 guardava forte rela-ção com uma brutal concentração de poderno eixo Poder Executivo/sistema partidário.

15

Em regime de duopólio, Ação Democrática(AD) e Comitê de Organização Política Elei-toral Independente (COPEI) partilharam ocontrole do processo político formal e da or-ganização da sociedade civil, partilha defini-da com base nos resultados das eleiçõespresidenciais. O Presidente, além de porta-voz da nação, era também o árbitro destadisputa particular, cabendo-lhe as decisõesreferentes à partilha do poder — o que sedesdobrava na nomeação de ministros, go-vernadores, dirigentes de empresas estataise um sem-número de cargos na máquinaadministrativa. No arranjo institucional resul-tante, os poderes Legislativo e Judiciárioperdiam autonomia.

As condições vigentes na Venezuelacomeçaram a se modificar na década de80. A economia entrou em declínio, a infla-ção subiu e a renda caiu, frustrando as ex-pectativas da população quanto à melhoriado nível de vida. Ao mesmo tempo, comodecorrência de três décadas de estabilida-de e recursos abundantes, a sociedade ha-via alterado o seu perfil, ensejando o

surgimento de associações e de movimen-tos que não mais dependiam dos partidose não se mostravam dispostos a se subme-ter às suas redes. Finalmente, os casos decorrupção passaram a se tornar mais fre-qüentes, ao passo que aumentava a percep-ção, por parte da sociedade, de que osistema político, em especial os partidos,era incapaz de lidar com o problema (Anas-tasia; Melo; Santos, 2004).

Conforme relata Lucena (2003), as pres-sões da sociedade civil se faziam no senti-do de reivindicar “mais poder aos cidadãose menos aos partidos políticos”. A absten-ção, que nunca havia ultrapassado os 13%,fechou a década na casa dos 50%. E em1989 uma revolta popular contra medidasadotadas pelo presidente Carlos Andréz Pérez(AD) foi brutalmente reprimida pelo Exércitonas ruas de Caracas, gerando 350 mortos(Uchoa, 2003) e alargando o fosso entre asociedade civil e o sistema político. Pérez,que havia firmado um acordo com o FMI semconsultar sequer seu partido e pretendiaimplementar um pacote de reformas econô-micas de caráter neoliberal, não conseguiuterminar seu mandato: depois de enfrentarduas tentativas de golpe militar lideradaspelo então coronel Hugo Chávez, em feve-reiro e novembro de 1992, o Presidente foidestituído sob a acusação de malversaçãode dinheiro público.

16

A primeira resposta oficial ao desconten-tamento crescente veio ainda em 1984,quando o presidente Jaime Lusinchi criou aComissão Presidencial para a Reforma doEstado (COPRE), composta por intelectuaise acadêmicos sem filiação partidária, por umgrupo de notáveis e por representantes dospartidos. A partir de então, e até que o pro-cesso fosse interrompido com a vitória deHugo Chávez nas eleições de 1998, a elitepolítica venezuelana colocou em curso umasérie de modificações no sistema políticonacional. As principais mudanças realizadasaté 1998 foram:

• Estabelecimento, em 1988, de eleiçõesdiretas para governadores e prefeitos, simul-taneamente à escolha das Assembléias

15 Em 1958, um acordo firmado entre os três maiores partidos venezuelanospermitiu que a Venezuela superasse uma longa sucessão de governoscaudilhescos e/ou militares e inaugurasse um período de grande estabilidadedemocrática. O pacto de Punto Fijo, como ficou conhecido, além de ofereceruma série de garantias a empresários, sindicalistas, Igreja e militares, estabeleciaque os três partidos aceitariam os resultados das eleições, trabalhariam para aformação de governos de unidade nacional, nos quais haveria compartilhamentode cargos e responsabilidade e acionariam mecanismos de consulta sobre osassuntos mais importantes. Tal acordo implicou grandes concessões porparte do maior partido, a AD, e gerou dissidências à sua esquerda.

16 Sob o governo Pérez verifica-se a primeira fissura no duopólio partidário. Asegunda viria com Rafael Caldera, eleito logo após, por uma recém-criadaConvergência Nacional. Rompido com o COPEI, e tendo montado o primeirogoverno da história democrática da Venezuela sem a presença de nenhummembro dos dois grandes partidos (AMORIM NETO, 2002), Caldera apenasiria oferecer mais do mesmo (JÍMENEZ, 2003). Enfrentaria uma ameaça decolapso do sistema bancário, o que lhe fez declarar estado de emergênciaeconômica e assumir poderes de decreto antes que o Congresso os delegasse(McCOY, 1999); veria seu capital político ser rapidamente corroído e sua frágilbase parlamentar desconstituída ao adotar medidas antipopulares e apresentarum plano de reformas de corte liberal; e teria que, finalmente, recorrer à ADpara evitar a paralisia do governo. Preocupada com o agravamento da crise,mas ao mesmo tempo não disposta a conceder a Caldera mais do que onecessário para a sobrevivência, a AD empresta-lhe apoio apenas para reformasde curto fôlego (CORRALES, 2000; JÍMENEZ, 2003).

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Legislativas e Câmaras Municipais. Anterior-mente, os governos subnacionais eram no-meados pelo Presidente da República;

• Introdução, em 1989, de um sistema elei-toral misto, nos moldes do adotado na Ale-manha, em substituição ao sistema derepresentação proporcional de lista fechada.Diferentemente do sistema alemão, o cál-culo dos votos dados aos partidos passou aser feito nos estados e não no plano nacional,o que diminui a proporcionalidade dos resul-tados alcançados. Como forma de corrigirparcialmente tal distorção, foi mantida umasistemática de alocação de cadeiras compen-satórias;

• Modificação na composição do ConselhoSupremo Eleitoral, que também teve seunome alterado para Conselho Nacional Elei-toral, de forma a torná-lo independente dospartidos políticos. Até 1993, o CSE eracomposto por nove membros, sendo cin-co indicados pelos partidos com maior vota-ção nas últimas eleições e quatro cidadãossem vinculação partidária eleitos pelo Con-gresso;

17

• Alteração, em 1998, do calendário eleitoral,de forma que as eleições para o Congresso,governadores e Assembléias Legislativaspassaram a se realizar um mês antes da es-colha presidencial.

18

Como dito na introdução, o processo dereforma política na Venezuela, pelo menosem sua primeira fase, redundou em absolu-to fracasso. Condutores do processo, os doisgrandes partidos (AD e COPEI) pretendiamreassentar as bases de legitimidade do sis-tema. Para tanto tinham que torná-lo maisaberto e competitivo. A estratégia reformistavisava, em especial, diminuir a centralizaçãopolítica no plano federal e reduzir o controledos partidos sobre o processo eleitoral elegislativo. A expectativa era de que o con-junto das iniciativas adotadas apontasse paraum cenário no qual: a) os recursos de patro-nagem à disposição do Presidente e dos lí-deres partidários diminuiriam com aintrodução das eleições diretas nos planossubnacionais; b) estas mesmas eleições ge-rariam a abertura de novos espaços para a

competição política possibilitando, em con-seqüência, a emergência de líderes nos pla-nos regionais e abrindo espaço para quepequenos (ou novos) partidos crescessempela “periferia” do sistema, modificando, emmédio prazo, o seu funcionamento; e, final-mente, d) os representantes eleitos nos dis-tritos passariam a ter incentivos no sentidode patrocinar interesses locais ou, pelo me-nos, articulá-los àqueles definidos e persegui-dos pelos líderes partidários no Congresso. Odesafio, para os condutores do processoreformista, estava em conciliar essa tendên-cia à dispersão de poderes com a manuten-ção de sua proeminência no interior dosistema político (Kornblith; Levine, 1995;Crisp, 1997; Lucena, 2003).

A dinâmica da reforma seria, no entanto,superada pela da crise, que rapidamente as-sumiria um caráter sistêmico, atropelandoas intenções dos reformadores e desmon-tando o regime de Punto Fijo antes que aestratégia reformista lograsse algum resul-tado. No contexto de uma crise institucionalda democracia e do Estado, de um esgota-mento das identidades conectadas com oregime de partidos e de um contundenterepúdio ao antigo regime, Hugo Chávez ven-ceu a eleição presidencial de 1998 com 56%dos votos válidos, sem que AD e COPEI con-seguissem apresentar candidaturas compe-titivas.

19

Uma vez no governo, Chávez deu origema outro processo de reformas, muito maisradical do que o anterior e em direção opos-ta, com o objetivo de fundar uma nova repú-blica no país. Aproveitando-se de seu enormeprestígio, da fragilidade e desarticulaçãodaqueles que poderiam fazer-lhe oposição,o presidente eleito conduziu a Venezuela asucessivas escolhas eleitorais, por meio dasquais impôs seu projeto.

17 Segundo JÍMENEZ (2003) o controle da AD e do COPEI ia além do CSE umavez que eram os partidos, e não a Justiça Eleitoral, os responsáveis porrecrutar os membros das mesas escrutinadoras.

18 As eleições subnacionais nem sempre coincidem com as nacionais, uma vezque a duração dos mandatos é distinta. Governadores e prefeitos são eleitospor três anos.

19 AD e COPEI, depois de conseguirem 30% e 13% das cadeiras nas eleiçõespara o Congresso, realizadas um mês antes das presidenciais, desistiram desuas respectivas candidaturas e passaram a apoiar a candidatura do empresárioSalas Roemer, do então criado Projeto Venezuela.

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Do ponto de vista das regras do jogo, osucesso de Chávez na condução de seu pro-jeto reformista foi facilitado pela forma comofoi convocada e posteriormente eleita aAssembléia Nacional Constituinte em 1999.De acordo com a Constituição então vigen-te, reformas constitucionais só poderiam serrealizadas por meio de emendas aprovadaspor 2/3 do Congresso. Em evidente ato deruptura institucional (Amorim Neto, 2002),Chávez convocou por decreto um referendosobre a convocação da ANC. Sob intensapressão política, a Suprema Corte Venezue-lana aceitou o referendo convocatório, masposicionou-se contrariamente a que os po-deres da ANC fossem além de escrever anova Constituição (McCoy, 1999). Por outrolado, correspondendo ao exacerbado majori-tarismo que passaria a caracterizar a demo-cracia “bolivariana”, os 131 membros da ANCforam eleitos por pluralidade, ou seja, umpor cada distrito e em maioria simples.

Majoritário em quase todos os distritos, ochavismo obteve 94% das cadeiras, ficandocom as mãos livres para fazer a Constituiçãoque quisesse sem qualquer interferência daoposição.

20

No que diz respeito ao sistema eleitoral,as principais modificações introduzidas porChávez foram:

• Dissolução do Senado;

• Redução do número de membros do Con-gresso Nacional;

• Elevação da duração do mandato presiden-cial de cinco para seis anos;

• Introdução da reeleição;

• Instituição da revogabilidade de todos oscargos eleitos, mediante convocação de re-ferendo por pelo menos 20% dos eleitoresda circunscrição que o elegeu, depois detranscorrida metade de seu mandato.

O sucesso de Chávez na condução deseu projeto político implicou um regime mar-cado por um grau de concentração de po-deres ainda maior do que o anterior. Se opoder político na Venezuela até 1998 encon-trava-se concentrado no eixo Executivo/AD/COPEI, nos dias de hoje estes últimos já nãocontam — tampouco se pode dizer queexista um sistema partidário minimamenteestruturado —, ao passo que o primeiroadquiriu maiores poderes de agenda e vetoem face de um Legislativo tão pouco robus-to quanto antes.

21

Na Bolívia, o processo de reforma políti-ca teve seu momento decisivo em 1994. Opaís havia retomado a vida democrática em1982, após uma incrível sucessão de gol-pes militares.

22 Na década seguinte, após o

fracasso do primeiro governo democrático— uma coalizão de centro-esquerda que ter-minou por levar o país a uma hiperinflação— tem início uma série de governos basea-dos em pactos realizados entre os cincomaiores partidos — inicialmente MovimentoNacionalista Revolucionário (MNR), Ação De-mocrática Nacionalista (ADN) e Movimentode Esquerda Revolucionária (MIR), aos quaisse juntaram a União Cívica Solidariedade(UCS) e o Consciência de Pátria (CONDEPA)

20 O primeiro referendo foi realizado em 25 de abril de 1999 e autorizou aconvocação da ANC, concordando em conceder-lhe poderes para, inclusive,dissolver o Congresso, a Suprema Corte de Justiça, os governadores e asAssembléias Legislativas. Menos de 38% do eleitorado participaram, e 88%concordaram com os termos propostos por Chávez. As eleições para a ANCse realizaram em 25 de julho do mesmo ano. Com uma abstenção de 54%do eleitorado, Chávez obteve vitória ainda mais retumbante: dos 131deputados eleitos, 123 pertenciam à sua coligação. Em 25 de dezembro de1999, um outro referendo aprovou a nova Constituição. Dos que foram àsurnas — a abstenção foi de 56% — 71,8% disseram sim. Em janeiro de 2000o Congresso Nacional foi dissolvido e eleições gerais foram convocadas parajunho (presidente, Congresso, governadores e Assembléias Legislativas), eoutubro (prefeitos) daquele ano. Concluindo a maratona eleitoral, Chávez foireeleito em 2000 — agora para um mandato de seis anos com direito àreeleição — com 59,7% dos votos. A abstenção ficou em 44% (JÍMENEZ,2003; AMORIM NETO, 2002; UCHOA, 2003; McCOY, 1999).

21 No que se refere aos poderes legislativos do Presidente, o contraste entreos dois regimes é nítido. No regime anterior, os poderes do Presidente eramlimitados a um veto de tipo suspensivo, revogável por maioria simples dospresentes, e ao poder de decreto delegado, a chamada Ley Habilitante (CAREY;SHUGART, 1992; CRISP, 1997). No regime atual, além de manter o decretodelegado, o Presidente: a) pode fazer “comentários”, vetar total ou parcialmenteuma lei aprovada pelo Legislativo — exigindo-se maioria absoluta dos presentespara a derrubada; b) possui exclusividade de iniciativa legislativa nas matériasreferentes a orçamento, endividamento público, organização da administraçãopública e do Conselho de Ministros; c) pode convocar sessões extraordináriasda Assembléia; d) divide com o Legislativo a autoridade para convocação dereferendo; e) pode dissolver a Assembléia Nacional, e convocar eleições em60 dias, se houver remoção de três vice-presidentes executivos no mesmoperíodo constitucional em conseqüência de moções de censura (TSEBELIS;ALEMÁN, 2002; ANASTASIA; MELO; SANTOS, 2004).

22 Em 1978, ainda sob governo do General Hugo Banzer, as liberdadesdemocráticas foram restabelecidas e realizadas eleições gerais. A vitória deuma frente de esquerda, contudo, ocasionou novo golpe de Estado. Até1982, quando assume Hernán Siles Suazo, em uma coalizão liderada peloMNR, nada menos do que oito generais estiveram à frente do país (GAMARRA,1997; ARANIBAR, 2005).

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(Gamarra, 1997; Mayorga, 2001).23

A dinâ-mica moderada da competição entre ospartidos permitiu que o processo de demo-cratização fosse conduzido paralelamente àintrodução de drásticas medidas de austeri-dade econômica.

24 Mas em que pese a re-

lativa estabilidade política dos primeiros dezanos, a política econômica neoliberal não semostrou capaz de evitar o declínio das con-dições de vida da grande maioria da popu-lação. Como resultado, em 1995, o governode Gonzalo Sánchez de Lozada (MNR) —eleito em 1993 — teve que enfrentar umasérie de conflitos envolvendo trabalhadores,estudantes, professores, plantadores decoca e um movimento de caráter separatista.Durante 180 dias o país esteve sob estadode sítio (Gamarra, 1997).

O processo de reformas teve início antesda eclosão dos protestos. Em 1993, o go-verno fez aprovar no Congresso a Ley deDeclaratória de Necesidad de Reforma dela Constitución Política del Estado.

25 Em 1994,

foi apresentado um amplo e ambicioso pro-jeto de modernização, o Plan de Todos, queincluía em sua “agenda política” uma sériede mudanças no sistema político e eleitoral.As modificações efetivamente realizadas nosistema eleitoral foram:

• Determinação de que o segundo turno daseleições para a presidência da República, quena Bolívia é realizado no Congresso sempreque nenhum candidato alcança a maioriaabsoluta dos votos, se realizasse entre osdois primeiros colocados e não entre os trêsprimeiros como anteriormente;

• Ampliação do mandato presidencial dequatro para cinco anos;

• Introdução de eleições diretas para pre-feito, com o segundo turno sendo realizado,se necessário, nas Câmaras Municipais. Osmandatos foram ampliados para cinco anos,sem que, no entanto, as eleições nacionaise subnacionais coincidissem;

• Introdução do sistema eleitoral misto emsubstituição à representação proporcional delista fechada. O novo sistema só seria defini-tivamente regulamentado em 1996, entran-do em vigor nas eleições de 1997;

• Estabelecimento de uma cláusula nacio-nal de barreira de 3% nas eleições para aCâmara dos Deputados.

Percebendo o agravamento das tensõessociais, os proponentes das reformas pre-tendiam: a) aumentar a representatividadedo sistema político através da introdução dedeputados eleitos em distritos uninominais;

26

b) reduzir a fragmentação partidária por meioda cláusula de barreira; c) descentralizar oprocesso político e d) diminuir a possibilidadede impasses por ocasião do segundo turnodas eleições presidenciais (Jost, 1998).

Tal como na Venezuela, embora de ma-neira menos “espetacular”, as tensões acu-muladas ao longo dos anos 80 e 90 fizeramcom que o multipartidarismo moderado bo-liviano entrasse em crise levando de roldãoa estabilidade política e o otimismo dosreformadores. Sánchez de Lozada havia sidoeleito pela coalizão MNR/MRTK.

27 A aliança

com o MRTK (Movimento RevolucionárioTupac Katari) permitiu que pela primeira vezum líder indígena, Víctor Hugo Cárdenas,assumisse a vice-presidência do país e re-presentou uma tentativa de Lozada e do MNRde recuperar o prestígio perdido entre asmassas pobres e reatar o elo com a “Bolíviaprofunda” (Arzabe, 1998; Gamarra, 1997).A aliança MNR/MRTK gerou um governoque, ao mesmo tempo, mantinha a políticaeconômica liberalizante e assumia comoobjetivo estabelecer uma democracia “autén-tica, real y participativa” em contraposiçãoà “democracia formal” (Jost, 1998, p. 452).

23 MNR e MIR poderiam ser, nos anos 80, classificados como organizações decentro-esquerda. A conservadora ADN foi criada pelo General Hugo Banzer.UCS e CONDEPA surgiram como organizações de caráter populista, articuladasem torno de prefeitos eleitos em algumas cidades importantes na Bolívia.

24 Em 1985, o governo de Paz Estensoro (MNR), com o apoio da ADN, introduza Nova Política Econômica, que inicia o processo de liberalização da economiaboliviana (GAMARRA, 1997). Essa política representava o reverso da estratégiade desenvolvimento implementada pelo próprio MNR nos anos 50.

25 A Constituição boliviana é, dos casos aqui analisados, a que menos obstáculoscoloca à sua reforma: o processo de emendamento exige apenas aconcordância de 2/3 dos membros presentes no Congresso (ANASTASIA;MELO; SANTOS, 2004).

26 Esta era a intenção dos reformistas, o que não significa que seja possívelassumir que a introdução de distritos uninominais seja, de fato, conducentea um aumento do grau de representatividade do sistema político.

27 Além do MRTK, Lozada incluiu em seu governo um pequeno partido deesquerda, o Movimento Bolívia Livre (MBL) e a UCS.

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Ao final do governo, no entanto, as esperan-ças da população indígena e camponesa sefrustrariam.

Em 1997 Hugo Banzer venceria as elei-ções presidenciais e conduziria um governoconservador amparado por uma coalizão tãoampliada quanto inconsistente (Mayorga,2001). Diante da incapacidade da esquer-da, ou pelo menos o que havia sobrado datradicional esquerda boliviana representadapelo MNR, MIR e MBL, de expressar mini-mamente as reivindicações populares, aBolívia veria surgir novos atores sociais enovas formas de protestos, envolvendo ospovos indígenas e os plantadores de coca,que passariam a questionar de forma radi-cal a ordem estatal e colocariam em xequea política pactuada pelos grandes partidos(Anastasia; Melo; Santos, 2004).

Em 2002, o sistema partidário bolivianoemergiu das urnas drasticamente modifica-do (Ballivián, 2003). Três dos cinco grandespartidos — UCS, CONDEPA e ADN — pra-ticamente desapareceram do Congresso Na-cional. Ganharam representação o Movimentoao Socialismo (MAS), cujo candidato presi-dencial (Evo Morales) chegou em segundolugar no primeiro turno, e a Nova Força Revo-lucionária (NFR). Sánchez de Lozada (MNR)foi novamente eleito, renunciando um anodepois em função de um levante popular.Finalmente, em 2005, Evo Morales vence,no primeiro turno, as eleições para a presi-dência da Bolívia. No Congresso, o MIR per-deu toda a sua representação e o MNRconquistou apenas 5,3% das cadeiras. Osistema partidário pós-democratização ha-via se desconstituído, e a Bolívia adentrariaum outro período de sua história.

Chile e Brasil

Entre os países aqui analisados, Brasil eChile são aqueles em que a agenda de re-forma política apresenta mais dificuldadespara ser implementada. Podemos iniciar peloBrasil, onde o tema mantém-se na pautadesde o fim dos trabalhos da AssembléiaNacional Constituinte. Grosso modo pode-se distinguir entre duas agendas de refor-ma. A primeira, e mais ambiciosa, advogaa introdução do parlamentarismo, de um sis-tema distrital misto com cláusula de barrei-ra de 5% para a Câmara dos Deputados e dovoto facultativo. Tal agenda parte do diag-nóstico de que o sistema político brasileiropadece de crônica instabilidade política,advinda da combinação entre presidencia-lismo e multipartidarismo.

28

Uma segunda agenda, centrando a aten-ção no aperfeiçoamento da representaçãoproporcional no Brasil, propõe: a) corrigir adesproporcionalidade gerada pelo atual cri-tério de distribuição das cadeiras na Câma-ra dos Deputados entre os estados; b)instituir algum mecanismo de fidelidade par-tidária ou que iniba a troca de legenda entreuma eleição e outra; c) proibir as coligaçõespara as eleições proporcionais; d) substituiro sistema de lista aberta por um outro, delistas preordenadas, fechadas ou flexíveis;e) suprimir o preceito que define o quocien-te eleitoral como cláusula de exclusão (Tava-res, 1998; Lima Júnior, 1997; Melo, 2006).

29

Nenhuma das agendas logrou grandesucesso. A proposta de parlamentarismo foiderrotada no plebiscito de 1993. O sistemadistrital misto esteve em discussão na fra-cassada Revisão Constitucional de 1994.Durante o primeiro governo FHC, a Comis-são de Estudos para a Reforma da Legisla-ção Eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral(TSE) e o Relatório Final da “Comissão Tem-porária Interna encarregada de estudar a re-forma político-partidária”, de autoria doSenador Sérgio Machado (1997), voltaram aotema, sem sucesso. Além disso, desde 1982,em todas as legislaturas, parlamentaresapresentaram propostas contendo alguma

28 No dizer de LESSA (1997), trata-se de uma agenda marcada “por uma teoriada representação mínima”. De acordo com SANTOS (1998), trata-se pura esimplesmente de uma tentativa de retomar o controle oligárquico sobre acompetição política no Brasil, controle esse que estaria, segundo o autor,ameaçado na última década pelo acentuado crescimento numérico doeleitorado e do público atento.

29 Além dos autores citados, vale mencionar os excelentes trabalhos deNICOLAU (2003 e 2006). Neles, o autor procura, de maneira parcimoniosa,discutir os aspectos positivos e negativos das propostas de reforma do sistemade representação proporcional no Brasil.

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forma de sistema misto (Nicolau, 1999). Noque se refere à primeira agenda menciona-da, o único avanço registrado foi a aprova-ção da Lei 9.096, de 1995, que estabelece aobtenção de 5% dos votos válidos para aCâmara dos Deputados — distribuídos em,pelo menos, um terço dos estados, com ummínimo de dois por cento do total em cadaum deles — como condição para o funcio-namento parlamentar, em qualquer CasaLegislativa, e critério para acesso ao FundoPartidário e à propaganda gratuita no rádio ena TV. A cláusula irá vigorar a partir das elei-ções de 2006.

Durante o governo Lula, a Câmara dosDeputados instituiu a Comissão Especial daReforma Política. Essa Comissão, após rea-lizar 26 reuniões, sete audiências públicas efazer um vasto levantamento de todas as pro-postas existentes no Congresso, encami-nhou em dezembro de 2003, à Comissãode Constituição e Justiça, o Projeto de Lei2.679, propondo: a) a adoção do sistemade listas fechadas; b) a proibição de coliga-ções para as eleições proporcionais; c) acriação de federações partidárias com dura-ção de pelo menos três anos após a posse;d) a instituição de uma cláusula de barreirade 2% dos votos válidos; e) o financiamentopúblico exclusivo das campanhas eleitorais(Soares; Rennó, 2006). Em agosto de 2005,a proposta estava pronta para ser incluídana ordem do dia e votada, o que acabounão ocorrendo.

Dezoito anos após a nova Constituição,foram as seguintes as modificações no sis-tema eleitoral brasileiro:

• Redução, por ocasião da Revisão Constitu-cional de 1993, do mandato presidencial decinco para quatro anos;

• Exclusão dos votos brancos do cálculo doquociente eleitoral (o que provocava sua ele-vação artificial);

• Instituição, em 1996, da reeleição para oscargos executivos;

• Extinção, em 1998, da regra que definia osdeputados como candidatos natos (indepen-dentemente da vontade das convenções

partidárias) às eleições imediatamentesubseqüentes;

• Aprovação, em 2006, do fim da verticalizaçãoobrigatória das coligações partidárias;

• Aprovação, em 2006, de regras mais rígi-das sobre o financiamento das campanhaseleitorais, as quais determinam: a) o cancela-mento de registro de candidatura ou cassa-ção de mandato no caso de uso comprovadode “caixa 2”; b) a divulgação de dois relatóriosparciais de arrecadação e gastos por partedos candidatos durante a campanha, semnecessidade de revelar doadores; c) a proi-bição de que entidades beneficentes e reli-giosas, entidades esportivas e organizaçõesnão-governamentais que recebam recursospúblicos, organizações da sociedade civil deinteresse público, façam doações de cam-panha; d) a proibição de showmícios e distri-buição de brindes pelos candidatos.

Como se percebe, são modificaçõespontuais, nada que permita dizer que qual-quer uma das duas agendas anteriormentemencionadas esteja sendo efetivada. Emdois casos, nos votos brancos e no quoci-ente eleitoral, foram realizados aperfeiçoa-mentos incrementais na legislação. O fimda verticalização significou uma reação doCongresso a uma interpretação do TSE noque concerne às coligações para as eleiçõesmajoritárias.

30 A redução do mandato presi-

dencial teve como objetivo principal eliminara figura da eleição solteira, fazendo coincidiras eleições estaduais e a nacional. Somenteas modificações aprovadas nos mecanis-mos de financiamento eleitoral, em 2006,guardam relação com momentos de crisepolítica e levam em conta os humores da

30 A verticalização foi instituída pelo TSE para as eleições de 2002 por meio deuma interpretação da legislação já existente. Determinava que as coligaçõesestabelecidas para as eleições estaduais fossem coerentes com aquelasdefinidas para a disputa da presidência da República. Longe de garantircoerência às coligações, a verticalização apresentou duas conseqüências nãoprevistas: a) a proliferação de alianças informais nos estados entre partidos,ou setores de partidos, que no plano nacional concorriam em coligaçõesdiversas e, b) a desistência, por parte de alguns partidos, de participarformalmente da disputa presidencial — lançando candidato ou coligando-se— como forma de manter a liberdade para as coligações estaduais. Em 2006,o Congresso aprovou legislação específica sobre o assunto, liberando ascoligações a partir de 2008.

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opinião pública.31

E em apenas uma oca-sião, a introdução da reeleição, o Poder Exe-cutivo mobilizou sua maioria no Congressocom o objetivo de alterar a legislação, nessecaso, a seu favor.

Esta última observação remete a um pon-to levantado por Soares e Rennó (2006). Se-gundo esses autores, a discussão sobrereforma política no Brasil faz parte da agendado Poder Legislativo, geralmente tem origemem iniciativas individuais dos congressistas,e raramente chega ao plenário. Ora, comose sabe (Figueiredo; Limongi, 1999), o Exe-cutivo brasileiro é quem apresenta cerca de85% das proposições legislativas aprovadasno Congresso Nacional. Isso certamente aju-da a entender por que a reforma política nopaís não vai muito além dos debates, noCongresso e na academia, e dos noticiáriosna imprensa.

O último país a ser analisado, o Chile, éo caso de maior estabilidade institucionaldentre os seis e, certamente, em toda aAmérica do Sul. De 1989, ano que marca aeleição do primeiro presidente após a dita-dura do General Pinochet, até 2005, o siste-ma eleitoral chileno havia passado porapenas duas modificações dignas de regis-tro, ambas por ocasião do processo de rede-mocratização: o aumento do número desenadores eleitos e a diminuição do man-dato presidencial de oito para seis anos.

Ao longo de todo esse período, uma coa-lizão de centro-esquerda, a Concertación porla Democracia, venceu as eleições presiden-ciais, derrotando a coalizão conservadora,mas nunca conseguiu maioria suficiente nasduas Casas Legislativas — 3/5 dos mem-bros — para modificar vários dos artigos daConstituição imposta por Pinochet em 1980.

Entre os maiores problemas merecem des-taque: os excessivos poderes do Conselhode Segurança Nacional, a inamovibilidadedos comandantes das Forças Armadas, apresença de nove membros não eleitos noSenado e o sistema eleitoral baseado emdistritos binominais.

32

Parte da explicação para a longevidadeda constituição ditatorial está na força eleito-ral da direita chilena, cujos dois maiorespartidos — União Democrática Independente(UDI) e Renovação Nacional (RN) — sempreobtiveram votação suficiente para atuar comoatores com poder de veto sobre qualquermudança constitucional proposta pelos go-vernos da Concertación. Particularmente,como assinala Garretón (2001), a iniciativado veto sempre coube à UDI, extremamentefiel ao legado pinochetista e capaz de man-ter sob sua influência a RN.

A outra parte da explicação, no entanto,reside na própria herança constitucional daditadura. De um lado, a presença dos novesenadores não eleitos, entre eles membrosdesignados pelas Forças Armadas e pelosCarabineiros, sempre favoreceu a bancadaconservadora. De outro, o sistema eleitoralsempre beneficiou a força minoritária, nocaso a coalizão direitista. É o caso de expli-car melhor. Nas eleições chilenas, tanto paraa Câmara como para o Senado, são eleitosdois representantes por distrito — sendo 60distritos para a primeira casa e 19 para asegunda. As duas cadeiras são destinadaspara o partido ou coalizão majoritária ape-nas quando esta obtém mais do que o do-bro de votos da segunda colocada. Quandoesta última obtém pelo menos 1/3 + 1 dosvotos, sua representação iguala-se à da coa-lizão majoritária. Isso terminou por garantir àcoalizão conservadora, na maioria das vezes,a segunda colocada nos distritos, mais ca-deiras do que votos no Congresso chileno.

Apenas recentemente, em setembro de2005, após um longo processo de negocia-ção, os resquícios autoritários puderam serretirados da Constituição. Ainda que a coali-zão conservadora tivesse condições de con-tinuar a exercer seu poder de veto, optou por

31 Embora as mudanças tenham sido aprovadas pelo Congresso a menos deum ano das eleições de 2006, o TSE decidiu por sua aplicabilidade imediata.Segundo declaração do ministro Marco Aurélio de Mello ao jornal Estado deSão Paulo do dia 26 de maio de 2006, “o anseio popular por mudanças pesouna decisão”, referindo-se às expectativas de mudança geradas por ocasião doescândalo do “mensalão”. Outras modificações devem vigorar a partir de2008: a) definição, a cada ano, de um limite dos gastos de campanha paracada cargo em disputa; b) proibição de divulgação de pesquisas nos 15 diasque antecedem as eleições; c) definição do tempo de televisão de cadapartido com base na bancada eleita e não na existente por ocasião da posse.

32 Nos anos 1989 e 1991, relata SIAVELIS (2001), algumas reformas limitaramo alcance do poder presidencial, como a eliminação da capacidade doPresidente de dissolver a Câmara dos Deputados.

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não fazê-lo, certamente tentando se desven-cilhar do passado e entrar na disputa presi-dencial de 2006 em melhores condições. Foidevolvida ao governo civil, através do Presi-dente da República, a prerrogativa de con-vocar o Conselho de Segurança Nacional ede nomear, bem como remover, os coman-dantes das Forças Armadas e dos Carabi-neiros. Foi ainda ampliada a composição doTribunal Constitucional, órgão encarregadode resolver os conflitos entre os poderes deEstado, que deixou de contar com a pre-sença do representante das Forças Arma-das. Quanto ao sistema eleitoral, não houveacordo para que fosse modificado o siste-ma eleitoral assentado em distritos binomi-nais. Dessa forma puderam ser realizadasduas alterações:

• A redução do mandato presidencial de seispara quatro anos;

• A extinção das vagas reservadas aos sena-dores designados ou vitalícios.

33

Conclusão

Reformas eleitorais costumam ser fenô-menos complexos. Qualquer sistema, apósrazoável tempo de funcionamento e mesmoque apresente problemas, tem a seu favor ainércia. Os atores políticos conhecem suaestrutura de escolha, têm à sua disposiçãoestratégias de ação conhecidas e podem seantecipar às ações dos adversários. A alte-ração, ainda que temporária, desse quadroé sempre motivo de preocupação e, muitasvezes, razão suficiente para bloquear proces-sos reformistas, por mais bem-intenciona-dos que estes sejam. Por outro lado, sejaporque as experiências de reforma deste tiposão muito recentes, seja porque o desem-penho de um sistema político é invariavel-mente multideterminado, é difícil prever comsegurança quais serão os efeitos da mudan-ça proposta, ou seja, não há como ter certezade que os objetivos iniciais dos reformado-res serão alcançados.

Desse modo, é possível prever que pro-cessos reformistas, na ausência de pressões

advindas da sociedade, têm poucas chan-ces de serem iniciados até que: a) os resul-tados gerados pelo sistema vigente passema desagradar a um número expressivo deatores dotados de poder de agenda e, b) asvantagens de se optar por novas regras oupor um novo sistema estejam claras para opartido ou coalizão majoritária.

Na Argentina e no Uruguai, a reforma elei-toral teve início por decisão de parcela daelite política, sem que houvesse outro cons-trangimento que não aquele estabelecido emlei, ou seja, os respectivos quóruns neces-sários para a mudança constitucional. NaArgentina, a motivação inicial das reformasfoi a disposição do presidente Carlos Menemde conseguir o direito à reeleição. Para su-perar o constrangimento institucional, noentanto, foi necessária a negociação com oprincipal partido de oposição. Dessa forma,o processo assumiu as características deum jogo de soma positiva. As mudançasforam aprovadas, a situação conseguiu seuobjetivo imediato — a reeleição do Presidente—, a oposição ampliou o seu espaço institu-cional, e o sistema político tornou-se maisrepresentativo e accountable. Nada dissoimpediu que poucos anos depois a socie-dade argentina se levantasse furiosa contratodos os seus representantes, e o país mer-gulhasse em profunda crise.

No Uruguai, os partidos Colorado e Nacio-nal, pressionados pelo crescimento da FrenteAmpla, possuíam a maioria necessária paradar início ao processo de reforma e trataramde fazê-lo. Mas as mudanças não foramcapazes de modificar, e nem seria de seesperar que o fossem, a tendência de reali-nhamento eleitoral então em curso no país.A Frente Ampla continuou a avançar no eleito-rado até então cativo dos partidos tradicio-nais. Não venceu as eleições que seseguiram à reforma constitucional de 1994,mas o fez de forma inapelável no pleitoseguinte. Também nesse caso, como naArgentina, o processo reformista acabou ge-rando efeitos positivos para o sistema derepresentação no país.

33 Eram considerados senadores vitalícios os ex-presidentes a partir do GeneralPinochet.

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Na presença de pressões sociais queexpressam uma perda de legitimidade dosistema político, os processos de reformasão cercados de maior grau de incerteza.Mesmo que se estabeleça uma coalizão re-formista, seus membros terão que agir sobcircunstâncias que não escolheram, serãoforçados a abandonar ou modificar regrasque lhes eram favoráveis e obrigados a apos-tar em outras, cujas vantagens podem nãolhes ser muito claras.

Venezuela, de modo mais dramático, eBolívia ilustram essa possibilidade. Ali os re-formadores foram simplesmente atropela-dos pela evolução do processo político, e asreformas iniciais fracassaram na sua inten-ção de recuperar a legitimidade dos parti-dos e do regime político. No caso daVenezuela é possível sustentar que parte daexplicação residiu no caráter essencialmen-te endógeno do processo reformista. Desdeo início, a Comissão encarregada de condu-zir os trabalhos era formalmente responsivaapenas ao Presidente da República. Suaspropostas tinham que ser aceitas pelos doispartidos que controlavam o Congresso econtavam com recursos suficientes paraminimizar os riscos de quebra de seu duo-pólio. Embora pudesse ser evidente parapolíticos dotados de uma visão mais amplaque, em termos de estabilidade, os benefí-cios gerados pelo sistema já não eram osmesmos, certamente, não havia consensoquanto à parcela de poder a ser cedida equais seriam as conseqüências disso(Anastasia; Melo; Santos, 2004). Isso ajudaa explicar por que, ao longo de todo o perío-do em que as modificações foram sendo

debatidas e implementadas, as organizaçõesindependentes da sociedade civil tiveram seuacesso ao processo sistematicamente ne-gado (Lucena, 2002). Havia uma enorme dis-tância entre a expectativa prevalecente nasociedade e a ação dos reformistas.

Sob Chávez, esse vazio seria parcial-mente preenchido. O sucesso do chavismona condução de seu projeto de reformas ex-plica-se não apenas pelo atropelo e manipu-lação das regras que lhe possibilitaramfolgada maioria na Constituinte e, posterior-mente, no Congresso. É preciso levar emconta a capacidade do presidente venezue-lano em vincular sua plataforma política aosentimento amplamente difundido de rup-tura com o antigo regime e de um novo co-meço para o país.

Assentado nesta base, Chávez conduziuuma reorganização institucional e concentroupoderes em suas mãos. Os procedimentosadotados para a chamada refundação darepública venezuelana encontraram respal-do em expressiva parcela da sociedade.Como se sabe (PNUD, 2004), a adesão àdemocracia, em que se pese a inexistênciade regimes não regidos pela competiçãoeleitoral, está longe de ser universal na Amé-rica Latina. Mesmo entre os que se decla-ram adeptos do regime democrático, sãomuitos os que se deixam seduzir pela idéiade governos “fortes”, ou seja, dispostos eem condições de, sempre que necessário,ignorar partidos, Congresso e outros “obstá-culos” a “efetiva resolução” dos problemasnacionais.

34

Em médio prazo é possível prever pro-blemas para a Venezuela em decorrência daestratégia levada a cabo por Hugo Chávez.Os traços mais marcantes do atual arranjoinstitucional venezuelano são o exacerbadomajoritarismo e o plebiscitarismo (Weber,1997). Um regime político em que os freiosà vontade da maioria, mesmo da mais exí-gua, não existem e que se apóia na relaçãodireta entre o líder carismático e as mas-sas.

35 Um processo de concentração de

poderes que, longe de conferir estabilidade,mantém o país em uma dinâmica marcada

34 De acordo com o PNUD, 43% dos latino-americanos expressam convicçãodemocrática, 26,5% possuem tendência claramente não-democrática e 30,5%são “ambivalentes”, ou seja, “estão, a priori, de acordo com a democracia,mas consideram válido tomar decisões antidemocráticas na gestão de governose, na sua opinião, as circunstâncias assim exigirem” (2004, p. 142).

35 No que se refere à exigüidade das maiorias, cabe destacar o elevado grau deabstenção que tem caracterizado o processo eleitoral venezuelano nos últimosanos. Nas eleições legislativas de 2005, boicotadas pela oposição, o índicechegou a 75%. A relação de Chávez com as massas é bem exemplificada naconstituição dos Círculos Bolivarianos. Definidas como “uma forma deorganização social que materializa o princípio da democracia participativa”, taisorganizações seriam “a base do poder popular”. Mas por trás da fachadacívica, esconde-se o braço armado do chavismo, uma tropa de choquemobilizável para a defesa do Presidente e a hostilização da oposição nasmanifestações de rua. (MAIGON, 2003; ANASTASIA; MELO; SANTOS, 2004,p. 154).

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por acentuado grau de polarização política. Oarranjo institucional venezuelano afastou-se do“sistema de segurança mútua” que, de acordocom Dahl (1997), caracteriza uma poliarquia.Cada um dos lados, chavistas e antichavis-tas, trabalha para retirar o outro de cena, re-duzindo o espaço para a tolerância e o diálogo.Como afirmam Anastasia, Melo e Santos:

É possível que Chávez se mantenha no po-der a despeito da oposição. Mas é poucoprovável que a Venezuela desfrute de algu-ma estabilidade nos próximos anos. Falta ummínimo de consenso, seja quanto às alter-nativas de política, seja quanto aos procedi-mentos para dirimir os conflitos. Tampoucose pode apostar que o recém-inauguradoarranjo institucional se consolide. O novoregime tem a fragilidade peculiar das cons-truções apoiadas em lideranças carismáticas;Chávez é o seu alfa e o seu ômega, e a sobre-vivência de ambos encontra-se intimamenteconectada (2004, p. 156).

Na Bolívia, como pode ser visto, o pri-meiro governo de Sánchez de Lozada (MNR)se aliou a um partido de origem indígena naformulação do projeto reformista, numa ten-tativa de recuperar os vínculos com a gran-de massa de excluídos do país. Dez anosdepois, o mesmo Lozada seria forçado arenunciar de seu segundo governo devido aum levante popular. A aliança MNR/MRTK,firmada em 1993, primava pela incongruên-cia. De um lado, bradava por uma democra-cia participativa, de outro, oferecia ao povoboliviano um cardápio ortodoxo em termosde política econômica. O governo seguinte,do ex-ditador Hugo Banzer, encarregou-se deminimizar o impacto democratizante de al-gumas das reformas contidas no Plan deTodos. Ao fim e ao cabo, a estratégia refor-mista revelou-se incapaz de conter o proces-so de erosão do sistema partidário e dopróprio regime representativo. No vácuo ge-rado pela crise, a eleição de Evo Moralestrouxe a esperança de que as reivindicaçõesda Bolívia “profunda” sejam levadas em con-ta. Do sucesso ou fracasso de seu governo— e no caso de sucesso, dos procedimen-

tos adotados — pode depender o destinoda (frágil) democracia boliviana.

Chile e Brasil fornecem exemplos de si-tuações em que a ausência de pressões so-ciais e a inexistência de uma coalizão capazde contornar os obstáculos institucionais fi-zeram com que a agenda reformista, aindaque se mantivesse na pauta, se realizassede forma muito precária.

A reforma da Constituição de 1980 sem-pre esteve na agenda da coalizão de centro-esquerda que governa o Chile desde 1989e, certamente, sempre foi uma aspiração deseu eleitorado. Mas ainda que vitoriosa emtodas as eleições presidenciais, a Concerta-ción nunca conseguiu os 3/5 de votos emambas as Casas Legislativas, necessáriospara levar seu projeto à frente. As mudan-ças realizadas em 2005 só foram possíveisgraças a um acordo com a oposição. Masas negociações não permitiram que fossealterada uma das peças centrais do arranjoimposto por Pinochet: o método de consti-tuição da Câmara dos Deputados. A exis-tência de distritos binominais é responsávelpelo viés acentuadamente majoritário do sis-tema eleitoral chileno.

No Brasil, a explicação para que as refor-mas no sistema eleitoral tenham ocorrido deforma pontual, na forma de pequenos aper-feiçoamentos de caráter incremental ou comoresposta a questões conjunturais, repousano fato de que o ponto, simplesmente, nãoconstou da agenda de nenhum dos Executi-vos eleitos desde 1989. FHC e Lula, porexemplo, conseguiram constituir maiorialegislativa e aprovaram, com maior ou me-nor grau de dificuldade, parte expressiva desua agenda. Além disso, os partidos forma-dores de ambas as coalizões — PSDB e PT— possuíam projetos de reforma política.Não obstante, tais projetos não puderamser transformados em projetos de governo,pelo simples e bom motivo de que não eramcompartilhados pelos seus parceiros decoalizão. Na única ocasião em que a reformapolítica foi incorporada à agenda de um go-verno foi aprovada a reeleição do então presi-dente Fernando Henrique Cardoso. Alguns

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anos depois, ironicamente, o PSDB tentoupatrocinar a revogação do mecanismo, sobo argumento de que o mesmo beneficiavaem demasia os detentores dos postos exe-cutivos...

Este artigo procurou mostrar que a ocor-rência de um processo de reforma política,sua direção e seus resultados, depende decomo se combinam pressões sociais e cons-

tituição de maiorias legislativas. A depen-der de como isso se dá, as reformas po-dem ser bem-sucedidas, ainda que osobjetivos imediatos dos reformadores sejamsuplantados pela dinâmica política, fracas-sar completamente em seus objetivos, sim-plesmente, não acontecer ou fazê-lo de formamuito limitada. Os casos estudados ilustra-ram as três possibilidades.

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Transição e Governabilidade nasDemocracias Mexicana e Brasileira

Alberto J. Olvera

A natureza da transição mexicana

Uma vasta mobilização cidadã pelo respeito aos direitos políti-cos, que marcou todo o país de norte a sul e de leste a oeste,caracterizou a história do México durante a década de 90 do séculopassado. A resistência do regime autoritário, mais antigo do mun-do, em realizar uma verdadeira reforma política obrigou os cida-dãos a investir uma energia social imensa em um prolongadoprocesso de transição democrática que culminou nas eleições pre-sidenciais em 2000. Um efeito colateral dessa centralidade da lutapolítica em torno da arena eleitoral foi a perda de visibilidade deoutras formas de ação coletiva e de outras áreas de democratiza-ção da vida pública. Com efeito, esse processo coincide com umaperda de visibilidade do poder dos movimentos sociais populares,com exceção do zapatismo, o qual, sem dúvida, não conseguiuarticular um verdadeiro movimento indígena nacional (Olvera, 2003).

O resultado foi uma transição extremamente prolongada (1988 a2000) e de natureza puramente eleitoral (Cansino, 2000), pois suabase foi a negociação, em curto prazo, de conflitos eleitorais locaise a realização de numerosas reformas eleitorais parciais nas esferasestadual e federal (Eisenstadt, 2004). O ponto culminante desse pro-cesso foi, ao término de 1996, o acordo entre os três principaispartidos políticos, PRI, PAN e PRD,

1 que tinha como intuito formalizar

uma nova reforma eleitoral federal. Um dos eixos desse acordo esta-va voltado para a garantia da autonomia política e institucional doInstituto Federal Eleitoral (IFE), a entidade pública que cuida da orga-nização das eleições federais, e o outro, para o estabelecimento deum generoso financiamento público aos partidos, o qual, suposta-mente, deveria permitir-lhes ficar ilesos à influência dos interessesprivados e do próprio governo federal (Merino, 2003). Mediante umainteressante inovação institucional, que consistiu na nomeação deum conjunto de “conselhos eleitorais cidadãos”, formado por per-sonagens públicos sem partido, que tinham como responsabilidadea direção efetiva da organização das eleições (IFE) e a assinaturados subsídios públicos aos partidos, foi possível terminar com osconflitos pós-eleitorais em nível federal. Como garantia adicionalcriou-se um Tribunal Federal Eleitoral, que seria a última instânciajurídica para dirimir os conflitos eleitorais de toda ordem.

1 Respectivamente, Partido Revolucionário Institucional (primeira força deoposição do país), Partido da Ação Nacional (conservador) e Partido daRevolução Democrática (centro-esquerda). [N.T.]

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64

Essa forma limitada de transição conse-guiu passar pela prova prática nas eleiçõesde 2000, nas quais, pela primeira vez em 70anos, o PRI perdeu a Presidência da Repú-blica. Nos estados da Federação o proces-so prolongou-se mais, pois as entidadespúblicas que eram responsáveis pela orga-nização das eleições estaduais e municipaiscontinuavam sendo controladas pelos parti-dos no poder local em algumas partes dopaís. Tão grande foi este déficit que boa partedas eleições locais, posteriores a 2000, aca-baram sendo decididas pelo Tribunal Fede-ral Eleitoral, em um processo conhecido hojecomo “judicialização da política”, que, narealidade, não abarca somente o terreno elei-toral, mas sim quase todos os conflitos in-ternos de uma elite política incapaz de dirimirsuas diferenças por meio da negociação(Merino, 2003). A onipresença do conflito estágarantida por um calendário eleitoral incoe-rente, no qual todos os anos há, pelo me-nos, três ou quatro eleições locais (eleiçõesde governador e/ou de Congresso Local emalgum estado e de presidentes municipais,que ficam neste cargo somente por trêsanos). Além do mais, a cada três anos sãorealizadas eleições de deputados federais,e a cada seis anos eleições para senadorese Presidente da República. A proibição dareeleição em todos os níveis coloca em es-tado de permanente fluidez aos partidos eàs elites políticas, que não têm diante de sinenhum incentivo para negociar acordos, e,sim, um sistema que serve para aprofundaros conflitos e marcar as diferenças.

Devido a esses obstáculos de ordem ins-titucional, a transição não tocou, até agora,nos fundamentos do Estado, ou seja, nasinstituições, nas leis e, inclusive, nos pro-gramas do velho regime. Em termos teóri-cos rigorosos, pode-se dizer que o antigoregime não foi completamente destituído, namedida em que ele ainda não foi desmonta-do em seus fundamentos legais, institucio-nais e culturais, e o novo regime nãoconseguiu ser efetivamente instituído, poisa inércia do passado domina as escassasinovações existentes (Cansino, 2000). A ex-

ceção dessa regra geral foi a perda do po-der do Presidente da República, que, comefeito, era o grande árbitro de todos os con-flitos até 1997. Nesse mesmo ano, a perdada maioria absoluta na Câmara dos Deputa-dos por parte do PRI pôs fim à tradição nãoescrita de que o Presidente dominava porcompleto o Congresso e o Poder Judiciário.Este último, por sua parte, começou a ganharum espaço de autonomia graças às refor-mas constitucionais de 1994 e à nomeaçãode uma Suprema Corte completamente novaem 1995 (González Plascencia, 2005). Esseprocesso radicalizou-se em 2000, quando opartido do presidente Vicente Fox, o PAN,ficou com minoria na Câmara dos Deputadosnas eleições daquele ano (41,2% a 42,2%do PRI), e, inclusive, perdeu poder nas eleiçõeslegislativas de 2003 (30,4% a 44,8% do PRI).Assim, a aliança entre o PRI e o PRD foicapaz de vetar no Congresso as iniciativasimportantes do Presidente e, inclusive, imporalgumas decisões de política pública e emmatéria orçamentária.

Essa transição democrática ainda é frá-gil e inacabada, e não pode consolidar-sesem uma profunda reforma do Estado, ouseja, uma reavaliação das relações entre oscidadãos e o governo, e entre as forças dovelho regime e os partidos que representama oposição política frente a ele. O empatede forças políticas determinadas pelo caráterincompleto da derrota do partido do velhoregime conduziu à ausência de um pactopolítico de transição, já que o processo legis-lativo não abordou as reformas centrais querequerem a construção de um regime políti-co fundado em um conceito mais amplo dedemocracia. A ausência de um pacto expli-ca também a persistência de um ambientede confrontação. A reconstrução do vínculoentre legitimidade e legalidade conquistadaatravés da realização de eleições limpas ficadebilitada quando todos os atores políticosrecorrem a práticas imorais, ilegais e clien-telistas com o propósito de permanecer nopoder e ampliar seus espaços.

A experiência da transição deixou claroque o Estado mexicano ficou relativamente

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debilitado, primeiramente, com as reformasneoliberais implementadas pelos governosdo PRI entre 1985 e 1997, e, também, pelocolapso do velho modelo de presidencialis-mo autoritário, que estava fundado em umasérie de acordos metaconstitucionais, quecareciam de uma base jurídica firme (Cres-po, 2005). Com efeito, o Estado mexicanotem problemas estruturais de desenho cons-titucional, já que o sistema presidencialistaé legalmente precário, pois o Presidente ca-rece de poderes de controle do Poder Legis-lativo (seu poder de veto é fraco) e decapacidade significativa de promulgação dedecretos (que podem ser questionados di-ante da Suprema Corte); o Poder Legislativonão é profissional, pois não existe reeleiçãodos legisladores, seus regulamentos inter-nos são obsoletos e trabalham poucos diasao ano; o Poder Judiciário é econômica eadministrativamente frágil, além de poucotransparente, o que propicia a corrupção. Poroutro lado, o governo tem grandes espaçosde fragilidade institucional, uma vez que al-guns de seus aparatos e organismos estãocolonizados por uma densa rede de interes-ses privados, que vão desde sindicatos, em-preiteiros, máfias de políticos profissionais,grupos delituosos e até alguns grupos orga-nizados da sociedade civil, que atuam comomeros grupos de interesses. É fisicamenteprecário, pois sua capacidade de cobrarimpostos é uma das mais baixas da AméricaLatina (11,8% do PIB). O governo, em senti-do amplo, tem uma profunda incapacidadede inovação.

Em outras experiências históricas, a tran-sição foi o momento de fundação de umnovo regime, na maioria dos casos, atravésde novas constituições e de novos pactospolíticos. Se, por um lado, um novo ordena-mento jurídico não garante a criação de umnovo sistema de governabilidade democrá-tica, pelo menos permite uma reordenaçãoinstitucional que pode ter efeitos inovadores.Precisamente nesse ponto, as transições doMéxico e do Brasil divergem. A ausência deum processo constituinte no México, tão ra-dical que nem uma modesta reforma do

Estado foi possível, assinalou o limite políti-co de um processo incompleto que, na prá-tica, foi reduzido a uma pluralização políticadas elites no contexto de uma continuidadeessencial do regime político. No Brasil, oprocesso constituinte que desemboca naConstituição de 1988 marca uma clara se-paração entre o velho e o novo regime e abrebrecha jurídica e política para as inovaçõesdemocráticas que distinguem o Brasil no ce-nário internacional.

O sistema partidário e osproblemas de governabilidade

A transição mexicana teve a particulari-dade de criar um sistema com três partidosprincipais, nenhum dos quais é majoritáriono Poder Legislativo federal; e três partidospequenos, com escassa representação par-lamentar. Até 1997, o PRI havia sido um par-tido hegemônico, com uma prolongada fasede partido quase único. O PRI controlava apresidência, as duas Câmaras Legislativas,os governos dos estados e as presidênciasmunicipais. Nesse caráter quase monopó-lico fundava-se o poder metaconstitucional doPresidente da República, sendo ele o diretorde todo o sistema.

Nas eleições federais de 1997, o PRI per-deu pela primeira vez a maioria absoluta daCâmara dos Deputados, e, nas eleições de2000, perdeu, também, o controle da Câmarados Senadores. Desde 1989 os partidos PANe PRD começaram a ganhar os governos dealguns estados e de vários municípios e, em1997, conseguiram dar um salto qualitativo,já que o PRD ganhou a primeira eleição deum chefe de governo da Ciudad de México(que até então era designado pelo Presidente).E o PAN ganhou o governo do estado deNuevo León, o mais poderoso economica-mente, e que, somado a outros governosestatais ganhados anteriormente por estepartido, permitiam-no governar mais de 30%da população do país. Enquanto isso, o PRDtambém avançava, sobretudo em nível muni-cipal (Lujambio, 2000).

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Nas eleições de 2000, na qual o PANganhou a presidência, o PAN e o PRI empa-taram suas forças parlamentares, e o PRDquase se converteu em um partido minoritá-rio, já que sua fracassada aliança com váriospartidos pequenos o fez perder posições.Sem dúvida, seus votos eram estratégicospara constituir uma maioria parlamentar. OPRD considerou que o trunfo do partido dedireita era perigoso para o país, e dado quenão havia uma agenda política comum como PAN, as reformas políticas necessárias paradar governabilidade ao país ficaram penden-tes. O PAN desejava, antes de tudo, termi-nar o ciclo das reformas neoliberais atravésde três reformas pendentes: a trabalhista(flexibilidade na contratação, pensões), aenergética (para permitir investimento priva-do na indústria elétrica) e a fiscal (novos im-postos ao consumo). O PRD não apoiavanenhuma, e o PRI, que até 1999 impulsio-nou o projeto neoliberal, decidiu, como táti-ca política, passar para a oposição, poisnenhuma das três reformas eram populares.

Em 2000, diversos fóruns de intelectuaise de políticos discutiram os conteúdos deuma “Reforma do Estado” que, na realida-de, era uma síntese de uma grande quanti-dade de propostas de reforma constitucional,uma agenda de novas leis, que incluía umareforma política que mudava o calendárioeleitoral (fazendo-o mais racional), uma re-forma do regulamento do Congresso, umareforma do Poder Judiciário e algumas idéiaspara impulsionar a participação cidadã, atra-vés da introdução de formas de democraciadireta (plebiscito, referendum e iniciativapopular). Sem dúvida, nenhum partido apoiourealmente esta agenda de reformas, pois,dado que não poderiam controlar o processolegislativo, nem estavam dispostos a correro risco de convocar um Congresso Consti-tuinte, era melhor aguardar e contar com umaconjuntura mais favorável. Em verdade, nãohavia uma mobilização social que exigissereformas, pois no imaginário cidadão preva-lecia a errônea idéia de que a derrota do PRIseria suficiente para mudar radicalmente avida política.

Diante desse quadro, o governo do pre-sidente Fox decidiu seguir o caminho da con-tinuidade, o que só foi possível devido aotamanho e à complexidade do Estado mexi-cano, à eficácia das novas políticas sociaiscriadas no último governo do PRI e do presi-dente Ernesto Zedillo (1994-2000), à força dainércia burocrática e ao poder das congre-gações de funcionários públicos. Diferente-mente de outros países latinos, o Estadomexicano tem presença e controle em todoterritório nacional e, através da política desubsídios para o combate à pobreza, chegaaté aos povos mais afastados do país. Mo-ver ou mudar esse enorme Estado é umatarefa complicada e de longo prazo.

Devido a essas condições, durante es-ses anos de transição, não se experimentouuma verdadeira crise de governabilidade noMéxico, porém, tampouco, uma reforma davida política. Marcado por certo conflito per-manente, o caso mais próximo de uma cri-se foi a tentativa da Câmara dos Deputadosde impor ao Presidente um orçamento pú-blico nacional diferente do que ele havia en-viado à Câmara para aprovação nos anosde 2004 e 2005. Durante esses dois anos,os Poderes Executivo e Legislativo se enfren-taram seriamente, e a lei parecia dar razãoao Legislativo, já que a Constituição indicaque é de sua exclusiva responsabilidade aaprovação do orçamento. O Presidente so-mente pode vetar as leis que tenham pas-sado por ambas as Câmaras Legislativas, oque não é o caso do orçamento. Sem dúvi-da, a Suprema Corte da Nação, atendendoum recurso do Presidente, considerou que oPrimeiro Mandatário pode, sim, ter capaci-dade de revisão do orçamento aprovado pelaCâmara dos Deputados. Com efeito, nem oPresidente nem os partidos de oposiçãoquiseram levar ao extremo seus conflitos,calculando que os cidadãos castigariam, nasurnas, o partido que causasse uma verda-deira crise de governabilidade.

A Suprema Corte de Justiça assumiu opapel de juiz dos conflitos entre os três po-deres da União, entre os poderes estatais eos municipais, e entre estes e a Federação.

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Este ativismo permitiu desafogar os principais conflitos apesar daausência de um novo marco constitucional. Entre 2001 e 2005, pelomenos 25 problemas muito importantes foram resolvidos por essavia. (González Plascencia, 2005)

É, assim, evidente que o presidencialismo mexicano difere dobrasileiro em vários pontos essenciais. Em primeiro lugar, no Méxiconão há coalizões de governo, somente eleitorais, que são, por suaprópria natureza, conjunturais. O número limitado de partidos pro-tagonistas também influi decisivamente: todos têm presença naci-onal e gozam de um relativo equilíbrio de forças, o que é um incentivoao bloqueio das reformas essenciais. Um presidente com minoriaparlamentar pode governar, conquanto que não tente fazer refor-mas fundamentais. Esse fato coloca um grave limite à inovaçãopolítica e jurídica, que não pode durar indefinidamente, sob penade deslegitimar, em curto prazo, a limitada democracia mexicana.Por outro lado, o presidencialismo de coalizão brasileiro obriga acriar alianças entre partidos baseadas em um programa de gover-no, porém o custo disso é muito alto devido ao fato de que a dis-persão programática e de forças entre os numerosos partidos induzà formação de coalizões frágeis, oportunistas e de tendência cen-trista. As coalizões limitam o horizonte das reformas possíveis eelevam o custo político em níveis tais que deterioram a legitimi-dade dos acertos políticos. Em segundo lugar, o presidencialismomexicano é mais debilitado que o brasileiro, pois o Presidenteconta com poucos elementos legais para opor-se às decisões doCongresso e carece de poder para legislar de maneira paralela,que é uma via de escape, ainda que seja temporal, da chantagemparlamentar.

No México os partidos têm avançado com numerosas reformasparciais por meio de um ativismo legislativo sem paralelo. Comose pode observar no Quadro 1,,,,, os partidos têm apresentado maisde 2000 iniciativas na atual legislatura, cinco vezes mais do que naprimeira legislatura, sem maioria do PRI, e 15 vezes mais do quena época do Poder Legislativo subordinado (Casar, 2006).

Quadro 1 - Iniciativas Apresentadas à Câmara dos Deputados (1982-2006)

Origem Legislaturas

LII LII LIV LV LVI LVII LVIII LIX*

1982-1985 1985-1988 1988-1991 1991-1994 1994-1997 1997-2000 2000-2003 2003-2006

Executivo 139 128 70 84 56 37 63 42

Senadores - 60 15 47 24 46 53 60**

Partidos 159 352 1997 117 163 493 909 2139

Comissões - 16 12 - 02 29 17 14

Legis. Locais 10 03 - 02 02 34 85 97

Vários Partidos ND ND ND 10 03 34 82 36

Total 308 559 294 206 250 673 1209 2388

* Os dados da LIX legislatura podem variar, posto que as informações ainda não estão totalizadas na página daCâmara dos Deputados.

** Não considera minutas provenientes do Senado.

Fonte: Para 1982-1997, CASAR (2006) e NACIF (2005). Para 1997-2006, a elaboração foi feita pelo próprio autor a partir da Gazeta Parlamentar.

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Obviamente, nem todas iniciativas se processam e são aprova-das, razão pela qual a taxa de eficiência legislativa é relativamentebaixa (ver Quadro 2). Mas, o certo é que há mais criatividade e,mesmo que de maneira fragmentária, múltiplas leis acabam sereformando, e outras novas são aprovadas, fazendo mais comple-xo, porém, de certo modo, menos incoerente, o sistema legal. Asalianças dos partidos para permitir a aprovação das leis são varia-das, o que demonstra que os partidos estão dispostos a cooperarmesmo em temas que não consideram centrais para sua imagem(Nacif, 2005).

Quadro 2 - Taxa de Eficiência Legislativa (1982-2006)

Legislatura Iniciativas Apresentadas Iniciativas Aprovadas Porcentagem (%)

LII 308 166 53,9

LIII 559 223 39,89

LIV 294 131 44,56

LV 260 158 60,77

LVI 250 108 43,2

LVII 673 1985 28,97

LVIII 1209 292 22,65

LIX* 2388 513 21,48

* Os dados da LIX legislatura podem variar, posto que as informações ainda nãoestão totalizadas na página da Câmara dos Deputados

Fonte: Para 1982-1997, Casar (2006) e Nacif (2005). Para 1997-2006, a elaboração foi feita pelo próprio autor a partir da Gazeta Parlamentar.

A eleição presidencial de julho de 2006 reflete este contexto deempate político entre as três forças principais. Quem quer que sejaeleito presidente terá que enfrentar a mesma situação da falta demaioria de seu partido nas Câmaras de Senadores e Deputados, e,portanto, a mesma necessidade de formar alianças. O ambientepolítico de confrontação eleitoral não favorece as negociações quepoderiam conduzir a tais alianças. Diante disso, dois cenários sedelineiam claramente: o primeiro diz respeito à possibilidade de seproduzir um relativo colapso do PRI, que implica sua conversão noterceiro partido no Parlamento, não mais o primeiro. Isso é possíveldada a polarização da competição eleitoral entre o PRI e o PRD.Caso isso ocorra, as forças centrífugas que já há algum tempoatravessam o partido podem conduzir, num prazo relativamentecurto, à divisão do PRI, já que tanto o PRD como o PAN atraemquadros de destaque tendendo, assim, a conformar um sistemaque, dentro de algum tempo, poderia ser bipartidário, rodeado detrês ou quatro partidos pequenos, que dificilmente sobreviveriamem longo prazo. O segundo cenário possível seria o PRI conseguirmanter-se unido e colocar-se no centro do espectro político. Porém,para isso, seria necessária uma mudança dos dirigentes e umaautêntica institucionalização como partido, o que parece muito difí-cil de ser alcançado. O PRI seria, assim, o partido “fiel da balança”.Dependendo desse processo, e de quem ganhe a presidência, oimpasse atual pode prolongar-se mais ou menos e provocar, num

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certo prazo, o desgaste da sociedade e oinício de um novo ciclo de ativação da mobi-lização popular.

À guisa de conclusão

A transição democrática no México é in-completa. As leis, instituições e cultura polí-tica do velho regime seguem vigentes. Semdúvida, a competição entre os partidos éautêntica, e é de se esperar que o impasseatual, criado pelo empate de forças, seja su-perado num tempo razoável. Como se ob-serva, o próximo governo enfrentará, ainda,um cenário de poderes divididos, com au-sências de regras e de incentivos para a for-mação de coalizões de governo. Se aesquerda ganhar, ela enfrentará um cenárioparecido com que o PT teve que lidar no casodo Brasil: altas expectativas da população,um governo com minoria que deve negociarcada política pública, restrições orçamentá-rias enormes e uma separação crescenteentre o partido, as forças e o movimento dasociedade civil que lhe deram origem e legi-timidade política.

Sem dúvida, a esquerda no México podealegar a seu favor que o regime político que

herdou é uma camisa de força que lhe im-pede de transformar o país, e existe a possi-bilidade de que eles peçam aos cidadãospara se mobilizarem a favor de uma reformado Estado. As condições podem ser favo-ráveis para gerar um processo de mobili-zação orientado para concluir uma mudançade regime que, sem dúvida, está pendente.Não está claro, no entanto, qual sentido podeseguir tal mobilização, muito menos qualseria sua força e seu poder. Porém, estácerto que a esquerda teria legitimidade paraencabeçá-la. Por outro lado, o partido de di-reita não poderia, nem gostaria de fazer talcoisa, o que garantiria a continuidade daparalisia. A mobilização é também neces-sária para abrir espaço político para a de-manda de novas formas de participaçãocidadã que permitam aprofundar a limitadademocracia mexicana.

Sem uma mudança na correlação deforças políticas que vá mais além do planoeleitoral não será possível, ao México e aoBrasil, sairem dos dilemas em que seencontram sistemas de governo que tendema cristalizar os equilíbrios e convertem os go-vernos em reféns dos interesses dos partidos.

(Tradução: Áurea Cristina Mota)

Referências

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EISENSTADT, Todd A. (2004). Cortejando a la democracia en México: estrategias partidarias e institucioneselectorales. México: El Colegio de México.

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Entendendo asMudanças Necessáriasno Sistema Político

ParteII

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Republicanismo

Heloisa Maria Murgel Starling

O retorno da reflexão política e historio-gráfica contemporânea ao horizonte de idéiasem que se movimenta uma tradição tão an-tiga como a do republicanismo serve a trêspropósitos principais. Em primeiro lugar, ofe-rece instrumentos para uma investigaçãoanalítica capaz de trazer à tona elementosconceituais próprios ao exame da naturezadas sociedades democráticas no contextoatual; em segundo lugar, indica o propósitode devolver densidade à idéia de interessespartilhados, de ação pública dos cidadãos,de definição dos modos de agregação e usodo bem público, de solidariedade política ede virtudes civis, entendendo que essa com-preensão original de vida comum é decisivapara o futuro da democracia nas socieda-des contemporâneas; em terceiro lugar, for-nece elementos históricos e conceituaispertinentes à interpretação da realidade es-pecífica de um país como o Brasil, que ain-da não conheceu uma experiência políticacapaz de ser legitimamente chamada derepublicana.

Res publica: a expressão é latina e reto-ma o sentido e a história das instituiçõesromanas. Mas o termo que lhe serve deparadigma — politéia — é grego e procuradar conta da formulação de uma Constitui-ção ou regime político, de natureza inclusivae plural, formado por homens livres, ricos epobres, empenhados numa vida partilhadaentre todas as partes da comunidade. Tantopara Aristóteles quanto para Platão, essaidéia traduziu a busca por um regime capazde contemplar necessariamente os interes-ses da polis: coibir os excessos; evitar os

1Republicanismo

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extremos; garantir a justa medida na qualse realiza a justiça política; não se confundircom a manifestação da expressão políticada maioria ou da minoria, vale dizer, com osdois regimes dominantes na Grécia clássi-ca, a democracia e a oligarquia. Foi o termopolitéia, nome de uma obra de Platão, queCícero traduziu para o latim res publica.

Assim, os conceitos e as questões pró-prias à tradição do republicanismo preten-dem acentuar, na expressão res publica, areferência à natureza política da comunida-de — que designa sua agregação em vistado bem, dos direitos e dos interesses co-muns, o koinon sympheron dos gregos. Comefeito, o fim visado pela tradição não é dire-tamente a virtude dos cidadãos — é, ao con-trário, a efetivação da polis como formaespecífica de organização do convívio doshomens, vale dizer, a existência mesma dacidade vista como uma espécie de totalida-de política capaz de indicar, desde sua ori-gem grega, a possibilidade de agregaçãode seus membros, tendo em vista o bem,os direitos e os interesses comuns. É essafinalidade que nos remete, no fundamental,à significação de coisa pública, de esferados interesses comuns, do bem comum.Respublica, res populi: o que pertence aopovo, o que se refere ao domínio público, oque é de interesse comum e se opõe aomundo de coisas e assuntos privados, mun-do relativo à alçada dos particulares, grupos,associações ou indivíduos.

A rigor, também decorre da referência ànatureza política da comunidade, a relaçãoque a tópica do republicanismo mantevecom determinadas características particula-res a um tipo muito específico de cidade —a cidade que adquiriu a liberdade de admi-nistrar seus próprios assuntos. Nesse pontoexiste, sem dúvida, um componente indis-sociável de um certo ideal de cidade que atradição republicana retomou do Quattrocentoitaliano, em especial dos trabalhos produzi-dos pela geração dos humanistas cívicos deFlorença, preocupados em encontrar novosparâmetros para o significado da vida ativano interior das comunidades políticas.

Contudo, é certo que a divisão entre omundo dos interesses comuns e a esferados assuntos privados não ocorre de ma-neira espontânea. A rigor, ela se impõe, jus-tamente, pela postulação de um espaçopúblico, dotado dos instrumentos que as-seguram seu reconhecimento, o caráter co-letivo de sua apropriação e suas regulações.Assim, o conceito república, visto na pers-pectiva da tradição do republicanismo, nãodesigna apenas a existência de uma esferade bens comuns a um certo conjunto de ho-mens, mas também, de imediato, a consti-tuição mesma de um povo, o lugar pátrio,suas instituições, regras de convivência eagências de administração e governo, cujasorientações derivam de um momento de ins-tituição ou fundação política.

República se diz, então, sobretudo dos“regimes constitucionais” de governo, daque-les em que as leis e regulações ordinárias,bem como as disposições do governo, deri-vam dos princípios que conferem sua formaà sociedade e, postos acima de todos, pro-tegem a comunidade de todo interesse par-ticular ou transitório, de toda vontadecaprichosa ou arbitrária. Desse modo, o con-ceito república, na raiz de sua tradição, nosremete particularmente à idéia de “governode leis” (e não de homens), de “império dalei” e mesmo de “estado de direito”, expres-sões que declaram, na sua acepção maisimediata, a prescrição de que os que man-dam também obedeçam, mesmo nos ca-sos em que a forma de governo não sejademocrática e em que apenas alguns, oumesmo um só, ocupam as posições demando e os postos de governo.

A preocupação com a esfera públicapensada como lugar de efetiva ação dos ci-dadãos oferece ao republicanismo uma con-cepção ativa de liberdade associada ao viverecivili invocado por Maquiavel — vale dizer,associada a um movimento constante deexpansão que, articulado à cena da cidade,permite a todos exercerem suas potenciali-dades na qualidade de cidadãos. Como sevê, trata-se de uma certa concepção de liber-dade capaz de combinar-se tanto com a

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75Leonardo Avritzer | Fátima Anastasia [org.]

ausência de dependência da vontade arbi-trária de um ou de muitos homens quantocom a dimensão da ação e da participaçãodos indivíduos na vida da polis.

Dessa concepção ativa de liberdade osséculos 18 e 19 retiraram algumas conse-qüências. Uma delas, uma certa percepçãodo que poderia ser definido a política daliberdade, como se costumava dizer à épocada Revolução Americana: a idéia, por exem-plo, que o poder estava na periferia, nosdiversos estados soberanos, livres e inde-pendentes; ou, então, que esse poder seconcentrava nos legislativos e, em particular,nas câmaras baixas; ou, ainda, que a liber-dade só florescia em Estados pequenos. Deoutro lado, a noção de que organismos go-vernamentais secundários — como, porexemplo, estados ou províncias —, poderiamefetivamente compartilhar soberania com opoder central.

Uma outra ordem de conseqüênciasmuito característica da sensibilidade repu-blicana que se formou na vertente anglo-saxãda tradição veio da intuição de que havia algomuito pertinente na defesa do direito do in-divíduo desfrutar os próprios bens com imu-nidade contra a ação arbitrária do príncipeou de seus representantes. Dito de outromodo: essa tópica colocou em relevo a pos-sibilidade de uma conduta política orienta-da pela utilidade, pela concepção daliberdade como “um bem que permite go-zar todos os outros bens” — para usar o ar-gumento e a linguagem de Montesquieu —e pela idéia de que a forma republicana in-cluía o reconhecimento compreensivo de queos interesses também possuem valor agre-gativo.

A idéia de associar bem público ao queTocqueville definiu como o exercício do inte-resse bem compreendido produziu umaatualização, para a modernidade, do antigoprincípio republicano da virtude. As virtudespossuem dois traços gerais: são qualida-des de caráter reais e raras, capazes de ex-primir as paixões humanas em feitos nobrese singulares. Articuladas ao mundo públicoimplicam civismo, isto é, oferecem um ideal

de excelência no exercício da cidadania.Contudo, nos tempos modernos, em queocorre uma perda considerável das antigasvirtudes, a oportunidade de se romper o cor-dão de isolamento da concentração do indi-víduo em seu espaço privado estaria menosna reativação do ideal moral e mais na iden-tificação racional dos interesses particularescom aqueles da cidadania. Em qualquer doscasos, porém, o elemento dinâmico centraldo republicanismo não é tanto a virtude cívi-ca ou o interesse bem compreendido, maso resultado do seu exercício como modo deconduzir a vida na polis.

Contudo, no caso brasileiro, o percursodo republicanismo durante o século 18 e,especialmente, ao longo do século 19, nãotraduziu a possibilidade histórica da sua afir-mação na vida política do país após o golperepublicano de 1889. Com efeito, a idéia deausência, de vazio, parece ter aderido for-temente às pretensões de enraizamento eancestralidade da República no Brasil, pro-jetando um cenário que se desdobraria nosperíodos subseqüentes, marcados por fortenegatividade quanto à possibilidade de serecorrer a uma tradição do republicanismopara enfrentar os problemas que afligem aformação histórica brasileira.

Assim, é um engano supor que o golpede Estado de 15 de novembro de 1889 foi amaterialização de um projeto lentamenteamadurecido por um longo período de açãorepublicana. Não por acaso, a trajetória deconsolidação da República até os anos 30pode ser conhecida entre nós a partir daobservação dos processos de sucessãopresidencial, momentos em que a não insti-tucionalização dos procedimentos de esco-lha dos candidatos tornava a estabilidadedo experimento republicano dependente dahabilidade dos caciques brasileiros, e reve-lava as condições de forte retração da esfe-ra pública, oligárquica e hieraquizada,controlada por um número reduzido de po-líticos em cada estado, principal sustentáculodo federalismo desigual vigente no Brasil.

Essa foi sua marca de origem: a Repú-blica se tornou vitoriosa em 1889 sem a

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vocação da incorporação dos princípios dorepublicanismo diante da sociedade queemergia com a expansão da vida mercantil;e permaneceu fiel a essa marca, liberal emeconomia, excludente em política e no social,administrada por homens de frágeis convic-ções republicanas. Com efeito, a distânciaentre o ideário formador de suas matrizes eo exercício de sua prática política persistiuao longo da nossa história política contem-porânea: a Revolução de Trinta refundou aRepública impondo o predomínio da Uniãosobre a Federação, das corporações sobreos indivíduos e a procedência do Estadosobre a sociedade civil. O preço da moder-nização autoritária e da ampliação do esco-po do Estado a fim de abrigar os novospersonagens sociais nascidos do mundo ur-bano e industrial importou na perda da auto-nomia da sociedade quanto ao Estado e umaherança do autoritarismo político a pesarsobre a história republicana desse Brasilmoderno — como ocorreria no regime mili-tar pós-1964 que obedeceu em linhas ge-rais a esse modelo — deixando para trás,como um elo do republicanismo ainda a serretomado, o desafio da construção de umaexperiência efetivamente republicana sobcondições democráticas.

Referências

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TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia;São Paulo: Edusp, 1977.

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Financiamento deCampanha (públicoversus privado)

Renato Janine Ribeiro

Se as campanhas políticas devem serfinanciadas com dinheiro público ou priva-do é uma das discussões discretas queocorrem na política brasileira. Não é umdebate tão ruidoso como, por exemplo, odo voto facultativo ou obrigatório. Aliás, oproblema da reforma política brasileira é quepoucos assuntos, nela, assumem vulto esão considerados, pela opinião pública,como relevantes.

Uma discussão sobre reforma políticadeve começar indagando se a própria dis-cussão é política, em dois sentidos: no desaber se o demos, “nós, o povo”, efetiva-mente a assume como sua, em vez de con-finar-se ela ao grupo dos especialistas, comose estes fossem engenheiros da vida sociale política — e no de saber se estabelece umrecorte entre as posições políticas, sobre-tudo entre direita e esquerda. Nos dois casos,o debate da reforma política brasileira é poucopolítico, porque confinado a especialistas eporque apartado das divisões partidárias.

São raros, no debate da reforma políticabrasileira, os temas que polarizam os partidos,ou que chegam à arena pública, à sociedade,com forte conteúdo político — eu enfatizariaapenas o caráter obrigatório ou facultativo dovoto (Ribeiro, 2003),

a corrupção e o financia-

mento das campanhas. Uma questão rele-vante como a do voto distrital ou proporcional,que em vários países opõe direita a esquerda,aqui é levantada quase que só tecnicamente,por cientistas políticos. Não empolga sequeros parlamentares, quanto mais o povo. Masna França, por exemplo, a eleição distritaldos deputados foi introduzida, em começosdos anos 1870, para evitar que a cada poucos

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meses, sempre que surgia uma vaga naCâmara, a eleição se desse no âmbito deum departamento inteiro — e, assim, mar-casse sucessivos tentos da esquerda repu-blicana contra a direita monarquista que, naépoca, controlava um Parlamento eleito àspressas, logo após a vitória prussiana naguerra de 1870. Cada pleito era, assim, umplebiscito, e concorria para enfraquecer opeso dos versalheses que haviam esmaga-do a Comuna de Paris e desejavam restau-rar a monarquia em sua vertente legitimista(cf. Halévy, 1930 e 1937). Ora, o paradoxodo presente debate brasileiro é que a refor-ma política, aqui, não é uma questão políti-ca.

Uma das raras exceções a essa duplaindiferença política — partidária e popular —está no financiamento público das campa-nhas eleitorais. É um dos temas que maisdivide a esquerda e a direita. Enquanto ovoto proporcional ou distrital, obrigatório oufacultativo, pode ter apoios e críticas em to-dos os lados da política, e sua discussãoparece, sobretudo, técnica (uma espécie de“engenharia da legislação eleitoral” com ofito de resolver os grandes problemas políti-cos do País), no caso do financiamento pú-blico a direita é contrária, e a esquerdafavorável. Os argumentos básicos são sim-ples. Os oponentes do financiamento públi-co afirmam que dinheiro precioso seriadesviado de fins mais nobres — a educa-ção, a saúde, a segurança — para alimentara atividade político-partidária. Considerandoa má imagem que os políticos têm no Brasil— e que se agravou nos últimos tempos,quando o Partido dos Trabalhadores perdeua aura que o distinguia das demais agremi-ações — é compreensível que essa oposi-ção ao financiamento público tenha apoiopopular. Já os defensores do financiamentopúblico sustentam que este reduziria a cor-rupção e a desigualdade entre os conten-dores.

• • •Qualquer análise do financiamento das

campanhas deve remeter primeiramente àcorrupção. Na literatura especializada, a

discussão do financiamento é uma espéciede finale de análises ou relatos mais longossobre a corrupção. Façamos uma tipologiadesta última, então. Propomos que seja ditaantiga, “moderna” e pós-moderna. A corrup-ção antiga era dos costumes. Dos cidadãosse exigia que fossem austeros, pondo a respublica acima do interesse privado. A repú-blica antiga era machista, enfatizando a cen-sura à lassidão dos costumes e à aberturafeminina aos sentimentos — que arriscavamdestruir um Estado que tinha de ser varonil.

Já a corrupção “moderna” é a da apropri-ação privada de fundos públicos. Tem umaversão, talvez mais amena, que é o patrimo-nialismo. Este, se for entendido como a apro-priação do bem público como patrimônioprivado, geralmente opera em duas vias. Orico apropria-se da coisa pública, mas cedealguns bens para uso público. O emprésti-mo, no Brasil colonial, de prédios privadospara sediar câmara e cadeia, o que em teseaté mereceria elogio, acarretava a recíproca,isto é, a percepção de que o aparato estatalpoderia servir a seus patrocinadores priva-dos. Formas diversas de patrimonialismoperduram na sociedade brasileira, inclusivealgumas muito elogiadas pela mídia, comoquando o cuidado com o verde público —jardins, praças, grama — é assumido porempresas privadas.

Mas a corrupção “moderna” não se es-gota, nem tem sua figura canônica, no pa-trimonialismo. Sua maior diferença em faceda antiga está em substituir a figura da de-gradação dos costumes — e da degrada-ção feminina dos costumes — pela do furto.A corrupção “moderna” é apenas o furto dacoisa pública, reduzida ao erário. A idéiaantiga de bem público é, assim, substituí-da, quando se fala do ataque a ele — isto é,quando o bem comum é considerado a par-tir da corrupção, que é seu negativo, seuprincípio de morte —, pela idéia modernade bens públicos de ordem material. Em vezde um conjunto de valores imateriais, agre-gados na convicção qualitativa de uma pá-tria ou um coletivo pelo qual valia a penamorrer (pro patria mori) ou matar (pugna pro

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patria), passamos a quantificar o bem pú-blico, mensurando a subtração dos benspúblicos. Isso debilita o conceito de corrup-ção. A acusação, hoje constante, de que ospolíticos seriam ladrões e a redução, brasi-leira e internacional, do debate político à dis-cussão da honestidade pessoal dos políticos,acompanham esse downsizing “moderno”da corrupção.

Mas convém empregar “moderno” entreaspas, porque essa corrupção aparece já noAntigo Regime — lembre-se a condenaçãodo filósofo e chanceler inglês, Francis Ba-con, em 1621 — e sua denúncia, como ates-ta a Arte de furtar, de Manuel da Costa(1601-1667), também é anterior às revoluçõesque constituem a modernidade política. Acorrupção é, pois, moderna no sentido damodernidade em geral, que se inicia comas Navegações, mas não é moderna no sen-tido político, específico dos regimes maisrepublicanos e democráticos que surgiramposteriormente. Assim, há uma certa conti-nuidade conceitual entre a corrupção doAntigo Regime e a da modernidade políti-ca. Apesar das alterações de escala e mes-mo qualitativas entre a corrupção namonarquia absoluta e nos governos eleitosmodernos, há séculos não se percebe a cor-rupção, majoritariamente, como sendo a doscostumes e, sim, como furto. Na verdade,por tentador que seja retomar a idéia antigade corrupção, enfrentando pois a corrupçãomediante uma educação solidária voltadapara um bem comum qualitativamente defi-nido — e não apenas por medidas de audi-toria efetuadas por especialistas sobre osatos e instituições estatais —, por tentadorque seja devolver à ágora o papel de com-bater a corrupção em vez de delegá-lo aperitos, fazendo-o incompreensível para oleigo, isto é, para o cidadão e a Cidade —, orisco da retomada do conceito antigo seriaameaçar o que Benjamin Constant chamou“liberdade moderna”. Pois, muito da corrup-ção antiga é o que hoje chamamos a liber-dade dos modernos, ou liberdade negativa(Isaiah Berlin), a liberdade de divergir de umpadrão de vida socialmente imposto (Cons-

tant, 1958). Talvez por isso, o conceito restri-to e “moderno” de corrupção seja mais ade-quado, que o antigo, a nosso tempo.

Contudo, em nossos dias cresce umacorrupção pós-moderna. Esta não é um fur-to aos cofres públicos efetuado por indivídu-os ou classes gananciosos. É, em seu cerne,uma corrupção fruto da busca do poder pelopoder, que portanto se auto-alimenta, por-que a praticam grupos que têm por finalida-de principal reeleger-se e assim necessitamde recursos pingues para serem competiti-vos no próximo pleito. É pós-moderna por-que se joga no plano das imagens. Grassanum ambiente de massas, em que os elei-tores se libertaram das amarras que antesdecretavam em quem votassem, mas nãovêm a formular seu voto de maneira ilumi-nista, pelo exame das diferentes propostas,e, sim, movidos pelo afeto. É legítimo votarseguindo o afeto, porque o que se decideno voto são essencialmente valores, e esco-lher um projeto individualista (ou liberal) esocial (ou socialista) em última análise ex-cede o que a razão pode gerar. Mas o pro-blema está no seqüestro do afeto pela mídia,inflacionando os custos das campanhasmesmo quando a propaganda é gratuita ese veda, como no Brasil (mas não nos Esta-dos Unidos, na Argentina e no Uruguai, paracitarmos alguns exemplos), a publicidadepaga na telinha. Com isso se gera uma novacorrupção, que se distingue da “moderna”por não beneficiar necessariamente o bolsodo corrupto, mas um projeto político quepode até ser justo e honrado. O terrível dacorrupção pós-moderna é que ela se tornaquase a única maneira de sobreviverem, nacena política tornada espetáculo, mesmo oshonestos.

• • •

Só cabe estudar o financiamento públicodas campanhas pensando na e contra acorrupção. Ele é defendido sobretudo pelasesquerdas, que, mais que isso, propugnamo financiamento público exclusivo das campa-nhas, proibindo-se o privado. Isso é lógico,porque as esquerdas, se não abrirem mãode seus ideais, dificilmente arrecadarão

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grandes fundos junto aos maiores financia-dores, isto é, os ricos e as empresas priva-das. Sem um financiamento amplamentepúblico das candidaturas, essas tenderão aser reféns dos grupos de interesse que asapóiem. O custo social pode ser maior doque a economia no gasto público resultantedo financiamento privado. Grupos de inte-resse cobrarão, depois, com forte ágio, oque pagaram.

Por outro lado, é quase impossível as di-reitas aceitarem uma proposta cortando osrecursos que podem obter dos indivíduosmais ricos e das maiores empresas. A essarazão pragmática, soma-se outra: é extrema-mente difícil fiscalizar a entrega de recursosàs campanhas. Será fácil burlar as leis exis-tentes ou futuras — o que, por sua vez, comoapropriadamente comenta Delia FerreiraRubio,

1 requer a criação de órgãos capaci-

tados para acompanhar a boa arrecadaçãoe uso do dinheiro, o que, acrescentamos,leva mais uma vez a uma solução burocrá-tica (sem sentido pejorativo) do problema,por meio de algum órgão público, como umtribunal ou uma agência, independente dospoderes eleitos. Em face disso, Rubio pro-põe uma solução intermediária: o financia-mento público, sem proibição da contribuiçãoprivada, mas com forte fiscalização destaúltima (e do uso do dinheiro de ambas).

Na verdade, a discussão sobre a doençae seu remédio, isto é, sobre a corrupção e ofinanciamento das campanhas, tem-se tor-nado altamente especializada e propõe cadavez mais a criação de órgãos tecnicamentecapacitados, para coibir as formas de se-qüestro privado da coisa pública. Trabalhoscomo os de Fleischer,

2 em que pese sua

qualidade, apresentam o reforço dos con-troles como a principal saída para um ambi-ente corrupto. Este ponto contrasta com oque dissemos no início do verbete, quandocomentamos que o debate sobre o financia-mento público é um dos poucos capazesde inflamar os ânimos políticos na discus-são brasileira sobre a reforma. Pois, comobem expressa Rodolfo Terragno em seuProyecto 95,

Se as pessoas não confiam nos partidos, amissão da política se torna ilusória: paramobilizar e orientar, os partidos precisam serconfiáveis. Como confiar em partidos queoperam às escuras? Como esperar que ad-ministrem bem o Estado quando não podem(ou não querem) mostrar sua própria admi-nistração? Se hoje recebem fundos clandes-tinos, como acreditar que, amanhã, tenhamindependência e autoridade para punir a clan-destinidade?

3

Porém, se o debate é quase candente,as propostas o esfriam. Praticamente nãohá projeto de solução de saída que enfatizea solução republicana — seja esta forte, istoé, propondo que caiba à ágora, aos cida-dãos, enfrentar a corrupção, seja ela fraca,confiando numa imprensa livre e pluralistapara equilibrar os pontos de vista opostos.Nesse sentido, o que se propõe em termosde equilíbrio de chances entre os partidos,no Brasil, não destoa muito de uma legisla-ção eleitoral e um sistema judicial eleitoralcujas principais preocupações mais pare-cem consistir em coibir a discussão e a ex-pressão de idéias — e seus exageros — doque em liberar o debate para os cidadãos.No fundo, há uma certa amargura ou decep-ção no interior desses debates políticos: é arenúncia à expectativa de que a res publicapossa prevalecer e, na sua falta, a apostanuma burocracia weberiana que dê contados excessos. Para aqueles que pensam apolítica como um excesso (Rancière, porexemplo, e os lacanianos), evidentemente,aqui há um erro de base, uma redução dapolítica à administração e à livre concorrên-cia entre os partidos, como se criássemosum conselho que, a exemplo do CADE, evi-tasse os monopólios e assegurasse a com-petição.

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Notas

1 “Ante esse panorama [uma imagem de desonestidadedos políticos de 87% na América Latina, contra 63%na média mundial], a primeira reação é a proposta desoluções normativas” (RUBIO, Delia Ferreira.Financiamento de partidos e campanhas: fundospúblicos versus fundos privados. Novos EstudosCebrap. n. 73, p. 6-16, nov. 2005). Acrescenta que“A nosso ver, a divulgação pública da origem e dodestino dos fundos que financiam a política é muitomais importante que o estabelecimento de limites erestrições de difícil aplicação e controle”, mas conclui:“a efetividade das restrições legais dependeessencialmente da capacidade e eficácia dos órgãosde controle”.

2 Ver, por exemplo: “Uma das razões para que acorrupção política seja praticada com uma relativaimpunidade no Brasil é a total falta de mecanismosinternos e externos de controle.” In: FLEISCHER,David. Political corruption in Brazil. The delicateconnection with campaign finance. Crime, law andsocial change, 25: 311, 1997; ver, também, seusCorruption in Brazil defining, measuring, and reducing.Washington: CSIS Report; e, especialmente: Oimpacto da Reforma Política sobre a Câmara Federal.Plenarium, 1: 123-41, 2004.

3 Citado, sem indicação do nome de Terragno, nointeressante trabalho de CAMPOS, Mauro Macedo.Financiamento de campanhas eleitorais e accountabilityna América do Sul: Argentina, Brasil e Uruguai emperspectiva comparada. Programa de Ciência Políticada UFMG, 2004.

Referências

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RUBIO, Delia Ferreira. Financiamento de partidos e campanhas: fundospúblicos versus fundos privados. Novos Estudos CEBRAP, n. 73, p. 6-16,nov. 2005.

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Corrupção eEstado de Direito

Newton Bignotto

Quando se discute reforma política noBrasil, um dos obstáculos mais citados parao pleno desenvolvimento da vida democráti-ca no país é a corrupção freqüente dos agen-tes do Estado e os prejuízos causados peloque muitos acreditam ser um fato generali-zado na vida pública. Essa percepção dosenso comum acompanha a maneira comoalguns cientistas políticos definem o fenô-meno da corrupção nas sociedades contem-porâneas. Gianfranco Pasquino no conhecidoDicionário de Política, editado dentre outrospor Norberto Bobbio, afirma que corrupção“designa o fenômeno pelo qual um funcio-nário público é levado a agir de modo diver-so dos padrões normativos do sistema,favorecendo interesses particulares em tro-co de recompensa. Corrupto é, portanto, ocomportamento ilegal de quem desempe-nha um papel na estrutura estatal.” Ao colo-car assim o problema, o autor restringe seualcance aos atores diretamente relacionadoscom a ação governamental e sugere que acorrupção é primariamente um ato ilegal,perpetrado por aqueles que deveriam zelarpelo bom funcionamento do aparelho esta-tal, notadamente os funcionários. O âmbitode ação dos corruptos é, pois, essencial-mente o Estado.

A abordagem da questão tal como apre-sentada mostra que o principal remédio paraa corrupção deve ser de natureza legal, umavez que ela é antes de tudo um ato de ilega-lidade. Isso sugere que uma reforma políti-ca deveria se concentrar na modificação dalegislação vigente, visando adequá-la aocaráter generalizado que o fenômeno pare-cer ter adquirido na sociedade brasileira.Ocorre que, se estudarmos o problema des-se ponto de vista, será mister reconhecer

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que o aparato legal brasileiro, como o demuitas nações democráticas, está longe deser omisso em relação aos funcionários quetransgridem a lei. O código de conduta dofuncionalismo, assim como a legislação bra-sileira em suas várias formas, prevê umasérie de punições, que são aplicadas commaior ou menor sucesso pelas correge-dorias públicas, assim como pela justiçacomum. A reforma da legislação certamentepode torná-la mais eficiente diante dos mui-tos desmandos que dominam nossa vidapública.

O que se deve perguntar, entretanto, ése a análise por esse viés abarca todos osaspectos do problema, mesmo na formacomo é percebido pelo senso comum. Omal-estar que domina muitos setores da so-ciedade brasileira, quando confrontadas coma pergunta sobre o funcionamento do Esta-do, não parece se esgotar na queixa contraa ineficiência dos mecanismos legais em pu-nir os transgressores. A corrupção é tidacomo um problema para a sociedade brasi-leira, em grande medida, porque é percebi-da como parte de nossa vida política emtoda sua extensão e não apenas em uma desuas dimensões. Quando se fala da corrup-ção dos políticos, o fenômeno ganha umaamplitude que não está prevista na análisede muitos cientistas sociais. A restrição daquestão, no entanto, como aquela operadapor Pasquino, tem o mérito de apontar parasoluções possíveis pelo uso de mecanismostradicionais de controle das atividades doEstado, que se torna muito mais difícil, quan-do tomamos a corrupção em sua acepçãomais larga, que afeta a relação dos cidadãosde um Estado com a vida política em gerale não apenas com uma de suas instânciasmais facilmente identificáveis. No caso bra-sileiro, parece-nos, entretanto, que o concei-to alargado de corrupção está mais próximodas preocupações dos cidadãos comuns,do que a abordagem restritiva proposta poralguns cientistas sociais.

Historicamente o problema da corrupçãofaz parte do vocabulário da filosofia políticadesde a Antiguidade. Platão abordou a ques-

tão no oitavo livro da República. Para o pen-sador grego cada regime político correspon-de a um tipo de homem. Assim, numaaristocracia, um determinado grupo socialrestrito ocupa o poder e governa segundoseus interesses e valores. Quando os filhosdos aristocratas perdem a capacidade dereproduzir o comportamento de seus pais,o regime se corrompe e se transforma emoutra forma de governo. O importante nessamudança de regime é que ela é inevitávelaos olhos do filósofo e se tornava inexorávelcom o passar do tempo.

A herança platônica foi recebida por Aris-tóteles — que a ela dedicou páginas lumi-nosas no quinto livro de sua Política —, edepois foi popularizada pelo historiador gre-go Políbio, que viveu no segundo século denossa era. Ele afirmava que os regimesmudavam segundo uma ordem predetermi-nada e sempre num mesmo sentido. Dosmelhores regimes passa-se para os pioresaté que é preciso regenerar inteiramente ocorpo político. Para resistir a essas mudan-ças, é necessário misturar na constituiçãodo regime elementos oriundos das três for-mas não degeneradas de governo: a reale-za, a aristocracia e a democracia. Com issopretende-se evitar que a simples passagemdo tempo destrua o corpo político sem queos homens possam fazer algo para detê-la.No entanto, mesmo num regime misto, acorrupção é um fato inexorável, que podeser retardado, mas não evitado para sem-pre. Para os antigos havia, portanto, umarelação direta entre o comportamento doshomens e a corrupção do corpo político, masela dizia respeito à essência dos regimes. Oque se corrompia eram as formas políticas,mas a origem do processo estava nos homens,nos costumes degradados e na violaçãofreqüente da lei. Durante o Renascimento,os humanistas italianos, Maquiavel em par-ticular, retomaram o problema do estudo dacorrupção, insistindo sobre o fato de que seos homens fracassam em defender os valo-res republicanos, a corrupção ganha terrenoe destrói o corpo político.

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Na modernidade Montesquieu abordou,no oitavo livro de seu Do espírito das leis, otema da corrupção de uma maneira que lem-bra a dos antigos. Para ele : “A corrupção decada governo começa quase sempre pelados princípios.” Mas o que é um princípio?Para o pensador, princípio é o que faz umregime político agir, a seta que guia os ho-mens em suas ações, quando devem fazerescolhas na cena pública. Numa repúblicao princípio é sempre a virtude. Isso não sig-nifica dizer que num regime republicano —que para ele engloba as democracias — oshomens ajam virtuosamente ou sejam sem-pre virtuosos. Montesquieu, no livro quartode Do espírito das leis, afirma que: “Pode-mos definir esta virtude como o amor pelasleis e pela pátria. Este amor. Exigindo sem-pre a supremacia do interesse público so-bre o interesse particular, produz todas asvirtudes individuais; elas nada mais são doque esta supremacia.” Ao se corromper oprincípio de uma república o que se consta-ta é que os homens deixam de agir por amorà pátria, ou param de defender os interes-ses públicos acima de tudo, e passam a seguiar por outros ideais, que tanto podem seros desejos individuais, quanto a honra, quemove as monarquias.

No século 19, essa maneira de abordar oproblema da corrupção deixou de ser consi-derada e foi aos poucos perdendo terrenopara análises mais próximas daquelas quedominam hoje as ciências sociais. Que sen-tido tem então recorrer ao passado? Certa-mente não podemos mais nos referir àcorrupção como a um fenômeno natural, nemmesmo esperar da mistura de diversos mo-delos de governo a solução para as gravesquestões suscitadas pela corrupção dosagentes do Estado. O que cabe é reter aidéia de que ao se corromper o corpo políti-co perde sua identidade e deixa de oferecera seus membros a proteção de suas leis.Para manter viva essa herança devemos,pois, ver de que maneira a modernidade al-terou nossa forma de pensar a natureza doscorpos políticos e sua forma de funcionar.

O primeiro passo para efetuar o vínculoentre a tradição e a modernidade é reconhe-cer que a identidade das nações contempo-râneas é garantida por sua Constituição —conjunto de leis fundamentais que não podeser modificado pelos governantes particula-res — e não mais por princípios abstratosou transcendentes. Embora possamos pen-sar a Constituição de diversas maneiras, oque reúne as diversas concepções é a idéiade que os Estados modernos são estrutura-dos em torno de leis fundamentais, que ga-rantem seu funcionamento e limitam ospoderes dos governantes. Tanto para aque-les que, como Rousseau ou Hegel, enxer-gam na Constituição um organismo jurídico,que confere unidade ao Estado, quanto paraos que, como Locke e Rawls, vêem no apa-rato legal constitucional uma maneira degarantir os direitos individuais pela limitaçãodos poderes, a afirmação da identidade doEstado moderno por sua Constituição partedo princípio da superioridade das leis sobreas vontades individuais. Nesse sentido, aocriar o mecanismo constitucional, seja pelapreservação dos costumes e leis tradicio-nais (Burke), seja pela expressão escrita davontade do povo (Thomas Paine, Rousseau),os cidadãos assumem que desejam viversegundo seus princípios e que estes nãopoderão ser destruídos sem que o Estadotambém o seja. Uma das conseqüênciasdessa maneira de abordar o problema dafundação das formas políticas é que não háEstado de direito e Constituição sem queaja delimitação das fronteiras entre o domí-nio público e o domínio privado. Da mesmaforma, nessa lógica, a Constituição é o mar-co último para decidir da legalidade ou ile-galidade de uma ação.

Para pensar o problema da corrupção noBrasil é importante fugir de sua interpreta-ção corriqueira, levar em conta as relaçõescomplexas, que se estabeleceram ao longodos anos entre órgãos estatais e grupos pri-vados. Dentre nós, a Constituição nunca che-gou a ocupar o lugar que tem na vida políticade nações como os Estados Unidos. Emboratenhamos uma rica história constitucional,

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a separação entre o público e o privado nemsempre é percebida como um fato derivadodas leis fundamentais e nela refletidos. Deum lado, grupos ou partidos políticos quechegam ao poder costumam desconhecero fato de que o aparato constitucional cons-titui um limite instransponível para suasações. Agindo como grupo privado, váriosatores políticos se comportam como se avitória nas eleições significasse a posse datotalidade dos poderes do Estado. A confu-são entre a esfera do governo e os domíniosdo Estado conduzem à crença de que a so-berania popular, origem das leis em umademocracia, é apenas uma referência ideal,sem correspondência na realidade. Por ou-tro lado, o próprio Estado parece reproduzirseus quadros, como mostrou Faoro, criandoum grupo dirigente, que não reconhece limi-tes para suas práticas, além daqueles ine-rentes às disputas políticas.

Olhando para esse quadro, é possívelconcluir que no Brasil, se a corrupção é emgrande medida o efeito do comportamentoilegal de funcionários públicos, ela é um fe-nômeno que atinge setores muito mais am-plos de nossa sociedade e ameaça rompero equilíbrio constitucional atentando contraalguns de seus princípios fundamentais.Atacar o problema de frente implica retomaro debate sobre as definições entre o públicoe o privado e pensar numa reforma da legis-lação que contemple o conjunto das forçaspolíticas, e não apenas os agentes do Esta-do. Essa ampliação dos horizontes da análi-se ajuda a ver que a corrupção é um riscopara os fundamentos da democracia. Aopreferir os interesses privados aos interes-ses públicos, mais do que transgredir a lei,atinge-se o núcleo mesmo do Estado: suaConstituição. Uma reforma da legislação terápois necessariamente que levar em conta aameaça representada pelos corruptos e ofato de que a corrupção diz respeito à ma-neira como a sociedade como um todo lidacom a coisa pública. O Estado de direitonão sobrevive sem que todos os atores en-volvidos no processo sejam responsabiliza-dos e sem a afirmação da superioridade do

bem público sobre o bem privado. É claroque os crimes cometidos por funcionários ecidadãos devem ser punidos segundo a le-gislação vigente. Mas, se quisermos levarem conta a natureza verdadeiramente políticada corrupção, será preciso prestar atençãoa seu nascedouro nas relações promíscuasentre os interesses de agentes particularese as ações governamentais. Sem uma defi-nição clara das fronteiras entre o público e oprivado e a extensão da punição a todos osagentes corruptores, as diversas práticas ile-gais, que caracterizam a corrupção no Brasil,serão uma ameaça constante à manuten-ção do Estado de direito. A idéia dos anti-gos de que a corrupção dos homens leva àdestruição do corpo político serve, assim,como uma indicação dos riscos que corre-mos, quando abandonamos o marco dasleis fundamentais, para gerirmos a vida pú-blica com a lógica imediata das disputaseleitorais.

Referências

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Voto Obrigatório

Cícero Araújo

O voto obrigatório é aquele em que aparticipação eleitoral não é deixada ao arbí-trio do eleitor, mas determinada por lei, queassim prevê sanções no caso de não-cum-primento. Seu oposto é o voto facultativo.

Desde sua introdução em países euro-peus, no final do século 19 — a regra é ado-tada no Brasil desde 1934 —, o votoobrigatório é objeto de aceso debate, queincide sobre o próprio caráter da participa-ção política num regime democrático. O pre-sente verbete dará um panorama dessedebate.

As razões a favor ou contra o voto obriga-tório podem ser classificadas em dois tipos:I) razões de princípio, que levam em conta osignificado e o estatuto mesmo do ato devotar; e II) razões prudenciais, que conside-ram os efeitos benéficos ou danosos daobrigatoriedade (ou não) da participação.

I) Os críticos costumam argumentar que,se o voto é um direito, por definição ele nãopoderia ser obrigatório. Das duas, uma: oupossuímos um direito, caso em que está emnosso poder exercê-lo ou não; ou somoscompelidos por lei a fazer algo, e então issoé de fato uma obrigação, não um direito.Porém, grande parte dos defensores do votoobrigatório concebem que o voto é um direi-to do cidadão, o que seria uma contradiçãopatente.

Há duas respostas distintas a essa obje-ção conceitual. Pode-se simplesmente dei-xar de lado a idéia de que o voto é um direito,para passar a vê-lo como um dever do cida-dão, passível da compulsão da lei. Nessecaso, faz-se necessária uma linha de argu-mento para explicar por que não seria umdireito. Mas há ainda outro tipo de resposta:pensar num sentido de “direito” compatívelcom a simultânea idéia de obrigação. O voto

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seria, por exemplo, assemelhado ao direitoà educação, no qual se faz necessário dis-tinguir “o acesso a” algo, de seu desfruteefetivo. Todo cidadão tem direito de acessoà educação — no sentido de que pode exi-gi-la do Estado —, mas, uma vez obtido,não está ao arbítrio do favorecido exercê-loou não. Tanto que, nos países em que aeducação é declarada um direito, ela é tam-bém obrigatória para os seus beneficiários.Em outras palavras, um direito e um deverlegal ao mesmo tempo.

Mas seria mesmo adequado aproximaro voto à educação? A compulsoriedade daeducação está relacionada à tutela que oEstado reivindica sobre sua população maisjovem. Na verdade, o Estado obriga os paisa exercerem sua função de tutores dos fi-lhos; em caso de falha paterna nessa tare-fa, o Estado se encarrega de cumpri-ladiretamente. A tutela, porém, é dirigida apessoas que ainda não atingiram a maiori-dade, isto é, a plena autonomia e responsa-bilidade por seus atos. Mas essa idéia nãose aplica ao voto, que justamente pressu-põe a autonomia, não a tutela. Não se con-cede o voto a quem precisa de tutor. E issonos remete ao cerne do problema de conce-ber o voto como uma obrigação legal.

John Stuart Mill, num célebre ensaio so-bre o governo representativo, propôs que,em vez de pensá-lo como um direito indivi-dual — que pode ser exercido ou não, oumesmo transferido, ao arbítrio de seu pos-suidor —, o voto deveria ser considerado oresultado de um ato público de confiança(trust), que lançaria a seu receptor certas res-ponsabilidades, a começar o próprio ato devotar.

O exercício de qualquer função política, sejacomo um eleitor ou como um representan-te, é um poder sobre os outros. Aqueles quedizem que o sufrágio não é um ato de confi-ança, mas um direito, dificilmente aceitarãoas conclusões a que sua doutrina conduz. Seé um direito, se pertence ao eleitor em seupróprio benefício, com que base poderíamosculpá-lo por vendê-lo, ou por usá-lo para re-comendar a si próprio a quem seja de seuinteresse agradar?

Atribuir a alguém um título de eleitor,portanto, não é o mesmo que atribuir-lhe umtítulo de propriedade, mas antes oficiar-lhea obrigação de fazer jus à confiança neledepositada, que é também um reconheci-mento de sua capacidade para contribuir comuma atividade necessariamente concertada.Mais do que da educação, poder-se-ia ar-gumentar, o voto se aproximaria de ativida-des como o serviço militar: de um tipo deserviço que, ou se realiza coletiva e coopera-tivamente, ou perde sua eficácia. Como nãose trata de tutela, não seria contraditório fa-lar aqui de uma mesma pessoa ter um direi-to de acesso que, sendo algo distinto deum título de propriedade, é complementadopor um dever de exercício. Quanto à trans-formação desse dever numa obrigação le-gal, esta poderia ser justificada como umaforma de evitar que uma parte dos cidadãosjogue nas costas dos demais um serviçopúblico. Seria, em suma, um modo de deses-timular aquilo que os cientistas políticos cos-tumam chamar de “efeito do carona”.

Contudo, há um problema que esse ar-gumento parece não levar em consideração:a qualidade do voto. Num regime democrá-tico, o voto define a qualidade de suas deci-sões, especialmente no que diz respeito àescolha dos representantes da comunida-de. Nesse sentido, querer que todos partici-pem de uma eleição implica supor que ovoto de cada participante faz diferença, e,portanto, que cada voto expressa uma deci-são independente. É por isso que a quanti-dade de votos não deve servir de substitutopara a sua qualidade. Note-se que, sob essaperspectiva, o direito de sufrágio é incom-patível com a obrigação legal, mas não épreciso que o seja com o dever cívico, con-tanto que pensado em termos morais, e, não,jurídicos. O cidadão tem o direito (legalmentegarantido) e também o dever (moral) de vo-tar, mas de votar com sua consciência. Esseé o significado crucial de uma eleição “livre”e daí que tenha de ser formulada em termosde um direito: a livre consciência do eleitor,sua espontaneidade, digamos assim, definea qualidade de seu voto. Mas é exatamente

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isso que o instituto da obrigatoriedade pare-ce desprezar. E, ao induzir o voto leviano ealienado, a regra provoca a ampliação depráticas clientelísticas na relação candida-to-eleitor, cada lado vendo nela uma oportu-nidade de troca de favores.

II) As ponderações de princípio, no en-tanto, não esclarecem toda a questão. Mes-mo que argumentos dessa ordem venhama nos fazer pender na direção do voto facul-tativo, seria imprudente desconsiderar osefeitos, reais ou possíveis, de sua institui-ção numa sociedade com tais ou quaiscaracterísticas. Se desprezamos esse as-pecto, uma medida, em tese, bem-inten-cionada pode revelar-se perversa na prática.Ou, ainda que correta conceitualmente, a de-pender da estrutura social sobre a qual seergue, acabe produzindo efeitos danosos quesuperem muito os benéficos. É esse o pon-to em que se fixam certos defensores dovoto obrigatório.

Tomemos, por exemplo, os efeitos daparticipação/abstenção eleitoral sobre arepresentação política. Há quase um con-senso entre os cientistas políticos de que amaior ou menor extensão e variedade dessaparticipação tem seus reflexos no compor-tamento dos representantes. Quanto maisum determinado grupo social é alijado dovoto, menor a chance de encontrar agênciaspolíticas dispostas a fazer ecoar suas quei-xas ou defender seus interesses. Já o sim-ples fato de um representante saber queessa participação existe, altera seu modode proceder na arena pública. De modo queuma participação eleitoral diferenciada degrupos sociais causa efeitos distintos na atu-ação dos governantes. Quem participa me-nos recebe menos atenção.

É isso que parece ocorrer quando o vototorna-se facultativo. Grupos marginalizadosda sociedade — marcados desfavoravel-mente pela escolaridade, pela distribuiçãode renda ou pelo preconceito racial — ten-dem a participar menos das eleições. Seupróprio alijamento social os torna mais des-crentes das instituições políticas, logo, me-nos estimulados a votar. Não votando,

contudo, esses grupos acabam reforçandosua marginalização social, pelas razões ex-postas acima. O voto obrigatório seria entãouma política de Estado que, mesmo não eli-minando a desigualdade política derivada daestrutura social, pelo menos a atenuaria. Eisso já compensaria as desvantagens daprópria compulsoriedade. De fato, a sériehistórica de eleições nos Estados Unidos,onde o voto é facultativo, revela uma menorproporção de comparecimento eleitoral dapopulação negra em relação à branca. NoBrasil, uma pesquisa de opinião recente in-dica que as faixas de menor escolaridadecompareceriam menos do que as de maiorescolaridade, se lhes fosse dada a opçãode não votar. O caso dos Estados Unidos,especialmente, é um alerta para o perigo deque a defesa do voto facultativo se torne umálibi para justificar o descompromisso deli-berado para com as camadas mais preteri-das da sociedade.

Quanto aos efeitos da abstenção sobreas decisões de governo, em especial aspolíticas públicas, os dados empíricos nãosão claros. Mesmo com informações incon-clusivas, há quem pondere, tendo em con-ta, por exemplo, a história do desempenhode Estados como o brasileiro para diminuiras desigualdades sociais — mesmo emtempos de democracia, mas com voto obri-gatório —, que o impacto de um compareci-mento eleitoral amplo e variado é nulo ouirrelevante. Os porta-vozes dessa opinião atésugerem que, no fundo, os grupos margina-lizados têm um motivo bem razoável parase abster ou desejar se abster: a percep-ção, geralmente confirmada, de que seu votofaz pouca diferença. Não votar seria, portan-to, um sinal de protesto.

Mas se é um protesto contra as práticasda representação política, por que não votarem branco ou nulo, em vez de se abster?Essa pergunta remete à relação entre o com-parecimento eleitoral e o grau de compromissodos cidadãos com a sustentação de um re-gime democrático. Será que esse compro-misso deve depender exclusivamente dodesempenho satisfatório dos representantes?

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Suas falhas, ainda que graves, deveriam le-var à rejeição do próprio regime político?Após uma experiência recente e dolorosa deditadura militar, essa é uma questão inquie-tante para muitos brasileiros sinceramentepreocupados em preservar do esvaziamentouma democracia frágil e ainda em constru-ção. É certo que a rejeição da representaçãopolítica corrente não implica a condenaçãodo regime democrático em si, diferença quepoderia ser muito bem marcada pelo com-parecimento com voto nulo ou em branco.Porém, boa parte do eleitorado potencial nãoa percebe, o que acaba facilitando o cami-nho da abstenção.

O voto obrigatório, por sua vez, não pare-ce ser capaz de corrigir essa deficiência, namedida em que seja fator de participaçãopouco refletida. Retornamos então ao pontocrucial: a quantidade não substitui a quali-dade. O compromisso com o regime não éfunção de números expressivos de compa-recimento que se possam apresentar no fi-nal de um pleito — como faziam os governossocialistas autoritários do Leste Europeu —,mas do engajamento consciente e delibera-do na sua sustentação.

Assim, desde que os efeitos da partici-pação/abstenção são bastante incertos, tantoos defensores quanto os críticos do votoobrigatório não teriam motivos para se en-trincheirar tão rigidamente em suas posi-ções. Já as visões de princípio, embora muitoimportantes para iluminar o caminho da dis-cussão, não deveriam permanecer imunesàs conseqüências práticas da adoção deuma norma institucional, que certamentevariam de acordo com o contexto, social ouhistórico, por mais inconclusivas que sejamas pesquisas empíricas sobre como elasvariam. No fim das contas, ambos os ladostêm de reconhecer que a definição instituci-onal do caráter do voto não substitui a ne-cessidade de esclarecer a cidadania, atravésdos partidos, dos meios de comunicação edo próprio sistema educacional, a respeitodo que está em jogo nesse gesto aparente-mente simples, mas tão emblemático dadisposição cívica das nações democráticas.

Referências

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CPIs eInvestigação Política

Fábio Wanderley Reis

As informações sobre as origens dascomissões parlamentares de inquérito sãovariadas e desencontradas. Há mesmo inter-pretações que as fazem remontar à própriaconquista normanda da Inglaterra. Maisusualmente, porém, elas são ligadas aosdesdobramentos da Revolução Gloriosa de1688 e do desenvolvimento do parlamenta-rismo naquele país, apesar de que gradual-mente a indicação de comissões especiaistenha então sido substituída pela atuaçãodo próprio Gabinete na realização das inves-tigações sobre eventuais desvios de condutaem assuntos governamentais. Na primeirametade do século 19 as comissões parla-mentares de inquérito se estabelecem maisnitidamente na tradição britânica, com seupapel decaindo em seguida até a implan-tação, em 1921, dos Tribunais de Inquérito,destinados a funcionar em bases mais perma-nentes e menos sensíveis ao facciosismo oupartidarismo político.

Mas é nos Estados Unidos que as co-missões parlamentares de inquérito maisse desenvolvem. Isso pode ser visto comodecorrência da importância adquirida pelorecurso a comissões, em geral, no Congressoestadunidense, a qual, por sua vez, podeser vinculada à peculiar dinâmica partidáriado país. Girando em torno de partidos cor-respondentes ao que Maurice Duverger de-signou como “partidos de quadros” (decoesão precária e funcionamento pratica-mente restrito ao próprio Parlamento ou Con-gresso, a não ser nos momentos eleitorais),essa dinâmica tende a favorecer a operaçãode comissões suprapartidárias, em contrastecom o efeito produzido no âmbito parlamentarpelo longo predomínio, em diferentes paísesda Europa, de partidos coesos e disciplinados,de orientação ideológica mais marcada emais próximos ao modelo dos “partidos de

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massas” de Duverger. Seja como for, asconstituições de vários estados norte-ameri-canos já contemplavam, desde a indepen-dência, o mecanismo das comissõesparlamentares de inquérito, e elas continuama ter papel destacado, tanto no âmbito esta-dual, quanto no federal. A influência da expe-riência dos Estados Unidos foi certamente ade maior importância para a introdução domecanismo das comissões parlamentaresde inquérito no Brasil. Mas elas são tam-bém importantes em vários outros países,podendo-se citar Alemanha, Grécia, Irlandae Austrália como exemplos de relevo.

Um conveniente resumo do status dascomissões parlamentares de inquérito nassucessivas constituições brasileiras é forne-cido por Sérgio Resende de Barros em textorecente (Barros, 2006). Ausentes das duasprimeiras constituições, as de 1824 e 1891,elas vão aparecer pela primeira vez na cons-tituição de 1934, que previa a CPI em seuartigo 36. A CPI era aí restrita, porém, à Câ-mara dos Deputados, enquanto o poder paracriar comissões de inquérito estava restrito,no Senado, à parte dele que funcionava du-rante o recesso parlamentar, a “Seção Perma-nente”. Omitido, naturalmente, na Constituiçãode 1937, imposta por Getúlio Vargas, o instru-mento da CPI retorna na Constituição de 1946,sendo previsto para ambas as Casas legisla-tivas. Já a Constituição de 1967, no artigo 39,prevê a CPI mista de deputados e senadores,além da CPI de cada Casa, introduzindo,ainda, a exigência de prazo certo para o fun-cionamento da CPI, ademais de reafirmar aexigência de que ela tenha “fato determi-nado” como seu objeto, que já vinha desdea Constituição de 1934.

A Constituição em vigor, promulgada em1988, dispõe sobre comissões parlamentaresde inquérito no parágrafo 3 do artigo 58, rela-tivo a comissões permanentes e temporáriasdo Congresso Nacional. Diz o parágrafo 3:

As comissões parlamentares de inquérito,que terão poderes de investigação própriosdas autoridades judiciais, além de outros pre-vistos nos regimentos das respectivas Casas,serão criadas pela Câmara dos Deputados epelo Senado Federal, em conjunto ou sepa-radamente, mediante requerimento de um

terço de seus membros, para a apuraçãode fato determinado e por prazo certo, sendosuas conclusões, se for o caso, encami-nhadas ao Ministério Público, para que pro-mova a responsabilidade civil ou criminaldos infratores.

A avaliação a ser feita do instrumentorepresentado pelas comissões parlamentaresde inquérito e do papel que têm cumpridona vida política brasileira é equívoca. Emprincípio, elas certamente podem trazer con-tribuições positivas e importantes na expo-sição pública de conduta imprópria em áreasvariadas e no seu eventual esclarecimento.Contudo, dada precisamente a publicidadeque tende a cercá-las, e que é afim às pró-prias razões de que existam, a atuação dasCPIs se vê exposta também às complicaçõese dificuldades que, do ponto de vista do idealdemocrático, envolvem a operação da “opi-nião pública” e as relações entre maiorias eminorias.

Assim, as comissões parlamentares deinquérito são com freqüência, como suge-rido acima, objeto de partidarização e faccio-sismo excessivos, com conseqüênciasnegativas. Esse aspecto de facciosismopode ser ligado, na atualidade brasileira, aopróprio dispositivo do artigo 58 da Consti-tuição que estende às comissões, incluídasas CPIs, o princípio da proporcionalidade narepresentação dos partidos ou dos blocosparlamentares que participam da respectivaCasa legislativa. Embora o dispositivo possa,sem dúvida, pretender justificar-se em termosdemocráticos, sua vigência redunda em queos partidos ou blocos majoritários possam,com freqüência, estabelecer ou bloquear ainstalação de CPIs, ou condicionar fortementeo seu funcionamento uma vez implantadas.

A justificação democrática do dispositivoremete à importância da regra da maioriacomo meio, que parece natural ou mesmoinevitável, de traduzir em termos operacionaisa idéia da vontade da coletividade, seja qualfor a escala em que esta se defina. Mas osproblemas se introduzem se temos em con-ta, com referência à coletividade políticaabrangente, o contraste entre o modelo dademocracia direta, que tende a consagrar

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sem mais a vontade da maioria em cadamomento, e o modelo da democracia cons-titucional, empenhado na construção institu-cional complexa em que regras básicaslimitam o peso das maiorias cambiantes (eda maioria suposta, a difusa “opinião pú-blica”) e tornam possível garantir os direitosliberais e civis, incluídos os direitos das mi-norias (como se sabe, a idéia dos direitoscivis não existia, por exemplo, na Atenas clás-sica, o grande exemplo de democracia di-reta). Ora, as democracias modernas,incluída a brasileira, são, com boas razões,democracias constitucionais e representa-tivas (com os partidos políticos cumprindopapel indispensável no processo de repre-sentação), ainda que haja experimentaçãomais ou menos intensa com mecanismosde democracia direta em diferentes casos— experimentação que se vê cercada tantode aspectos positivos e promissores quantode conseqüências problemáticas. Por outrolado, elas são também democracias em quea “opinião pública” se faz sentir fortementee de modo peculiar, tendo em vista a impor-tância, a diversidade e o dinamismo cres-cente dos meios de comunicação demassas.

Tudo isso traz dificuldades à avaliaçãodas comissões parlamentares de inquérito.Alguns pretendem ligar a atuação das CPIsjustamente ao fato — seja como causa oucomo efeito — de que haja “clamor público”a respeito de determinados assuntos ou pro-blemas, clamor este que é mesmo vistocomo um fator de legitimação delas, parti-cularmente no caso de certos desdobra-mentos especiais, como o do impeachmentde governantes. Mas não cabe ignorar atensão sugerida entre o clamor público (oua “opinião pública”) e os princípios que ademocracia constitucional e representativaconsagra. A pressão em favor da unanimi-dade e a tendência a suprimir a divergênciaque se podem apontar na dinâmica da opi-nião pública são, na verdade, traços que, jun-tamente com pressões de outro tipo, não sódificultam a manifestação das preferênciasprivadas e autênticas dos próprios cidadãose eleitores: elas são obstáculos, igualmente,à livre deliberação pelo representante ou

parlamentar no exercício de suas funções,incluindo o trabalho das comissões parla-mentares de inquérito. Se ninguém ques-tiona que o voto secreto seja uma conquistademocrática quando se trata do cidadãoem seu papel de eleitor, pretender algo dis-tinto com respeito às decisões no âmbito par-lamentar redundaria em defender o chamado“mandato imperativo”, em que o parlamentarsimplesmente faria o que quisessem os elei-tores em cada momento e cuja impropriedadenas condições da democracia constitucionale representativa é evidente — ainda que po-nhamos de lado a diversidade de pressõesa que pode estar sujeito o parlamentar e asdificuldades adicionais que vêm daí. Masos embaraços envolvidos nesses temascomplicados (vejam-se, por exemplo, Elster;Slagstad, 1993; Kuran, 1995) contaminamtambém, naturalmente, o próprio recurso àregra da maioria e à proporcionalidade parti-dária no que se refere à implantação e aofuncionamento das comissões parlamentaresde inquérito, transformando-as em instru-mento sempre disponível — e fatalmenteespúrio, em algum grau — para atores demotivação politicamente míope ou miúda.

A experiência com as comissões parla-mentares de inquérito na história política maisou menos recente do país respalda a ambi-valência em sua avaliação. Tomemos, paracomeçar, um exemplo relativo às turbulênciasdo período democrático de 1945 a 1964.Temos, em abril de 1953, a instalação, sobo controle da oposicionista União Democrá-tica Nacional (UDN) e a inspiração da cam-panha sem tréguas empreendida contra ogoverno constitucional de Getúlio Vargas porCarlos Lacerda, deputado e dono do jornalTribuna da Imprensa, da CPI destinada aapurar o suposto favorecimento financeiroque teria sido prestado ilicitamente pelogoverno ao jornal Última Hora, de SamuelWainer, que competia com a Tribuna e ata-cava Lacerda ferozmente. Embora nada setenha provado sobre o envolvimento do go-verno, inviabilizando-se uma eventual propostade impeachment, o fato é que a CPI foi umfator saliente do tumulto político que cul-minou no suicídio de Vargas em agosto do

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ano seguinte. E o episódio tem o interessede permitir salientar de forma singularmentedramática o caráter problemático do recursoà opinião pública, com suas idas e vindas:qual, na conjuntura, a “verdadeira” opiniãopública, a que vociferava com Lacerda e aUDN ou a que se viu mobilizada em seguida,com a comoção popular causada pela mortedo presidente?

Mais recentemente, há vários exemplosde CPIs cuja atuação pode ser apreciada demaneira positiva, embora a ligação entre amaior ou menor legitimidade de suas decisõese o “clamor público” ocorrido em torno delasnão seja menos problemática. Tivemos a CPIde Paulo César Farias, tesoureiro da cam-panha de Fernando Collor à Presidência, quese dedicou a apurar denúncias de corrupçãoe resultou, em 1992, no impeachment dopresidente, que, em seu ineditismo, redundaem claro reforço do quadro institucional aofazer-se sem tropelias ou violências extra-legais. Na esteira desses acontecimentos,e com desdobramentos institucionais quedevem igualmente ser vistos com bonsolhos, tivemos em 1993 a CPI do Orçamento,em que a Câmara foi levada a “cortar na pró-pria carne”, como se ressaltou então, com acassação de vários deputados — os quaisincluíam, porém, o deputado Ibsen Pinheiro,posteriormente inocentado pela Justiça. Levan-tamento realizado por Bertha Maakaroun emmatéria recente no jornal Estado de Minas(Maakaroun, 2006.) vê com grandes reservasos ganhos obtidos com as 125 CPIs criadasno Congresso Nacional nos últimos 22 anos:não só são poucas as punições efetivas deculpados, mas são também grandementeescassos os avanços legais resultantes desuas recomendações. E os problemas acar-retados pelo facciosismo partidário continuama mostrar-se claramente em vários casos:destaquem-se a CPI do Banestado, levadaa sequer produzir um relatório final em con-seqüência do enfrentamento partidário entreo presidente e o relator (apesar da gravidadedas denúncias contidas em material rece-bido do Ministério Público sobre os bilhõesde reais em contas de servidores públicosno exterior); e a CPI dos Bingos, conduzidano Senado, na qual o controle exercido pela

oposição ao governo Lula tem permitido queassuma a feição de “CPI do fim do mundo”,como tem sido chamada na imprensa, comatuação legalmente questionável. Mas há, nadireção contrária, o contra-exemplo de outraCPI recente, a CPI dos Correios, que inega-velmente ajudou a lançar luz sobre os des-mandos do PT quanto à compra de apoio noCongresso, não obstante o governo ter su-postamente seu controle “total”, como regis-trava a imprensa em meados de junho de2005.

Uma indagação final sobre os matizesna ligação entre CPIs e “opinião pública”. Elaé sugerida, entre outras coisas, pelos dadossobre o persistente apoio popular a Lula queas pesquisas apontam, apesar da derrocadapetista de 2005: a continuada exposiçãopública das refregas que têm as CPIs comocenário não concorrerá para a intensificaçãodo desgaste da atividade política como tal,com conseqüências, ao cabo, certamentenegativas?

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2Participação e

Opinião PúblicaIniciativa Popular

Sonia Fleury

Iniciativa popular designa, em termosgenéricos, diferentes maneiras de partici-pação popular no exercício dos poderesLegislativo e Executivo — incluindo o plebis-cito, referendo, conselhos gestores, orça-mento participativo, conselhos — em termosestritos, ou iniciativa popular legislativa, opoder de acesso de um grupo de cidadãosna elaboração de um Projeto de Lei, cum-pridos certos pressupostos legais, a ser sub-metido à apreciação do Poder Legislativo.

Trata-se, em ambos os casos, da conju-gação de mecanismos de democracia repre-sentativa com instrumentos de democraciadireta ou de participação popular. No Brasil,como em outros países, a soberania popularse exerce, primordialmente, por meio da re-presentação da cidadania obtida através deeleições de seus representantes no PoderLegislativo e no Poder Executivo. No entan-to, cada vez mais, tornam-se presentesmecanismos de participação popular quedemonstram a possibilidade e a necessi-dade de convivência da democracia repre-sentativa com a democracia participativa.A Constituição Federal de 1988 – CF/88consagra ambas modalidades de exercícioda soberania no artigo primeiro, parágrafoúnico, onde se lê: “Todo o poder emanado povo, que o exerce por meio de represen-tantes eleitos ou diretamente, nos termosdesta Constituição.”

Os cinco mecanismos de participaçãopopular mais conhecidos e utilizados no mun-do são o plebiscito, o referendo, a iniciativapopular, o recall, e o veto popular. No Brasil,apenas os três primeiros foram inscritos noartigo 14 da CF/88:

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A soberania popular será exercida pelo su-frágio universal e pelo voto direto e secreto,com valor igual para todos, e, nos termos dalei, mediante:

I – plebiscito;II – referendo;III – iniciativa popular.

A trajetória da inscrição da participaçãopopular nos marcos legais no Brasil tem sidomais retórica que efetiva, só mesmo repre-sentando um novo patamar de exercício dademocracia a partir da CF/88.

Benevides (1991) historia a participaçãopopular nas Constituições brasileiras desdea existência do princípio da revogação dosmandatos de representantes no Império, emrelação à possibilidade de perda de mandatodos eleitos para o Conselho de Procuradoresdo Estado. No entanto, este instituto previstoem 1822, durou apenas um ano. Tambémmenciona a ação popular na Constituição de1824, que previa a responsabilização penaldos juízes de direito e dos oficiais de justiçaem casos de suborno, peita, peculato e con-cussão. No entanto, recorre à interpretaçãodo historiador Francisco Iglesias para analisaresta iniciativa como uma forma de disfarçara outorga da Constituição de 1824.

A Constituição Federal de 1891 nãocontinha instrumentos de democracia semi-direta, embora as primeiras constituiçõesrepublicanas de alguns estados da Fede-ração, como a de São Paulo, admitiam nãosó a revogação dos mandatos legislativoscomo também o veto popular, ou seja, aanulação das deliberações das autoridadesmunicipais mediante proposta de um certonúmero de eleitores. Já as constituiçõesrepublicanas dos estados do Rio Grandedo Sul, de Goiás e de Santa Catarina, tam-bém introduziram o princípio do recall , istoé, o poder do eleitorado para cassar o man-dato de seus representantes.

Enquanto a Constituição Federal de 1934não acolheu os mecanismos de democraciasemidireta, apenas introduzindo a inovaçãoda representação classista, a Carta Outor-gada de 1937 estabelecia quatro modali-dades de plebiscito, relativas à alteração dadivisão territorial, atribuição de poderes legis-lativos ao Conselho de Economia Nacional,

aprovação de eventual emenda ou projetode alteração da Constituição e, finalmente,rezava que o próprio texto constitucionaldeveria ser submetido a plebiscito, o quejamais ocorreu.

O período democrático que se inauguraem 1945 e se consubstancia na Constituiçãode 1946 privilegiou a opção por uma demo-cracia representativa sem participação po-pular, vistas como concorrentes, sendo queapenas o plebiscito foi previsto para os casosde alteração da divisão territorial. Por essarazão, o plebiscito que ocorreu em 1963, foi,por muitos, considerado sem respaldo jurí-dico. O clima político conturbado pela re-núncia do presidente Jânio Quadros e aedição de Emenda Constitucional (nº 4 de1961), alterando o sistema de governo coma instauração do parlamentarismo, propi-ciaram a convocação do plebiscito no quala população aprovou, mais do que tudo, aretomada dos poderes pelo presidente JoãoGoulart.

A atmosfera hostil à democracia presentena confecção da Constituição de 1967 e daEmenda nº 1 de 1969 não permitiu avançosem relação à participação popular, apenasacrescentando a consulta prévia à populaçãopara a criação de municípios. A explosão daparticipação popular como tema de debatese como prática política vem a ocorrer coma redemocratização e a mobilização e a orga-nização da sociedade civil em torno dasgrandes campanhas políticas como as Di-retas Já em 1985 e as lutas por uma Assem-bléia Nacional Constituinte – ANC exclusivae soberana. Apesar das derrotas sofridasem relação às duas propostas, com a insta-lação da ANC congressual em 1987, há umaintensa campanha pelo direito de apresen-tação de emendas populares que terminavitoriosa.

O regimento da ANC garantiu o direito àemenda popular, (artigo 24) além da possi-bilidade de apresentação de sugestões e deaudiências públicas nas comissões temá-ticas. As organizações da sociedade civilparticiparam ativamente do processo cons-tituinte fazendo uso destes instrumentos,

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levando os constituintes a tomarem contato

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com a efervescência dos movimentos so-ciais e com suas propostas de instituciona-lização da participação popular.

Os argumentos em defesa da partici-pação popular são resumidos por Sgarbi eAssad (2006):

1- a democracia semidireta ou participativa éum processo permanente de educação paraa cidadania ativa;2- o regime democrático é fortalecido com acobrança e o controle da população;3- corrige os vícios de sistemas de governodesassociados da opinião pública;4- os pequenos partidos, apoiados pela opi-nião pública, são fortalecidos;5- no âmbito municipal, o cidadão pode de-cidir sobre questões que lhe dizem respeito;6- criação de novas lideranças a partir de pe-quenas comunidades;7- fonte de legitimação e recuperação daesfera política, podendo evitar cisões.

As críticas em relação à democracia parti-cipativa estão baseadas na idéia de que elarestringiria a própria existência do regimedemocrático, ao solapar a legitimidade dosrepresentantes eleitos, além de ser passívelde manipulação da população pelo gover-nante, fortalecendo, assim, sua autoridadeem situações de conflito com o Legislativo.

Em termos históricos encontramos evi-dências que comprovam a veracidade deargumentos tanto favoráveis quanto desfa-voráveis à democracia participativa: enquantona Suíça a participação popular tem sidoimportante fator de fortalecimento dos pe-quenos partidos ou blocos partidários con-tribuindo para superação de impasses,favorecendo a negociação e, assim, aproxi-mando governo e opinião pública, a Françaviveu a experiência traumática de utilizar aparticipação popular exclusivamente comomeio de fortalecer o poder pessoal do gover-nante (Napoleão e De Gaulle).

A experiência brasileira recente é rica eminovações em relação à combinação dedemocracia representativa e participativa,embora ainda resista em relação à regula-mentação das formas de participação.

Em primeiro lugar, resta lembrar que navotação em primeiro turno da Constituição,

além do plebiscito, do referendo e da inicia-tiva popular, também foi incluído o vetopopular, que, no entanto, terminou sendoeliminado no segundo turno da votação. Oveto popular pode ser entendido como umreferendo revocatório, pois estabelece ascondições nas quais a população pode der-rubar uma legislação já aprovada pelo Con-gresso. A ausência do veto popular e doinstrumento do recall — que garante àpopulação o direito de cassar um represen-tante eleito que não atua da forma prevista— tem sido denunciada como restrições àsoberania popular. Com o aumento do des-crédito em relação ao comportamento deparlamentares, identificados como sendomovidos por interesses muito distantes dointeresse público, cresce na sociedade civilorganizada a demanda pela introduçãodestes instrumentos que poderiam coibirpráticas legislativas escusas. Dentro da Cam-panha Nacional em Defesa da República eda Democracia,

2 os senadores Pedro Simon

e Eduardo Suplicy lideram uma proposta deemenda constitucional que institui a revo-gação de mandatos eletivos no Executivo enas diversas Casas Legislativas.

Em relação aos instrumentos incluídos naCF/88 — o plebiscito, o referendo e a inicia-tiva popular — são muitas as dificuldadespara implementá-los de forma mais rotineirano exercício da democracia, em função dasvárias lacunas no texto constitucional, dademora em promulgar uma legislação infra-constitucional que regulasse estas práticase, finalmente, da ausência de uma culturacívica amplamente disseminada entre apopulação.

A legislação que regulamentou os instru-mentos constitucionais de participação po-pular tardou uma década a ser promulgada(Lei 9.709 de 18/11/1998), sendo que prati-camente repetiu o que estava no textoconstitucional.

O plebiscito é utilizado como uma formade consulta sobre qualquer questão de inte-resse público,

3 não tendo feição normativa,

mas servindo para se avaliar a repercussãode uma medida futura a ser tomada. Já oreferendo é um instrumento concernente a

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ato normativo, de nível constitucional ou infra-constitucional, podendo anteceder ou não àfeitura da norma, com caráter necessaria-mente vinculativo.

Enquanto a doutrina clássica consideraque no referendo consultivo, o qual antecedea qualquer lei ou ato normativo, não há ga-rantia de que as autoridades irão acatar amanifestação popular, a opinião atual maiscorrente é que os referendos devem tersempre caráter vinculante, caso contrário,seriam plebiscitos (Benevides, 1991).

Outra polêmica diz respeito à convo-cação de plebiscitos e referendos, já que aLei 9.709/98, ao regulamentar estes instru-mentos, determinou que em ambos os casos,apenas o Congresso Nacional (mínimo de 1/3 dos membros da Câmara ou do Senado)poderá fazê-lo. Enquanto na CF/88 (artigo49, XV) o legislador dita que é competênciaexclusiva do Congresso Nacional autorizarreferendo e convocar plebiscito, na legis-lação infraconstitucional o termo utilizado,em ambos os casos é convocar. Esta alte-ração é substancial, na medida em que ficaassim vetada a possibilidade de que o povosolicite a realização de plebiscitos e refe-rendos, pois esta decisão é uma prerroga-tiva exclusiva do Congresso Nacional.

Sobre este tema, tramita na Câmara dosDeputados o Projeto de Lei 4.718/2004 deautoria do jurista Fábio Konder Comparato,como parte da Campanha Nacional em De-fesa da República e da Democracia. O pro-jeto pretende resgatar o princípio constitucionalda soberania popular, ao permitir que plebis-citos e referendos sejam convocados seja poriniciativa popular (1% do eleitorado), seja poriniciativa de um terço dos membros de umadas Casas do Congresso.

Além disso, o projeto prevê a extensãodo referendo às emendas constitucionais eaos tratados e outros acordos internacionais,bem como a obrigatoriedade de referendosobre matérias eleitorais. Tais projetos de-verão ter prioridade em sua tramitação e arevogação ou alteração de uma lei oriundade iniciativa popular só poderá ocorrer sesubmetida a referendo popular.

Este projeto pretende ampliar a partici-pação popular nos termos previstos na CF/

88, além de preencher as lacunas na legis-lação atual. São elas: subjetividade embu-tida na definição do que são temas derelevância nacional; caráter não vinculativodas decisões submetidas à decisão popular;indefinição do âmbito da participação popu-lar; ausência de procedimentos que garantama prioridade na tramitação e na aprovação deiniciativas populares legislativas.

Em 1993 ocorreu o plebiscito sobre a formae o sistema de governo, vencendo a formade governo republicana e o sistema de go-verno presidencialista. Já em 2005 houve oprimeiro referendo, previsto no Estatuto doDesarmamento, no qual a população rejeitoua proibição de comercialização de armas defogo.

A iniciativa popular legislativa foi inscritana CF/88 (artigo 61, parágrafo 2º.) e regu-lada pela Lei 9.709/98, estabelecendo queela pode ser exercida pela apresentação àCâmara dos Deputados de Projeto de Leisubscrito por, no mínimo, 1% do eleitorado,distribuído em pelo menos cinco estados,com não menos de três décimos por centodos eleitores em cada um deles.

Estas condições são consideradas pormuitos como altamente restritivas, já querequerem um elevado percentual de partici-pação em uma sociedade que, em muitoslugares, carece de informações, educaçãoe cultura cívica. Além disso, não existe regu-lamentação sobre a tramitação, sobre a obri-gação de o Congresso votar estas matériase prazos para sua regulamentação. A legis-lação em vigor também não esclarece se aPresidência poderá exercer seu poder deveto.

Mesmo assim, a partir de uma situaçãode comoção desencadeada pela tragédiaque acometeu a escritora Glória Perez e, como apoio da mídia, foi promulgada lei de inicia-tiva popular (Lei 8.930/94) que ampliou o roldos crimes hediondos inafiançáveis e insus-ceptíveis de graça ou anistia. Outro Projetode Lei de iniciativa popular contra a corrup-ção eleitoral foi aprovado (Lei 9.840/99) a partirde intensa mobilização da sociedade civil,dando maiores condições à Justiça Eleitoralpara coibir a compra de votos.

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A principal polêmica4 em relação ao uso

da iniciativa popular diz respeito à impossi-bilidade atual de que seja usado para proporao Congresso Nacional emenda à Consti-tuição Federal, embora algumas ConstituiçõesEstaduais e Leis Orgânicas Municipais asse-gurem este direito à população.

As lacunas apontadas não têm sido,entretanto, impeditivas da participação po-pular, mesmo no caso em que a propostade iniciativa popular esbarrou em um quesitode constitucionalidade, por conter disposiçõesque afrontaram prerrogativas exclusivas doPresidente. É o caso de lei de iniciativa po-pular, de 2005, com proposta de criação doSistema Nacional de Habitação de InteressePopular, do Fundo Nacional de Habitação ede seu Conselho Gestor. Foi vitorioso o enten-dimento de que o projeto originado de inicia-tiva popular constituiria exceção ao princípioda reserva de iniciativa do Chefe do PoderExecutivo, sendo o projeto sancionado peloPresidente da República.

Este caso se assemelha à experiênciade implantação dos Orçamentos Participa-tivos – OP em diferentes municípios brasi-leiros, nos quais o Poder Executivo abre mãode sua prerrogativa de formular a lei orça-mentária de forma exclusiva e convoca apopulação para, dentro de critérios e regraspreviamente acordados, participar na formu-lação e acompanhamento de sua execução.O caráter vinculativo da decisão não é esta-belecido legalmente, mas por meio de umcompromisso moral dos governantes doExecutivo e da pressão inerente a este me-canismo, para a aprovação do Legislativo.

Além desta inovação no sentido do esta-belecimento de mecanismos de co-gestãosocial, muitas outras modalidades foramintroduzidas a partir da CF/88 e da legis-lação infraconstitucional, no campo das polí-ticas públicas, onde governo e membros dasociedade civil participam conjuntamente doprocesso de sua formulação, controle eacompanhamento da execução. Tendo comoparâmetro a criação do SUS – Sistema Únicode Saúde, desenhou-se, a partir da CF/88,um novo padrão de políticas sociais nasquais foram assegurados mecanismos departicipação da população em todos os níveis

governamentais, por meio das instânciascolegiadas de co-gestão (Conselhos) e domecanismo ascendente de formação dapolítica (Conferências).

Estas experiências têm se expandidopara outros setores de políticas públicas e,mais recentemente, passaram a incluir aparticipação popular na discussão do PPA–Plano Plurianual 2004-2007 e no debate daspolíticas econômicas com a criação do Con-selho de Desenvolvimento Econômico eSocial (Fleury, 2006).

Notas

1 Foram apresentadas 160 emendas subscritas por 12milhões de eleitores em temas diversos.

2 Lançada pela Ordem dos Advogados do Brasil, como apoio da CNBB e do MST.

3 No caso de criação de territórios ou sua transformaçãoem Estado, bem como na criação, incorporação, fusãoe desmembramento de municípios, a CF/88 exige arealização de plebiscitos (artigo 18, parágrafos 2º e 3º).

4 Não há proibição expressa sobre o assunto na CF/88nem na Lei 9.907/98, mas ambas mencionam apenasprojetos de lei de iniciativa popular.

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Plebiscito e Referendum

Cláudia Feres Faria

Uma vez que a representação política,embora indispensável, mostra-se insuficientecomo mecanismo de expressão da vontadepopular nas sociedades complexas, formasinstitucionais adicionais de expressão dessavontade são bem vistas, tanto do ponto devista teórico quanto prático. É neste sentidoque o referendo e o plebiscito abrem novasoportunidades para a participação e a deli-beração direta dos cidadãos em questõesconcernentes à elaboração e à revisão deleis, à implementação de políticas públicase ao controle dos atos dos representantesno Legislativo e no Executivo. Não obstante,como veremos a seguir, a utilização destesinstitutos varia de conjuntura para conjunturae de constituição para constituição.

Origens etimológicas dos termos

Plebiscito – Latim: plebiscitum – plebis:povo comum e scitum: decreto. Expressãoda vontade do povo sobre questões políti-cas por votação direta. Na antiga Roma, sig-nificava uma lei implementada por umaassembléia do povo, presidida por um tri-buno ou outro magistrado plebeu, indepen-dentemente do Senado (Webster’s NewTwentieth Century Dictionary, 1979).

Referendo – Latim: referendum. Submis-são da lei, proposta ou em vigor, ao votodireto do povo; direito do povo de votar dire-tamente esta lei (Webster’s New TwentiethCentury Dictionary, 1979).

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Diferença conceitual entreplebiscito e referendo

Uma clara distinção conceitual entre osdois institutos é motivo de controvérsia tan-to no meio político quanto jurídico. SegundoBenevides (1991, 2003), os termos padecemde uma “ambigüidade semântica”. Gemma(1991), por exemplo, mostra que existemaqueles que defendem a existência do ple-biscito quando o povo delibera sobre umassunto sem ato prévio dos órgãos estatais,cuja presença caracterizaria o referendo.Outros afirmam que o plebiscito existe quan-do o povo se pronuncia sobre determinadosfatos ou acontecimentos (como, por exem-plo, sobre a escolha de formas de governo)e não sobre atos normativos, e existem aindaaqueles que apresentam o plebiscito comoa escolha de um homem, enquanto o refe-rendo diz respeito a um problema (p. 927).

Sentido moderno dos termos

Plebiscito – trata-se, de um modo geral,de uma consulta prévia à população sobrequestões de interesse coletivo.

Referendo – votação popular sobre obje-tos de disciplina constitucional e que ocorrecom maior regularidade, podendo ser facul-tativo ou obrigatório (Gemma, 1991).

A regularidade ou não das questõessubmetidas à consulta popular não é, paraBenevides (1991, 2003), necessariamenteum critério distintivo, aparecendo de formasdiferenciadas em várias Constituições. O quedistingue os dois termos é, segundo estaautora, “a natureza da questão que motiva aconsulta popular” — se normas jurídicas ouqualquer outro tipo de medida política — e“o momento de convocação”.

Quanto à natureza da questão em causa:o plebiscito diz respeito a qualquer tipo dequestão de interesse público, não necessa-riamente à ordem normativa, incluindo aípolíticas governamentais. O referendo con-cerne unicamente a normas legais e consti-tucionais (Benevides, 1991, p. 40).

Quanto ao momento da convocação: oplebiscito consiste em uma manifestaçãopopular sobre medidas futuras, referentes ounão às normas jurídicas. O referendo é sem-pre convocado depois da edição de atos nor-mativos, seja para confirmar ou rejeitar normaslegais ou constitucionais em vigor (idem).

Exemplos de experiênciascontemporâneas

A Suíça é um dos países que mais utili-zam o referendo, mas o encontramos tam-bém nas Constituições de vários outros países,como Austrália, Áustria, Canadá, Dinamarca,Espanha, Finlândia, França, Grécia, Inglaterra,Irlanda, Itália, Luxemburgo, Noruega, PaísesBaixos, Suécia e alguns países da África deexpressão francesa. Nos EUA, o referendoestadual existe em quase todos os estados.Na América do Sul, temos na Bolívia, Chile,Colômbia, Uruguai, Equador, Guatemala,Panamá, Venezuela, Peru, Paraguai, Panamáe Brasil. O referendo está presente tambémna maioria das Constituições dos países doLeste Europeu.

O conteúdo e o tipo de referendo variamconforme a conjuntura e a Constituição. As-sim é que o referendo pode ser utilizado pararatificar uma nova constituição, como naRússia em 1993 e na Polônia em 1997, oupara ratificar revisões constitucionais, comoprevê a Constituição espanhola (Silva, 2005,p. 192).

Existem ainda tipos distintos de referen-dos, como o Referendo Constituinte (relativoà aprovação de uma Constituição), Consti-tucional (relativo à revisão da Constituição),Legislativo ou Administrativo (concernente àsleis ou atos administrativos), Vinculantes ouConsultivos (relativos ao compromisso dasautoridades com o resultado das consultas),Obrigatórios ou Facultativos (relativos à ne-cessidade ou não da convocação), Consti-tutivo ou Revocatório (relativo a uma normaque passa ou deixa de existir) e/ou aquelesreferentes à eficácia territorial (Gemma, 1991;Benevides, 1991).

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Em que pese a existência dessa varie-dade de tipos, Silva (2005) chama atençãopara algo que os une a todos: o fato de oreferendo ser um direito político. Segundo aautora, “o que permite reunir todas essasmodalidades de referendo sob o mesmonome é que todas elas, exceto o referendoconsultivo, constituem um modo de associ-ar a vontade do povo a um ato normativo, detal sorte que essa vontade seja imprescindí-vel para a existência do ato” (p. 195). Daí aimportância destes institutos enquanto ex-pressões adicionais da soberania popular.Por meio deles, nos afirma a autora, os cida-dãos tornam-se menos dependentes da von-tade dos representantes, podendo expressardiretamente suas vontades (p. 196).

Esta importância foi relativamente obs-curecida em função de episódios históricos,como os plebiscitos napoleônicos (1799,1850), aquele convocado por Hitler em 1938,entre outros, através dos quais as técnicasplebiscitárias foram utilizadas para instituire/ou manter governos despóticos. O temorà instituição de governos totalitários combase no apelo popular fez com que o termoassumisse um sentido pejorativo e sua prá-tica fosse vista com desconfiança. É im-portante ressaltar, entretanto, que aquilo queestá em questão é menos o mecanismode consulta em si e mais a regulamenta-ção do instrumento. Dessa forma, tais ins-titutos podem ou não se tornar uma armanas mãos do Executivo, dependente queestão das formas adequadas de regulação(Benevides, 1991, p. 57).

Brasil

No Brasil, a Constituição de 1988 inau-gurou, de forma inédita no país, a prática dademocracia direta. Fruto de um processointenso de participação da população e deseus aliados institucionais na Constituinte, oartigo 14 dessa Constituição instituiu a práti-ca do referendo, do plebiscito e da iniciativapopular legislativa nos três níveis de gover-no — federal, estadual e municipal.

Juntamente com a previsão desses me-canismos de democracia direta, a Constitui-ção reservou ao Congresso Nacional acompetência exclusiva para autorizar referen-do, convocar plebiscito (art. 49, inciso XV) epara decidir sobre a relevância dos temassubmetidos à consulta popular. Ela mante-ve a exigência de plebiscito para questõesterritoriais, ou seja, para a criação de esta-dos e territórios federais (art. 18, parágrafo3

o) e para criação, incorporação, fusão e

desmembramento de municípios (art. 18,parágrafo 4

o). Ela não se pronunciou sobre a

possibilidade de referendo constitucional (re-forma, revisão ou emenda) e excluiu matériaconstitucional do âmbito da iniciativa popu-lar (art. 60). Ela não especificou se as con-sultas são obrigatórias ou facultativas e nãoesclareceu se o resultado das consultas évinculante ou indicativo.

Dez anos depois, foi promulgada a Lei9.709/98, que visava regulamentar os meca-nismos diretos de participação popular nopaís. Esta norma legal prevê que o plebisci-to será convocado com anterioridade ao atolegislativo ou administrativo e que caberá aopovo aprovar ou denegar, pelo voto, o quelhe foi submetido. Seu artigo 3

o manteve a

convocação do plebiscito sob responsabili-dade do Congresso Nacional, mediante de-creto legislativo, com proposta de, nomínimo, 1/3 dos integrantes de qualqueruma das Casas. Nos âmbitos estadual emunicipal, o plebiscito deve ser convocadoem conformidade com a respectiva Consti-tuição Estadual e com a Lei Orgânica Muni-cipal. A mesma lei prevê que o referendoserá convocado com posterioridade ao atolegislativo ou administrativo, cumprindo aopovo a respectiva ratificação ou rejeição.

A Lei 9.709/98 mostrou-se insuficiente emvários aspectos. Ela não contribuiu para dis-sipar a aludida ambigüidade semântica quecaracteriza os dois termos, uma vez que adiferença entre os dois institutos limitou-sesomente ao aspecto temporal: o plebiscitoé convocado antes do ato legislativo ouadministrativo, e o referendo é convocadodepois. Além disso, ao manter nas mãos do

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Congresso Nacional a prerrogativa de con-vocar o processo de consulta popular sobre“matéria de acentuada relevância”, ela invia-bilizou tanto a possibilidade de o povo solici-tar a realização de um plebiscito ou referendoquanto de decidir qual assunto consideraimportante para ser discutido e consultadono âmbito nacional, uma vez que permane-ceu nas mãos do Congresso a tarefa de dizero que é ou não relevante (Auad, p. 32).

Em função dos limites dessa Lei, pre-sentes também na Constituição de 1988,Benevides (2003) insiste na necessidade dese debater e regular devidamente certasquestões para que os mecanismos de de-mocracia direta possam tornar-se, na práti-ca, meios efetivos de expressão da vontadepopular. Para tal, sugere a autora, a discus-são e a regulação deve abranger questõesreferentes ao “objeto e tipos de consulta eaos procedimentos para sua realização”. Noque diz respeito ao objeto e aos tipos, Bene-vides chama atenção para questões comoo caráter obrigatório ou facultativo das con-sultas; se facultativo, sobre o caráter indica-tivo ou vinculante de seus resultados e sobrea abrangência dos temas, ou seja, quais se-rão incluídos e quais serão excluídos dasconsultas. No que concerne aos procedimen-tos para sua realização, a autora sugere ques-tões referentes a quem pode autorizar (ouconvocar) referendos e plebiscitos, sobre osprazos para convocação, o número mínimode assinaturas necessárias, o processo decoleta, a formulação da questão, a veicula-ção das informações, a abrangência e aqualidade do debate, o financiamento dascampanhas, a utilização dos meios de co-municação de massa, bem como sobre acontinuidade do processo e os meios paraenfrentar o bloqueio dos poderes constituí-dos (p. 94-95).

Exemplos da prática de referendoe plebiscito no Brasil

Nacionalmente, tivemos no país, embo-ra não previsto constitucionalmente, um Ple-biscito, ocorrido em Janeiro de 1963, para

definir a permanência ou não do sistemaparlamentarista, instaurado em setembro de1961, como solução para a crise provocadapela renúncia de Jânio Quadros.

Votação: Sim para o Regime Presiden-cialista: 82,02%; Não: 17,98%; votantes:66,23%; votos registrados: 18.565.277(http://c2d.unige.ch/Brasil).

Depois de 30 anos e conforme previstono artigo 2º do Ato das Disposições Consti-tucionais Transitórias, tivemos o Plebiscitode setembro de 1993 sobre a forma (repú-blica ou monarquia constitucional) e o siste-ma de governo (parlamentarismo oupresidencialismo).

Votação sobre a forma de governo – mo-narquia: 13,40%; república: 86,60%; votan-tes: 74,24%; votos registrados: 90.256.552.

Votação sobre sistema de governo – par-lamentarismo: 30,80%; presidencialismo:69,20%; votantes: 74,24%; votos registra-dos: 90.256.552 (http://c2d.unige.ch/Brasil).

Em 2005, tivemos o primeiro referendoda história do país, sobre a proibição dacomercialização das armas de fogo e muni-ções com vistas à aprovação (ou não) doartigo 35 da Lei 10.826 de 23/12/2003, co-nhecido como Estatuto do Desarmamento.

Votação – Sim: 36,10%; Não: 63,92%;votantes: 78,16%; votos registrados:122.000.000 (http://c2d.unige.ch/Brasil).

Referências

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Política de Cotas

Céli Regina Jardim Pinto

A política de cotas é uma forma de açãoafirmativa que reserva, para um grupo espe-cífico, um número definido de lugares emeleições de todas as ordens, em vagas parapreenchimentos de concursos públicos evagas de trabalho em empresas privadas.A política de cotas é atribuída a grupos que,por suas histórias, encontram-se em condi-ções de inferioridade em relação ao conjun-to da população. Sua aplicação é resultado,na grande maioria das vezes, da luta destesgrupos por direitos. Nas últimas décadas doséculo 20 e nos primeiros anos do século21, mulheres, populações afro-descenden-tes, nativos em países de colonização euro-péia, pessoas com dificuldades especiaistêm conquistado espaço nos locais de tra-balho, no sistema de ensino e na políticainstitucional, principalmente nos parlamen-tos, através da política de cotas.

A política de cotas para mulheres nosparlamentos é uma das políticas de açãoafirmativa mais presentes no mundo ociden-tal, decorrência, em grande parte, da forçado movimento feminista. As cotas parlamen-tares concretizam-se de duas formas: naslistas partidárias ou como reservas de as-sentos nos parlamentos. A primeira aindadivide-se em espontâneas e compulsórias:a espontânea, muito presente nos paíseseuropeus, é resultado de políticas internasdos partidos, que resolvem reservar um nú-mero específico de lugares para mulheresem suas listas nas eleições legislativas. Nascotas compulsórias há leis que definem opercentual de candidatos do mesmo sexonas listas partidárias, como é o caso do Bra-sil, da Argentina e da Bélgica. A segundaforma de implementar cotas é definir o nú-mero de cadeiras no Parlamento para mu-lheres. Na primeira forma, a presença da

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mulher nos parlamentos depende, em gran-de medida, dos votos que somam em dis-puta com os candidatos homens (dentro oufora do partido). No último caso, as mulhe-res chegam ao Parlamento sem disputarvotos com os homens.

A luta pelas cotas no sistema partidáriopara as mulheres está estreitamente ligadaao movimento feminista, disseminado nomundo ocidental a partir da década de 70, eao concomitante descrédito na democracialiberal, que parte do ideal iluminista da igual-dade entre todos os indivíduos como a baseda justiça entre os seres humanos, indepen-dentemente do sexo e de outras diferenças.Mulheres, afro-descendentes e nativos empaíses colonizados constituíram-se ao lon-go do último quartel do século 20 como su-jeitos políticos demandantes de um direitonegado pelas democracias liberais que, nãoconsiderando a diferença, haviam deixadoesses grupos historicamente fora dos parla-mentos e dos cargos de mando político.Todos eram iguais, mas os parlamentos eos cargos executivos estavam sendo preen-chidos, repetidamente, por homens brancos.As cotas aparecem como uma forma decompensar pontos de partida muito diferen-tes, que deixavam mulheres e outros gru-pos dominados em condição de grandeinferioridade na disputa por cargos políticos.

O sistema de cotas, como de resto ou-tras formas de ações afirmativas, semprefoi envolvido em polêmicas. Três delas sãosignificativas: o perigo da naturalização dadiferença, não reconhecendo as razões his-tóricas, isto é, mulheres, negros, nativos nãodevem ser sujeitos de políticas de cotas porsuas naturezas de serem mulheres, negrosou nativos, mas pelas posições em que ascondições históricas os colocaram. Portan-to, a luta deve ser para superar esta condi-ção e, conseqüentemente, a necessidadedas cotas; a segunda delas diz respeito auma desqualificação da representação oumesmo da presença de segmentos, queseriam eleitos em decorrência das cotas enão por qualidades pessoais. Tal polêmicadesconhece que qualidades pessoais não

são necessariamente as razões pelas quaisos “não diferentes” estão nas posições derepresentação: recursos econômicos, aces-so à mídia, redes familiares, muitas vezes,são muito mais poderosos que qualidadespessoais para determinar o lugar de homensbrancos nos parlamentos e nos postos doPoder Executivo.

A terceira polêmica, a mais teórica de-las, diz respeito ao que a cientista políticainglesa Anne Phillips chamou de política depresença e política de idéias, isto é: paradefender os interesses de um determinadogrupo é essencial que este grupo esteja pre-sente, ou basta que alguém, ou um partido,ou um grupo parlamentar independentemen-te de sua origem defenda suas idéias? Estaquestão é particularmente sensível, pois apolítica de cotas não garante que as mulhe-res, os afro-descendentes e os nativos elei-tos para cargos legislativos ou executivos,necessariamente, venham a defender as de-mandas dos movimentos feministas, negrosou indígenas. Há duas lutas concomitantesnesta questão, a luta para que cidadãs ecidadãos discriminados tenham acesso aomundo da política e à luta para que cida-dãos e cidadãs discriminados constituídoscomo sujeitos de luta pelos direitos de seusgrupos tenham acesso às posições de po-der. Phillip tem reflexões fundamentais so-bre o tema, afirmando que a presença éfundamental para a idéia, mas que uma nãoexclui a outra, isto é, é mais fácil que os di-reitos das mulheres sejam defendidos pe-las mulheres parlamentares, mas isto nãoexclui a possibilidade de que as idéias este-jam presentes nos representantes homens.Portanto, a eficácia das cotas pode ser me-dida a partir de dois parâmetros: o númerode mulheres que alcançam a eleição e aqualidade da presença em relação às de-mandas dos grupos que deram origem àscotas. Pode haver casos em que as cotassejam absolutamente cumpridas, e os inte-resses dos grupos que as geraram não se-jam representados.

Em qualquer uma destas situações há umaquestão anterior que é a da possibilidade

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da política de cotas realmente concretizar apresença da mulher. Estudiosos da questãosão bastante unânimes em afirmar que ascotas em si podem modificar, ou não, ascondições das mulheres, a partir de combi-nações com uma série de outros fatores, taiscomo culturais, históricos e mesmo de en-genharia política. Por exemplo, nos paísesescandinavos, as cotas foram negociadasno interior dos partidos, o que resultou emum avanço muito significativo no número demulheres no Parlamento. Esta negociação,entretanto, só é possível ser feita em condi-ções em que as mulheres têm voz reconhe-cida e onde existe uma cultura com valoresigualitários fortes, como é o caso destespaíses.

Em cenários onde as cotas são impos-tas por lei sua eficácia varia muito segundoo sistema eleitoral. No sistema proporcionalonde os candidatos são eleitos a partir deuma lista em grandes regiões eleitorais,como é o caso do Brasil, na proporção dosvotos de cada partido, as mulheres têm maispossibilidade de ser eleitas, do que nos sis-temas majoritários, onde cada partido en-frenta a eleição em distritos com um únicocandidato. No sistema proporcional tambémhá diferenças entre listas abertas e fecha-das. Qualquer uma delas oferece vantagense desvantagens, conforme o cenário em queestejam: as listas abertas, aquelas onde ospartidos apresentam candidatos sem ne-nhum tipo de ordenamento, e o eleitor votaem um nome, teoricamente, trariam gran-des vantagens para as mulheres, pois pos-sibilitariam a votação a partir de campanhasespecíficas. Entretanto, a possibilidade deuma campanha vitoriosa está estreitamenteligada ao apoio partidário e à capacidadede angariar fundos privados, quando não háo financiamento público das campanhas.Nas listas fechadas a situação apresenta trêsnuances importantes. Quando o sistema atri-bui ao partido o direto de ordenar a lista, asmulheres, se não tiverem poder dentro dopartido, podem ficar na base desta lista, semnenhuma possibilidade de eleição. Uma si-tuação distinta é quando o partido ordena

os candidatos e o eleitor pode mudar estaordem, o que daria mais chances às mulhe-res e, finalmente, uma terceira situação cons-titui-se de listas compostas alternadamentecom um nome de homem e um nome demulher.

Uma outra variável dentro do sistema elei-toral que pode pesar na presença das mu-lheres no Parlamento é o número de partidos.Em democracias estabelecidas com umnúmero reduzido de partidos é mais difícilpara a mulher se apresentar com sucessocomo candidata, do que em democraciasque aceitam um número maior de partidos,onde novas forças políticas estão muitas ve-zes mais abertas à presença da mulher.

A história da lei de cotas para mulheresno Brasil tem uma trajetória interessante,pois o país chega a 1997 com a garantia de30% de mulheres nas listas partidárias paraas eleições legislativas em todos os níveis,sem que este fosse um grande tema domovimento feminista, e sem que os parti-dos, por sua vez, tivessem oferecido resis-tência à aprovação da lei. De iniciativa dadeputada federal petista Marta Suplicy, a leivigorou pela primeira vez nas eleições de1996 garantindo 20% para as mulheres (Lei9.100/95). Em 1997 com a nova legislaçãoeleitoral (9.504/1997), este percentual pas-sou para 25% nas eleições de 2000 e 30% apartir de 2002. Esta lei também aumentoupara 1,5 o número de candidatos para cadavaga nos legislativos federal e estadual, etrês para cada vaga nas câmaras munici-pais.

A pouca resistência dos partidos à lei dascotas está estreitamente ligada a duas desuas características. A primeira se refere ànão-obrigatoriedade do preenchimento dacota de 30% nas listas: o partido não podepreenchê-la com candidatos homens, masnão sofre nenhuma sanção se não a preen-cher com candidatas mulheres. A segundarazão é o aumento do número de candida-tos. Podendo apresentar 1,5 candidato paracada vaga nas diversas Casas Legislativas,os partidos têm espaço de sobra para aco-modar todos os candidatos, não causando

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problema a cota de 30%. Esta segunda ra-zão está diretamente relacionada à formacomo as campanhas eleitorais são financia-das no Brasil. O financiamento privado de-sobriga os partidos de apoiarem de formaigualitária o conjunto de seus candidatos, daíque a presença das mulheres, devido àscotas, não muda de forma significativa aspossibilidades dos candidatos homens.

A política de cotas em suas diferentesformas tem sido fundamental para o aumen-to da presença das mulheres nos legislati-vos, nos mais diferentes países do mundo.No Brasil, estes efeitos ainda são muito tê-nues. Para as legislaturas federal, estaduale municipal, que correspondem aos anos de2003-2006, as mulheres representam 8,7%dos congressistas, 12% nas Assembléiasestaduais e 11,7% nas Câmaras de Verea-dores.

Do exposto, duas questões merecematenção: a primeira diz respeito ao fato deque as possibilidades de o sistema de co-tas mudar o quadro da ausência das mulhe-res no Parlamento estão estreitamenterelacionadas a um conjunto de variáveis, quedependem tanto da própria ação na direçãode garantir cotas, como da legislação eleitorale partidária. A segunda questão relaciona-seà qualidade da representação feminina e esteé um tema particularmente complexo, poisuma posição é defender a presença dasmulheres porque elas são mais de 50% doseleitores no caso do Brasil, por exemplo,outra, é defender a presença de mulheresque entram na política com uma plataformade defesa dos direitos das mulheres. O me-lhor dos mundos seria a coincidência entreessas duas presenças, mas isso, na maio-ria das vezes, não acontece, grande partedas mulheres que se elegem tem pouca ounenhuma ligação com o movimento ou causafeminista. No Brasil tem sido muito raromulheres que se apresentam como candi-datas defendendo uma plataforma feminis-ta, entretanto, é interessante acompanhar ocomportamento das mulheres parlamentareseleitas para o Congresso Nacional desde1988. Estas deputadas e senadoras, dos

mais diversos partidos, têm atuado comobancada quando os temas são de interessesdas mulheres. A primeira experiência nestesentido foi na Constituinte, quando 26 mu-lheres eleitas sem qualquer ligação com ofeminismo superaram suas divergênciaspartidárias, se autodenominaram BancadaFeminina e apresentaram 30 emendas sobreos direitos das mulheres, englobando prati-camente todas as reivindicações do movi-mento feminista à época. A quase totalidadedessas emendas está presente em formade artigos na Constituição de 1988.

Referências

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Regulaçãodas Pesquisas

Rachel Meneguello

A regulação das pesquisas é um temacontroverso que traz o debate da ReformaPolítica para o campo ético do acesso àsinformações de campanha e das normas desua produção, e impõe sua definição sobreo papel da opinião pública na conformaçãodo jogo democrático.

Desde 1965, a regulação das pesquisastem estado presente na legislação eleitoralbrasileira. No Código Eleitoral definido noinício do regime militar, estavam estabeleci-dos os 15 dias anteriores à eleição como operíodo de restrição para a divulgação deprévias eleitorais (Lei 4.737/1965, art. 255).Essa medida foi mantida e ampliada apósa democratização em 1985, quando a legis-lação estabeleceu a proibição para o perío-do dos 21 dias anteriores à eleição de 1986(Lei 7.508/1986), para os 30 dias anterioresao 1º turno da eleição presidencial de 1989e para os 10 dias anteriores ao 2º turno (Lei7.773/1989). Apenas em 1990 as restriçõesà divulgação seriam retiradas da legislação(Resolução 16.402/1990). Contudo, já em1988, através de recursos apresentados pe-los meios de produção e divulgação de pes-quisas, com base no direito constitucional àliberdade de expressão e de informação, aproibição fora suspensa e a divulgação semrestrição de tempo passou a orientar as cam-panhas eleitorais desde então.

Com o fim das restrições de tempo, alegislação eleitoral brasileira estendeu seucampo de ação para a regulação das infor-mações técnicas e políticas consideradasrelevantes para a compreensão correta dosresultados divulgados, e que procuravam con-ferir transparência tanto quanto aos agentes

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envolvidos no processo político quanto so-bre os parâmetros metodológicos de pro-dução dos dados. Assim, a divulgação daspesquisas passou a ser condicionada aoregistro, no Tribunal Eleitoral, das informa-ções sobre o contratante da pesquisa, a fon-te pagadora, o valor e a origem dos recursos,e das informações sobre metodologia, perí-odo de realização, questionário e amostra.A regulamentação relativa às exigências téc-nicas e metodológicas acompanham a di-vulgação das prévias em todos os pleitoseleitorais do período.

A livre divulgação das pesquisas, no en-tanto, manteve seu caráter polêmico entre aclasse política. Na década de 90, algumaspropostas de emenda constitucional busca-ram definir restrições de tempo para divul-gação, chegando até a quatro meses antesda eleição (PEC 43/99). Os trabalhos subse-qüentes da Comissão Especial de ReformaPolítica indicariam que o foco de atenção daregulação também seria metodológico, de-talhando as informações técnicas da pesqui-sa realizada, ampliando as possibilidades decontrole pela Justiça Eleitoral sobre a quali-dade dos dados e garantia da transparênciado jogo político para o eleitor (Relatório daComissão Especial, nº 1.767, 22/10/03).

Com a Reforma Política parcial realizadanos anos de 2005 e 2006 foram definidasnovas regras para a realização das campa-nhas eleitorais e, especificamente para aspesquisas, foi resgatada a restrição da di-vulgação para o período dos 15 dias anterio-res ao pleito. No caso das pesquisas,entretanto, contrariando a definição do Con-gresso e a sanção da Presidência da Repú-blica, o Tribunal Superior Eleitoral definiu queas novas regras de campanha terão valida-de apenas a partir da eleição municipal de2008 (Lei 11.300 de 10/05/06, com altera-ções pelo Tribunal Superior Eleitoral de 23/05/2006).

Em termos comparados, com a maisrecente alteração sobre os prazos de restri-ção da divulgação, a legislação brasileirapassa a ser uma das mais rigorosas em umconjunto dos países democráticos. As infor-

mações do Relatório elaborado em 2003pela ESOMAR/WAPOR (Spangenberg,2003), a respeito da existência de restriçõespara divulgação de resultados de pesquisaseleitorais em 66 países, mostram que para30 deles vigorava algum tipo de restrição.Segundo o Relatório, os países com legisla-ção mais rigorosa são Luxemburgo, com arestrição de 30 dias; República da Coréia,com 23 dias; Itália e Grécia, com restriçãode 15 dias; e a Eslováquia, com 14 dias.Nos demais países, as restrições variam parao período entre um e sete dias anteriores àeleição. A nova legislação retira o Brasil dogrupo em que figurava no referido Relatório,ao lado de 36 democracias em que vigora alivre divulgação de prévias eleitorais.

As mudanças nas determinações legaistraduzem a polêmica central sobre a qualreside este tema, qual seja, a discussão so-bre o quanto as pesquisas pré-eleitoraisinfluenciam o eleitorado, informam ou desinfor-mam os cidadãos, e este debate estende-se para o entendimento sobre o papel que aopinião pública deve ter no funcionamentoda dinâmica democrática.

Em grandes linhas, o debate sobre a re-gulação das pesquisas desdobra-se emduas principais dimensões. A primeira de-las relaciona-se ao significado político da opi-nião pública. A defesa da livre divulgaçãode prévias eleitorais tem como principal ar-gumento o direito básico à informação e aoconhecimento pelos eleitores do movimen-to das forças políticas durante a campanha.Esse argumento reconhece a opinião públi-ca como um importante agente político dassociedades democráticas, que intervém eregula as instituições e que expressa a auto-nomia dos indivíduos na sua relação com osistema político. Dessa forma, quando sãoapropriadamente realizadas e utilizadas pe-los meios de comunicação, as pesquisastêm um papel significativo na dinâmica dademocracia e constituição dos poderes.

Por outro lado, para os que são contrári-os à divulgação das pesquisas, o argumen-to central reside em considerar a opiniãopública um espaço sem autonomia, que não

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expressa uma sociedade articulada em inte-resses, resumindo-se à expressão de indiví-duos atomizados, facilmente manipuláveispelos agentes do jogo político. Em linhasgerais, afirma-se que a dinâmica democrá-tica da sociedade de massas deve consti-tuir suas bases de legitimidade em estruturasmais sólidas do que os efeitos promovidospor informações de momento, que conduzemos cidadãos a atitudes meramente reativasnos processos políticos. Nesse sentido,como fontes de informação dos eleitores, osresultados das pesquisas exerceriam umainfluência indevida nas eleições, dadas aspossibilidades de erros e de manipulação dasinformações pelos agentes do jogo político.

A segunda dimensão da polêmica so-bre as pesquisas diz respeito ao impactodas informações sobre o processo de deci-são do eleitor. Não parece haver dúvida quan-to ao fato de que os resultados daspesquisas exercem algum tipo de efeitosobre a decisão de voto. A absorção dosresultados pelos agentes de socialização eintermediários culturais que realizam a inclu-são do eleitorado na esfera da disputa políti-ca, sobretudo os meios de comunicação,torna praticamente impossível que as prévi-as eleitorais não sejam somadas ao amploconjunto de informações que orientam as pre-ferências dos cidadãos. A discussão resi-de, portanto, na intensidade do efeito daspesquisas e aqueles que defendem as res-trições de divulgação têm a seu favor umaextensa produção bibliográfica que apontao real impacto das predições eleitorais so-bre o comportamento do eleitor.

A tese mais freqüente baseia-se na idéiade que sua divulgação conduz parte signifi-cativa do eleitorado a votar no candidato queestá à frente nas pesquisas, contaminandoa opinião pública e distorcendo o curso na-tural dos resultados. Essa hipótese de influ-ência denominada bandwagon effect —uma metáfora que faz alusão ao vagão decirco que conduz a banda, colocado sem-pre à frente da caravana — afirma que osresultados das prévias eleitorais colocamuma pressão social sobre os eleitores inde-

cisos, que são conduzidos a votar no candi-dato apresentado com chances de vitória.

As hipóteses da influência abordam ain-da outros efeitos da percepção das informa-ções das pesquisas pelo eleitor, como ahipótese do underdog effect, que define atendência do voto no candidato que está emúltimo lugar, e a hipótese do voto estratégi-co (o voto útil), que resulta do cálculo daschances de evitar uma maioria específica edefine o voto do eleitor em uma segundaopção.

Por outro lado, alguns estudos têm mos-trado que os efeitos do conhecimento peloeleitorado de resultados de pesquisas elei-torais têm um impacto menor sobre o pro-cesso de decisão do voto. Esses estudosapontam que esse impacto é dependentede situações específicas do jogo político, eocorrem em geral quando as situações dedisputa eleitoral são acirradas. Além disso,a influência das pesquisas depende emparte do grau de confiabilidade estabeleci-do no contexto das campanhas políticas.

No caso brasileiro, alguns estudos sobreo papel das pesquisas nas campanhas in-dicam que há uma superestimação do seuimpacto sobre o processo de decisão dovoto. Análises realizadas sobre as eleiçõespresidenciais de 1989 e 1994 indicam queseu papel foi limitado, e que as fontes inter-pessoais e a propaganda televisiva, notíciase debates, foram meios muito mais podero-sos de influência potencial sobre a decisãoeleitoral. Os estudos mostram ainda que aspesquisas não figuravam como principal meiode informação política, e detinham razoáveldesconfiança e indiferença de parcelas con-sideráveis do eleitorado quanto aos resulta-dos divulgados (Olsen; Cavallari; Straubhaar,1993; Venturi, 1995).

O efeito predominante da propagandapolítica, sobretudo veiculada pela mídia ele-trônica, foi da mesma forma identificado paraa eleição presidencial de 2002, mas, nestecontexto, o grande número de pesquisaseleitorais realizadas, o acompanhamentoconstante pelos institutos de pesquisas domovimento das preferências por candidatos

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e seu papel na composição da pauta dosmeios de comunicação permitiram sugerira presença de um grau significativo de influ-ência sobre a decisão do voto (Figueiredo;Coutinho, 2003).

A dificuldade em dimensionar o impactode meios de informação política sobre o pro-cesso de escolha política em contextos com-plexos é um dos pontos que alimenta apolêmica da regulação das pesquisas. Osresultados não são consumidos de formapura, interagem com a mídia e produzem,a partir daí, uma realidade específica sobreo jogo político. O caso brasileiro potencializaessas dificuldades, as campanhas ocorremem um cenário composto por múltiplosmeios de informação livre e são ainda orien-tadas por uma legislação que permite umaintensa exposição diária à propaganda elei-toral pelo rádio e televisão, impossibilitandoavaliar o efeito isolado de cada um dos meioscom que o eleitor se orienta e decide.

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Regulação da Mídia

Regina MotaFrancisco Tavares

(colaborador)

Regulação da mídia é a relação que seestabelece entre os mecanismos de contro-le do Estado, por meio de normas e de suafiscalização, e a propriedade, circulação eprodução de informação dos meios de co-municação na sociedade. Existem outrasmedidas que podem ser estabelecidas pelopróprio mercado da auto-regulação, deman-da e participação da sociedade civil, emconselhos editoriais, conselhos de curado-res e ouvidorias.

O direito à liberdade de expressão é o prin-cípio sob o qual se baseia a publicidade defatos que são do interesse de leitores de jor-nais, radiouvintes, telespectadores e internau-tas, caracterizando a circulação de informaçãoe de idéias, bem como a formação da opi-nião pública em um Estado democrático. Afunção publicitária da mídia tem impacto nasescolhas políticas que serão tomadas peloscidadãos, conseqüência da construção desuas preferências ideológicas e partidárias.

Aparentemente, existe uma contradiçãoentre o conceito de regulação e o direito fun-damental à liberdade de expressão, o queimpede a obtenção de acordo entre os di-versos atores sociais com interesses naquestão, tais como empresários, movimen-tos sociais, trabalhadores do ramo da co-municação e agentes políticos.

A tensão entre esses conceitos, entretan-to, é apenas aparente. Toda mídia é alvo dealguma regulação. A fronteira entre regula-ção dos veículos de comunicação e censurareside no grau de legitimidade das decisõese disposições normativas, mais do que napresença do Estado.

Nos últimos vinte anos, desde o processoconstituinte (1986-1988), grupos da sociedade

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civil organizada (FNDC, OAB, ABI, sindicatose universidades) têm pautado o tema do con-trole público dos meios de comunicação, comapoio de parlamentares e com encaminha-mento de propostas a serem submetidas adebate, a fim de se tornarem leis. O casomais notável é da atual Lei Geral das Comu-nicações, que nos últimos vinte anos colecio-nou mais de trinta versões, e aguarda umProjeto de Lei que possa convergir os interes-ses inconciliáveis do setor.

Apesar da constância dessas iniciativasnenhuma delas teve sucesso, não conseguin-do vencer o fortíssimo lobby das emissorasde radiodifusão comercial e empresas jorna-lísticas dentro do Congresso Nacional, no qualum número significativo de deputados e se-nadores é proprietário de emissoras de rá-dio, televisão e jornais (Stadinick, 1991;Bayma, 2001).

Regulação da mídia e democracia

Por meio de estudos comparados é pos-sível estabelecer uma relação bastante elu-cidativa entre regulação da mídia e processodemocrático. A observação da legislação quelimita e controla a propriedade e das barrei-ras impostas à circulação e concentração dainformação, em um conjunto de países (Que-rino, 2002), demonstra que naqueles de tra-dição democrática consolidada (Noruega,Canadá, Alemanha, Inglaterra e França) hámuito mais regulação do que em democra-cias mais recentes, como é o caso da Espa-nha, Portugal, México, Argentina e Brasil.

Um caso à parte é a Itália, onde não háregra alguma que proíba políticos de seremtitulares de licença de radiodifusão, o quenão ocorre na lei brasileira (nº

4.117), apesar

de não haver notícia de uma única cassaçãode concessão a titular de diploma parlamen-tar, no Brasil. As legislações da Noruega,Alemanha e França não apenas impõem li-mites rígidos à propriedade cruzada e aomonopólio de mídia, como controlam limi-tes de audiência de emissoras de televisão,a fim de garantir a diversidade cultural e de

informação, determinando a veiculação deprodução independente, a ser transmitida emhorário nobre e em canais capazes de cobrirpelo menos 50% dos domicílios da área li-cenciada (Querino, p. 162, 2002). A lei no-rueguesa impede que uma sociedade possacontrolar mais de 20% de circulação nacio-nal de jornais e um terço do mercado nacio-nal de radiodifusão de sons e imagens.

Em qualquer um dos casos analisados,a questão fundamental diz respeito ao ór-gão regulador e, ou fiscalizador. A França sepreocupa em articular suas duas agências,o Conselho de Concorrência e o CSA – Con-selho Superior de Audiovisual, por meio deum guia legal para as ações dessas autori-dades. A lei do depósito legal, instituída paraos documentos impressos em 1537 e em1992 para o rádio, vídeo e televisão, facilita afiscalização já que toda e qualquer informa-ção deve ser depositada para registro emórgão governamental antes de entrar em cir-culação no país.

É possível dizer que nas democraciasconsolidadas a regulação da mídia é umacondição para a garantia da pluralidade eda diversidade de formação de opinião e dorespeito às diferenças lingüísticas, étnicas,culturais e sociais que coexistem dentro deuma unidade geopolítica.

A regulação da mídia no Brasil

Existem importantes conquistas legaisnos mecanismos de regulação da mídia noBrasil, cuja pouca eficácia é conseqüênciada cultura jurídico-normativa, do descumpri-mento das leis ou de seu esvaziamento porportarias e decretos, em desrespeito à hie-rarquia estabelecida no direito. Os principaisdispositivos serão apresentados a seguir.

1. Dispositivos Constitucionais Geraisde Regulação da Mídia no Brasil

Estabelecido o vínculo entre o direito hu-mano à liberdade de expressão e a regula-ção da mídia, é necessário mencionar os

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dispositivos consignados no mais importan-te texto jurídico do país, a Constituição Fe-deral:

Vedação à censura. Não é lícita, no Bra-sil, qualquer censura de natureza política,ideológica e artística (art. 220 da Constitui-ção). Do mesmo modo, “é livre a manifesta-ção do pensamento, sendo vedado oanonimato” (art. 5

o, IV) e “é livre a expressão

da atividade intelectual, artística, científica ede comunicação, independentemente decensura ou licença” (art. 5

o, IX).

Direito de resposta. Com vistas à promo-ção do debate e à reparação de danos ouofensas perpetrados por meio da mídia,assegura-se o “direito de resposta, propor-cional ao agravo, além de indenização pordano material moral ou à imagem” (art. 5

o,

V). O direito em referência é regulamentadopela Lei de Imprensa (5.250/67) e deve obe-decer ao seguinte: a) igual dimensão à ofen-sa, com mínimo de cem linhas para veículoimpresso, e um minuto, para radiodifusão;b) atendimento em 24 horas ou no próximonúmero ou programa.

Imunidade tributária. A Constituição de-termina a não instituição de impostos sobrelivros, jornais, periódicos e o papel destina-do à sua impressão (art. 150, IV, d). É umamedida que visa reduzir o valor desses pro-dutos no país e popularizar o acesso aoslivros e à mídia impressa. Seu impacto efe-tivo, como se sabe, é muito reduzido.

Merece destaque o fato de que os tribu-nais brasileiros têm dado pouca guarida aodireito de resposta. Constitui exceção o pro-nunciamento por escrito do então governa-dor do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, cujaação judicial obrigou a Rede Globo de Tele-visão a colocar no Jornal Nacional e na bocado seu apresentador Cid Moreira uma con-tundente critica à emissora. Dois outros fa-tos levados a julgamento pelo MinistérioPúblico de São Paulo demonstram a possi-bilidade de acionamento dos atuais meca-nismos, sendo o primeiro a suspensão doPrograma Domingo legal, do SBT por umasemana, em 2003, e a retirada do ar do Pro-grama Tardes quentes, da RedeTV, com sub-

seqüente veiculação de programação dedefesa de direitos humanos, durante ses-senta dias, em novembro e dezembro de2005.

2. Temas sujeitos à Regulação Especial

Publicidade Governamental

No Brasil, o Poder Público é um dos maio-res anunciantes da mídia e não cumpre siste-maticamente o estabelecido pela Constituição,que limita o uso de recursos para fins publi-citários a peças informativas, de orientaçãosocial e de caráter educativo.

Nesse ponto pode-se observar um abu-so, por parte dos governos, do uso publici-tário-persuasivo em detrimento da expressãoinformativa, a qual deveria munir os cidadãosde dados que lhes permitissem exercermaior controle sobre seus governantes. Pen-sando na transparência da administraçãopública, seria desejável: a) a existência denormas que determinassem menor volumede gastos com publicidade e vedação à ex-pressão meramente propagandística; e,b) o acesso, por parte dos cidadãos, aosdados referentes ao volume de recursos gas-tos com cada veículo de comunicação. Essasmedidas seriam coerentes com o princípio dapublicidade da administração pública, pres-crito no caput do artigo 37 da Constituição.

Radiodifusão

No Brasil, o acesso aos meios de comu-nicação é desigual do ponto de vista do do-mínio da língua escrita (11,4% da populaçãoé analfabeta), do acesso a revistas, livros,jornais e à Internet (14,3% da população estáconectada), restando aos pobres e incultosas informações exclusivamente veiculadaspor rádio e televisão, que chegam a 87,8%e 90,0% dos domicílios brasileiros, respec-tivamente (IBGE/2004). A televisão atingemais a população brasileira do que a maio-ria dos serviços públicos (água e esgoto, por

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exemplo), sendo a principal e mesmo únicafonte de lazer, cultura e contato com o mun-do para inúmeras comunidades distantes decentros urbanos. Assim, seja em função domassivo alcance, seja em decorrência daslimitações técnicas para que todos se ex-pressem por meio do rádio e da televisão,denota-se que esses meios de comunicaçãodevem ser especial e peculiarmente regula-dos em um país democrático.

A operação de estações de rádio e detelevisão no Brasil é um serviço público, cujoexercício deve atender a condições objeti-vas e subjetivas. A primeira diz respeito aorecurso natural público e limitado chamadoespectro de radiofreqüência, a ser utilizadopara atender os seguintes princípios: a) con-teúdos que atendam a finalidades educati-vas, artísticas, culturais e informativas;b) promoção da cultura nacional e regional eestímulo à produção independente; c) regio-nalização da produção cultural, artística ejornalística, conforme percentuais estabele-cidos em lei; d) respeito aos valores éticose pessoais da pessoa e da família, confor-me transcrito do artigo 221 da Constituiçãoda República.

Não é necessária uma demonstraçãoempírica para se afirmar, com segurança,que a quase totalidade dos radiodifusoresprivados do Brasil operam seus serviços demodo inválido juridicamente, uma vez quenão atendem aos critérios, limites e condi-ções acima reproduzidos.

Quanto aos critérios subjetivos, a Consti-tuição prevê um complexo sistema de con-cessão, permissão ou autorização públicas.O Executivo pode outorgar e renovar a con-cessão, cuja validade depende de uma rati-ficação por parte do Congresso e cujocancelamento depende de decisão do Po-der Judiciário. É razoável concluir, então, quea Constituição prescreve interessantes me-canismos de accountability horizontal, aoassegurar que os concessionários de radio-difusão sejam escolhidos por representanteda maioria da população (Executivo), sobratificação do Poder que conta com repre-sentantes populares das maiorias e minorias

(Congresso), e se submetam ao direito vi-gente, sob pena de perderem a concessãopor força de decisão judicial. Tem-se, ainda,que as empresas de radiodifusão não po-dem ser objeto de monopólio ou oligopólio edevem contar com pelo menos 70% de seucapital votante e capital total pertencendo abrasileiros natos ou naturalizados há maisde dez anos. Quanto ao modo de explora-ção da atividade, devem coincidir o público,o privado e o estatal. Mais uma vez, é evi-dente que o texto constitucional é freqüente-mente ignorado.

Propaganda eleitoral

Outro aspecto polêmico e específico nocampo da regulação da mídia no Brasil é apropaganda eleitoral. A lei determina os pe-ríodos de emissão televisual e outras formasde propaganda, tendo como regulador o Tri-bunal Superior Eleitoral, que recebe e inves-tiga as denúncias de práticas irregulares eprocede às sanções. Há, em nosso Direito,ditames rígidos acerca da utilização da mídianas eleições, desde divulgação de pesquisasaté a promoção de debates na televisão.

A intensa fiscalização recíproca entrepartidos e candidatos a cargos eletivos ex-plica a peculiar eficácia dos dispositivos deregulação da comunicação social no âmbitodas eleições. Assim, mecanismos como odireito de resposta e a coibição de condu-tas, como calúnia, injúria e difamação, sãomais freqüentemente aplicados em proces-sos judiciais de natureza eleitoral do que emações congêneres julgadas pela justiça co-mum.

Conselho de Comunicação Social

A observância, a regulação e o aprimora-mento aplicativo e interpretativo das normasconstitucionais apresentadas estão a cargode um órgão auxiliar do Congresso: o Con-selho de Comunicação Social.

Esse órgão foi instalado em 22 de maio de2002, apesar da Lei 8.389, de dezembro de1991, ter estabelecido um prazo de sessenta

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dias para a sua instalação. O Conselho écomposto por representantes da sociedadecivil, de empresários e de trabalhadores etem como missão pensar políticas públicaspara o setor, sugerir legislação e regulamen-tação, analisar as outorgas de concessão erenovação de emissoras e dar visibilidadeao debate da comunicação junto à socieda-de. O CCS, entretanto, não cumpre devida-mente seus objetivos, provavelmente emfunção de sua composição exacerbadamentecorporativa e alheia à complexidade da so-ciedade brasileira.

Conclusão

A regulamentação da mídia no Brasilcarece de novos instrumentos regulatórios edo cumprimento e vigilância de princípiosconstitucionais e leis vigentes, assegurandoo exercício dos direitos difusos. A ação degrupos sociais junto ao Ministério Públicotem conseguido, por meio da justiça, fazervaler esses direitos, ao aplicar as sançõesexistentes a empresas privadas de comuni-cação e órgãos públicos, como nas causascitadas. Por outro lado, falta uma dinâmicacomunicacional que inclua telespectadores,e outros leitores da mídia num debate sobreessas questões tão vitais para a democra-cia e, principalmente, pesquisa sistemáticasobre o universo da mídia no Brasil, com acolaboração dos meios de comunicação einformação.

Referências

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Corporativismo

Renato Raul Boschi

Corporativismo, num sentido maisabrangente, refere-se a uma modalidade derepresentação de interesses definida em tornode categorias sociais específicas, geralmentea partir da atividade ocupacional, organi-zadas coletivamente para a defesa ou reali-zação de seus interesses. O termo tem suasorigens nas corporações de ofício surgidasna Idade Média em algumas áreas da Europa— como as guildas dos Países Baixos —que se constituíam em grupos organizados,em função de suas categorias profissionais,para o exercício de atividades produtivas ecomerciais. Ao longo do tempo, com a tran-sição da ordem feudal para o modo de pro-dução capitalista, a organização corporativade interesses adquiriu também uma cono-tação de classe social, separando de um ladocapitalistas e, de outro, trabalhadores. Tal dis-tinção em função da localização dos gruposno processo produtivo e na estrutura socialveio marcar definitivamente o significado dotermo corporativismo como se reportando auma dinâmica política particular, associadaà regulação dos conflitos entre capital e tra-balho. Mais especificamente, tal dinâmicase relacionava, primeiro à solução harmô-nica dos conflitos de interesse e, por ex-tensão, mais tarde, à possibilidade decontrole do conflito por parte das autori-dades políticas constituídas. Nesse veio, anoção de organização de interesses corpo-rativos foi apropriada pelo pensamentoautoritário, tendo encontrado expressão for-mal na Carta del Lavoro e aplicada, na práti-ca, com a ascensão do fascismo ao poderna Itália. Foi essa a versão do corporativis-mo que acabou se difundindo e que foi im-plantada em alguns países por governos depropensão autoritária, sobretudo na Penín-sula Ibérica e, depois, na América Latina.

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Nesse sentido, corporativismo acabou sen-do identificado como a estrutura capaz deviabilizar a solução dos conflitos de classeatravés de um ordenamento hierarquizadodos interesses, organizados por categoriasprofissionais ou classe social, com o mono-pólio da representação legitimamente reco-nhecido e controlado pelo Estado.

Em alguns casos, como no Brasil — ondetal estrutura foi implantada pelo governo Var-gas durante a década de 30 — o ordena-mento foi feito, ainda, segundo critériosterritoriais, envolvendo uma hierarquização doplano municipal, passando ao plano esta-dual, até o federal, com a criação de sindi-catos patronais, de trabalhadores e outrascategorias profissionais no âmbito munici-pal, federações no âmbito estadual e confe-derações na esfera federal. A fórmula deordenamento e monopólio da representaçãode interesses foi também adotada em ou-tros contextos, sobretudo por governos so-cial-democratas nos países nórdicos, maisou menos à mesma época. Mas, diferente-mente dos países onde a estrutura corpora-tiva foi imposta, a chegada dos partidossocial-democratas ao poder foi pautada pelarealização de pactos, a partir dos quais es-truturas abrangentes de representação foramimplantadas para viabilizar a concertaçãoentre os setores do trabalho e do capital comarbitragem estatal, assegurando assim, tantoa governabilidade, quanto a consecução demetas de desenvolvimento. O reconhecimen-to empírico da diferença entre os processosacima descritos ocasionou a cunhagem dostermos corporativismo estatal e corporativis-mo societal, os quais tiveram ampla vigên-cia na literatura especializada a partir dosanos 70, originando também a noção deneocorporativismo para se referir à modali-dade de pactos que viabilizaram a expan-são do Estado de Bem-Estar da chamadaEra Dourada.

As conseqüências da ação coletiva or-ganizada e do associativismo, em geral, fo-ram objeto de inúmeras reflexões teóricas,tanto do ponto de vista do funcionamentoda democracia, quanto do ponto de vista do

desenvolvimento econômico. É dentro destalinha de questões que se insere a discussãomais acadêmica sobre o corporativismo, namedida em que se trata, em última análise,de uma forma específica de ação coletivaorganizada com os objetivos de controlar oconflito entre capital e trabalho, por um lado,e de se assegurar o crescimento econômico,por outro. Na sua versão mais tradicional (queantecede aos feitos da social-democracia dopós-guerra e a qual, posteriormente, veio aser identificada com o fascismo e o autorita-rismo), o corporativismo foi a fórmula utiliza-da para se superar o atraso econômicoatravés da estruturação e do ordenamentodos interesses de classes, do controle doconflito aberto e da participação política e,ao mesmo tempo, constituindo-se no me-canismo básico de regulação econômicaatravés da criação de órgãos consultivosenvolvendo governo e setor privado. Os paí-ses de industrialização retardatária (que in-cluem a segunda leva de industrialização naEuropa e, depois, os países da AméricaLatina) não apenas se deparavam com oproblema de criar ou estruturar uma classeempresarial eficiente, como também umaclasse operária colaborativa e disposta àstarefas inerentes ao desenvolvimento. Daíque se tenha implantado arranjos corporati-vistas em países como a Alemanha, Itália,Áustria, depois os países nórdicos, bemcomo na Argentina, no México, no Chile e noBrasil.

No Brasil, este formato permitiu a incor-poração política dos trabalhadores sob con-trole do Estado, bem como a organizaçãodo empresariado e sua inclusão em algunsórgãos consultivos. Além da estrutura quese implantou no formato descrito anterior-mente, após a Revolução de 1930, para ostrabalhadores, tal controle se efetivou atra-vés da concessão de direitos sociais com apromulgação da Legislação Trabalhista, aCLT até hoje em vigor na letra, num processode extensão da cidadania pela via da regu-lação do mercado de trabalho. A LegislaçãoSindical que presidiu a criação da estruturade representação de interesses foi, contudo,

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assimétrica no que diz respeito às limitaçõessobre a capacidade de organização dos se-tores do trabalho em comparação ao patro-nato. Enquanto aos primeiros só era permitidose organizar em sindicatos segundo os cri-térios da legislação em vigor, aos segundosfoi facultada a possibilidade de manutençãode algumas associações preexistentes e,sobretudo, a criação de novas associaçõesparalelas à estrutura oficial, sem as amarrasrelativas a critérios territoriais ou ao mono-pólio da representação. Tal fato teve profun-das implicações no que diz respeito àmaneira como a estrutura de representaçãode interesses do empresariado evoluiu sub-seqüentemente: primeiro no que concerne àsua maleabilidade e flexibilidade para adap-tação a novas conjunturas, num sentido po-sitivo; segundo, quanto à sua fragmentaçãoe dispersão, numa direção menos positiva,por exemplo, como um obstáculo à criaçãode associações abrangentes capazes de vi-abilizar a formulação de plataformas de cur-to e longo prazo para o conjunto da classe.A questão mais contundente se refere, po-rém, aos diferenciais de recursos para a açãocoletiva entre as classes: enquanto para ostrabalhadores a organização dos interessesé estrategicamente mais relevante e só podese dar dentro de regras rígidas que impli-cam a compulsoriedade de afiliação indi-vidual a um único sindicato, além dadependência aos recursos estabelecidosna legislação, o empresariado, dotado demais recursos organizacionais e para quema ação coletiva é menos central, pode sevaler de dois mecanismos, sendo um mar-cado por essas mesmas normas que regemo funcionamento da estrutura oficial corpo-rativa em bases compulsórias, e o outro, tí-pico de uma modalidade voluntária de açãocoletiva para a afiliação de empresas. A ló-gica envolvida nessa última modalidade émais eficaz no sentido de controlar o acessoaos benefícios, por parte daqueles que nãocontribuíram para a produção do bem cole-tivo resultante. Assim, num quadro de açãocompulsória, a lógica da ação coletiva ficaextremamente pautada pela dependência a

recursos externos, como o imposto sindical,que desde a implantação da estrutura cor-porativa oficial financia as atividades dasentidades a ela pertencentes. O imposto sin-dical continua sendo, por essa razão umadas peças-chave na discussão das reformasatualmente em curso, tanto para as entida-des de trabalhadores, quanto patronais, jáque financia várias atividades com base nacontribuição do valor de um dia de trabalhodeduzidos do salário em folha para os pri-meiros e uma contrapartida que varia de 0,02a 0,8%, proporcional ao capital social daempresa para os segundos.

Como se viu, não em todos os países afórmula de corporativismo adotada implicoua restrição de direitos políticos, a conces-são de direitos sociais como forma de con-trole da participação política ou a adoção purae simples de instituições centralizadoras ede cunho autoritário. Assim, se do ponto devista econômico importa a relação entre in-teresses organizados e desempenho, doponto de vista político, o eixo de discussõesse situa nas dimensões democráticas ouautoritárias do corporativismo. Essa conse-qüência também estrutura o debate na Ci-ência Política, demarcando campos analíticosdistintos em função do papel dos gruposde interesses e do associativismo, em ge-ral, na dinâmica política. O pluralismo de veiodemocrático e o corporativismo de cunho au-toritário se constituíram como duas tradiçõesanalíticas distintas, conquanto em ambos oscasos a atuação de grupos de interesse es-teja presente e possa ser vista como ineren-te à dinâmica política do Estado capitalista.No primeiro caso são destacados, contudo,os aspectos positivos da atuação de gruposespecíficos no contexto da democracia. Nocaso do corporativismo salientam-se, maisfreqüentemente, os perigos inerentes à con-centração dos interesses em grupos hierar-quizados e controlados a partir do Estado.Os casos do corporativismo dos países nór-dicos da social-democracia negam a versãoautoritária que se atribuiu ao corporativismo,tendo se instaurado, de fato, uma polêmicana fase áurea do Estado de Bem-Estar, sobre

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se o arranjo tripartite da negociação de polí-ticas a partir de associações centralizadasrepresentando os interesses do capital deum lado, do trabalho, de outro e tendo oEstado como um árbitro, se caracterizavamou não como instituições democráticas.Argumentava-se, de um lado, que a centrali-zação contribuía para a politização das lide-ranças e, portanto, para a criação de umaelite que progressivamente se afastava dasbases dentro de cada organização de cará-ter abrangente. Também apontado comonegativo, nesse particular, era o caráter com-pulsório das decisões para a totalidade dascategorias representadas por uma associa-ção de topo. Posteriormente, com a expan-são de direitos sociais do Estado deBem-Estar, os resultados positivos de con-certações tripartites foram destacados, tan-to nas suas dimensões políticas (reduçãodo conflito), quanto econômicas (estabilida-de macroeconômica, controle inflacionário eaté mesmo como a alternativa para assegu-rar a competitividade de pequenas naçõesno cenário internacional). Pode-se dizer queo corporativismo é destacado na maioria dosestudos sobre o Estado de Bem-Estar comoa variável central na explicação dos aspec-tos virtuosos daquele modelo.

Embora a versão mais difundida do ter-mo corporativismo, recentemente, guarde aconotação de interesses específicos comosendo ilegítimos na política por dizerem res-peito à tentativa de se fazer valer os interes-ses de minorias, nos Estados Unidos inexistetal conotação, sendo considerados legítimosos interesses especiais organizados e suainterferência na vida política, como seja, porexemplo, a atuação de lobbies no Congres-so. A existência de inúmeros grupos de in-teresses e outras associações é até mesmoapontada em seus aspectos positivos doponto de vista do sistema político, como umadas características centrais da democraciae a base mesma para a instauração do pa-radigma poliárquico de corte anglo-saxão. Acompetição entre múltiplos grupos de inte-resses é, assim, uma das características dosistema democrático pluralista, no qual se

resguarda a possibilidade de representaçãode distintos interesses em vista da sua frag-mentação, dispersão e da eventual alternân-cia de orientações políticas e dos grupos quedisputam o poder pela via das eleições.

No veio do debate mais contemporâneoque se travou no contexto da retração doEstado de Bem-Estar, da concomitanteimplementação de políticas neoliberais e daglobalização, retomam-se as conseqüên-cias da ação coletiva e do associativismosobre o desempenho econômico das na-ções. Mas, aqui também, de um lado, umacorrente enfatiza fortemente a atuação daschamadas coalizões distributivas no senti-do de se apropriar de rendas em seu bene-fício e gerar ineficiência, enquanto outradestaca a forte relação existente entre recu-peração econômica, intervencionismo esta-tal e formatos corporativos de relacionamentoentre Estado e sociedade. Inicialmente, apartir dos dilemas cruciais acerca da açãocoletiva propostos por Mancur Olson em seuclássico A lógica da ação coletiva, esse au-tor se questiona sobre a relação entre inte-resses de grandes grupos, a apropriação derendas e, numa linha contrária à descritaanteriormente do corporativismo como mo-tor do desenvolvimento, sobre a possibilida-de de declínio econômico. Uma série deestudos posteriores corroborando essa rela-ção nefasta entre interesses organizados eapropriação de rendas postulam que o con-luio entre interesses corporativos e Estadosaltamente intervencionistas e dotados deburocracias ampliadas constituiria um entra-ve ao desempenho econômico. Tais estudosserviram de base para a adoção das refor-mas neoliberais, voltadas à redução do Es-tado e ao controle do chamado rent-seeking.Pode-se aventar que a acepção mais cor-rente de corporativismo enquanto defesa deinteresses especiais de determinadas “cor-porações” e sua encampação pelo Estadotenha se difundido a partir dessa corrente,no seio do debate mencionado.

Por outro lado, estudos recentes focali-zando o sucesso de estratégias de desen-volvimento em cenários restritivos e

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altamente competitivos têm salientado quea explicação do êxito se deve ao estabeleci-mento de sinergia e redes de comunicaçãoentre burocracias especializadas e um setorempresarial organizado, ambos resguar-dando sua autonomia relativa. Tal é o casodo ressurgimento do Japão no pós-guerra,bem como dos países do Sudeste Asiático,mais recentemente, os quais desenvolveramenormes capacidades de coordenação en-tre Estado e grupos empresariais para a exe-cução de políticas industriais no contexto daglobalização. Estudos comparativos sobrea retração do Estado de Bem-Estar mostram,também, que a existência de estruturas cor-porativas ou de um forte associativismo em-presarial explica tanto menores graus deretração das políticas sociais e maior capa-cidade de recuperação econômica, quantomenor desarticulação das atividades sindi-cais, posteriormente à implementação dereformas neoliberais. Outros trabalhos foca-lizando estratégias de desenvolvimento naglobalização mostram como os regimes pro-dutivos que se definem a partir de incenti-vos das instituições de mercado e uma certacoordenação estatal desenvolvem vantagensinstitucionais comparativas, tendo comobase as relações associativas que se esta-belecem entre empresas individuais locali-zadas em determinadas cadeias produtivas.Tudo isso sugere a importância de graus deintervencionismo estatal e articulação de in-teresses organizados — ou seja, modalida-des de corporativismo — como um fatorpositivo no desempenho econômico.

Neste sentido, embora a primazia dasrelações de mercado e a ênfase na não-inter-ferência de fatores políticos preconizadascomo condição para o sucesso econômicominimizem e, de fato, desloquem a impor-tância política do vetor trabalho, na realida-de toda a dinâmica da globalização tende ase situar ao redor desse eixo. Desde as mi-grações internacionais dos países menosdesenvolvidos para os desenvolvidos, aspolíticas de imigração restritivas que surgemem contrapartida, a flexibilização de direitossociais voltada à atração de capitais, os

movimentos sociais e os protestos coletivosque surgem em decorrência, as reações decunho nacionalista que opõem céticos daglobalização aos seus mais radicais defen-sores, a competitividade no comércio inter-nacional e até mesmo o sucesso deestratégias de desenvolvimento, são, todoseles, processos determinados por fatoresdireta ou indiretamente ligados ao empre-go. Toda essa dinâmica está marcada poruma contradição entre a necessidade dereforço das instituições de âmbito nacionale territorial, por um lado (como é o caso dasleis de imigração e restrição de direitos decidadania a populações migrantes), e, poroutro lado, do enfraquecimento de outras(como os direitos sociais instituídos pelocorporativismo). O capital tende a fluir paraos contextos onde o custo do trabalho seminimiza a partir da flexibilização de institui-ções corporativas e dos direitos sociais. Aomesmo tempo, a perspectiva do desem-prego está na raiz da instabilidade e do con-flito social contemporâneo, não apenas empaíses em desenvolvimento, mas tambémem alguns países desenvolvidos comoFrança e Alemanha, os quais experimenta-ram o êxodo de investimentos nacionais paraoutros contextos, com a conseqüente perdade postos de trabalhos e também reformasna legislação social.

É essa a dinâmica que informa os pro-cessos de reforma que estão sendo propos-tos na maioria dos países, entre eles o Brasil,onde a necessidade de atração de investi-mentos impõe, por um lado, medidas deflexibilização, mas também medidas paraconter o aumento do desemprego, que podeter conseqüências sociais e políticas desas-trosas. As reformas em discussão no Fó-rum Nacional do Trabalho, criado em 2003,se propõem a um acordo equilibrado tripar-tite em que se procura atender as reivindica-ções de trabalhadores, empresários eredefinir o papel de arbitragem do Estado.As propostas em discussão, porém, pare-cem ter resultados bastante assimétricospara os atores envolvidos. O projeto procuraflexibilizar alguns pontos da Legislação

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Trabalhista em termos de direitos e, ao mes-mo tempo, mantém intocados outros pon-tos da Legislação Sindical, como o impostoe a unicidade sindicais, cuja eliminação seconstituiu numa das bandeiras históricas decentrais sindicais como a CUT, desde os anos80. Na realidade, o projeto de emenda cons-titucional prévio à possibilidade de apro-vação do anteprojeto de reforma determinaa extinção da unicidade sindical e dos con-ceitos de categoria profissional e econômi-ca como critérios para a formação desindicatos, mas estabelece outras condiçõesdraconianas em seu lugar, sobretudo doponto de vista do papel e do reconhecimentodas centrais sindicais. Também quanto aodireito de greve, o anteprojeto amplia os li-mites impostos por legislação anterior, bemcomo mantém a Justiça do Trabalho comoárbitro dos conflitos capital/trabalho. Enquan-to a imposição de perdas de direitos podeafetar negativamente os trabalhadores, amanutenção do imposto sindical (ou apenasa sua eliminação gradual e escalonada) éreivindicada por ambos, empresários e tra-balhadores, na medida em que se constituiem um dos pilares de financiamento dassuas respectivas entidades corporativas. Oanteprojeto privilegia, ainda, uma das deman-das empresariais que defende que o con-trato coletivo determinado pelo Estado deveser objeto de acordo entre as partes envolvi-das, priorizando, assim, o negociado sobreo legislado. Em resumo, a reforma propostamantém algumas das características bási-cas do corporativismo tradicional, na medi-da em que reforça o poder do Estado, atendeprioritariamente os interesses do patronatoe restringe a liberdade de organização dossegmentos do trabalho. A não se chegar aum ponto de equilíbrio, porém, em funçãodos determinantes mais conjunturais quecercam o processo, como o contexto da glo-balização, perdem os trabalhadores, perdemos empresários, perde o país. Na prática,porém, independentemente das decisões aque se chegue no FNT, a Legislação Traba-lhista vem sendo tratada como letra mortae, nos casos de litígio, os empregadores têm

optado por encaminhar os casos à Justiçado Trabalho, reforçando a dimensão da ju-dicialização da política. Em outros casos temprevalecido a utilização de subterfúgios quecontornam as exigências da legislação,como, por exemplo, a prática de evitar con-tratações com carteira de trabalho negoci-ando com os candidatos a postos deemprego uma contratação de serviços atra-vés do registro de empresas fictícias, tudodentro da legislação em vigor. Constata-se,assim, um quadro de desrespeito à legisla-ção por parte dos empresários, de fraquezados sindicatos em fazerem valer os seusdireitos e, ao mesmo tempo, de ausênciade fiscalização por parte do Estado no senti-do de aplicar a lei vigente.

Como uma das instituições republicanasmais estáveis, o corporativismo foi objeto dediferentes interpretações, tanto nos momen-tos iniciais de sua implantação como, maisrecentemente, quando se observa a descons-trução das instituições que presidiram todoo período do Estado desenvolvimentista. Parao primeiro período, os aspectos negativosforam francamente enfatizados em detri-mento dos aspectos positivos. Prevaleceu aênfase no controle das atividades sindicaispelo Estado, em detrimento da ênfase nainstitucionalização de direitos e políticas so-ciais razoavelmente compreensivas. Preva-leceu a ênfase no gigantismo do Estado ena ineficiência do intervencionismo em detri-mento do foco nos índices expressivos decrescimento econômico durante todo o pe-ríodo desenvolvimentista e na criação deuma razoável estrutura de suporte estatal aosetor privado. Assim, no período das reformasorientadas ao mercado, a completa superaçãodas instituições da Era Vargas foi salientadacomo um imperativo. Embora as reformasefetivadas na década de 90 tenham introdu-zido uma radical mudança de curso nascaracterísticas do Estado e nos padrões deintervencionismo estatal, com a conseqüenteadaptação de muitas das instituições ante-riores ao novo contexto, permanecem aspec-tos do legado corporativista anterior, tantonas características estruturais, quanto em

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termos do relacionamento Estado/sociedade,como até mesmo em termos do conteúdodas reformas propostas, em alguns de seusaspectos negativos, como se viu acima.

O cenário institucional resultante ainda seencontra indefinido em termos de um regimeprodutivo mais tipicamente coordenado porinstituições de mercado, ou de coordenaçãomais centralizada no Estado. Conquanto dis-tinto, o novo modelo guarda uma certa linhade continuidade com o modelo anterior, porum lado, em termos da constituição de al-guns núcleos consultivos para a discussãode diretrizes gerais de desenvolvimento(como o Conselho de Desenvolvimento Eco-nômico e Social) e de implementação depolíticas industriais no âmbito de agênciasde suporte ao setor privado (como o BNDES).Por outro lado, se instituíram mecanismosde coordenação pelo mercado, com o refor-ço à autoridade monetária ainda não sancio-nado legalmente, a implantação de agênciasregulatórias autônomas e a operação de al-gumas organizações de interesses em mol-des mais pluralistas. Um conjunto expressivode outras organizações permanece em es-truturas de representação organizadas nosmesmos moldes hierárquicos e territoriaisdo corporativismo anterior, porém exibindonovas formas de atuação. As organizaçõesempresariais pertencentes a esta estrutura— como é o caso da CNI (Confederação Na-cional da Indústria) e de algumas federações(FIESP, FIRJAN, etc.) — se modernizarambastante e atuam de maneira ágil e eficientepara fazer face aos novos desafios impostospor uma economia aberta e pela globaliza-ção. Os sindicatos operários vêm passandopor um declínio em sua capacidade de mo-bilização e de organização, mas ainda têmvoz e espaço político na estrutura do Estadoem governos recentes com representantesescolhidos para o Ministério do Trabalho.Mas se se retém parte do legado, talvez seconfigure uma nova modalidade de corpora-tivismo, principalmente porque se trata deinstituições operando num contexto nacionale sobretudo internacional totalmente distinto.

(Escrito durante permanência no Graduate Center da

City University of New York como professor visitante epesquisador associado ao Bildner Center, com bolsasênior CAPES/Fulbright, no primeiro semestre de 2006.)

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Federalismo

Marta Arretche

A ciência política está longe de ter umconsenso quer sobre a definição de Estadofederativo quer sobre as relações entre estee os ideais democráticos. Há concordânciageral quanto ao postulado de que Estadosfederativos são aqueles em que um gover-no central convive com unidades federativasindependentes, sejam elas províncias, esta-dos, municípios, cantões, etc.

Entretanto, diferentes instituições políti-cas são destacadas como essenciais paragarantir a estabilidade dessa forma de Es-tado, bem como para caracterizar o que lheé específico. A multiplicidade de conceitosderiva do fato de que a distribuição de auto-ridade entre as unidades federativas e aUnião, bem como seu equilíbrio, são alcan-çados por diferentes instituições políticas,tais como as regras de representação dasunidades federativas nas arenas decisóriasnacionais; as regras que regem sua auto-nomia política; a distribuição de recursostributários e fiscais; a distribuição de com-petências. Finalmente, de fundamental im-portância são as instituições políticas quegarantem a estabilidade da fórmula adotada,impedindo que a União invada a autoridadedas jurisdições, transformando-as em merasunidades administrativas ou, por outro lado,que a autoridade central seja enfraquecida a

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Método deConstituição das

InstânciasDecisórias

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ponto de ameaçar a unidade do Estado-nação. A variedade de arranjos adotadospelos Estados federativos resiste a umaúnica, definitiva, definição do conceito. Porconseqüência, as diferentes teorias tendema privilegiar este ou aquele tipo de instituiçãopolítica como essencial.

Igualmente, não há consenso nos julga-mentos acerca das relações entre esta for-ma de Estado e a distribuição de direitos ede representação política, bem como paraa garantia dos atributos de estabilidade eaccountability da ordem democrática.

No campo da garantia dos direitos, asposições variam entre pólos opostos: deautores que defendem que esta é a formade Estado mais adequada à garantia dasliberdades individuais, dado que a competi-ção entre as jurisdições manteria os gover-nos necessariamente limitados (Buchanan,1995) a autores que defenderam não havernenhuma relação entre federalismo e liber-dade, de vez que nos EUA este permitiu queminorias no nível nacional — os escravo-cratas — se mantivessem como maioria nonível local, preservando a escravidão (Riker,1975).

Os Estados federativos freqüentementeadotam alguma modalidade de sobre-repre-sentação das “minorias”, vale dizer, gruposétnicos ou religiosos concentrados espacial-mente, ou ainda estados/regiões menospopulosos ou mais pobres. As fórmulas sãomuito variadas, envolvendo, na maior partedos casos, a formação da Câmara Alta, querepresenta as unidades federativas. Diferembastante as interpretações sobre o signifi-cado desta regra para o ideal representativo.Stepan (1999) considera que a fórmula fereo princípio democrático de que “um homem= um voto”. Lijphart (1984), ao contrário,considera que a sobre-representação é umainstituição que garante o respeito à vontadeda minoria e impede a tirania da maioria.Fillipov et al. (2004) vão além e consideramque a estabilidade democrática em federa-ções assimétricas depende essencialmen-te de regras de sobre-representação; casocontrário, o domínio da maioria nas decisões

nacionais implica grandes chances que aminoria opte pela secessão.

Com relação à estabilidade da ordemdemocrática, há autores que enfatizam osefeitos negativos dessa forma de Estado,argumentando que em contextos de conges-tionamento da agenda dos governos, em quemuitas e rápidas decisões são necessárias,o poder de veto das unidades federativasimpediria a tomada de decisões, produzin-do paralisia decisória e, por extensão, insta-bilidade democrática (Lamounier, 1992). Paraoutra perspectiva, essa forma de Estado seriamais propensa a produzir estabilidade de-mocrática em sociedades caracterizadas porprofundas divisões sociais, raciais, étnicasou religiosas, de vez que preservaria espa-ços de autonomia e de representação paraas minorias (Lijphart, 1984; Fillipov et al.,2004).

Conclusões igualmente não definitivaspresidem o debate sobre accountability.Embora muitos autores afirmem que a pro-ximidade entre governantes e governados —derivada da descentralização da autoridadepolítica — permite maior controle dos cida-dãos sobre as decisões dos eleitos (Tocque-ville, [1835]1977; Tiebout, 1956), há autoresque demonstram que a dispersão da autori-dade política permite que os governantestransfiram a responsabilidade de seus atospara governantes de outras jurisdições, evi-tando, assim, as sanções de seus próprioseleitores (Pierson; Weaver, 1993).

O Brasil adota a fórmula federativa desde1891, ainda que nos períodos de exceção(Revolução de 30, Estado Novo e RegimeMilitar) princípios federativos tenham sidosuprimidos, particularmente a autonomiapolítica de governadores e prefeitos. Do ar-ranjo federativo adotado pela Constituição de88, a agenda de reformas concentra-se nasdimensões relativas à distribuição de recursosfiscais e de competências, ao passo quesão bastante estáveis as instituições polí-ticas que garantem a unidade do Estadofederativo, bem como aquelas relativas àautonomia política e à representação dosgovernos subnacionais.

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São estáveis as instituições orientadas agarantir a unidade e estabilidade do estadofederativo. A proibição de secessão é umacláusula pétrea da CF/88, o que quer dizerque não podem os entes federativos reti-rar-se da União, nem esta regra pode serobjeto de emenda constitucional. O SupremoTribunal Federal desempenha na prática,entre outras funções, o papel da SupremaCorte, qual seja, opera como uma instânciade arbitragem nos conflitos de interesseentre a União e os Estados, interpretando aConstituição.

Há grande estabilidade nas regras queregem a autonomia política das unidadesfederativas. No Brasil, estados e municípiossão unidades federativas autônomas, tendoautonomia para eleger os membros dos Po-deres Executivo e Legislativo. Isto significaque os governos locais têm autoridade políti-ca própria, derivada de seus próprios eleito-res. Respeitada a distribuição constitucionalde competências, têm autonomia legislativapara adotar suas próprias políticas públicas,bem como, simetricamente, têm autonomiapara aderir (ou não) àquelas propostas pelosdemais níveis de governo.

Entretanto, diferentemente de outros Es-tados federativos, o sistema de governo,bem como as regras eleitorais e de repre-sentação são homogêneos em todo o terri-tório nacional. Os governos estaduais emunicipais seguem o princípio da separaçãode poderes e não têm autonomia para definirsuas próprias regras e procedimentos elei-torais. Estas são definidas por legislaçãofederal e pelo Supremo Tribunal Eleitoral.Do mesmo modo, as unidades federativasnão têm autonomia para estabelecer suaspróprias regras de representação legislativa.A Constituição Federal define o número derepresentantes das Assembléias Legisla-tivas estaduais e das Câmaras Municipais.

Não está na agenda de reformas polí-ticas modificação neste padrão homogêneode escolha de governos e representantes.Confirmando este padrão, a única reformaaprovada no período recente diz respeito

à alteração do número de vereadores nasCâmaras Municipais, aprovada em 1992,válida para todo o território nacional.

São igualmente estáveis as regras queregem a representação dos estados nas câ-maras nacionais, bem como as que defi-nem o unicameralismo no âmbito estadual.Este último é definido pela Constituição edeve ser adotado por todas as unidadesfederativas. Para o Senado, cada estadotem três cadeiras. Esta é a Casa que repre-senta os Estados, o que justifica o princí-pio de equivalência, independentemente dapopulação. Para a distribuição das cadeirasna Câmara dos Deputados, o artigo 44 daCF 88 também estabelece um princípio denão-proporcionalidade em relação à popu-lação: um mínimo de oito, e um máximode 70 representantes por estado. Na prática,a fórmula sub-representa os estados maispopulosos e sobre-representa aqueles compopulação mais reduzida.

A regra foi adotada na Constituição de1934 e reiterada por todas as Constituiçõesposteriores (Nicolau, 1997). Mudou o princípiode proporcionalidade vigente na RepúblicaVelha, que garantia o controle da Câmara dosDeputados pelos estados mais populosos.Atualmente, apenas o estado de São Pauloestá sub-representado e os pequenos esta-dos do Norte, sobre-representados; mas,na história brasileira, variaram os estadosbeneficiados e penalizados (Nicolau, 1997).O tema tem sido objeto de vivo e intensodebate acadêmico, por suas relações comos ideais normativos de representaçãodemocrática, bem como de garantia dosdireitos das minorias. Entretanto, não entroupara a agenda de reformas políticas, reve-lando, ao contrário, grande estabilidadedesde sua adoção.

A estabilidade das regras que dizemrespeito à distribuição do poder político en-tre as unidades da Federação contrasta coma centralidade dos temas relativos à distri-buição de recursos tributários fiscais, bemcomo de competências na área social, naagenda de reformas.

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Parte expressiva da agenda de reformasdo arranjo federativo adotado pela CF 88 re-fere-se às reformas tributária e fiscal. Asquestões centrais desta agenda dizem res-peito à autonomia dos governos subnacio-nais para legislar sobre seus próprios impostose às regras que regem a distribuição de re-cursos fiscais.

As regras fiscais e tributárias da CF/88implicaram perda de receitas e de autorida-de tributária para a União. Na década de 90,esta recuperou parte do terreno perdido, au-mentado a carga tributária via elevação dealíquotas das contribuições sociais, criandonovos impostos, e retendo parte das transfe-rências constitucionais. Além disso, aprovoua legislação federal que regula com razoáveldetalhe o gasto dos governos subnacionaisnas áreas de saúde, educação, previdência,pessoal ativo e inativo, bem como suas con-dições de endividamento. Tais reformasaumentaram as receitas da União e limitarama autonomia de gasto dos governos locais.

Permanece na agenda a questão da auto-nomia dos governos locais para legislar sobreseus próprios impostos. O debate opõe, deum lado, os que defendem a necessidadede uma legislação federal que evite os efeitosnocivos da guerra fiscal e, de outro, os quedefendem sua manutenção como instrumentode desenvolvimento econômico das áreasmenos desenvolvidas. Parte desta agendajá foi adotada por emenda constitucionalaprovada em 2003, que estabelece alíquotasmínimas para o principal imposto municipal(ISS). Por outro lado, o projeto de unificaçãodo ICMS do governo Lula não foi aprovado.

Presença igualmente visível na agendade reformas têm as alíquotas dos impostosfederais de repartição obrigatória, que cons-tituem os fundos constitucionais. Estes sãoinstrumentos de redistribuição vertical de tri-butos e de equalização fiscal, adotadosdesde a Constituição de 1946. Há intensabarganha federativa em torno da distribuiçãodesses recursos. De um lado, estados emunicípios pressionam sistematicamentepela ampliação dos recursos de distribuição

automática, tendo conseguido algumas vi-tórias legislativas pontuais. De outro lado, oreconhecimento do limitado efeito equaliza-dor do sistema fiscal vigente tem justificadouma agenda de revisão do modelo de fede-ralismo fiscal, com vistas à melhoria de seusefeitos redistributivos, bem como da capa-cidade de investimento do governo federal.

Intensa inovação legislativa e institucio-nal caracterizou o período recente no que dizrespeito à distribuição federativa de compe-tências na área social. Os constituintes de1988 optaram pelo formato das competên-cias comuns para as políticas de saúde, as-sistência social, cultura e educação,habitação e saneamento. . . . . Além disso, privi-legiaram a adoção de um modelo descen-tralizado e democrático. Ademais, o Brasiladota o princípio da uniformidade de bene-fícios, isto é, os tipos e valores dos serviçosoferecidos pelo Estado devem ser homo-gêneos em todo o território nacional. Na prá-tica, isso significou que estas políticas sejamexecutadas preferencialmente por estadose municípios, com a participação da socie-dade civil em conselhos setoriais. Para tanto,transferências fiscais são mobilizadas parainduzir a oferta de bens e serviços.

Grandes expectativas relacionadas a ide-ais cívicos e democráticos são postas noformato descentralizado e participativo. Es-pera-se que este crie condições favoráveis aaccountability dos governos, bem comomecanismos de controle e fiscalização desua ação. Desde o início da década de 90,parte importante das iniciativas de reformanestas áreas envolveram a implantação dossistemas descentralizados por política se-torial, bem como a implantação de milharesde conselhos setoriais. Estes conselhos, porsua vez, espelham a estrutura federativa doEstado, qual seja, estão organizados em âm-bito municipal, estadual e federal.

No tocante à distribuição das funçõesentre os níveis de governo, a CF/88 não alteroua estrutura centralizada de gestão das polí-ticas sociais, herdada do regime militar.

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Tampouco as reformas implementadas nadécada de 90 alteraram esta estrutura prévia.Para as áreas de saúde, habitação e sanea-mento, esta estrutura era e permanececentralizada, qual seja, o governo federal con-trola as principais fontes de recursos e nor-matiza seu desembolso, pautando a agendados governos locais. Na área de educaçãofundamental, esta estrutura é historicamentedescentralizada, cabendo ao governo federala atribuição de normatizar condições gerais.Finalmente, os programas de transferênciade renda tiveram forte expansão a partir de2000. Nestes, os governos locais são execu-tores de programas formulados e financiadospelo governo federal.

Não constam da agenda de reformaspropostas para reverter o padrão uniformede oferta de serviços básicos no territórionacional. Ao contrário, as propostas em pauta— particularmente no tocante ao SUS e àcriação do FUNDEB — visam elevar a redis-tribuição de recursos da União, de modo atornar o princípio mais efetivo. Isso ocorreem função da reconhecida desigual capaci-dade de oferta de serviços entre as unidadesda Federação, derivada de sua desigualcapacidade de gasto. Tais desigualdadessão avaliadas como injustas, o que revela asupremacia do princípio moral que consideranecessária a igualdade de oferta de serviçossociais no território nacional.

Por outro lado, tem presença permanenteno debate político a contestação do formatocentralizado de organização federativa dascompetências comuns, pelo qual a Uniãotem elevada ingerência na agenda social dosgovernos locais, limitando na prática sua auto-nomia para definir seus próprios programas.Argumenta-se que esta fere o princípio fede-rativo da autonomia política, bem como li-mita a capacidade de os governos locaisatenderem às demandas de seus cidadãos,adaptando-se às necessidades locais. Taisprincípios orientam os debates internos àorganização de cada política setorial e repre-sentam uma tensão permanente nas relaçõesentre os níveis de governos no que diz res-peito à distribuição de autoridade na pres-tação de serviços sociais.

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Sistema Eleitoral

Antônio Octávio Cintra

As eleições desempenham papel essen-cial na constituição do poder nas democra-cias representativas. À semelhança dasdemais atividades políticas que se dão noregime democrático, também elas devemse pautar por normas cuja aplicação garan-ta a justeza, a transparência e a imparciali-dade dos resultados.

A literatura da ciência política sobre aseleições tem reservado a denominação “sis-tema eleitoral” ao conjunto de normas quedefinem: 1) a área geográfica em que osrepresentantes serão eleitos e em que osvotos serão coletados e computados — ascircunscrições ou distritos —; 2) os grausde liberdade à disposição do eleitor na vota-ção e, sobretudo; 3) a forma de traduzir osvotos em cadeiras parlamentares ou empostos no Executivo.

Dos sistemas eleitorais, como de outrosinstitutos políticos, esperam-se efeitos diver-sos, muito difíceis de obter, de modo satis-fatório, numa solução equilibrada, que osconcilie e seja aceita pelos vários grupos emcompetição pelo poder. A forma dos siste-mas eleitorais e as mudanças que sofremao longo da história resultam de conflitos ede negociações entre as várias forças políti-cas. Os sistemas eleitorais concretos sãoreavaliados de tempos em tempos pelos par-ticipantes do jogo político, em função do queeles ganham ou perdem com suas estipula-ções. Alguns sistemas, porém, têm-se mos-trado duradouros, como o britânico e onorte-americano, porque os vários competi-dores políticos aprenderam, ao longo da his-tória, a usá-los estrategicamente, de formaque nem perdas, nem ganhos, recaiam sis-tematicamente sobre um único grupo.

Conquanto resultem da própria luta polí-tica, os sistemas eleitorais devem, enquan-to instituições democráticas, satisfazer

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certas exigências normativas, como, entreoutras, as de dar representação aos diferen-tes grupos, fortalecer os vínculos entre a re-presentação e os cidadãos, aumentar acapacidade do sistema político de decidir egovernar, e tornar os resultados do pleito in-teligíveis para o eleitor.

Dois princípios eleitorais

Na definição de seus sistemas eleitorais,as democracias se deparam com a escolhaentre os princípios majoritário e proporcional.

O princípio majoritário, de longa tradiçãohistórica, pode encarar-se tanto como umcritério para a tomada de decisão em grupos,quanto como um critério de representaçãopolítica (Nohlen, 1981).

Nas deliberações coletivas, freqüente-mente se tomam decisões por maioria devotos, sendo essa regra encarada como con-corde com os postulados democráticos.Assim, nas duas Casas do Congresso brasi-leiro, tomam-se as deliberações por maioria.

Os primeiros sistemas eleitorais usadospelas modernas democracias para as elei-ções parlamentares aplicaram o princípiomajoritário. O território nacional era divididoem circunscrições (distritos) e, nelas, se apli-cava alguma modalidade de regra majori-tária para conhecer a quem caberiam ascadeiras em disputa em cada circunscrição.Na verdade, a maioria é suscetível de defi-nição variável: existe a maioria relativa (tam-bém chamada pluralidade), a absoluta(conhecida também como maioria simples)e as maiorias qualificadas (a exigência, porexemplo, de 2/3 dos votos).

A finalidade, explícita ou implícita, daadoção do princípio majoritário é a de repre-sentar as maiorias de cada circunscrição noParlamento. Uma maioria parlamentar resulta,assim, da agregação de diversas maioriasdistritais. Como, em cada distrito, aprovei-tam-se apenas os votos da maioria, pe-quenas diferenças percentuais entre avotação do partido majoritário e a do minori-tário em nível nacional podem traduzir-se,

no resultado global do pleito, em grandesdiferenças no número de cadeiras parlamen-tares. O sistema eleitoral majoritário preocu-pa-se, pois, com a formação de maioriassignificativas no corpo de representantes,vistas como indispensáveis para haver go-verno, sobretudo no sistema parlamentarista.

Os defensores do sistema majoritáriosustentam, contudo, que também as mino-rias conseguirão representar-se. Apesar deos votos minoritários se perderem na maio-ria dos distritos, pois só os candidatos maisvotados levam as cadeiras, nada impedeque, em outros distritos, os candidatos dopartido nacionalmente minoritário constituammaioria e conquistem vagas. Agregados, osrepresentantes do partido ou partidos minori-tários podem exercer sua função parlamentarde oposição e lutar para convencer os elei-tores a neles votar em futuras eleições, parase tornarem maiorias. E não se trata de umdesiderato vazio, pois há real revezamentono poder em países que adotam o sistemamajoritário, como é o caso do Reino Unido.

Sustenta-se, também, que o sistemamajoritário leva à eleição de representantescom responsabilidade claramente definidaperante eleitorados geograficamente circuns-critos, argumento válido, sobretudo, no casonorte-americano.

A maioria relativa ou pluralidade é adotadanos sistemas eleitorais britânico e norte-americano (critério conhecido como o do firstpast the post). Outros países, como a França,requerem a maioria absoluta, sendo muitasvezes necessário, para obtê-la, proceder aum segundo turno eleitoral, em que apenasos dois candidatos mais votados no primeiroturno podem concorrer em cada distrito.

Freqüentemente se disputa apenasuma vaga por distrito, mas pode haver dis-tritos em que se eleja uma representaçãomaior — são os distritos plurinominais —,seja votando-se em chapas partidárias, ga-nhando a mais votada, seja em candi-datos, ganhando os que obtenham amaioria dos votos, até serem distribuídastodas as cadeiras.

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Além de seu uso na representação parla-mentar, o sistema majoritário se usa emalgumas eleições senatoriais (caso brasileiroe norte-americano) e nas eleições presiden-ciais, nas quais se adota seja o critério damaioria relativa seja o da maioria absoluta,com possibilidade de segundo turno (Nicolau,2004, p. 30).

Os argumentos favoráveis aos sistemasmajoritários não calaram as críticas dos queos consideravam fechados aos novos elei-torados, surgidos ao longo do século 19 naEuropa, com a expansão da franquia, comotambém dos setores da elite, temerososdiante da possibilidade da perda de poderno confronto com as novas maiorias. Emconseqüência, a partir da segunda metadedaquele século, ganhou força a demanda deoutro princípio de decisão e representação,o proporcional.

Segundo o princípio proporcional, a de-cisão sobre uma eleição deve atender às pro-porções dos votos conquistados pelos várioscompetidores. Na prática, o princípio dedecisão proporcional se traduz em fórmulaseleitorais mediante as quais os partidos con-quistam uma cadeira parlamentar cada vezque atinjam certo montante de votos, o qualpode ser, por exemplo, o quociente eleitoral,a média maior ou o resto maior.

Como princípio de representação, o sis-tema proporcional considera que as eleiçõesvisam representar no Parlamento, na medidado possível, todas as forças sociais e grupospolíticos existentes na sociedade, na mesmaproporção de seu respectivo apoio eleitoral.O parlamento deve ser um mapa acuradodas divisões e tendências da sociedade,reproduzindo-as em seus tamanhos relativos.Para seus propugnadores, ele é mais justo,representativo e atende melhor ao impera-tivo democrático de dar voz às minorias, doque o princípio majoritário.

O sistema proporcional é hoje praticado,sobretudo, mediante o uso de listas parti-dárias. Contudo, por sua significação histó-rica, menção deve ser feita ao sistema do“voto único transferível”, inventado pelo juristaThomas Hare, em 1859, e atualmente usado

nas eleições de deputados na Repúblicada Irlanda. Esse país se divide em 41 dis-tritos eleitorais, em que se elegem três,quatro ou cinco representantes. Os eleitoresnumeram seus candidatos em ordem depreferência. O total de votos é dividido pelonúmero de cadeiras a preencher, para cal-cular o quociente eleitoral. Os candidatoscujas primeiras preferências permitem igualarou superar o quociente são eleitos. Os votosdesses candidatos que excederem o quo-ciente são dados às segundas preferênciasdo eleitor, os votos que sobrarem destessão dados às terceiras preferências, e assimsucessivamente, até se preencherem todosos lugares.

A seguir, apresentamos alguns elementoscuja combinação faz variarem os sistemasproporcionais concretos:

a. Os representantes podem se eleger na

circunscrição ou distrito nacional — como

ocorre em Israel — ou em porções menores

do território, que podem ser os estados

ou províncias (caso brasileiro) ou parcelas

destes.

b. Em cada distrito, pode-se eleger número

variável de representantes. O tamanho da

representação eleita por um distrito é sua

magnitude e, quanto maior, maior a propor-

cionalidade dos resultados.

c. Pode-se dar ao eleitor maior ou menor

influência na escolha dos representantes.

Como, no sistema proporcional, cada distrito

elege certo número deles, os partidos apre-

sentam seus candidatos em listas, de carac-

terísticas variáveis. Umas dão maior liberdade

ao eleitor, ao lhe permitir escolher um candi-

dato dentre os arrolados pela lista do partido,

outras, maior força ao partido, sendo o eleitor

obrigado a votar na lista elaborada pelo par-

tido e não em candidatos individuais. No voto

em candidato, contam, na distribuição de

cadeiras, os votos por ele conquistados

pessoalmente. No voto partidário (voto na

lista, tal como o nosso voto de legenda),

vota-se no conjunto dos candidatos, ou seja,

numa chapa partidária.

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d. Um tipo polar de lista é a lista fechada epreordenada, cabendo ao eleitor votar pelalista tal como se lhe oferece, ou rejeitá-la porinteiro. É invariável a ordem de precedênciados candidatos, fixada pelo partido antes daeleição. Na distribuição das cadeiras pelopartido, segue-se a ordem previamente esti-pulada por este e conhecida do eleitor.Temos, nesse tipo, o caso extremo do votopartidário, não personalizado. Outros tipos delista flexibilizam a lista fechada e preordenada.O eleitor pode, em alguns casos, mexer coma ordem prefixada, seja colocando um númerodiante do nome dos candidatos, para indicarquem deseja em primeiro lugar, segundo,terceiro, etc., diferentemente da ordem pre-fixada, seja dando um voto personalizado aum ou mais candidatos da lista (chamadovoto preferencial). Em outros casos, podetambém riscar nomes de candidatos que nãodeseja na lista, que se torna, então, semi-aberta. Na lista aberta, não apenas o eleitorpode introduzir as transformações acimamencionadas, como também pode combinar,numa nova ordenação, candidatos de listasdiferentes (chama-se a isto panachage) ouintroduzir nomes novos. Caso extremo delista aberta é o adotado no Brasil. A lista parti-dária é, aqui, apenas uma relação oficial doscandidatos registrados, cabendo ao eleitorescolher um nome entre os apresentados(podendo, porém, optar por votar na legendapartidária, em vez de num candidato). Apóso pleito, os candidatos são ordenados pelasua votação pessoal, sendo eleitos os maisvotados, até preencher o número de vagasdo partido (Nicolau, 2004, p. 42-61; Nohlen,1981, p. 106-151).

e. Alguns países distribuem as cadeirasproporcionalmente, mas em duas fases. Naprimeira, distribuem-nas em nível de distrito(estados, províncias ou divisões menores).Para corrigir eventuais desproporciona-lidades surgidas nessa primeira rodada,fazem uma segunda distribuição de cadeirasem nível nacional, usando as cadeiras res-tantes da primeira distribuição.

f. Para a distribuição proporcional das ca-deiras entre os partidos, adotam-se regras

matemáticas, chamadas fórmulas eleitorais,divididas em dois grandes grupos: o dosdivisores e o dos quocientes. Quando seadotam os divisores, os votos dos partidos,totalizados no distrito, são divididos por umasérie crescente de divisores, sendo os maisconhecidos os divisores d’Hondt (1, 2, 3...) eos Sainte Laguë (1, 3, 5...). Os quocientes dadivisão, conhecidos como médias, são dis-postos em ordem decrescente, e permitemsucessivas rodadas de distribuição das ca-deiras disponíveis, cabendo sempre a ca-deira ainda não distribuída ao partido que,em cada rodada, apresentar a maior média(donde a denominação de “método dasmaiores médias”). No caso dos quocienteseleitorais, divide-se o total de votos pelo nú-mero de cadeiras a preencher (quocienteHare). O resultado da divisão é o quocienteeleitoral, pelo qual se divide o total de votosde cada partido, para calcular quantas ca-deiras cada um conquistou (seu quocientepartidário). É preciso ainda uma regra paradistribuir as cadeiras restantes, após a pri-meira distribuição. No Brasil, adotamos oquociente Hare na primeira operação, masse usam os divisores d’Hondt para distri-buir as sobras (Lei 4.737/1965, art. 109).

Sistemas mistos

No período imediatamente posterior àSegunda Grande Guerra, a Alemanha Oci-dental concebeu um sistema eleitoral quebusca conciliar os princípios proporcional emajoritário. Decide-se a eleição de metadedos representantes ao Parlamento Federalpelo critério majoritário, aplicado em distri-tos uninominais. A eleição da outra metadesegue o princípio proporcional, cabendo aoseleitores votar em listas fechadas e preorde-nadas, apresentadas em nível estadual. Con-tudo, o cálculo do número de cadeiras decada partido (ou seja, o quociente parti-dário) segue a fórmula proporcional, combase na votação partidária obtida nas listas,razão de o sistema ser classificado entre osproporcionais.

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Em anos mais recentes, sistemas “mis-tos” têm sido implantados em numerosospaíses, tais como a Itália, a Nova Zelândiaou a Rússia, nem todos procurando, comoo alemão, seguir os cânones da proporcio-nalidade na atribuição de cadeiras aos parti-dos. Elegem-se, na verdade, dois estratosde representantes, um, segundo o princípiomajoritário, o outro, segundo o proporcional(Cintra, 2005, p. 75-90; Nicolau, 2004, p. 63-76).

Sistemas eleitorais esistemas partidários

Entre as razões do interesse pelo estudodos sistemas eleitorais estão seus possíveisimpactos sobre o sistema partidário, emparticular sobre o número de partidos polí-ticos. A ciência política considera o númerode partidos um importante fator para a capa-cidade governativa e a estabilidade do pró-prio sistema político (Przeworski et al., 2000).

Nos anos 50, Maurice Duverger deu formu-lação geral à relação entre o sistema eleitorale o número de partidos. O sistema majori-tário, de maioria simples, levaria ao biparti-darismo, e o proporcional, ou o majoritáriode dois turnos, ao multipartidarismo.

Trata-se do presumível efeito das restri-ções do sistema eleitoral sobre o cálculo elei-toral do votante. Na pluralidade, o eleitor nãodesperdiçará o voto em candidatos compoucas chances de vitória, e tal comporta-mento induzirá, ao longo do tempo, ao estrei-tamento do leque partidário em doispartidos, primeiro em nível distrital e, even-tualmente, em nível nacional.

No sistema proporcional, as barreiras sãomenores e, portanto, não dissuadem o votoem candidatos e em partidos menos popula-res. Desde a sua formulação original, inúme-ros autores testaram essas generalizaçõese tentaram delimitar-lhes a validade. É pre-ciso considerar, por exemplo, a própria pre-sença, na sociedade, de um sistemapartidário, com maior ou menor estruturaçãoe polarização interpartidária, ou a existênciade clivagens sociais, entre elas as de cará-

ter étnico, e sua distribuição geográfica, paraque os sistemas eleitorais possam ou nãoexercer um efeito redutor sobre o número departidos (Sartori, 1996). Esses condicionan-tes impõem, até mesmo, às vezes, invertera direção da causalidade. Como observaVernon Bogdanor, a representação propor-cional, em vez de necessariamente causara multiplicação no número de partidos, foimero reconhecimento da prévia existênciade um sistema multipartidário (Bogdanor,1993, p. 197).

Referências

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SARTORI, Giovanni, (1996). Engenharia constitucional. Brasília:Editora da UnB.

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Lista Aberta - ListaFechada

Jairo Nicolau

Um aspecto fundamental no sistema derepresentação proporcional é a definição dequais nomes da lista que o partido apresen-tou nas eleições serão eleitos. Uma opção éa lista fechada, sistema no qual os partidosdefinem antes das eleições a ordem doscandidatos na lista. Neste caso, os eleitoresnão podem votar em nomes específicos,mas apenas no partido. As cadeiras que opartido obtiver vão para os primeiros nomes;por exemplo, se um partido elege dez repre-sentantes, os dez primeiros nomes ocupa-rão as cadeiras. Entre as democracias queutilizam a lista fechada estão Israel, Espa-nha, Portugal, Argentina e África do Sul. AItália utilizou a lista fechada pela primeira veznas eleições de 2006.

Uma outra opção é a lista aberta, siste-ma em que a decisão de quais candidatosserão eleitos depende exclusivamente doseleitores. Os partidos apresentam uma listade candidatos e o eleitor vota em um dosnomes. As cadeiras obtidas pelo partido sãoocupadas pelos nomes mais votados da lis-ta. A lista aberta é utilizada no Brasil, na Fin-lândia, no Chile e na Polônia.

Uma terceira opção é a lista flexível. Nes-te sistema, os partidos definem a ordem doscandidatos antes das eleições, mas os elei-tores podem votar em um determinado nomeda lista. O voto dado na legenda confirma oordenamento dos candidatos definido pelospartidos. Caso um candidato obtenha umnúmero significativo de votos (os critériosde contagem variam em cada país) ele podemudar sua posição na lista. Esse sistema éutilizado na Áustria, Holanda, Bélgica, Suécia,Dinamarca e Noruega. Nestes países, emgeral, o eleitor confirma a lista partidária, porisso, é reduzido o contingente de candidatos

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que conseguem mudar suas posições nalista.

• • •

O Brasil adotou o sistema de lista abertaem 1945, antes de outros países que senotabilizaram por utilizá-la (ela foi adotadana Finlândia em 1955 e no Chile em 1958). Osistema atualmente em vigor no país ofereceduas opções aos eleitores: votar em umnome (voto nominal) ou em um partido (votode legenda). As cadeiras obtidas pelos par-tidos (ou coligações entre partidos) são ocu-padas pelos candidatos mais votados decada lista. É importante sublinhar que ascoligações entre os partidos funcionam comouma única lista; ou seja, os mais votadosda coligação, independentemente do parti-do ao qual pertençam, se elegem. Diferen-temente de outros países (Chile, Finlândia ePolônia) onde os eleitores têm que obrigato-riamente votar em um nome da lista para tero seu voto contado para o partido, no Brasilos eleitores têm a opção de votar em umnome ou em um partido (legenda). O votode legenda é contado para distribuir as ca-deiras entre os partidos, mas não tem ne-nhum efeito na distribuição das cadeirasentre os candidatos.

Já na década de 1950 o sistema de listaaberta brasileiro passou a receber críticasde alguns políticos e estudiosos. Dois pontosapareceram com mais freqüência nestascríticas. O primeiro é que durante a campa-nha eleitoral, ao invés de cooperarem entresi, os candidatos seriam estimulados a com-petirem pelas possíveis cadeiras obtidaspelos partidos. O segundo é que os candi-datos teriam fortes incentivos para pedir votopara si, mas poucos incentivos para enfatizara campanha partidária, o que contribuiriapara promover a “personalização” e enfra-quecer os partidos. Em geral, essas críticasestavam associadas a outras dirigidas aoutros aspectos do funcionamento da repre-sentação proporcional no Brasil (a distorçãona representação das cadeiras dos estadosna Câmara dos Deputados; os efeitos dafórmula eleitoral e a regra das coligações).

Por essa razão, as propostas de reforma elei-toral procuravam ser uma opção não para alista aberta em particular, mas sim à repre-sentação proporcional. Durante as décadasde 1960 e 1970 o sistema majoritário (co-nhecido no meio político como voto distrital)foi a opção dominante nas propostas de re-forma eleitoral. Nas décadas de 1980 e 1990houve uma preferência por propostas quedefendiam a adoção de alguma variação desistema misto (conhecido no meio políticocomo voto distrital-misto).

• • •

Em 2003, a Comissão Especial de Re-forma Política da Câmara dos Deputados,presidida pelo deputado Ronaldo Caiado(PFL), sugeriu a substituição do sistema delista aberta pelo de lista fechada nas eleiçõespara Câmara dos Deputados, AssembléiasLegislativas e Câmaras Municipais. Segundoos defensores da proposta, a lista fechadadeveria ser adotada por duas razões. A pri-meira é o fortalecimento dos vínculos entreos eleitores e os partidos. A segunda é queapenas a lista fechada é compatível com ofinanciamento exclusivamente público dascampanhas eleitorais, outra proposta queconstava do relatório. O argumento é queseria impossível controlar os gastos do fundode campanha devido ao grande número decandidatos que disputam as eleições. A pro-posta de adoção da lista fechada no Brasilgerou controvérsia entre estudiosos, políticose jornalistas. Entre os argumentos apresen-tados três merecem ser discutidos commais cuidado.

Redução da escolha dos eleitores. O sis-tema de lista aberta permite que o eleitorfaça duas escolhas simultaneamente: porum determinado partido (ou coligação) e porum determinado candidato que concorre poresse partido (ou coligação). No sistema delista fechada o eleitor poderia apenas votarno partido. Assim, nas situações em que oeleitor tivesse alguma restrição por um oumais nomes dispostos nos primeiros lugaresda lista (e que provavelmente seriam eleitos)ele não teria nada a fazer. Portanto, o eleitorteria a sua margem de escolha reduzida.

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Os defensores da lista fechada argumen-tam que o funcionamento do sistema repre-sentativo no Brasil já tem vários mecanismosque afetam a escolha dos eleitores. O pri-meiro é a coligação entre os partidos, quepermite que o voto dado em um candidatode um partido acabe contribuindo para ele-ger um candidato de outro. O segundo é aconstante troca de partido por parte dosdeputados durante o mandato, o que viola anoção de representação partidária; cerca de1/3 dos deputados abandonam a legendapela qual eles foram eleitos durante o man-dato. O terceiro é um limitado controle daatividade parlamentar: os eleitores têm a li-berdade de escolher o seu candidato, masessa decisão não passa da cabine eleitoral,já que meses depois da eleição já é muitoreduzido o contingente de eleitores que selembram do nome do candidato em quemvotaram — a pesquisa Estudo Eleitoral doBrasil (ESEB) realizada em dezembro de2002, dois meses depois da eleição, revelouque apenas 44% dos eleitores lembravamdo nome do candidato a deputado federal.

A oligarquização dos partidos. Para muitocríticos, o principal efeito da introdução dalista fechada no Brasil seria a “oligarquização”dos partidos. Os dirigentes de cada seçãopartidária passariam a ter o poder de con-trolar a indicação dos nomes que comporiama lista, priorizando seus aliados para ocu-parem os primeiros lugares na lista e dei-xando os adversários na parte inferior da lista.O risco existe, mas é importante lembrar quealguns países utilizam os sistemas de listafechada com relativo sucesso. Portugal eEspanha, por exemplo, a adotaram ainda nafase de redemocratização e conseguiramorganizar um sistema partidário consistente.A África do Sul e Israel têm utilizado o sistemade lista fechada para favorecer determinadosgrupos étnicos e religiosos, e a Argentinapara garantir a representação feminina naCâmara dos Deputados. A Suécia utilizoucom sucesso a lista fechada até 1994. Nãohá nenhuma evidência de que os partidosnestes países sejam menos democráticosdo que os de outras democracias.

Poder-se-ia esperar que a lista fechadaestivesse associada a uma menor renovaçãoparlamentar (uma evidência indireta de oligar-quização). A pesquisa feita pelos cientistaspolíticos ingleses Richard Matland e DavidStudlar, comparando 25 diferentes países,mostrou que não há nenhuma relação entreo sistema eleitoral e a taxa de renovaçãoparlamentar.

Outra premissa equivocada da crítica da“oligarquização” é imaginar que o processode seleção de candidatos não mudaria soba vigência de um novo sistema eleitoral. Hojeos eleitores podem votar em um dos candi-datos, mas a lista de nomes é selecionadapelos partidos de maneira fechada. Em geral,os nomes são escolhidos pelos dirigentespartidários e aprovados nas convenções.Com a maior importância conferida aos par-tidos no sistema de lista fechada, tambémé plausível imaginar que poderíamos terpartidos menos “oligarquizados” (com pri-márias e convenções mais disputadas, porexemplo), do que os que temos hoje. Alémdisso, é possível criar instrumentos parareduzir o controle dos líderes, tais como:assegurar que a lista será formada propor-cionalmente entre as diversas chapas quedisputarão a convenção; garantir que a es-colha pelos delegados (ou filiados) dos no-mes que comporão a lista terá que ser feitapelo voto secreto.

Ausência de prestação de contas perso-nalizada. Uma crítica mais consistente à listafechada é que ela não incentiva uma ligaçãodireta dos representantes com os seus elei-tores. Neste modelo, a principal motivaçãodo deputado é cultivar o trabalho partidário(pois é esse que garante a boa posição dalista na eleição seguinte), e o parlamentartem muito pouco interesse em prestar contasde seu mandato à população em geral. Essaé a principal crítica feita ao funcionamentoda lista fechada na Argentina, em Israel e naEspanha.

No sistema de lista aberta em vigor noBrasil os deputados são movidos pelanecessidade de sempre estarem conec-tados às suas bases. Os críticos da lista

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aberta alegam que essa conexão nem sempreé feita de maneira eficiente: algumas áreasdo estado ficam sem representação direta,já que não conseguem eleger representantes,enquanto outras ficam sobre-representadas;alguns deputados passaram a representarinteresses de grupos muito específicos (mo-vimentos sociais, grupos econômicos, igrejas,corporações) em detrimento de interessesmais gerais; sem contar o disvirtuamentodo mandato com envolvimento em esquemasde corrupção.

Grande parte das reformas feitas recen-temente em outras democracias tem procu-rado alguma combinação que garantasimultaneamente o voto partidário e algumtipo de accountability pessoal. Muitos países(Itália entre 1993 e 1995, Japão, Nova Zelândia,Bolívia e Venezuela) adotaram sistemasmistos, que combinam a lista fechada e ovoto majoritário-distrital. A Suécia, depois deuma longa discussão, abandonou o sistemade lista fechada por um sistema de lista fle-xível, que permite que o eleitor altere a lista.

• • •

Um passo importante na discussão dereforma eleitoral no Brasil foi trazer a opçãode adoção da lista fechada à baila. Essemovimento serviu para discutir com maiscuidado as mazelas e as virtudes do sistemaem vigor no Brasil. Um passo adiante seráolhar com cuidado a experiência dos paísesque utilizam a lista flexível. Observar parti-cularmente como a Bélgica, a Suécia e aÁustria escolhem seus deputados podeabrir novos caminhos para a discussão sobrea reforma eleitoral. A proposta de fortalecero vínculo dos eleitores com os partidos, semperder a possibilidade do voto individual, éuma opção que deve ser considerada no atualdebate sobre qual a melhor forma de escolheros representantes no Brasil. Um fator que faci-lita é que a lista aberta brasileira já permiteos dois tipos de voto (nominal e de legenda);restando apenas criar um mecanismo paraque o voto de legenda possa favorecer osprimeiros nomes da lista.

Referências

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Número e Distribuiçãode Cadeiras naCâmara dosDeputados

David Samuels

Segundo as pesquisas de opinião pública,os brasileiros têm uma apreciação negativados membros do Congresso. Esse senti-mento é comum no mundo todo. No meupaís, (EUA), escândalos persistentes com-prometem tanto a Câmara dos Deputadosquanto o Senado. Alguma coisa pode serfeita para melhorar a qualidade e a consis-tência da representação democrática? Esteverbete considera duas reformas potenciais:a mudança no número dos deputados e nadistribuição deles nos estados brasileiros.

As preocupações relativas ao númerodos representantes coincidem com o nasci-mento da própria democracia. Os autoresdos Federalist Papers (ver especialmente nú-meros 55 e 56) — artigos que debatiam aforma que a Constituição dos Estados Unidosdeveria assumir durante a convenção cons-titucional americana original — sugeriam quea legislatura deveria ser grande o suficientepara retratar os diversos interesses da popu-lação, a fim de construir coalizões, e, assim,tornar a corrupção mais difícil, porém, nãotão grande que resultasse em confusão ena inabilidade para tomar decisões.

Mudar o tamanho da Câmara de Depu-tados do Brasil mudaria a qualidade da re-presentação democrática? Eu sou cético. Emuma perspectiva comparada, o número deDeputados na Câmara não é muito grande.De fato, como a Tabela 1 sugere, poderia seargumentar que a Câmara de Deputados émuito pequena. Esta tabela mostra a popu-lação de vários países, o número dos mem-bros da Câmara dos Deputados de umadeterminada legislatura e a relação entre a

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população e o número dos deputados. Namaioria dos países que constam nessa ta-bela, essa relação é muito menor do queno Brasil. Apenas em países muito gran-des, como os Estados Unidos e a Índia,essa taxa é maior. São muito grandes osparlamentos de países como Israel, Holandae Nova Zelândia?

De fato, a relação entre a população e onúmero de cadeiras na Câmara não diferen-cia muito da média mundial, sugerindo queo tamanho da Câmara não é nem muito gran-de nem muito pequeno. (Analistas têm mos-trado que existe uma relação estatísticaextremamente forte entre o logaritmo do nú-mero de cadeiras e o cubo do logaritmo dapopulação, conhecida como a Lei do Cubo.O número de cadeiras na Câmara dos De-putados tem historicamente conformado aLei do Cubo.) Deixe-me examinar historica-mente a evolução dessa relação no Brasil. AFigura 1 ilustra essa tendência. O eixo hori-zontal indica o número de cadeiras na Câ-mara dos Deputados. Isto se relaciona coma população estimada do Brasil no momen-to da eleição, no eixo vertical. O primeiroponto, na posição mais baixa à esquerda,busca estes dois números no ano de 1872.A linha que conecta os pontos do gráficosegue a evolução do tamanho da Câmaraaté 2006. A linha só rompe com sua tendên-cia de crescimento quando, em 1970, elase volta mais para a “esquerda”. O regimemilitar no poder, neste período, reduziu o ta-manho da Câmara como parte de seu esfor-ço para controlá-la. Entretanto, uma veziniciado o processo de transição para a de-mocracia, a linha retornou ao seu curso “nor-mal” de crescimento na medida em que apopulação aumentava. Se os militares nãotivessem reduzido o tamanho da Câmara,não haveria razão para supor que a Câmarabrasileira seria, hoje, maior ou menor do queela realmente é.

Se examinarmos a evolução histórica darelação entre população e o número de ca-deiras no Brasil mais de perto, nós chegare-mos novamente à conclusão de que otamanho da Câmara é muito pequeno. A

Tabela 2 mostra que, em 1872, a Câmarapossuía um deputado para aproximada-mente 81 mil brasileiros. Essa relação foidiminuindo até 1893, o que significa que ataxa de crescimento da população na Câ-mara de Deputados superou a de cresci-mento da população brasileira como umtodo. Entretanto, de 1993 em diante, a situa-ção se inverteu: a taxa de crescimento dapopulação brasileira tem superado, em mui-to, o crescimento do tamanho da Câmara.O tamanho da Câmara se fixou em 513 depu-tados desde 1994, mas a população brasi-leira aumentou em mais de 30 milhões depessoas desde então. Um argumento a favordo aumento do tamanho da Câmara pode-ria ser feito hoje, principalmente porque apopulação brasileira continua a crescer. Di-minuir o tamanho da Câmara, em contraste,muito provavelmente não redundaria em umaeconomia significativa do orçamento fede-ral. Dado que os brasileiros acreditam pou-co nos membros do Congresso, reduzir otamanho da Câmara poderia torná-los aindamais distantes de seus representantes.Ademais, a teoria democrática sugere quea representação política aumenta a “proxi-midade” que as pessoas sentem em rela-ção aos seus representantes. Dificilmenteuma pessoa pode esperar representar fiel-mente os interesses de 363 mil pessoas.

No lugar de ajustar o tamanho da Câ-mara, os brasileiros podem considerar ajus-tar a forma através da qual são alocadas ascadeiras no interior da Câmara. Um fato fre-qüentemente mencionado sobre as legis-laturas brasileiras é seu alto grau dedesproporcionalidade. Desproporcionalidadeé o grau através do qual a proporção dapopulação em relação às cadeiras varia se-gundo cada estado. Se a população de todosos estados brasileiros fosse a mesma e onúmero de cadeiras alocadas para cada umdeles fosse o mesmo, não haveria despro-porcionalidade na Câmara de Deputados.Entretanto, dado que a Constituição brasi-leira estabelece um mínimo de oito, e ummáximo de setenta cadeiras para cadaestado, isto está longe de ser o caso. SãoPaulo possui cerca de 35 milhões de pessoas

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e tem 70 cadeiras na Câmara, uma pro-porção de 500 mil cidadãos para cada depu-tado. Essa proporção é muito diferentedaquela encontrada no Amapá, por exemplo,onde temos cerca de 600 mil pessoas e oitocadeiras, uma proporção de 75 mil cidadãospara cada deputado.

Muitas das democracias consolidadastêm realizado reformas na proporcionalidadedas cadeiras nas Câmaras dos Deputadoscom o objetivo de alcançar aquilo que éconhecido como a norma da proporcionali-dade, “uma pessoa, um voto”, ou seja, o votodos cidadãos nos diferentes distritos deveser igualmente representado na legislatura.Embora a desproporcionalidade no Brasilseja quase dez vezes pior do que a despro-porcionalidade nos Estados Unidos ou noReino Unido, por exemplo, ela não é a piorno mundo: as Câmaras dos Deputados daArgentina, do Chile, do Equador e da Bolíviasão muito mais desproporcionais do que abrasileira.

O Brasil deveria corrigir a proporcionali-dade na Câmara dos Deputados? Fazer istosignificaria dar para São Paulo mais cadei-ras, tirar cadeiras de alguns estados sobre-representados nas regiões Nordeste e,especialmente, Norte, ou em ambas. Esteobjetivo, do ponto de vista da teoria demo-crática, pode ser normativamente desejável,mas ele é praticamente viável? A despro-porcionalidade no Brasil apresenta uma lon-ga raiz histórica. A Câmara já era altamentedesproporcional antes da queda do Império.A Constituição brasileira de 1891 institucio-nalizou a desproporcionalidade existente aoalocar um mínimo de quatro deputados paracada estado. A Constituição de 1933 buscoureduzir o poder dos estados de Minas Geraise São Paulo, que conformavam a política do“café-com-leite”, e as injustiças contra SãoPaulo e Minas Gerais continuaram quando aseleições competitivas e o sufrágio universalforam estabelecidos depois da queda deVargas em 1945. Membros da AssembléiaConstituinte de 1946 decidiram aumentar parasete o número mínimo de deputados fede-rais de cada estado. Os estados com mais

de 20 deputados ganharam ainda um depu-tado adicional, num total de 150 mil cidadãos.Em uma manobra visando atingir São Paulo,foi instituído que o estado que obtivesse maisde 20 deputados só teria direito a mais um,num total de 250 mil cidadãos. A Constituiçãode 1946 aumentou, assim, a desproporcio-nalidade, principalmente contra São Paulo.

A desproporcionalidade teve conseqüên-cias políticas importantes no período de 1945-1964. Vários cientistas políticos sugeriramque ela contribuía para distanciar o Executivodo Legislativo, uma vez que a composiçãomajoritária e dominante de cada Casa dife-ria substancialmente: uma base urbana parao Executivo e uma base rural para o Legisla-tivo. Dessa forma, a desproporcionalidadepode ter contribuído para a tensão entre Exe-cutivo-Legislativo nesse período.

Durante a ditadura brasileira (1964-1985),os militares mudaram as leis eleitorais vá-rias vezes com o objetivo de fortalecer a alaconservadora do Congresso e enfraquecerprincipalmente a oposição urbana. Em 1977,o regime estabeleceu um máximo de depu-tados por estado. Essa decisão só afetounegativamente São Paulo, mas ao limitar SãoPaulo, ela conseqüentemente aumentou opeso político das regiões rurais e maispobres, onde o apoio ao governo era maisforte. Em 1982, um pouco antes do resta-belecimento das eleições democráticaspara deputado federal, o regime aumentouo mínimo de número de cadeiras para 18por estado e, o máximo, para 60. Essa mu-dança favoreceu ainda mais os estados jásobre-representados e melhorou apenasmarginalmente a situação de São Paulo,pois em um sistema proporcional justo, SãoPaulo teria obtido 101 cadeiras no lugar de60 cadeiras. (Nessa mesma época, MinasGerais já não era mais sub-representadaporque sua população não tinha crescidotão rapidamente quanto a de São Paulo.)Além disso, os militares criaram o novoestado de Rondônia, na região mais pobree mais conservadora do Nordeste, acres-centando, assim, outros 8 deputados e 3senadores à ala conservadora.

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O aumento da desproporcionalidade naCâmara não terminou com o fim do regimemilitar. Em 1988, a nova Constituição demo-crática aumentou o número máximo de de-putados por estado para 70, embora SãoPaulo não tivesse elegido esse número dedeputados até 1994. Entretanto, entre 1985e 1990 seis novos estados foram criados,acrescentando 48 deputados (cerca de 10%do total) e 18 senadores (cerca de 20% dototal) para as regiões menos desenvolvidas,rurais e menos populosas do Brasil. Por con-traste, São Paulo nunca conseguiu estabe-lecer uma boa negociação no sentido deaumentar o tamanho de sua delegação dedeputados. São Paulo continua o único esta-do substantivamente sub-representado naCâmara, embora vários estados permaneçamsobre-representados. Concretamente, osestados que pertencem às regiões subde-senvolvidas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste possuem 42% da população econtrolam 51% das cadeiras da Câmara.

A reproporcionalidade das cadeiras mu-daria a natureza ou a qualidade da represen-tação democrática no Brasil? Equalizar arelação entre população e cadeiras nos es-tados brasileiros tem um apelo normativo:os teóricos há muito tempo vêm sugerindoque a democracia deve buscar considerarcada voto de forma mais igualitária possí-vel. A existência de um Senado torna clara-mente esse objetivo impossível, uma vez queos territórios possuem direito à representa-ção igual no Senado, independentemente desuas respectivas populações. Entretanto,isso sugere que a Câmara deva ser mantidacomo a “Câmara do Povo” enquanto o papelda “Câmara dos Territórios” deve ser limita-do ao Senado. No Brasil, a distribuição decadeiras na Câmara favorece os interessespolíticos dos estados e das regiões sobre-representadas. O resultado disso é que opovo e os políticos desses estados possu-em, desproporcionalmente, mais poder paraafetar as políticas públicas, especialmentea distribuição dos recursos orçamentários,do que os cidadãos e os políticos em outrosestados. Isto é, certamente, “injusto” do ponto

de vista normativo, mas sobre-representaros interesses das regiões mais pobres àsexpensas das regiões mais ricas é uma prá-tica bem sedimentada no Brasil. Nessa tro-ca, São Paulo paga um preço político. Talvezisto não seja ótimo do ponto de vista teóri-co, mas muito funcional para o Brasil doponto de vista prático.

Tabela 1 - Média do Tamanho das Câmaras dos Deputados

Países População Deputados Pop./Deputados

Brasil 186.000.000 513 363.000/1

Canadá 33.000.000 308 107.000/1

França 61.000.000 577 106.000/1

Alemanha 82.000.000 614 134.000/1

Índia 1.100.000.000 545 2.000.000/1

Israel 6.000.000 120 50.000/1

Itália 58.000.000 630 92.000/1

Japão 127.000.000 480 265.000/1

Holanda 16.000.000 150 107.000/1

Nova Zelândia 4.000.000 120 33.333/1

Portugal 10.000.000 230 43.000/1

Espanha 40.000.000 350 114.000/1

Reino Unido 60.000.000 646 93.000/1

Estados Unidos 295.000.000 435 678.000/1

Tabela 2 - Média do Tamanho das Câmaras no Brasil

Ano População Deputados Pop. Dep.

1872 9.930.477 122 81.397

1881 120.000.000 125 96.000

1890 14.333.915 205 69.922

1893 14.333.915 212 67.613

1933 35.000.000 214 163.551

1934 35.000.000 250 140.000

1945 46.000.000 286 160.839

1950 51.943.813 304 170.868

1954 58.000.000 326 177.914

1962 69.546.751 404 172.145

1966 80.000.000 409 195.599

1970 93.137.796 310 300.445

1974 100.000.000 364 274.725

1978 110.000.000 420 261.905

1982 125.000.000 479 260.960

1986 135.000.000 487 277.207

1990 146.825.472 503 291.900

1994 150.000.000 513 292.398

1998 165.000.000 513 321.637

2002 175.000.000 513 341.131

2006 186.112.794 513 362.793

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141Leonardo Avritzer | Fátima Anastasia [org.]

(Tradução: Cláudia Feres Faria - DCP-UFMG)

Referências

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TAAGEPERA, Rein; SHUGART, Matthew. 1989. Seats and votes. New Haven:Yale University Press.

Figura 1 - População X Nº de Deputados

(Agradeço ao Professor Jairo Nicolau do IUPERJ por disponibilizar as informações sobre o número de cadeirasnas Câmaras de Deputados desde o século 19.)

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142

Coligações Eleitorais

David Fleischer

As primeiras teorias sobre as coligaçõese as motivações dos partidos políticos emparticipar dessas estratégias políticas foramelaboradas no início dos anos 60 (Gamson),e subseqüentemente ampliadas e adapta-das para incluir dados novos e outras expe-riências.

No campo da ciência política encontramosdois enfoques sobre coligações: 1) aliançasentre partidos políticos para formar ou comporchapas de candidatos em comum para con-correr às eleições [coligações partidárias oueleitorais] (Krause; Schmitt; Oliveira; Soares);e 2) alianças ou coalizões de partidos (noperíodo pós-eleitoral) para sustentar um go-verno com uma maioria efetiva e confiávelno Poder Legislativo. Porém, nem sempreum decorre do outro — ou seja, muitas vezesa coligação eleitoral que ajudou eleger umgrupo de partidos não se converte numacoalizão partidária no Legislativo, para sus-tentar o governo recém-eleito — principal-mente em sistemas presidencialistas,pluripartidários com representação propor-cional (RP) e especialmente quando essa RPusa coligações com listas abertas — comono caso brasileiro.

Ainda, os estudiosos que analisam a for-mação e a operação de coligações eleitoraisdividem seus enfoques:

1) Entre presidencialismo e parlamentarismo;

2) Quanto ao grau de “pluralismo” no sistemapartidário (Dalmoro; Fleischer);

3) Entre os diversos sistemas eleitorais prati-cados (Schmitt);

4) Entre as listas abertas ou fechadas no sis-tema proporcional (Dalmoro; Fleischer);

5) Se sublistas são permitidas (na eleiçãoproporcional e/ou majoritária);

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143Leonardo Avritzer | Fátima Anastasia [org.]

6) Entre a coincidência (ou não) de eleiçõesmajoritárias e proporcionais (Sousa);

7) Entre os impactos de uma “cláusula debarreira” (Machado); e

8) Se existe algum mecanismo ou regra defidelidade partidária na fase pós-eleitoral.

Na Europa, é comum a formação de coli-gações eleitorais abrangentes, como na úl-tima eleição italiana, onde duas coligaçõespraticamente empataram — União de Ro-mano Prodi e Casa das Liberdades (CDL)de Sílvio Berlusconi. Na Alemanha, tambémem 2006, nenhum dos dois grandes blocos— Social Democracia (SPD) e a DemocraciaCristã (CDU/CDS) — elegeu uma maioriaabsoluta de cadeiras no Bundestag e nãoconseguiu articular uma coalizão majoritáriacom os partidos menores. Assim, os doisformaram uma “grande coalizão nacional”para governar.

Coligações eleitorais

Embora haja um forte vínculo entre coli-gações eleitorais e coalizões de governo,especialmente em sistemas parlamentaristasonde a fidelidade partidária é muito forte, apresente análise vai abordar a fase eleitoraldeste fenômeno — como e por que os partidosse associam em coligações eleitorais?

Em 2002 e 2006 no Brasil, temos os casosde coligações (ou alianças) eleitorais “infor-mais” em função da verticalização das coli-gações federais/estaduais imposta pelo TSEem março de 2002 e mantida em 2006(Santos). Embora a coligação PSDB-PMDBfora formalmente “verticalizada” em 2002, emapoio a candidatura de José Serra à Presi-dência da República, em vários estados oPMDB traiu este artifício e mobilizou votosem favor de Lula já no 1

o turno. Em 2006,

muitos partidos evitaram participar de coli-gações presidenciais, para garantir maiorliberdade de organizar coligações diversasnos 27 estados, inclusive o PMDB, que repe-tiu a sua decisão de 1998 — não lançou candi-dato presidencial e não participou denenhuma coligação presidencial, justamente

para ficar “livre” da verticalização em nívelestadual.

1 Esta tendência seria a composição

informal de coligações “esdrúxulas” [termousado pelo TSE em 2002 para justificar averticalização].

Mas, por quais razões os partidos pro-curam participar de coligações? Em geral,nos sistemas proporcionais, a razão dos“pequenos” partidos é a sobrevivência elei-toral, frente a “barreira” do quociente elei-toral quanto menor a bancada estadual,maior esta “barreira” para os pequenos par-tidos. No Brasil, os menores estados têmuma bancada de oito deputados federais, eassim o quociente eleitoral é um oitavo(12,5%) dos votos válidos, maior ainda quea “barreira” dos 5%. Já nos estados maiores,como São Paulo com 70 deputados federais,o quociente eleitoral é menor proporcional-mente – 1/70 ou 1,4% dos votos válidos paraeleger um deputado.

Logo, seria de se esperar uma maior fre-qüência de coligações proporcionais nosestados menores, e uma menor freqüêncianas unidades maiores. Também, a sobrevi-vência das legendas pequenas [micropartidos]seria facilitada em circunscrições maiores(Schmitt). Por exemplo, no período 1945-1964, os pequenos partidos (PTN, PST, PRP,PRT e MTR) sempre conseguiram elegeralguns poucos deputados em São Paulo eoutros no Rio de Janeiro (ex-Distrito Federal/Estado da Guanabara) — justamente grandescolégios eleitorais naquela época (Oliveira).

Mas, por que então os grandes partidosaceitaram os pequenos como parceiros emcoligações proporcionais? Aparentemente,para conseguir uma mobilização eleitoral umpouco maior contra os outros partidos gran-des em cada estado — antes de 1964, fre-qüentemente havia apenas duas grandescoligações em nível estadual em torno dosdois mais importantes partidos locais (PSD,UDN e PTB). A partir de 1994, no Brasil, aseleições majoritárias (Presidente, Governadore Senador) são coincidentes com os pleitosproporcionais.

Porém, em 1954, 1958 e 1962, metadedos estados brasileiros tinham eleições co-incidentes (Governador e Deputados, ambos

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com mandatos de quatro anos) enquanto naoutra metade havia mandatos não-coinci-dentes (Governador, cinco anos e Deputado,quatro anos). Neste modelo quase “experi-mental”, Sousa mostrou que em 1962, 42,4%dos deputados federais foram eleitos porcoligações. Mas, nos 11 estados com elei-ções coincidentes, 61,7% dos deputadosforam eleitos via coligações eleitorais, po-rém, nos outros 11 estados (com eleiçõesnão-coincidentes) apenas 28,3% dos depu-tados foram eleitos via coligações. Tambémcabe lembrar que em 1962, havia duas vagaspara senador na agenda eleitoral. Assim,nestes 11 estados com eleições coincidentes,além da coligação para deputado, o partido“líder” negociava os cargos de vice-gover-nador e senador, além dos suplentes deste.

Muitas vezes, os grandes partidos pro-curam atrair médios e pequenos partidospara a sua coligação eleitoral para aumentaro tempo disponível no horário eleitoral gra-tuito, especialmente para os cargos majori-tários. Outra razão é o efeito do “federalismopartidário brasileiro” — onde alguns partidossão mais fortes em alguns estados, e outrosnão. Por exemplo, o PDT (um partido médio)é mais forte no Rio Grande do Sul e no Riode Janeiro. O PSDB e o PFL são fortes emmuitos estados, mas fracos no Rio Grandedo Sul, enquanto o PMDB é forte em quasetodos os estados. Já o PT conquistou a maiorbancada na Câmara dos Deputados em2002, mas somente elegeu três governadoresem estados menores (Acre, Mato Grosso doSul e Piauí) (Braga).

É importante ressaltar que no Brasil nuncase usou a “sublegenda” em eleições propor-cionais, como em outros países, por exem-plo, a Argentina. No modelo brasileiro,quando os partidos formam uma coligaçãopara deputado (com listas “abertas”) estasagremiações perdem a sua identidade, comose a coligação fosse um “balaio grande”. NaArgentina, para exemplificar, numa coligação,cada partido participante tem a sua “sublista”própria que é apurada separadamente. Assim,conforme a votação obtida, aloca-se a cadacoligação os assentos proporcionais à sua

votação, e depois se processa um novo cál-culo proporcional entre as sublistas para verquantos destes assentos conquistados cabema cada sub-lema.

No Brasil, usou-se o artifício de sublegendaapenas para cargos majoritários durante oregime militar (1964-1985) para eleger sena-dores e prefeitos. Neste caso, a ARENA e oMDB poderiam lançar até três candidatos aestes cargos, e o partido que recebia o maiornúmero de votos vencia, e a sublegendadeste elegia o senador ou o prefeito, emborao candidato (sublegenda) do outro partidotalvez tenha alcançado a maioria simplesdos votos. Este mecanismo da sublegendafoi um casuísmo que favorecia a ARENA, quetinha dificuldades em acomodar suas alas(ex-PSD, ex-UDN, ex-PR, etc.) nestas eleiçõesmajoritárias.

Nas eleições majoritárias anteriores a1964, as alianças partidárias eram seladaspela composição das chapas — presiden-te/vice-presidente, governador/vice-governa-dor, senador/suplentes e prefeito/vice-prefeito— lembrando que naquela época os viceseram candidatos “independentes” (desvin-culados do cargo titular), e de suplentes asenador. A partir de 1985, os vices passa-ram a constar numa chapa única com o titular,mas estes cargos ainda eram negociadospara formar coligações.

No período pré-1964, o conteúdo das ali-anças eleitorais também era esdrúxulo [nalinguagem do TSE, em 2002] —, conforme oestado. Por exemplo, o PTB aliava ao PSDcontra a UDN em alguns estados (comoCeará), e, em outros, a UDN coligava com oPSD contra o adversário comum (PTB), comono Rio Grande do Sul. Em 1950, GetúlioVargas e Adhemar de Barros selaram umaaliança PTB-PSP para o retorno de Vargas àPresidência (o PSP lançou o candidato a vice-presidente) e ainda queriam a adesão do PSD.Porém, o presidente General Eurico GasparDutra vetou essa idéia e obrigou o “seu” PSDa lançar candidato próprio — o pouco conhe-cido deputado mineiro Christiano Machado.No entanto, na maioria dos estados, o PSDapoiou a eleição de Vargas “informalmente”.Assim, o PSD foi “cristianizado” (Soares).

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145Leonardo Avritzer | Fátima Anastasia [org.]

Nas eleições proporcionais de 1994, porexemplo, várias coligações exibiam uma faltade consistência “ideológica” nas suas com-posições — por exemplo: o PSDB de F.H.Cardoso se aliou com o PDT em sete esta-dos, o PCdoB, em seis, e o PPS em quatro;e o PFL de Marco Maciel aliou-se ao PDTem seis estados. O PT tinha uma política decoligações mais consistente naquele ano ese aliou com o PSDB em apenas um estado.Naquela eleição, o PCdoB coligado com oPT conseguiu eleger 10 deputados federais,mas oito destes “às custas” do PT em fun-ção da lista aberta — onde o PCdoB man-dava seus eleitores concentrar seus votosem um só nome, enquanto eleitores do PTdispersavam seus votos “na legenda”.

Reforma política ecoligações eleitorais

Várias propostas de reformar a legisla-ção partidária e eleitoral têm sido apresen-tadas nos últimos anos. Algumas dessasmodificações propostas teriam impactos so-bre o artifício de coligações eleitorais:

1) simplesmente proibir coligações nas elei-ções proporcionais;

2) adotar listas “fechadas” e preordenadaspelos partidos/coligações;

3) utilizar sublegendas dentro destas listasfechadas; e

4) adotar o mecanismo de “federações” departidos em vez de “coligações”.

A simples eliminação de coligações naseleições proporcionais seria o fim da maioriados pequenos e micropartidos no Brasil —inclusive os chamados “partidos históricos”,como o PCdoB e o PPS. Talvez, apenas seteou oito partidos maiores sobrevivessem aesta regra (Dalmoro; Fleischer).

Adotar listas “fechadas” é outra mudançacogitada nessas propostas para “enquadrar”o Brasil na variante do sistema proporcionalmais freqüentemente usado mundialmente.Porém, duas alternativas são apresentadas— com ou sem sublistas ou sublegendas.

No modelo com sublegendas, cada par-tido participante da coligação apresentariaa sua lista de candidatos previamente orde-nada (do 1º nome ao 20º nome, por exemplo)e na subdivisão das vagas conquistadas pelacoligação a parcela alocada a cada suble-genda participante obedeceria à ordem pre-estabelecida em cada sublista.

Na alternativa sem sublegendas, os par-tidos participantes da coligação “balaiogrande” teriam que decidir quantos candi-datos caberia a cada legenda e a ordemem que estes entrariam na lista única.

Tanto uma como outra alternativa teriamum impacto negativo sobre as chances deos pequenos partidos “aproveitarem” a coli-gação para eleger seus candidatos, com-parado com a simples lista aberta.

Finalmente, a proposta de transformar astradicionais coligações eleitorais no Brasil em“federações” de partidos foi formalizadaatravés do Projeto Lei 2.679/03 aprovado pelaComissão Especial da Câmara dos Depu-tados em 3 de dezembro de 2003. Além de“fechar” a lista proporcional para a eleiçãode deputados, esse PL “enquadrou” os par-tidos participantes de coligações [federações]num esquema de fidelidade pós-eleitoral.

Cada “federação de partidos” [coligação]teria que ficar unida durante três anos apósa eleição, e seus deputados eleitos seriamimpedidos de mudar de partido. De uma vez,esse mecanismo tentaria “preservar” os pe-quenos partidos e, ao mesmo tempo, evitaro “troca-troca” de legendas pelos deputadosapós o pleito. Em 2002, por exemplo, a coli-gação que elegeu o presidente Lula (emsegundo turno) havia eleito 218 deputadosno primeiro turno — mas até 1º de fevereirode 2003 (data da posse dos eleitos) a ban-cada governista havia recebido 34 “migrantes”e contava com 252 deputados. Mais tarde,com a adesão do PMDB e do PP, a bancadagovernista chegou a 370 deputados em junhode 2003.

Na legislação atual de coligações, estaaparente “união” se desfaz no dia após opleito, e cada deputado eleito, cada partido,toma seus rumos de uma maneira indepen-dente — como “um ficar” na linguagem dos

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jovens. Com a federação de partidos, seriacomo uma “união estável” de três anos. Po-rém, o PL 2.679/03 colocou alguns “condi-cionantes” para formar tais “federações”,inclusive a norma de “candidato nato” (osatuais deputados teriam lugar cativo no topoda lista fechada da federação) — obvia-mente, para facilitar a aprovação pelos depu-tados eleitos em 2002.

Mesmo com a inserção de vários “agra-dos” para os deputados, esse Projeto de Leinão entrou na pauta de votação na Câmarados Deputados por causa de ameaças detrês partidos médios — PP, PTB e PL (osúltimos dois muito beneficiados pela “migra-ção” de deputados em 2002 e 2003). Quemsabe, com uma grande renovação, a novaCâmara consiga, em 2007, votar uma refor-ma político-partidário-eleitoral e modificareste mecanismo de coligações eleitorais.

Nota

1 Nos códigos eleitorais de 1950 e 1965, estes“conjuntos” de partidos para fins eleitorais eramchamados de alianças, já na legislação eleitoral a partirde 1985 a denominação passou a ser coligações.Brasília, 5 de junho de 2006.

Referências

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147Leonardo Avritzer | Fátima Anastasia [org.]

Justiça Eleitoral

Matthew Taylor

A Justiça Eleitoral foi criada em 1932,como parte de uma ampla reforma no pro-cesso eleitoral incentivada pela Revoluçãode 1930. Sua criação foi um grande avançoinstitucional garantindo, pela primeira vez nahistória brasileira, que as eleições tivessemo aval de um órgão teoricamente imune àinfluência dos mandatários (Silva Bohn et al.,2002). Esta instituição foi extinta com o ad-vento do Estado Novo, mas foi reerguida em1945 e manteve-se em funcionamento con-tínuo desde então, mesmo durante o regi-me militar de 1964 a 1985. Durante esteúltimo período, deve-se ressaltar o fato de oprocesso eleitoral não raras vezes ter sidomanipulado pelo regime militar. Entretanto,esta manipulação geralmente se dava noâmbito da legislação eleitoral, e não no pla-no de maior atuação da Justiça Eleitoral, oprocesso eleitoral em si (Sadek, 1995).

Talvez devido a esta história, a JustiçaEleitoral pôde exercer o papel importante quedesempenhou na transição para a democra-cia, possibilitando a adoção de novas regrase de novos padrões de participação eleitoraldistintas daquelas traçadas pelo regimemilitar, além de proporcionar um nível míni-mo de confiabilidade ao novo sistema deadministração e controle do processo eleito-ral (Sadek, 1990, 1995). Não é exagero afir-mar que a Justiça Eleitoral foi uma dasinstituições mais relevantes em termos deprovidenciar as garantias necessárias parauma transição estável, tanto nas eleiçõesindiretas de 1985, quanto nas primeiras elei-ções diretas de 1989, episódio no qual a ins-tituição foi diretamente responsável pelaimplementação e o julgamento dos critériospara o registro de novos partidos políticos ecandidatos aos diversos níveis de governo.

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A Justiça Eleitoralcomo instituição

A Justiça Eleitoral desempenha uma im-portante função na administração e condu-ção das eleições, cuidando tanto da isençãoe lisura do processo quanto da sua abran-gência e celeridade. Cuida do controle doalistamento eleitoral; do registro das candi-daturas; do controle das campanhas e, emespecial, da propaganda eleitoral; da con-tagem e processamento dos votos; da aná-lise das contas das campanhas; e dadiplomação dos vitoriosos. Apesar de seruma instituição da Justiça, a Justiça Eleitoralnão somente adjudica disputas no âmbitoeleitoral, mas também reúne atribuições dospoderes Executivo e Legislativo: administrae gerencia as eleições e estabelece regraslegais através da emissão de instruçõesnormativas.

A Justiça Eleitoral é composta de formaparecida aos outros órgãos da Justiça noBrasil, isto é, por um Tribunal Superior Elei-toral (TSE), Tribunais Regionais Eleitorais(TREs) na capital de cada estado e no Distri-to Federal, juízes eleitorais, e juntas eleito-rais (Constituição de 1988, art.118). O TSE,órgão máximo da Justiça Eleitoral, é com-posto por sete membros, sendo que trêsdestes são indicados dentre os ministros doSupremo Tribunal Federal (STF), dois dentreos ministros do Supremo Tribunal de Justiça,e dois são nomeados pelo Presidente daRepública, entre advogados indicados peloSTF. As decisões do TSE são irrecorríveis,salvo aquelas que são inconstitucionais oudenegatórias de habeas corpus ou mandadode segurança (art. 119). Os juízes eleitoraissão juízes de Direito, e as juntas eleitoraissão presididas por um juiz vitalício e maisdois cidadãos nomeados pelo TRE local.Com exceção das juntas eleitorais, todos osórgãos da Justiça Eleitoral são permanentes,mas embora os funcionários sejam de car-reira, os juízes têm cargo temporário, sendoque a nomeação é para o prazo de dois anoscom uma possibilidade de renovação paraum segundo biênio.

Em termos do poder institucional da Jus-tiça Eleitoral, são várias as garantias da pro-vável continuidade da Justiça Eleitoral comopoder independente e de razoável influênciadentro do sistema político. Além do históricogeralmente positivo da Justiça Eleitoral comoárbitro da contestação política, e da nomeaçãode integrantes da Justiça Eleitoral oriundosde um Judiciário que já é razoavelmente inde-pendente diante dos poderes Executivo eLegislativo, a instituição também se bene-ficia por possuir amplas competências admi-nistrativas que lhe outorgam o poder deregulamentar as leis eleitorais. Adicional-mente, as regras eleitorais são estabelecidasem nível federal e têm validade em todas asunidades da Federação, ao contrário da praxena maior parte dos sistemas federativos (SilvaBohn et al., 339), o que proporciona à JustiçaEleitoral uma facilidade de agir de formauniforme em toda o território brasileiro.

Fraquezas na Justiça Eleitoral

Em geral, o desempenho da Justiça Elei-toral tem sido extremamente positivo emtermos da eficiência e autonomia com a qualcumpriu sua função no período pós-autoritá-rio. No entanto, esse desempenho mostraalguns desequilíbrios. De um lado, a JustiçaEleitoral tem se mostrado extremamente efi-caz na melhoria do processo eleitoral, isto é,em relação à apuração do voto e à participa-ção generalizada dos eleitores. Não pairamgrandes dúvidas sobre fraudes na urna nodia da votação: a introdução da urna eletrô-nica (começando em 1996, e tornando-sequase universal em 2000) ajudou a tornar oprocesso de votação mais célere e trans-parente. A capacidade de organização logís-tica das eleições também é formidável: oprocesso pelo qual as cédulas e urnas sãocolocadas até nos povoados mais remotosé um feito que comprova a extensão e acapacidade do Estado brasileiro. Ainda dolado positivo, o TSE tem mostrado umacapacidade de absorver um eleitorado quecresceu continuamente ao longo do último

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século, tanto em seus números absolutos(atualmente em torno de 122 milhões), quantocomo porcentagem da população, culmi-nando na outorga do voto aos analfabetosem 1985, que tornou o sufrágio adulto uni-versal. Enfim, o processo pelo qual os elei-tores participam do processo de votação,supervisionados pela Justiça Eleitoral, bene-ficia-se de alta taxa de credibilidade.

De outro lado, no entanto, o desempenhoda Justiça Eleitoral deixa muito a desejar,avançando pouco no sentido de fiscalizar aparticipação dos partidos ou dos candidatosnas mesmas eleições, e muito menos aindana punição de eventuais erros decorrentesda atuação destes atores políticos. Tendo emmente o propósito desta coletânea, de ofe-recer subsídios para aprimorar as instituiçõespolíticas, é essencial assinalar as principaisfraquezas da Justiça Eleitoral.

Estas se resumem principalmente na difi-culdade de monitorar e detectar irregulari-dades e na dificuldade de punir efetivamenteos envolvidos em eventuais crimes eleitorais.Embora a Justiça Eleitoral seja eficaz na pu-nição de algumas manipulações do pro-cesso eleitoral, como abusos por parte damídia ou abusos no horário eleitoral gratuito,deixa muito a desejar na fiscalização e pu-nição de irregularidades relativas ao financia-mento irregular de campanhas (“caixa dois”)e ao uso indevido da máquina governamental.De acordo com um levantamento parcial dasrepresentações feitas diante da Justiça Elei-toral, 70% dos procedimentos são relativosao horário eleitoral, e apenas 0,3% resultaem condenação por crime eleitoral (Santos,2003).

Estas fraquezas da Justiça Eleitoral re-sultam de dois males maiores: o fato demudanças na legislação sobre campanha esobre as eleições estarem justamente nasmãos dos que mais se beneficiam de umalegislação pouco rigorosa; e a dificuldadede se monitorar eleições efetivamente diantede um sistema político-partidário que incen-tiva um número imenso de candidaturas epartidos. O TSE já concedeu registro defini-tivo a 29 partidos políticos, o que lhes per-mite participar das eleições e da propaganda

eleitoral gratuita, além de receber recursosdo Fundo Partidário. Foram quase 380 milcandidatos a cargos municipais, estaduaise federais nas eleições de 2004, sendo quemuitos destes concorreram com seus cor-religionários partidários, inflando o custo e aagressividade das campanhas. Diante dasreconhecidas “deficiências técnico-materiaise de recursos humanos” da Justiça Eleitoral(Sadek, 1995, p. 67), o elevado número decandidatos e partidos e a acirrada concor-rência entre eles dificultam imensamente afiscalização.

A coibição preventiva da prática de cri-mes eleitorais, através do monitoramentoefetivo dos candidatos e partidos políticos,é difícil, em vista das inúmeras possíveiscontravenções, tais como o uso da máquinado governo para favorecer candidatos, ofinanciamento ilícito de campanhas, e astentativas de compra de votos, fenômeno quepesquisa nacional estima ter atingido um emcada sete eleitores (Speck, 2003). O monito-ramento de tais infrações pela Justiça Elei-toral depende quase inteiramente dedenúncias advindas da sociedade civil. Aúnica exceção a esta regra se dá no monito-ramento pró-ativo do financiamento de cam-panha, pelo qual todos os candidatosapresentam as contas da campanha paraconsideração pela Justiça Eleitoral até trintadias após o pleito.

Mas a combinação de campanhas caríssi-mas (Silva Bohn et al., 2002 estimam o custode se eleger deputado federal em torno de 4,5a 6 milhões de dólares), regras inócuas oufrouxas tanto de declaração de gastos quan-to do autofinanciamento da campanha pelopróprio candidato (o que dificulta o monito-ramento de ingressos suspeitos), e a faltade uma legislação mais rigorosa, que per-mita a rejeição de contas suspeitas, ten-de a dificultar o trabalho da Justiça Eleitoral.Como concluem Silva Bohn et al. (2002, p.351), devido a esses fatores, “as contas decampanha acabam se tornando uma peçade ficção, e a prestação de contas é vistacomo um acordo de cavalheiros, no qualcada partido ratifica a lisura da contabili-dade alheia, para que, em troca, possa ter

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as próprias contas aprovadas”. O resulta-do, não surpreendentemente, é um uso ge-neralizado do chamado “caixa dois”, peloqual as doações e gastos verdadeiros decampanha são feitos longe do olhar da Jus-tiça Eleitoral.

A dificuldade em se punir infrações deve-se, em parte, a separação institucional daJustiça Eleitoral de outras instituições jurídicas:isto é, da existência de esferas diferentesda Justiça para tratar de assuntos de cor-rupção por políticos governantes, e, outra,para tratar de irregularidades eleitorais, mes-mo que a prática da corrupção pelos gover-nantes muitas vezes seja incentivada pelasdemandas do sistema eleitoral. Deve serrealçada, também, a existência de uma jus-tiça privilegiada para alguns políticos, comodeputados e ministros, que detêm o privilé-gio de foro especial, ao contrário de seuspares não eleitos.

Pensando uma novaJustiça Eleitoral

Qualquer reforma a ser pensada para aJustiça Eleitoral deve achar um equilíbrioentre diversas metas: aumentar o grau detransparência disponível ao eleitorado sobrea real relação entre candidatos políticos eseus financiadores; fortalecer os partidospolíticos de forma que eles representem defato uma tendência discernível ao eleitor, enão um emaranhado de interesses diversose, muitas vezes, internamente conflitantes;e finalmente, criar regras claras, transgres-sões às quais possam ser monitoradas, in-vestigadas e eficientemente punidas demaneira que desestimulem futuros crimes.Mas estes objetivos apresentam duas com-plicações: a primeira é a possibilidade deum excesso de regras que possam ser ig-noradas pela sua complexidade e pelas difi-culdades de implementá-las efetivamente.A segunda, de ordem mais imediata, é queestas mudanças requerem reformas em trêsníveis bem distintos do sistema jurídico epolítico.

O primeiro nível, no qual as reformaspodem ser promovidas, é interno à JustiçaEleitoral. Essas mudanças podem ser avan-çadas dentro do TSE através de resoluçõesde cunho próprio ou de acordos de coopera-ção com outras partes da burocracia estatalpara tentar aprimorar o controle e a transpa-rência das eleições. Esforços neste sentidovariam desde iniciativas burocráticas, comoo recadastramento de eleitores ou a criaçãode um novo título de eleitor que iniba as frau-des, até esforços que já estão em andamentopara aprofundar a cooperação e a troca deinformações com outras instituições do Es-tado. Estes últimos incluem tentativas demelhorar o monitoramento das campanhaspolíticas através da cooperação entre a Jus-tiça Eleitoral, a Receita Federal e os Tribunaisde Conta, e o aprofundamento da cooperaçãocom a Polícia Federal e os Ministérios Pú-blicos, nos esforços de investigação e efetivapunição de eventuais transgressões. No casoda cooperação com a Receita, já está emcurso uma inovadora tentativa de acompa-nhamento conjunto da prestação de contasnas eleições de 2006, que poderia seraprofundada tanto com a Receita quantocom os Tribunais de Conta para desvendargastos e receitas não declaradas.

Outras mudanças internas à Justiça jáforam propostas por uma comissão de no-táveis convocada pelo TSE em 2005, masainda não foram implementadas. Entre es-tas estão a melhoria na prestação de contaspartidárias, que hoje em dia não se colocamà disposição na Internet, dificultando, assim,o acompanhamento público, e uma melhordivulgação dos doadores de campanha, comênfase na identificação pública destes, an-tes das eleições. Ambas as propostas aju-dariam a fechar o cerco aos doadores quese aproveitam da não publicidade das con-tas partidárias para fazer doações ao parti-do que não raramente são diretamenterepassadas a um determinado candidato.Finalmente, uma mudança de efeito práticopoderia ter efeitos imediatos: a realocaçãodos recursos internos da Justiça Eleitoral. Porvia de exemplo, o TSE gastou em tornou de

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R$1 milhão no ano passado para renovar suafrota de carros oficiais, mas dispôs de so-mente cinco funcionários para realizar todo ocontrole nacional das despesas partidárias.

O segundo nível de reformas inclui mu-danças na própria instituição da Justiça Elei-toral e na legislação relativa às eleições.Ambas haveriam de ser aprovadas peloCongresso. Em relação à primeira, é de lon-ga data a crítica à investidura temporária dosmembros dos tribunais eleitorais, que apre-senta “o inconveniente de impedir uma maiorespecialização nos assuntos atinentes aocontencioso eleitoral” (Sadek, 1995, p. 38).Neste mesmo sentido, a Justiça Eleitoralcomo instituição também poderia ser forta-lecida através de maiores dotações orça-mentárias para a Justiça Eleitoral e oMinistério Público eleitoral, permitindo aampliação de sua capacidade (se combina-do com a racionalização e realocação de seugasto na linha recomendada acima).

Entre as propostas para aprimorar o con-trole dos gastos legítimos de campanha, oaumento da fiscalização, a criação de bene-fícios para os contribuintes legais, e um au-mento na efetiva punição são essenciais. Emrelação à fiscalização, uma proposta seria acontratação temporária de auditores exter-nos pela Justiça Eleitoral durante períodoseleitorais. Estes auditores poderiam ser tan-to do setor privado quanto servidores públi-cos “emprestados” durante o períodoeleitoral (do Ministério da Fazenda, dos Tri-bunais de Contas, etc.) para incorporar co-missões temporárias de fiscalização decontas. Tal proposta não implicaria aumentopermanente no tamanho da burocracia, masgarantiria uma divulgação mais rápida dasfontes financiadoras legítimas e da relaçãoentre gastos efetivos e rendas declaradas.Uma segunda proposta, do Professor Mar-cos Cintra, centralizaria o orçamento doscandidatos na Justiça Eleitoral: qualquer do-ação ou gasto declarado teria que passarpelo crivo da burocracia eleitoral, permitindomaior fiscalização da fonte e destino dos re-cursos declarados. Qualquer gasto extra-ofi-cial seria facilmente reconhecido por não ter

passado pela Justiça Eleitoral. Em relaçãoa benefícios, uma proposta recorrente é aisenção fiscal dos contribuintes, que criariaincentivos para tirar as doações das sombrase aumentaria a transparência das campa-nhas. Finalmente, em termos de punição,o aumento das penalidades para a práticade “caixa dois” já foi proposto, com um au-mento na pena máxima de cinco a oito anose a elevação das multas. Mas essas puni-ções deveriam ser estendidas, na prática,não somente aos políticos envolvidos, mastambém aos doadores, que quase nuncasofrem as conseqüências pela prática de“caixa dois”.

Reformas mais profundas na legislaçãorelacionada à Justiça Eleitoral tendem a serde difícil implementação, especialmenteporque a pressão pública a favor da reformachega a seu apogeu exatamente no augedas crises políticas, quando os congressis-tas estão geralmente distraídos pelo acom-panhamento do escândalo. Mas não se deveesquecer que mudanças mais profundas nalegislação eleitoral, como o aumento da efi-cácia das penalidades, podem ser efetiva-das através dos esforços da sociedade civil.Nesse sentido, a aprovação da Lei 9.840 de1999 é exemplar: um grupo de organizaçõescivis, liderado pela Conferência Nacional dosBispos do Brasil (CNBB) e a Ordem dosAdvogados do Brasil (OAB), conseguiu maisde um milhão de assinaturas para aprovaruma iniciativa popular de lei mudando aspenalidades impostas para a compra devoto, impondo não somente uma multa, mastambém — e talvez de maior efeito dissua-sor para os políticos — permitindo que aJustiça Eleitoral rapidamente invalide a can-didatura de políticos envolvidos. É difícil acre-ditar que o Congresso teria tomado ainiciativa de promover esta reforma sem umapressão mais direta da sociedade.

Finalmente, embora não seja imediata-mente relevante a questão da Justiça Eleito-ral, mudanças mais amplas no sistemapolítico-partidário também poderiam ajudara melhorar a transparência do sistema elei-toral. As três propostas mais comuns são

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de trocar a representação proporcional paraum sistema de voto distrital misto, criar lis-tas fechadas de candidatos dentro de cadapartido e introduzir regras mais rígidas defidelidade partidária. Juntas, estas propos-tas criariam um vínculo mais direto entre elei-tores e seus representantes distritais,diminuiriam a competição entre candidatosdo mesmo partido, e fortaleceriam os parti-dos políticos. Em suma, poderiam diminuiro alto custo das campanhas, eliminando umincentivo muito relevante no problema do fi-nanciamento ilegal através de “caixa dois”,além de aumentar os custos eleitorais detransgressões eleitorais, tanto para candida-tos específicos quanto para seus partidospolíticos.

Enfim, não faltam propostas para melho-rar a transparência do processo eleitoral. Al-gumas, como o financiamento público dascampanhas, não parecem ser soluções efi-cazes, porque reduziriam pouco os incenti-vos ao financiamento não contabilizado pelascampanhas. Outras propostas, como umaumento nas penalidades impostas aos in-fratores, dificilmente alcançarão o sucessose não forem implementadas conjuntamen-te com outras medidas que fortaleçam aJustiça Eleitoral na sua capacidade fiscali-zadora e punitiva. Finalmente, é importanterealçar a dificuldade de qualquer iniciativareformista prosperar sem maciço apoio po-pular. Tendo em vista a ampla reação popu-lar ao atual escândalo político, talvez sejauma hora propícia para se pensar as alter-nativas que possam criar um sistema maisefetivo e capaz de coibir as piores contra-venções das leis eleitorais, garantindo, as-sim, a legitimidade do sistema democráticobrasileiro.

Referências

SADEK, Maria Tereza. A Justiça Eleitoral no processo de redemocratização.In: LAMOUNIER, Bolivar (Org.). De Geisel a Collor: o balanço da transição.São Paulo: Sumaré, 1990.

SADEK, Maria Tereza. A Justiça Eleitoral e a consolidação da democraciano Brasil. São Paulo: Konrad Adenauer Stiftung, 1995.

SANTOS, Reinaldo dos. Mídia e democracia na legislação eleitoral brasi-leira: um levantamento dos mecanismos legislativos de controle e com-pensação do uso dos meios de comunicação em contextos eleitorais(1974-2000). Trabalho apresentado no XXVI Congresso Anual em Ciênciada Comunicação, 02-06 de setembro de 2003.

SILVA BOHN, Simone Rodrigues da; FLEISCHER, David; WHITACKER,Francisco. A fiscalização das eleições. In: SPECK, Bruno Wilhelm (Org.).Caminhos da transparência. São Paulo: Editora da Universidade Estadualde Campinas, 2002. p. 335-354.

SPECK, Bruno Wilhelm. A Compra de votos – uma aproximação empírica.Opinião Pública IX, n. 1, p. 148-169, 2003.

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O Financiamentode CampanhasEleitorais

Bruno Wilhelm Speck

O que compreendeo financiamento decampanhas eleitorais?

Por financiamento de campanhas eleito-rais entendem-se os recursos materiaisempregados pelos competidores em elei-ções populares (partidos e candidatos) paraorganizar a campanha e convencer os cida-dãos a lhes conferirem o voto. Não compre-ende os custos da organização do processoeleitoral, como o registro de eleitores, a ins-talação das urnas, os profissionais e volun-tários recrutados para servir no dia daeleição, a adjudicação de processos, etc.que correm por conta do Estado. Tambémnão compreendem o financiamento ordiná-rio das organizações partidárias ou a remu-neração dos representantes eleitos, apesarde ambas as fontes terem muitos vasoscomunicantes com o financiamento de cam-panhas. Por outro lado, todos os gastos coma finalidade de convencer eleitores a vota-rem a favor de determinado projeto político,partido ou candidato podem ser considera-dos gastos de campanha.

Um dos problemas de delimitação dofenômeno de financiamento de campanhaseleitorais diz respeito à identificação do pe-ríodo de campanha. Mesmo que a legislaçãoem muitos países defina um período oficialpara a campanha, através de uma definiçãolegal, a dinâmica da realidade política muitasvezes se impõe com força maior. As pré-campanhas dentro dos partidos, para com-petir pela nomeação como candidato, sãouma tendência do processo de democra-tização dos partidos em muitos países.

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Mesmo que ainda não tenham atraído aatenção dos observadores em muitos pa-íses, elas igualmente envolvem recursos esão parte do financiamento eleitoral.

Outro problema de desenhar uma linhadivisória se refere aos atores envolvidos nofinanciamento eleitoral. A arrecadação, ad-ministração e alocação dos recursos correm,tipicamente, por conta ou dos partidos polí-ticos ou dos candidatos, dependendo dosistema eleitoral e da cultura política. Emreação à legislação eleitoral, outras modali-dades de financiamento se tornaram fre-qüentes. Alguns financiadores efetuamgastos com bens ou serviços em favor decandidatos ou partidos, evitando a contabili-zação desses valores como doação. Outrasiniciativas são comitês em apoio a determi-nados candidatos ou temas, administrandorecursos e atuantes com finalidade eleitoral.Ambos os fenômenos, muitas vezes origi-nados para driblar restrições impostas pelalegislação eleitoral, igualmente configuramfinanciamento eleitoral.

Apesar de que os recursos financeirostendem a se tornar a moeda mais freqüenteno apoio material a campanhas eleitorais,formas de apoio material são bastante co-muns. Empresas colocam veículos à dispo-sição dos candidatos, fornecem camisetasou outros bens. Prestadores de serviços aju-dam com descontos em pesquisas, anún-cios ou outros recursos valiosos emcampanhas. Como a liquidez dos recursospode ser um problema grande em campa-nhas, créditos financeiros por bancos ououtras instituições são um recurso importantepara os partidos políticos. O pagamento deum fornecedor ou prestador de serviço po-derá adquirir o caráter de um crédito, ou,caso esse pagamento nunca ocorra, deveráser contabilizado como contribuição. Osaportes em espécie, os descontos e servi-ços gratuitos bem como os créditos finan-ceiros, mesmo que de difícil contabilização,são parte do financiamento da política.

Necessidade de recursos eriscos decorrentes dofinanciamento de campanhas

O assunto do financiamento da competi-ção política se tornou um tema sensível emtodas as democracias modernas. Em siste-mas com eleições competitivas, a propagan-da eleitoral é um ingrediente necessário paraa comunicação entre os cidadãos e os can-didatos a cargos políticos. A competição porvotos seria impossível sem os recursos ne-cessários para convencer o eleitor. O dinhei-ro tem um papel positivo na competiçãopolítica, mas também há riscos decorrentesdo financiamento político.

As críticas dirigidas ao tema do financia-mento da competição eleitoral se referem aproblemas de naturezas diferentes. Umaprimeira crítica se refere à possível distor-ção da competição eleitoral pelo peso dosrecursos financeiros em campanhas ou peladistribuição desses recursos entre os com-petidores. Na primeira variante a acusaçãose refere ao encarecimento das campanhaseleitorais como indicador de uma crescentemanipulação do eleitorado pelas modernastécnicas de propaganda e comunicação. Oobjetivo da diminuição da importância do di-nheiro na política coincide com o ideal de umarelação mais orgânica e consciente entre ospartidos políticos e o seu eleitorado. A merainfluência do dinheiro é vista como uma influ-ência maléfica sobre o processo eleitoral.

A segunda variante dessa mesma preo-cupação com o processo eleitoral diz res-peito à distorção da competição eleitoral apartir da distribuição dos recursos. As cau-sas mais importantes de distorção da com-petição eleitoral por um desequilíbrio nosrecursos disponíveis para a campanha são:o poder econômico dos candidatos queautofinanciam as suas campanhas; o abusode recursos do Estado para financiar unilate-ralmente candidatos ou partidos governistas;e o acesso desigual ao financiamento pri-vado. Um dos problemas na busca por solu-ções para essa distorção reside na dificuldadede identificar qual seria uma distribuição

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justa dos recursos entre os candidatos. Adistribuição totalmente eqüitativa dos re-cursos entre todos os candidatos ou partidosé raramente defendida. A própria distribuiçãodesigual dos recursos expressa também oenraizamento social de alguns partidos e afalta de apoio popular para outros.

A segunda crítica ao financiamento polí-tico se refere à subversão do princípio daigualdade dos cidadãos quanto à sua influ-ência sobre a representação política. A am-pliação do sufrágio a todos os cidadãos,processo consolidado na maioria dos paí-ses modernos durante o século 20, está ba-seada no princípio da igualdade do voto. Apossibilidade de influenciar o processo derepresentação pela via de doações a parti-dos e candidatos abre novamente a ques-tão das garantias mínimas para assegurar aeqüidade dos cidadãos. Em sistemas definanciamento político sem regulação oscidadãos têm capacidade muito desigualde aportar recursos para campanhas elei-torais. Adicionalmente, a legitimidade deentidades estrangeiras, empresas, organi-zações sociais ou instituições em influen-ciarem o processo eleitoral por meio dedoações pode ser questionada. Em defesadesse princípio da igualdade, muitos paísesvetam qualquer contribuição de determinadosatores ou estabelecem tetos máximos paraas doações para restabelecer parcialmenteo princípio da igualdade.

A terceira crítica diz respeito à possíveldependência dos candidatos eleitos dosseus financiadores, que poderá se expres-sar na futura concessão de favores, vanta-gens ou na representação privilegiada dosinteresses, uma vez que os candidatos seelegeram como chefes de governo ou repre-sentantes da sociedade. Esta relação de tro-car apoio financeiro à campanha porbenefícios aos financiadores, claramente,viola os deveres de representação e tem umônus para a sociedade. Estas doações quecompram acesso ao poder ou outras vanta-gens se aproximam da definição da corrup-ção na área administrativa.

Variações em torno da corrupção da re-presentação política pelo financiamento decampanha incluem também situações inver-sas, em que a concessão de contratos van-tajosos ou outros favores ocorre antes dacampanha eleitoral. Há também situaçõesonde empresas privadas sofrem pressão pormeio de órgãos de fiscalização, de licençasconcedidas ou contratos mantidos com oEstado, aproximando o financiamento daextorsão. Em ambos os casos o problemado financiamento privado se mescla forte-mente com a questão do abuso da máqui-na governamental para fins eleitorais.

A regulação do financiamento político ea discussão sobre a sua reforma estão for-temente vinculadas à questão dos objetivosda reforma. A discussão sobre as ferramen-tas de regulação mais adequadas se desen-volve em grande parte em função dos riscospercebidos como mais prementes e dosvalores que devem ser fortalecidos pela re-forma: a garantia de uma competição elei-toral mais equilibrada, a independência entrefinanciadores e doadores ou o fortalecimen-to da eqüidade cidadã no financiamento dascampanhas. Mesmo que estes objetivos nãosejam mutuamente excludentes, as ferra-mentas a serem escolhidas para enfrentarcada um destes desafios variam bastante.

A regulação e reforma dofinanciamento da competiçãoeleitoral no Brasil

Numa perspectiva comparativa a regula-ção do financiamento abrange três aborda-gens, cada uma com ferramentas diferentes,cuja combinação caracteriza o sistema definanciamento político de cada país.

A primeira abordagem se baseia na idéiade impor limites e vedações ao financia-mento, de forma a minimizar os riscos decor-rentes do financiamento. Isto inclui avedação de doações estrangeiras, de em-presas em geral ou somente das que man-têm relações contratuais, que dependemde licenças ou permissões do Estado, e aproibição de doações anônimas. Os limites

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às doações permitidas assumem váriasformas, desde a definição de valores má-ximos que doadores individuais podem usarpara influenciar o processo eleitoral; limi-tes para as contribuições desses a candi-datos ou partidos individuais; a definição detetos para os gastos permitidos aos candi-datos e partidos; a limitação do total dosrecursos privados permitidos nas campa-nhas.

Outra vedação importante no financia-mento político se refere ao uso unilateral derecursos públicos nas campanhas eleitorais.Hoje, na maioria dos países, o uso arbitráriode recursos do governo a favor de partidosou candidatos é vedado por lei. Mas na prá-tica a efetiva coibição do abuso da maquinaestatal em favor de determinados candi-datos freqüentemente ultrapassa o CódigoEleitoral. Ele está fundamentado na construçãode um serviço público livre de ingerênciasarbitrárias sobre o quadro de funcionários.Adicionalmente, a coibição do abuso da má-quina passa pela reforma dos sistemas decompras públicas, dos sistemas tributáriose de outras áreas de fiscalização e controleonde a arbitrariedade governamental abremargem para o abuso da máquina. Progra-mas sociais de assistência individual a po-pulações carentes podem induzir ao mesmotipo de abuso, condicionando o voto dos elei-tores. Recentemente a questão da alocaçãodos recursos para a publicidade governa-mental com fins eleitorais se tornou um temade críticas em muitos países.

O sistema brasileiro, definido na Lei dosPartidos Políticos de 1995 e na Lei Eleitoralde 1997, estabelece que entidades ou go-vernos estrangeiros, instituições públicas daadministração direta ou indireta; empresaspúblicas e sociedades de economia mista,entidades subsidiadas com recursos públicos;entidades de utilidade pública; concessioná-rias e permissionários de serviços públicos,e entidades de classe ou sindical são veda-das de contribuírem com recursos para par-tidos e campanhas. As definições entre asduas normas quanto às vedações variamligeiramente (Lei dos Partidos Políticos 9.096/95, art. 31; Lei Eleitoral 9.504/97, art. 24).

Em uma comparação internacional a veda-ção do financiamento por entidades de clas-se e sindicatos, herdada ainda da ditaduramilitar no Brasil, poderia ser considerada ana-crônica. A influência do conflito entre capitale trabalho sobre a representação política e osistema partidário talvez seja menos preo-cupante em função da existência de certoequilíbrio de forças. Contrariamente, a omis-são da legislação brasileira quanto a contri-buições por empresas que prestam serviçosou realizam obras para o Estado é questio-nável, pois o risco de uma troca de favoresentre o doador e o futuro governante é imi-nente.

A discrepância entre a Lei dos Partidos ea Lei Eleitoral é grande no que diz respeitoao estabelecimento de limites às doações.Enquanto a primeira não estabelece nenhumtipo de limite para o aporte de recursos pri-vados, a segunda define tetos para as con-tribuições de pessoas físicas (10% da renda)e jurídicas (2% do faturamento). Esta normacausa estranheza por dois motivos: primei-ro, a definição do teto de contribuições emfunção do poder econômico dos doadoresestá em conflito com a idéia de garantir aeqüidade entre os doadores. A atual legisla-ção brasileira transforma a iniqüidade sociale econômica em norma para o financiamen-to eleitoral. Quem tem uma renda menorpoderá doar menos às campanhas não sópor força da realidade, mas também pelalei. Por outro lado, a inexistência destes limi-tes para o financiamento dos partidos emcombinação com a possibilidade de quepartidos transfiram recursos para campanhaseleitorais criam um forte incentivo para con-tornar esta norma legal, utilizando os parti-dos políticos como intermediários. Estabrecha na lei torna o financiamento políticomenos transparente.

Finalmente, não existe um limite estabe-lecido pela legislação acerca de tetos paraos gastos. A Lei Eleitoral apenas estabeleceque os candidatos devam auto-estipular umteto para os seus gastos e comunicar essevalor à Justiça Eleitoral (Lei Eleitoral 9.504/97,art. 18). Essa regra é de difícil compreen-são, pois não serve ao propósito de nivelar o

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montante dos recursos gastos em campa-nhas, tornando as eleições menos custosas.Em resumo, o financiamento político no Bra-sil atualmente se caracteriza por ser muitopermissivo quanto à origem e aos volumesdos aportes para os partidos e campanhaseleitorais.

A segunda abordagem na regulação dofinanciamento da política consiste na provi-são de recursos públicos aos candidatos epartidos. A justificativa destes aportes públicosaos partidos pode ser o seu papel interme-diário entre a sociedade e o poder público.Os partidos seriam remunerados pelo serviçoque prestam ao sistema político. Outro motivopragmático seria o provimento de recursospara substituir parcialmente as outras fontesde financiamento e diminuir os riscos decor-rentes do uso ilegal da máquina ou do finan-ciamento privado. Neste caso a justificativa éinstrumental. Os partidos recebem recursospúblicos para manter a sua independência.

As formas de financiamento público sedividem em três grupos: as isenções deimpostos aos partidos e aos doadores; oacesso gratuito ou subsidiado a serviços pú-blicos e instalações; os recursos orçamen-tários diretos. No caso brasileiro, a relevânciaeconômica da isenção do imposto de rendaconcedido aos partidos políticos é limitada.No entanto, o acesso gratuito concedido aosmeios eletrônicos de comunicação represen-ta uma forte intervenção do Estado na com-petição eleitoral. O horário eleitoral gratuitoem rádio e televisão foi introduzido em 1962,e durante a ditadura militar a legislação foicomplementada em 1974, proibindo a con-tratação de propaganda adicional paga nes-tes meios. Desde então o sistema brasileirose caracteriza pela concessão de amplo es-paço gratuito aos partidos antes da eleição.Os 100 minutos diários concedidos durante45 dias antes da eleição aos partidos emrádio e televisão representam uma dotaçãogenerosa, se comparada a outros países. Ovalor comercial deste espaço de propagan-da, estimado em 2,4 bilhões de reais, ilustraa importância deste canal de comunicaçãona sociedade brasileira (Speck, 2005). O ho-

rário eleitoral gratuito é concedido durante aseleições nacionais, estaduais e municipais.

A distribuição deste espaço gratuito emum canal de comunicação tão importantequanto rádio e televisão é de central impor-tância para os competidores, principalmen-te levando em conta a proibição do espaçoadicional pago (Lei Eleitoral 9.504/97, art. 44).A Lei Eleitoral aloca 1/3 do espaço em fra-ções iguais entre todos os partidos que apre-sentam candidatos na eleição e tiveremrepresentação na Câmara dos Deputados.Com o número grande de partidos este es-paço acaba sendo extremamente fraciona-do. Outros 2/3 do tempo são distribuídos deforma proporcional à composição da Câma-ra no início do período legislativo. A vincula-ção de um dos mais importantes recursosna eleição ao sucesso eleitoral no passadotende a perpetuar a relação de forças entreos partidos.

Outro fator de financiamento vai na mesmadireção. Desde 1995 os partidos políticosrecebem anualmente recursos diretos dofundo partidário no valor total de aproxima-damente 1 real por eleitor (2005: 120 mil reais).Estes recursos não são destinados explici-tamente às eleições, mas por outro lado alei não proíbe tal utilização, exceto a 20% doFundo Partidário que deve ser destinado afins educativos. A distribuição de 99% dosrecursos do Fundo Partidário se dá pelo cri-tério do sucesso eleitoral na última eleição,perpetuando outra vez a relação de força entreos partidos através dos subsídios públicos(Lei dos Partidos 9.096/95, art. 41).

Os projetos sobre a ampliação do fundopartidário e a proibição dos recursos priva-dos em anos eleitorais devem levar em con-ta a necessidade de se intensificar afiscalização para coibir de forma eficiente o“caixa dois”. Outra preocupação é a impor-tância dos critérios de distribuição dos re-cursos do Fundo, quando estes se tornamhipoteticamente o único recurso na campa-nha. Um desequilíbrio nesta alocação dosrecursos públicos influenciará profundamenteas chances dos competidores políticos.

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A terceira abordagem na regulação dosistema de financiamento de campanhasconsiste na criação de maior transparênciasobre o financiamento da política. A justifi-cativa para tal aposta na transparência incluia necessidade de prestação de contas paraverificação do cumprimento da legislaçãovigente, bem como a prestação de contassobre a utilização dos subsídios públicos. Adivulgação da informação sobre os financia-dores permite que outros atores possamparticipar da fiscalização dessas declara-ções, denunciando informações incomple-tas ou falsas à Justiça Eleitoral. Também seargumenta que a forma como os partidostratam da questão dos recursos durante acampanha dará pistas sobre a futura ges-tão dos recursos públicos. Porém, a justifi-cativa central para a maior transparênciasobre o financiamento das campanhas é ovoto informado. A idéia básica é que o finan-ciamento das campanhas é parte integral eessencial das propostas políticas que estãosendo apresentadas pelos partidos e candi-datos. Para que os cidadãos possam fazeruma escolha baseada em informações, énecessário que saibam antes da eleição osprincipais dados sobre o financiamento.

Poucos países conseguiram avançar nes-ta direção da produção e divulgação de in-formações sobre o financiamento antes daseleições. No caso do Brasil, os avanços naprestação de contas foram grandes desde oescândalo em torno do ex-presidente Fernan-do Collor e seu coordenador de campanhaPaulo César Farias. A Lei Eleitoral de 1997obriga os candidatos e partidos a prestaremcontas de forma detalhada sobre a origem edestino dos recursos utilizados na campanha.As doações são identificadas individual-mente, incluindo nome dos doadores, o có-digo da Receita Federal (CNPJ/CGC) e a datada doação. Também é obrigatório registraras doações em espécie, estimando o seuvalor em dinheiro. Todos os recursos de cam-panhas devem ser administrados em umaconta bancária única de cada candidato. AJustiça Eleitoral, responsável pela organi-zação do processo eleitoral, completou estesistema com a introdução da prestação de

contas sobre o financiamento eleitoral emformato eletrônico e a divulgação dos dadospara a sociedade.

Os escândalos políticos que sacudiramo país durante o ano 2005 tiveram forte vin-culação com o tema do financiamento dapolítica. Parte das revelações se referiu àsprestações de contas incompletas de parti-dos e candidatos. Este fenômeno do “caixadois” indica sérias falhas quanto à fiscaliza-ção da prestação de contas e à punição detransgressões. Por outro lado, é importantenotar que os recursos declarados pelos can-didatos somam mais de um bilhão de reaisem cada uma das últimas eleições nacio-nais (2002) e municipais (2004). Com isso afiscalização dos dados do “caixa um” pelaimprensa e pela sociedade civil se tornouuma real possibilidade.

Por outro lado a lei ainda é falha no Brasilno que diz respeito à tempestividade daprestação de contas. A obrigação de pres-tação de contas concomitante ao processoeleitoral se limita ainda aos partidos políti-cos que durante as eleições devem prestarcontas mensalmente à Justiça Eleitoral. Tec-nicamente o sistema brasileiro está prepa-rado para exigir informações detalhadassobre o financiamento também dos seuscandidatos durante a campanha. Para tornaro tema do financiamento um assunto para ovoto informado do cidadão, seria necessárioque estes dados sobre a origem e uso dosrecursos em campanha estivessem ampla-mente disponíveis antes da eleição.

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O Bicameralismoem PerspectivaComparada

Mariana LlanosFrancisco Sánchez

A atual agenda de reformas políticas noBrasil encontra-se dominada por temas vin-culados aos partidos políticos: listas abertasou fechadas, migração partidária, confedera-ções de partidos ou o tipo de financiamento.Nesse contexto, a ausência de formulaçõesvinculadas ao bicameralismo e ao papel dascâmaras legislativas no sistema político, so-bretudo o do Senado, não resulta, em princí-pio, surpreendente. Entretanto, desde umaperspectiva continental, essa ausência pode,sim, resultar chamativa. De fato, nos últimosanos o papel das câmaras altas tem sidofreqüentemente objeto de debate político e(em menor medida) acadêmico, em váriospaíses da região. Como resultado, em al-guns casos, importantes reformas instituci-onais foram levadas a cabo. Em um extremo,as reformas impulsionadas pelos presiden-tes Alberto Fujimori e Hugo Chávez acaba-ram suprimindo as câmaras altas no Peru(1994) e na Venezuela. Em ambos os casos,a abolição do Senado sinalizou claros obje-tivos de concentração do poder político: umCongresso dividido é mais difícil de controlardo que um unificado. Sem chegar à supressão,e com objetivos diversos, nos outros paísesbicamerais da América Latina efetuaram-sereformas que afetaram aspectos da estru-tura e do funcionamento do bicameralismo,tais como o tamanho das câmaras, a duraçãodos mandatos legislativos ou a eleição diretados senadores, para citar alguns exemplos.

O objetivo destas páginas não é agregarmais uma dimensão à já extensa agendade reformas, nem efetuar recomendações afavor ou contra o bicameralismo. Nosso pro-pósito é apenas trazer à cena o tema, por

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duas razões principais. Em primeiro lugar,apesar das reformas propostas no Brasilrelacionarem-se basicamente aos partidospolíticos, elas também estão destinadas aimpactar o funcionamento do sistema legisla-tivo, âmbito institucional em que os partidosatuam. Assim, não poderíamos desconsi-derar a existência de duas câmaras que, comatribuições similares, participam da compli-cada engrenagem de elaboração das leis.Em segundo lugar, sabe-se que não apenasos sistemas eleitorais geram incentivos ins-titucionais que afetam o comportamento dosatores políticos. As regras internas do Parla-mento também o fazem, e, neste sentido,dever-se-ia ter em conta que papel desem-penha a instituição do bicameralismo, oualguma de suas dimensões, como variávelexplicativa de tal comportamento.

Por esses motivos, consideramos impor-tante começar examinando as característi-cas básicas do bicameralismo na AméricaLatina, a fim de identificar seus pontos for-tes e fracos e oferecer elementos de análisepara uma melhor compreensão do caso bra-sileiro. A seguir, mostraremos as múltiplasdimensões que compõem essa instituiçãoe os múltiplos propósitos perseguidos porelas. Da mesma maneira, nos referimos àsua inter-relação com outras instituições.Dessa forma estaremos em condições maisadequadas de avaliar melhor o impacto daspropostas de reforma, como também de con-siderar se o bicameralismo no seu conjunto— ou se algum de seus componentes —deveria desempenhar também um papel emfuturos processos de reforma institucional.

Bicameralismo, federalismoe presidencialismo

As legislaturas bicamerais — quais se-jam, aquelas em que as deliberações acon-tecem em duas câmaras distintas (Tsebelis;Money, 1997, p. 1) — são um modelo legis-lativo bastante difundido na América Latina.A metade dos países da região conta hojeem dia com esse tipo de legislatura: México

e República Dominicana, além de sete paísesda América do Sul, Argentina, Bolívia, Brasil,Chile, Colômbia, Paraguai e Uruguai. Há pou-cos anos, o bicameralismo prevalecia inclu-sive em um número maior de países. Aoscasos do Peru e da Venezuela mencionadosacima se somam as abolições das câ-maras altas que aconteceram no Equadore na Nicarágua nos anos 70, e em Cuba, em1959. Desse modo, nos últimos cinqüentaanos na América Latina se suprimiram maiscâmaras altas que nas democracias avan-çadas. Ainda assim, o bicameralismo con-tinua sendo uma instituição com grandepresença no continente.

1

Os sistemas bicamerais hoje vigentesconstituem um grupo homogêneo no que serefere a dois elementos básicos: a legitima-ção democrática das câmaras altas atravésda eleição direta dos seus membros

2 e po-

deres constitucionais quase equivalentespara ambas as câmaras. De acordo comessas características, os bicameralismos docontinente encontram-se entre os mais po-derosos do mundo.

Para entender melhor o significado e osefeitos que trazem consigo os bicameralismospoderosos podemos começar remetendo aLijphart (1984, 1999), que distinguiu trêstipos — bicameralismo forte, intermediárioe débil — segundo o posicionamento dascâmaras legislativas em torno de dois eixos.Primeiro, o da simetria/assimetria, conformeo qual o bicameralismo é simétrico se am-bas as câmaras são eleitas popularmente epossuem poderes constitucionais similares,e segundo, o da incongruência/congruência,indicando que ambas as câmaras são incon-gruentes e diferem em sua composição polí-tica. Desse modo, os bicameralismos fortessão ao mesmo tempo simétricos e incon-gruentes; os débeis combinam assimetriacom congruência; e os intermediários sãocasos de assimetria e incongruência, ou desimetria e congruência.

A classificação de Lijphart é um pontode partida importante, mas suas categoriasresultam demasiado agregadas ao ser apli-cadas aos estudos de caso relativamente

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homogêneos como os latino-americanos. Porisso, em um trabalho anterior (Llanos; Nolte,2004) as desagregamos e percebemos quetal procedimento era fundamental para secompreender o papel do bicameralismo, edas segundas câmaras em particular, nosistema político. Efetivamente, nossos resul-tados constataram que a maioria dos bica-meralismos da América Latina encontra-seentre as legislaturas mais simétricas exis-tentes. Isso inclui tanto países federais(Argentina, Brasil e México) como unitários(Paraguai, Colômbia, República Dominicana,Peru sob a Constituição anterior).

3 Os poderes

dos Senados latino-americanos são compa-ráveis — ao menos nos textos constitucio-nais — com o do Senado norte-americano,o qual tem sido geralmente considerado “ocorpo legislativo mais poderoso do mundo”(Smith, 2000) e “uma exceção entre as câma-ras altas” por possuir o mesmo poder legis-lativo que as câmaras baixas (Sinclair, 1999).

O poder das câmaras altas do continentereside em seus poderes constitucionais que,segundo explicamos no nosso estudo, de-vem ser avaliados levando em conta nãoapenas a participação de cada câmara noprocesso legislativo, como também as re-gras de resolução de desacordos intercame-rais e as atribuições de cada câmara paracontrolar o Poder Executivo. Tratando do pri-meiro ponto, todos os Senados têm facul-dades para iniciar seus próprios projetos delei e para modificar ou rechaçar qualqueroutro projeto. Sobre as bases desses im-portantes poderes que todos os Senadostêm em comum, alguns são mais débeis/poderosos que outros devido a alguns fato-res adicionais que têm a ver com o trâmitedas leis. Por exemplo, algumas câmarasbaixas possuem mais atribuições para iniciaros processos legislativos. No Brasil, todosos projetos do Poder Executivo iniciam-sepela câmara baixa enquanto em outrospaíses o ingresso desses projetos é repar-tido entre ambas as câmaras. Da mesma for-ma, no caso de desacordos entre as câmaras,algumas Constituições acabam favorecendoa câmara baixa mais do que ao Senado,como acontece com as disposições para as

sessões conjuntas na Bolívia e no Uruguai.Mas, como apontamos, estas diferençasentre bicameralismos, por si só, são muitosimétricas no tratamento da legislação.

Adicionalmente, os Senados possuemextensas faculdades de controle. Assimcomo as câmaras baixas, eles podem efe-tuar interpelações, apresentar pedidos deinformação, criar comissões de investigação,etc., faculdades que, nos bicameralismosque operam sob sistemas parlamentares,correspondem apenas à Câmara Baixa jáque o gabinete é politicamente responsávelante esta Câmara.

4 Além disso, todos os

Senados contam com faculdades exclusivaspara confirmar as nomeações propostaspelo Poder Executivo nas diversas áreas —como o Poder Judiciário, o serviço exterior,as agências reguladoras. Essa faculdade éprópria dos senados da região e provêm doexemplo da Constituição norte-americana.Com essas características, não restam dúvi-das de que estamos diante de senadospoderosos ou veto players, ou seja, atoresinstitucionais que podem bloquear a adoçãodas políticas (Tsebelis, 1995). Em outras pa-lavras, os Senados são um ator central nacomplexa engrenagem de pesos e contrape-sos ao duplicar os controles do Poder Legis-lativo sobre o Executivo e oferecer contrapesosfrente ao perigo de uma tirania da maioria ouuma “tirania da câmara baixa”.

5 Na América

Latina, esses casos correspondem tanto asistemas federais como unitários. Pode-seafirmar, assim, que o bicameralismo simé-trico encontra-se correlacionado com o pre-sidencialismo, e não com o Federalismo,como se acreditava e ainda se costuma argu-mentar (Liphart, 1984; Sartori, 1997).

6

Por certo, a forma como esses poderesdo Senado operam efetivamente depende,em grande medida, de como opera a outravariável que Lijphart definiu como crucialpara os bicameralismos: a congruência/incongruência. Segundo o autor, quandoambas as câmaras são congruentes, ouseja, estão ocupadas por maiorias políticassimilares, tenderão a comportar-se de ma-neira similar, diminuindo, assim, o impactode suas faculdades de veto. Entretanto, essa

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é, no nosso entendimento, uma definiçãoum tanto restritiva de congruência. Apesardas maiorias políticas serem, em geral, umbom preditor do comportamento legislativo,maiorias políticas similares não necessaria-mente implicam que a atuação das câmarasserá semelhante e coordenada. De fato, asopiniões podem variar dentro de um mesmopartido, ou o mesmo partido pode repre-sentar diferentes constituencies em ambasas câmaras, ou ambas as câmaras podemdiferir quanto às suas regras de decisão in-terna (Tsebelis; Money, 1997, p. 53-54).Ainda, outras variáveis institucionais, taiscomo o tamanho das câmaras, o tamanhodos mandatos e os requisitos para ser eleitosenador/deputado podem afetar o compor-tamento dos membros de cada CâmaraLegislativa. Se definirmos a congruência demaneira mais ampla, observamos que apaisagem é ainda mais variada na AméricaLatina do que o que ocorre com a simetria.Brasil, Argentina e Chile (antes da últimareforma) são os países nos quais ambasas câmaras mais se diferenciam porque osistema de eleição difere para ambas,

7 a

duração do mandato é maior para os sena-dores, há mais requisitos para ser senadordo que deputado, o Senado renova-se par-cialmente, e a Câmara De Deputados total-mente (ou em diferentes proporções, comoocorre na Argentina). Se a isso se soma queos Senados são muito menores do que asCâmaras Baixas, principalmente no casobrasileiro, podemos concluir que a lógicacom que operam ambas as câmaras é muitodistinta e que é provável que algumas dife-renças intercamerais persistam, inclusive seambas contam com a mesma composiçãopolítica. Em geral, os membros das câmarasaltas se encontram em estados avançadosde suas carreiras políticas e costumam terposições de liderança nos seus partidos.Além disso, graças ao tamanho menor dacâmara alta, suas relações com outros sena-dores são informais e diretas, o que favoreceas negociações e os consensos políticos.

Com isso, observamos que o papel dobicameralismo e das câmaras altas no sis-tema político é muito mais amplo e complexo

de avaliar do que habitualmente se acredita.Primeiro, com seus poderes simétricos, asCâmaras Altas contribuem ao sistema depesos e contrapesos não apenas ao fazermais difícil a concentração de poder no Exe-cutivo como também ao permitir evitar o pre-domínio de uma maioria escassa e/oucircunstancial na outra Câmara, a qual po-deria violar os direitos da minoria no proces-so legislativo. Segundo, os sistemasbicamerais, particularmente os simétricos,dificultam as mudanças do status quo, ou-torgando estabilidade à produção legislati-va. Terceiro, o bicameralismo incentiva ummútuo “controle de qualidade” (Tsebelis;Money, 1997, p. 40) entre as câmaras e umaumento da informação disponível no traba-lho legislativo. Os mandatos mais longos erequisitos mais exigentes para os candida-tos a senador são, além da discussão dasleis em duas câmaras distintas, elementosque as constituições incorporaram para lograruma melhor qualidade das leis. Finalmente,o bicameralismo permite a representação deinteresses distintos nas duas câmaras, tipi-camente os interesses de entidades territo-riais nos sistemas federais, e diferentesdistritos — como a representação da naçãona sua totalidade no senado e nos distritosmenores por deputados — em sistemasunitários.

Concluindo, ainda que habitualmente seassocie automaticamente o bicameralismoforte e os Senados com a representação dosestados em sistemas federais, esta é umasimplificação errônea que carece de revisão.Como exposto acima, a representação dosestados é uma função a mais entre outrasde igual envergadura, como a contribuiçãodo bicameralismo ao sistema de pesos econtrapesos. Esse é um ponto a se ter emconta em todo o processo de reforma política:a presença de duas Câmaras Legislativasdá mais complexidade ao processo de ela-boração de leis e à formação de maiorias degoverno, além de aumentar as instâncias decontrole do Poder Executivo. Por outra parte,a representação dos estados não é exclu-siva dos Senados nos sistemas federais daAmérica Latina já que a Câmara Baixa está

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também integrada por representantes des-ses distritos. Além disso, os estados peque-nos já se encontram sobre-representados naCâmara Baixa, efeito que normalmente é bus-cado nas Câmaras Altas através da contri-buição de cada estado ou província com omesmo número de senadores.

Algumas reflexões parao caso do Brasil

A reforma do sistema bicameral nãotoma parte da atual agenda de reformas noBrasil, mas os objetivos dessa agenda gi-ram em torno de temas que, de um modoou de outro, estão vinculados à divisão doLegislativo em duas câmaras: “a formaçãode maiorias estáveis no Parlamento para ga-rantir a governabilidade...” (Hofmeister, 2005,p. 11); ou, segundo expressou também opresidente do Senado, “a criação de condi-ções para um relacionamento produtivo eeficaz entre os Poderes da República, espe-cialmente entre o Executivo e o Legislativo.De modo que o governo possa, de fato, go-vernar. E que o Parlamento possa, de fato,legislar” (Calheiros, 2005, p. 2).

Como o Poder Legislativo está compos-to de duas câmaras, é possível prever queas reformas do sistema eleitoral que se rela-cionem principalmente ao comportamentodos partidos na Câmara Baixa terão um im-pacto mais amplo. Ocorre-nos pelo menosuma forma em que isso pode chegar a acon-tecer. Se considerarmos que uma parte im-portante da reforma pretende diminuir a“infidelidade” do parlamentar durante seumandato e aumentar o controle dos líderespartidários sobre o comportamento dos seusliderados, não se pode perder de vista queas mudanças nesse sentido introduzirãouma maior rigidez na política parlamentar.Os governos que chegarem ao poder commaiorias próprias na Câmara Baixa poderãogozar delas, mas os que não as tenhamenfrentarão dificuldades em alcançá-las.

8

Adicionalmente, em um sistema bicameralsimétrico, se as duas câmaras têm diferen-te composição, ou se ambas ou alguma

delas tem uma conformação política diferentedo Poder Executivo (divided government),requer-se uma grande vontade negociadorapara superar bloqueios. O exemplo da Argen-tina, com um Senado com maioria do PartidoJusticialista desde o retorno da democraciaem 1983, é ilustrativo das falhas a este res-peito: os dois presidentes não justicialistasda terceira onda (Raúl Alfonsín; Fernando dela Rua) enfrentaram sérios bloqueios legisla-tivos. Nenhum dos dois logrou terminar seumandato constitucional.

Este é apenas um exemplo de como asreformas que apontam para um objetivo es-pecífico (como pode ser a consolidação departidos políticos fortes) podem produzir, aomesmo tempo, efeitos não desejados. Acombinação de partidos políticos fortes compresidencialismo e bicameralismo simétri-co pode trazer novos problemas, como o dasmaiorias divergentes. Esses problemas irãorequerer, por sua vez, novas soluções: tal-vez a necessidade de modificar algum as-pecto do sistema bicameral para tornar maisviável a convergência de interesses interins-titucionais. Seria conveniente, então, consi-derar esses riscos no momento de encararas reformas planejadas.

(Tradução: Daniela Paiva de Almeida Pacheco)

Notas

1 Por exemplo, no Peru a discussão sobre um eventualretorno ao bicameralismo renovou-se recentemente.

2 A Argentina foi o último país a incorporar a eleiçãodireta de senadores na Reforma Constitucional de1994, enquanto a reforma constitucional ocorrida noChile em agosto de 2005 acabou com os senadoresdesignados nesse país, os quais constituíamaproximadamente 20% cento da Câmara Alta.

3 Adicionalmente, os outros casos estudados — Bolívia,Chile, Uruguai, Venezuela sob a Constituição anterior— são menos simétricos que aqueles mencionadosno texto principal, mas, ainda, notavelmente simétricos,se comparados com outros bicameralismos fora daregião.

4 Apenas no Chile o Senado não tem estas faculdades.5 The Federalist Papers, principalmente o nº. 62.

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6 Consultar também NEIVA (2004) para conclusõessimilares sobre a relação entre presidencialismo ebicameralismo forte.

7 Claro, tanto na Argentina como no Brasil, o distritoeleitoral é a província/estado, mas enquanto o númerode senadores por distrito permanece estável, o dedeputados varia (com um mínimo de cinco deputadosna Argentina, e oito no Brasil).

8 Na mesma linha de pensamento FLEISCHER (2005,p. 89) cita L.M.Rodrigues: “O eleitor não se incomodacom a infidelidade dos parlamentares migrantes, jáque de alguma maneira ajudam o governo a construirmaiorias no Legislativo depois de cada eleição.”

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Suplentes deParlamentares

Charles PessanhaAna Luiza Backes

A Constituição Federal – CF determina asubstituição dos deputados ou senadorespor suplentes nos casos de vacância defini-tiva do cargo (ocorrida por motivos de mor-te, renúncia ou perda de mandato) ouafastamento temporário do titular (licencia-do em caso de doença ou para tratar, semremuneração, por no máximo cento e vintedias, de interesses particulares, ou aindapara exercer cargos de Ministro de Estado,Governador de Território, Secretário de Esta-do, do Distrito Federal, de Território, de Pre-feitura de capital ou chefe de missãodiplomática temporária) (art. 56). Na hipóte-se de vacância, não havendo suplente, far-se-á eleição para o cargo se faltarem maisde 15 meses para o término do mandato(art. 56, parágrafo 2º). Cada uma das duasCasas Legislativas tem regras próprias paraa escolha dos suplentes, refletindo as dife-renças dos processos de recrutamento: osmembros da Câmara dos Deputados, repre-sentantes do povo, são eleitos pelo sistemaproporcional (art. 45); os do Senado Federal,representantes dos Estados e do DistritoFederal, pelo princípio majoritário (art. 46). Aregra de preenchimento da suplência paradeputado federal está definida no CódigoEleitoral, juntamente com a fórmula da re-presentação proporcional (Lei 4.737, de 15de julho de 1965, arts. 105 a 113). Após aeleição, a lista partidária de cada partido oucoligação é ordenada de acordo com o re-sultado das urnas, na ordem da votação re-cebida por cada candidato (art. 108). Osmais votados, em número equivalente ao doquociente partidário, são eleitos, e os de-mais passam a constituir a lista de suplên-cia, válida para o partido ou coligação durante

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todo aquele mandato (art. 112). A ordem dechamada é a definida pelo desempenho decada candidato na eleição, mesmo que, noscasos de coligação, o suplente seja de ou-tro partido coligado, e, não oriundo da mes-ma legenda do deputado substituído. Valelembrar que a regra se aplica também se osuplente convocado tiver trocado de partidoapós o pleito — o critério para o preenchi-mento das vagas é aquele resultante da elei-ção, consagrado na lista de suplentes. Jápara o Senado Federal, a Constituição deter-mina que cada senador será eleito com doissuplentes (art. 46, parágrafo 3º). O métodoadotado para essa eleição é o de “chapaúnica” — cada candidato ao Senado con-corre com seus dois suplentes, implicandosua eleição, necessariamente, a eleição dossubstitutos. O grande problema dessa fór-mula é que ela acaba por ocultar os candi-datos à suplência, cujos nomes não sãodivulgados durante a campanha, não sãovotados diretamente e permanecem assimquase sempre desconhecidos dos eleitores.O que se observa na prática é que para aindicação do cargo prevalecem escolhas deparentes, de financiadores de campanha eaté acordos para divisão de mandato. Nãoraro, são eleitos suplentes que jamais exer-ceram cargos públicos e/ou que não teriamcondições de disputar, perante o eleitorado,uma cadeira no Senado. A situação torna-semais séria pelo fato de as vacâncias perma-nente e provisória não serem incomuns noSenado Federal. Desde a promulgação daConstituição de 1988, por exemplo, váriossenadores renunciaram ao mandato paraassumir cargo de Ministro do Tribunal deContas (1/3 da composição do Tribunal éindicada pelo Senado Federal, que costumaoptar por senadores ou ex-senadores); outrosrenunciaram por razões diversas ou tiveramos mandatos cassados, pela Justiça Eleitoralou por seus pares. No mesmo período, váriossenadores se afastaram para exercer cargosprevistos na Constituição, principalmente deministros de Estado, ou por licenças médi-cas ou ainda para tratar de interesses parti-culares. O mandato de senador nessescasos foi exercido por substitutos que, na

maior parte dos casos, não participaram dascampanhas e, portanto, não assumiramcompromissos com o eleitorado, que os ele-geu sem conhecê-los e nem a suas propos-tas.

Outras Constituições

O preenchimento de vacância em eleiçõesmajoritárias não é, realmente, tão simplesquanto no caso das eleições proporcionaisem que, como foi visto, as listas partidáriascriam, automaticamente, uma lista de su-plência (sejam as listas abertas, ordenadaspelo voto do eleitor, ou preordenadas). Asfórmulas mais usadas para a substituiçãode representantes oriundos de eleições ma-joritárias são a convocação de um novo plei-to ou a previsão de eleição conjunta desuplentes para os cargos. Nos Estados Uni-dos, cujos desenhos institucionais tiveramgrande importância para os países sul-ame-ricanos, a Emenda Constitucional 17, de 1912— que revogou as eleições indiretas para aCâmara Alta, pelas Assembléias Legislati-vas, e estabeleceu eleições diretas para oSenado — regulamentou o problema da su-plência ao dispor que, “ocorrendo vagas narepresentação de um Estado no Senado, aautoridade executiva do Estado convocaráeleições para o seu preenchimento. Todavia,a Assembléia Legislativa poderá autorizar aautoridade executiva a proceder a nomea-ções temporárias enquanto o povo não pre-encher a vaga por eleição, nos termosprevistos pela Assembléia Legislativa. NoBrasil, já foram experimentadas algumasfórmulas. A Constituição de 1891, um pou-co antes dos Estados Unidos, usou a fór-mula da nova eleição, para suprir asvacâncias, ao determinar que “o senador elei-to em substituição de outro exercerá o man-dato pelo tempo que restava ao substituído”(art. 31, parágrafo único). A Constituição de1946 partidariza a eleição para o Senado aocriar a figura do suplente ligado ao candida-to, determinando que “substituirá o Senador,ou suceder-lhe-á nos termos do artigo 52, osuplente com ele eleito” (art. 60, parágrafo

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4º). Na eventualidade da inexistência de su-plente, cabia ao presidente da Casa solici-tar ao “Tribunal Superior Eleitoral paraprovidenciar a eleição, salvo se faltaremmenos de nove meses para o término doperíodo”. Nesse caso, o eleito exerceria “omandato pelo tempo restante” (art. 52). AConstituição de 1967 determinou que “cadaSenador será eleito com seu suplente” (art.43, parágrafo 2º). O pronome reforçou a li-gação do suplente ao titular. Em 1977, nobojo do “pacote de abril”, foi incluída a fór-mula de eleição do Senador “com dois su-plentes” (art. 41, parágrafo 3º da EmendaConstitucional 1/69, com redação dada pelaEmenda Constitucional 8/77). Ao mesmotempo, foi estendido para as eleições doSenado o mecanismo da sublegenda parti-dária (a Lei 5.453, de 14 de junho de 1968havia instituído o sistema de sublegendasnas eleições para Governador e Prefeito), atra-vés do Decreto-Lei 1.541/77, permitindo olançamento de mais de um candidato porpartido para cada vaga de senador. Segun-do o método adotado, os candidatos nãoeleitos eram transformados em suplentes.O instituto da sublegenda facultava aos par-tidos políticos o lançamento de até três can-didatos para o Senado e para as Prefeituras,sendo os votos de todos os candidatos domesmo partido somados, destinando-se acadeira ao mais votado dentre eles. O obje-tivo da fórmula, contudo, não era resolver oproblema da suplência, mas dar aos parti-dos, durante a vigência do bipartidarismoforçado, a possibilidade de expressar diver-gências.

Propostas em discussãono Congresso

a) Reviver a sublegenda. Uma alternativa emexame é a de reviver a sublegenda para aeleição de senador, por via de lei ordinária(ver PL 2.876/2004, do Deputado CostaFerreira, em tramitação na Câmara). Segun-do a proposta, à maneira do que fazia o De-creto-Lei 1.541/77, os partidos poderiamoptar pelo sistema atual (indicando um can-didato e seus dois suplentes) ou lançar até

três candidatos (sendo eleito o mais vota-do, os outros dois convertendo-se em su-plentes). No caso da opção pela sublegenda,teríamos a vantagem de obrigar os suplen-tes a disputarem eleições. Do ponto de vistaformal, não há nada que impeça a criação deum instituto semelhante para a eleição desenadores hoje. Enquanto alternativa paraos problemas da suplência dos senadores,contudo, a solução deixa a desejar, pois asuperação do sistema atual seria facultativa,ou seja, dependeria da opção adotada pelopartido. Além disso, para que se concreti-zem as vantagens (que os candidatos a su-plente sejam obrigados a buscar apoio juntoao eleitorado), torna-se necessária a exis-tência de diversas candidaturas no interiordo partido. Esse sistema estimularia divi-sões nas nossas já frágeis agremiações par-tidárias, transformando as eleições em umadisputa interna entre as legendas. Os incon-venientes gerados por essas disputas pro-vavelmente superariam as vantagensassociadas às mudanças que se pretendemna forma de escolher a suplência.

b) Tornar suplentes os candidatos mais vota-dos..... Uma alternativa freqüentemente aven-tada como solução para o problema é a detransformar em suplentes os segundos eterceiros candidatos mais votados para oSenado, no respectivo estado. Essa fórmula,para ser implantada, exige a mudança daConstituição, já que contraria a letra do pará-grafo 3º do artigo 46. Há várias Propostas deEmenda Constitucional em tramitação naCâmara, propondo justamente essa altera-ção (ver PECs 142/95, 541/97, 362/2001, 149/2003, 312/2004). Essa mudança seria de fá-cil implantação, pois aproveita o sistema deeleição nos moldes atuais, sem necessitarde muitas adaptações nos mecanismos elei-torais, o que talvez explique o grande núme-ro de propostas que visam instituí-la.Entretanto, não parece ser a melhor solução,pois significaria substituir o eleito pelo can-didato derrotado, cuja proposta pode ter sidoamplamente repudiada pelo eleitorado. Alémdisso, é rompida a afinidade partidária entreo substituto e o titular, podendo gerar todotipo de atrito na hora da substituição, levan-do mesmo o Senador a evitar o afastamento

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para não alterar a participação de seu partidono Senado (impedindo, por exemplo, quese candidate a governador de seu estado,ou que participe de ministérios).

c) Criar a candidatura a suplente. Uma terceiraalternativa em discussão no Congresso é ade permitir ao eleitor votar diretamente nosuplente, escolhendo entre as alternativasapresentadas pelo partido. A idéia é que cadacandidato ao Senado seria registrado comvários candidatos a suplente, e caberia aoeleitor escolher quais deles iriam efetiva-mente se credenciar a substituir o senadoreleito. Vale esclarecer que as eleições dotitular e de seus suplentes não seriam inde-pendentes entre si, pois o eleitor escolheriaos substitutos dentre os oferecidos na cha-pa do partido, os suplentes concorreriam vin-culados à candidatura principal. Essa nosparece ser a melhor fórmula para solucionaro problema da suplência, pois obriga os par-tidos a tornar públicos os nomes dos candi-datos a suplente, entregando ao eleitor a suaescolha. E não tem os inconvenientes dasduas anteriores: nem criará suplentes comantagonismos irreconciliáveis com os titula-res, nem obrigará à divisão dos partidos emsublegendas. Já foram apresentadas no Con-gresso Nacional propostas contendo essafórmula, uma implantando a mudança porvia de emenda à Constituição, e a outra porlegislação infraconstitucional. A PEC 67/2003, cujo primeiro signatário é o depu-tado Maurício Rands, propõe alterar a Cons-tituição para adotar um sistema desse tipo,estabelecendo que o eleitor faça diretamentea escolha de um suplente, dentre as alter-nativas apresentadas pelo partido. Cumpreregistrar que a proposta reduz o número desuplentes para um, pois altera também omandato dos senadores, que seria reduzidoa quatro anos (o número de dois suplentes,que está em vigor hoje, está relacionado aolongo mandato de oito anos, para o qual seconsiderou que apenas um suplente pode-ria ser muito pouco). No Senado, por sua vez,tramitou um Projeto de Lei visando instituiressa alteração por via de lei ordinária: o PL29/1995, apresentado pelo Senador EduardoSuplicy, o qual foi arquivado. Era defendidono projeto que não seria necessário alterar a

Constituição, pois a redação dada ao pará-grafo 3º do artigo 46 não impede que seproceda a uma escolha direta dos suplentes(ao contrário do que ocorre com a eleiçãodos vices para os cargos executivos,inseparáveis dos titulares, conforme o dis-posto no parágrafo 1º do artigo 77). Essaargumentação parece capaz de resistir aoexame de constitucionalidade requeridopara a adoção da medida por legislaçãoinfraconstitucional. O projeto do SenadorSuplicy afrontava a Carta Magna em outroponto, porém, já que previa a escolha de ape-nas um suplente, ao invés dos dois expressa-mente determinados na Constituição.

d) Suplente assume apenas até nova eleiçãopara senador. Vários projetos em tramitaçãono Senado criam novas regras de substi-tuição: o suplente substituiria o titular ape-nas nos afastamentos temporários; noscasos de vaga, seria eleito novo senadorcom mandato-tampão nas próximas eleiçõesgerais subseqüentes (ver PECs 11/2003 e8/2004), ou seriam convocadas novas elei-ções (ver PECs 5/2001 e 24/2001). A pro-posta não resolve o problema de suplentesdesconhecidos do eleitor, mas pelo menosevita que eles venham a exercer longosmandatos. É necessário considerar, contudo,que a realização de um novo pleito podesignificar custos excessivos; a melhor alter-nativa, no caso, parece ser a de aguardaraté a próxima eleição geral.

e) Impedir registro de parentes para su-plência. Outra proposta de alteração àsregras de suplência foi tentada pela Sena-dora Marina Silva (SF PLS 00190/99) pro-pondo alterar a Lei Complementar 64 (Leide Inelegibilidade), para vedar o registro desuplentes que fossem parentes do candi-dato ao Senado, até o segundo grau. A pro-posta, contudo, foi rejeitada no Plenário doSenado (em 17/10/2001). Em 2003 foi apre-sentado projeto com idéia semelhante,dessa vez, como proposta de alteração cons-titucional (ver PEC 11/2003).

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Poderes de Agenda doPresidente

Magna Inácio1

4

Regras Decisórias

O poder de agenda refere-se à capaci-dade de determinado ator influenciar ou de-terminar as alternativas consideradas nosprocessos decisórios, em relação ao con-teúdo e aos procedimentos a partir dosquais tais alternativas se convertem em de-cisões políticas (Figueiredo; Limongi, 1999;Cox, 2003). Essa influência é exercida, por-tanto, por meio da restrição e seleção dasalternativas de políticas e mediante a reduçãodas oportunidades para a modificação ousubstituição dessas alternativas pelos demaisparticipantes do processo decisório.

O sistema de separação de poderes vi-gente no Brasil atribui ao Presidente da Repú-blica um conjunto de competências eprerrogativas institucionais, que lhe confererecursos e vantagens estratégicas na defi-nição da agenda legislativa e uma forte influ-ência sobre a produção legal. A abrangênciadas iniciativas legislativas e as condições departicipação do Poder Executivo na produçãolegal garantem ao Presidente amplos po-deres de agenda. Tais iniciativas incluem ouso de poder de decreto constitucional e dele-gado, a competência para propor EmendaConstitucional, a iniciativa legislativa exclu-siva em diferentes matérias, além da inicia-tiva concorrente em legislação ordinária ecomplementar. A regulamentação dessespoderes legislativos assegura ao Presidentea capacidade de alterar o contexto decisório,com a adoção de movimentos que afetamos procedimentos e a dinâmica do processolegislativo.

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A edição de legislação emergencial, pormeio de “medidas provisórias” (MP), consti-tui um dos principais poderes legislativos doPresidente. O recurso ao poder de decretopermite ao mandatário intervir diretamentesobre o conteúdo e o ritmo do trabalho parla-mentar (Figueiredo; Limongi, 1999; Pessanha,2002). A Carta Constitucional de 1988 incluiudispositivos para disciplinar o uso dessasmedidas: um papel ativo do legislador, quepode apresentar emendas ao projeto de Leide Conversão da MP, e do Legislativo, já quea aprovação do Legislativo é necessária paraa manutenção da sua eficácia legal.

Embora a autorização constitucional limiteo uso das MPs às situações de “relevância eurgência”, a edição abusiva dessas medidasincentivou mudanças na regulamentação dodispositivo, embora essas tenham sido lentase pontuais. As modificações se concentraramna restrição das matérias suscetíveis a essetipo de ação legal na revisão do rito de trami-tação das MPs nas casas legislativas. Oritmo e a natureza dessas modificações re-velam um movimento reativo dos legisla-dores diante do uso ascendente das MPs edirigido para a regulação de um campo maisvasto de matérias. Essas iniciativas, no en-tanto, pouco contribuíram para inibir o usointensivo do poder de decreto presidencial,potencializado pelo recurso à reedição deMPs não apreciadas.

A Emenda Constitucional 32, de 2001,consolidou a regulamentação do uso dasmedidas provisórias, mas também inovouem alguns aspectos: a extensão do períodode vigência legal da medida (de trinta parasessenta dias, prorrogáveis), mas com aproibição de reedição, na mesma sessãolegislativa, de MP que tenha sido rejeitadaou que não foi apreciada no prazo legal; proi-bição de edição de MP sobre matéria “jádisciplinada em Projeto de Lei aprovado peloCongresso Nacional e pendente de sançãoou veto do Presidente da República” (CF,artigo 62, IV); e, regulação dos efeitos demedidas que resulte em instituição ou majo-ração de impostos (CF, artigo 62, parágrafo 2).

Dentro desse novo enquadramento legal,a medida provisória tem força de lei por um

período de sessenta dias, sendo prorrogáveluma vez por igual período, mas perde aeficácia legal se não for convertida em leidentro dos prazos previstos. A tramitaçãodessas medidas impacta diretamente oprocesso legislativo, pois elas entram em“regime de urgência”, caso não sejam apre-ciadas em até 45 dias desde a sua publi-cação, com conseqüente suspensão dasdemais deliberações legislativas até que seconclua a votação.

A participação do Presidente no processolegislativo é ampliada pela posição mono-pólica que este ocupa em relação à inicia-tiva de determinadas leis. Cabe privativamenteao Presidente da República a iniciativa depropor legislação sobre matérias orçamen-tárias, tributárias, de organização da admi-nistração pública, relacionadas à criação eextinção de ministérios e órgãos da admi-nistração, à alteração de efetivos das ForçasArmadas, aos servidores públicos da Uniãoe dos territórios. Ou seja, a ação legislativasobre áreas cruciais de políticas públicassomente pode ser deflagrada pela iniciativadeliberada do Poder Executivo.

No que tange à capacidade de alocar osrecursos públicos de acordo com as suaspreferências e prioridades, as vantagensestratégicas do Poder Executivo são obser-vadas ao longo de todo o ciclo orçamentário.Além de iniciativa exclusiva, o poder deagenda do Presidente é ampliado diante dasrestrições a que as emendas parlamentaresestão sujeitas, as quais devem ser compa-tíveis com o Plano Plurianual e Lei de DiretrizesOrçamentárias e não podem “criar despesas”(Santos, 2003). Ou seja, as emendas devemindicar os recursos necessários, sendo admi-tidos aqueles decorrentes de anulação dedespesas e que não incidam sobre as do-tações para pessoal e seus encargos, serviçoda dívida e transferências tributárias consti-tucionais para Estados, Municípios e o DistritoFederal (CF, artigo 166, parágrafo 3º, inciso II).

O caráter autorizativo do orçamento con-fere ampla discricionariedade ao Presidentena sua execução das dotações previstas nalei aprovada pelo Legislativo.

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Essas prerrogativas asseguram ao Presi-dente as vantagens de first-mover na arenalegislativa (Cox; Morgenstern, 2002), o queo torna capaz de submeter à deliberaçãolegislativa propostas mais próximas de suaspreferências. Além disso, na ausência deiniciativa concorrente, o Presidente pode “es-colher” o timing de apresentação dessaspropostas diante da antecipação do seuimpacto junto aos legisladores, embora,como no caso das leis orçamentárias, hajaprevisão de prazos para que a legislação sejainiciada.

No caso das leis complementares e ordi-nárias, a iniciativa legislativa é compartilhadacom diferentes participantes do sistemapolítico: membro ou comissão da Câmarados Deputados, do Senado Federal ou doCongresso Nacional, ao Presidente da Repú-blica, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tri-bunais Superiores, ao Procurador-Geral daRepública, além dos cidadãos, através dainiciativa popular.

Além da abrangência das prerrogativaspresidenciais na proposição de leis, o poderde agenda do Presidente é exercido medi-ante a modificação dos procedimentos delibe-rativos, por meio da solicitação de urgênciana tramitação de projetos de sua autoria. Oregime de urgência restringe o tempo dispo-nível para a deliberação legislativa, afetandoas condições de exercício das atribuiçõesde verificação e controle do Executivo porparte do Legislativo. Quando a proposiçãotramita em regime de urgência e a “Câmarados Deputados e o Senado Federal não semanifestarem sobre a proposição, cada qualsucessivamente, em até quarenta e cincodias, sobrestar-se-ão todas as demais deli-berações legislativas da respectiva Casa,com exceção das que tenham prazo consti-tucional determinado, até que se ultime avotação” (CF, artigo 64, parágrafo 2º, pará-grafo com redação dada pela Emenda Cons-titucional nº 32, de 2001). Cabe destacar queas regras regimentais da Câmara dos Depu-tados prevêm que o Presidente pode solicitaro regime de urgência “depois da remessado projeto e em qualquer fase de seu anda-mento” (RICD, artigo 204, parágrafo1º).

A prerrogativa de vetar total ou parcial-mente os Projetos de Lei aprovados peloPoder Legislativo é outro componente crucialdo poder de agenda do Presidente. Taisdispositivos permitem ao chefe do Executivobloquear a alteração do status quo, ou seja,a legislação em vigor, por meio do veto totalà deliberação legislativa, ou alterá-la seleti-vamente, através da supressão de partes doprojeto aprovado. Embora o veto seja sujeitoà apreciação do Congresso e, portanto, pas-sível de ser rejeitado ou mantido, a prerro-gativa do Presidente para sancionar as partesnão vetadas ampliam a sua capacidade demoldar a legislação de acordo com as suaspreferências, inclusive pela supressão dasalterações interpostas ao projeto originalpelos legisladores.

O quadro resultante da extensão dessepoder de agenda é a predominância do Pre-sidente na produção legal, que se expressatanto pelo volume de legislação emergencialdecorrente do uso ordinário do poder dedecreto (Pessanha, 2002), como tambémenvolve mudanças significativas do statusquo operadas no nível constitucional. Emtermos de produção legal, no período pós-constitucional, o sucesso presidencial atin-ge patamares elevados no Brasil: cerca de80% das leis sancionadas tiveram origemno Executivo (Figueiredo; Limongi, 1999;Pessanha, 2002; Santos, 2003; Inácio, 2006).

Parte importante da agenda da reformapolítica são as iniciativas voltadas para alteraro arranjo institucional e os efeitos distribu-tivos das regras no que tange ao equilíbriodas prerrogativas dos Poderes Legislativo eExecutivo na arena congressual. Desde apromulgação da Constituição em 1988, ofoco dessa agenda tem se deslocado dasmudanças relativas ao sistema de governopara as alterações nas regras constitucio-nais e infraconstitucionais que regulam ospoderes legislativos do Presidente.

Embora no Congresso tramitem propos-tas para a adoção do semipresidencialismoou do parlamentarismo, o apoio ao presiden-cialismo manifestado no plebiscito de 1993pode ser associado ao deslocamento das

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agendas de reforma para as questões rela-tivas aos processos eleitorais, à organizaçãopartidária e às bases institucionais da re-lação entre o Legislativo e o Executivo. Umvolume considerável de iniciativas legislativastem como foco a distribuição de podereslegislativos e a capacidade assimétrica doPresidente para implementar a sua agendalegislativa vis-à-vis os parlamentares.

Diversas proposições buscam alterar asbases constitucionais de exercício do poderde decreto do Presidente, por meio dasMPs, a despeito da sua recente regulamen-tação pela Emenda Constitucional 32, de2001. Três grupos podem ser diferenciados:(1) proposições que buscam definir asmatérias insuscetíveis de regulação atravésdesse dispositivo; (2) proposições introdu-zindo regras para a admissão e a eficácialegal das MPs, e (3) proposições voltadaspara a extinção do instituto. Entre as propo-sições do segundo grupo, algumas inicia-tivas introduzem a exigência de aprovaçãode parecer de uma comissão mista sobrea observância dos “pressupostos da urgênciae relevância” para que se atribua “força delei” à MP; redefinem os prazos para a perdadesta eficácia e propõem a restrição donúmero de MPs tramitando simultanea-mente no Congresso.

Um aspecto a destacar diz respeito àscondições de verificação e controle entre ascasas legislativas no que tange à apreciaçãodas MPs. Nessa direção, a discussão so-bre a mudança no rito de tramitação das MPspassou a abranger também aspectos rela-cionados aos legislative checks no interior dosistema bicameral. Em relação à casa inicia-dora da votação, uma proposta em debateé a alternância entre as Casas legislativas,atualmente uma prerrogativa da Câmara dosDeputados. Outra alteração proposta é de“zeramento de prazos”, ou seja, a contagem,em separado, do período de tramitação dasmedidas em cada Casa legislativa, de formaa garantir ao Senado um prazo adequadode discussão da matéria.

Essas propostas apontam não só paraas iniciativas individuais dos legisladores,mas evidenciam algum grau de mobilização

das casas legislativas em torno dessaagenda, pois parte dessas propostas integrao relatório de comissão mista especial for-mada para a análise do rito de tramitaçãodas MPs.

Um outro item da agenda de reformas,com impacto sobre os poderes de agendado Presidente, diz respeito à execução doorçamento autorizado pelo Congresso. Umdos focos do movimento parlamentar pelareforma orçamentária consiste na limitaçãoda discricionariedade do Poder Executivo naredefinição das prioridades de gasto condu-zida por meio do contingenciamento dasdotações autorizadas na lei orçamentária.Nesta direção, tramitam propostas relativasà execução obrigatória das dotações pre-vistas na Lei Orçamentária Anual – LOA, tor-nando o orçamento impositivo ao invés deautorizativo, como vigente atualmente. Umdesdobramento dessa agenda é a visibili-dade crescente de propostas voltadas paraa integração das comissões temáticas aoprocesso orçamentário. Essas iniciativas têmcomo foco a descentralização do poder dedeliberação orçamentária e o desenvolvimentode capacidades difusas de acompanha-mento e de fiscalização pelas comissõestemáticas. O desenvolvimento dessas capa-cidades revela-se decisivo não só pelo poderde agenda presidencial em matéria orça-mentária, mas também devido às exigênciasdecorrentes da adoção de um marco legalde planejamento fiscal plurianual, pautadono princípio de conservação do equilíbrio orça-mentário, o que introduziu novos desafiospara a deliberação e a tomada de decisãoacerca das prioridades na alocação dosrecursos públicos.

Diante desse quadro pode-se concluirque as proposições acima apontam parauma agenda em que o fortalecimento daposição institucional do Poder Legislativoganha centralidade, indo além da simplesredução ou extinção de prerrogativas e decompetências do Presidente. Se orientadaspara o desenvolvimento de capacidadesinstitucionais do Poder Legislativo relativasao conjunto das atribuições parlamentares

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(legislar, fiscalizar e controlar), essas inicia-tivas poderão contribuir para a construçãode bases mais adequadas de cooperaçãoentre o Executivo e Legislativo e o fortaleci-mento desses Poderes como mecanismosde verificação e controle recíprocos dentrodo arranjo democrático brasileiro.

Nota

1 Com assistência de pesquisa realizada por PedroLucas de Moura Palotti e Lívia Maria Alves CândidoPereira, alunos da EG/FJP.)

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Modalidades eProcedimentos deVotação nasModernas CasasLegislativas

Sabino Fleury

O processo decisório no interior das mo-dernas Casas Legislativas admite modali-dades e procedimentos distintos de votação:o voto dos representantes pode ser ostensi-vo ou secreto, simbólico ou nominal. A exis-tência tanto de modalidades quanto deprocedimentos distintos de votação relacio-na-se diretamente com a concepção que setem acerca da natureza da moderna demo-cracia representativa e com as práticas con-solidadas dela decorrentes.

Nas antigas democracias diretas, dosquais o exemplo grego é o mais conhecidoe citado, a condição imperativa quanto àparticipação nos negócios da polis implica-va, para aqueles que eram considerados ci-dadãos, exigência da manifestação livre eaberta da sua vontade. O segredo na mani-festação da vontade dos cidadãos que de-cidiam diretamente sobre os rumos dapolítica ou julgavam seus concidadãos eraalgo que não teria nem significado lógico enem aplicabilidade prática.

Examinar, portanto, as formas e os tiposde votação previstos normalmente nos regi-mentos internos das Casas Legislativas im-plica, preliminarmente, assumir como realidadehistórica atual a moderna predominância darepresentação sobre a participação direta e,a partir dessa premissa, analisar as possibi-lidades de variação no processo decisório,as quais têm importantes desdobramentosna definição das regras do jogo no interior doPoder Legislativo.

Pode-se considerar que a democraciamoderna, representativa, tem como elemento

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teórico comum, presente nas obras de im-portantes pensadores como Hobbes, Lockee Montesquieu, entre outros, nos séculos 17e 18, o reconhecimento de que parte da so-berania popular deve ser transferida para umúnico ou para um colegiado específico derepresentantes, que lhes garante a seguran-ça individual ou a estabilidade coletiva dasrelações econômicas e sociais. Essa trans-ferência implica o reconhecimento da legiti-midade de atribuições específicas de órgãospolíticos especializados e, portanto, a inevi-tabilidade da representação dos interessesgerais por meio de mandatos conferidos arepresentantes escolhidos pela coletividade.

Qualquer forma de representação (man-dato) tem como elemento intrínseco o esta-belecimento de vínculos jurídicos e sociaisentre duas categorias de sujeitos: os repre-sentados (mandantes) e os representantes(mandatários). Nos casos mais comuns nassociedades atuais, em determinadas ocasi-ões algumas pessoas conferem poderesespecíficos a outras para que pratiquem, emseu nome, certos atos que são normalmen-te específicos e bem definidos. Esse é ocaso, por exemplo, das procurações que sãooutorgadas por determinados indivíduos paraque outros pratiquem, em seu nome, atosjurídicos específicos. Aqui, o mandante de-limita as condições do exercício do manda-to, acompanha a execução das atribuiçõespelo mandatário e, caso não as considereadequadas, pode, por ato unilateral, extin-guir a relação entre as partes, com a revoga-ção do mandato. A natureza das relaçõesentre mandante e mandatário é imperativa:o descumprimento das condições pactua-das é razão jurídica e fundamento válido paraa revogação dessa modalidade de contrato.A lógica dessa relação assenta-se, portan-to, na ampla clareza das decisões e na ine-xistência de qualquer possibilidade de sigiloentre as partes.

O exemplo apresentado diz respeito arelações que se estabelecem preferencial-mente no plano das atividades privadas e énormalmente regulado pelas leis civis. Nocampo da representação política a questãonão se apresenta historicamente resolvida,

ainda que haja, atualmente, o predomínio daconcepção que admite a natureza não-im-perativa dos mandatos parlamentares. Essepredomínio está associado aos conceitosconsolidados no decorrer do processohistórico de construção das limitações de-mocráticas ao exercício do poder dos gover-nantes.

Como já se disse, o surgimento do Estadomoderno está amplamente associado àtransferência de parte da soberania individualao corpo coletivo, fundamentada no reconhe-cimento de que somente assim poderia serassegurada a vigência de determinados va-lores e bens coletivos considerados indis-pensáveis para a existência da sociedade.Nesse contexto, a questão dos limites dadelegação, quando colocada, relacionava-sediretamente com o objetivo primordial docontrato: a princípio, seriam intoleráveis ape-nas os atos que pudessem afetar diretamentea própria sobrevivência da coletividade.

Ao longo do processo histórico de cons-trução liberal da democracia moderna, a prin-cipal maneira encontrada para resolver oproblema da responsabilização dos gover-nantes não se relaciona, portanto, com ademarcação dos limites de sua atuação, esim com o reconhecimento da necessidadede alternância no exercício do poder. A deli-mitação temporal dos mandatos, possívelcom a existência de processos periódicosde substituição dos mandatários, possibili-taria, em tese, aos mandantes o exercíciodo controle sobre o exercício das atribuiçõesdos governantes. A predominância do con-trole dos mandatos por meio de eleiçõesperiódicas contribui para o reforço da teseda autonomia da representação: obedecidosos limites pactuados no contrato, a sua exe-cução, por parte dos mandatários, passa aser objeto de um elevado nível de discricio-nariedade. Como conseqüência desse pro-cesso, poder-se-ia considerar que, emdeterminadas situações, a exposição abertae ampla dos procedimentos de decisão nãoseria condição absolutamente necessária,pois a validação do mandato aconteceria nomomento eleitoral e teria como principalobjeto o exame dos resultados obtidos pelosseus executantes.

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Além dessa característica, um outro fa-tor importante interfere na elaboração dasnormas regimentais relacionadas com osprocedimentos de votação. Autores comoDavid Mayhew (1974) e Douglas Arnold(1990), estudando especialmente o Congres-so norte-americano e o comportamento dosrepresentantes eleitos, apontam como prin-cipal motivação para a sua atuação a buscada reeleição. Entre as estratégias adotadascom vistas a alcançar esse objetivo, os con-gressistas adotam mecanismos que permi-tem maior ou menor “rastreamento”, por partedos eleitores, no que diz respeito às suasdecisões e votações: escolhas consideradaspouco vantajosas eleitoralmente tendem aser ocultadas, ao passo que as lucrativasdevem ser amplamente expostas.

As modalidades e os procedimentos dis-tintos de votação estão, portanto, relaciona-dos, por um lado, ao processo histórico deconstrução da moderna democracia repre-sentativa, marcado pela natureza não-impe-rativa dos mandatos, e, por outro, à lógicada ação dos parlamentares, orientada paraa continuidade de suas carreiras políticas.

• • •

Examinando-se o caso brasileiro atual,encontramos duas modalidades distintas devotação, previstas constitucionalmente eaplicadas em todas as Casas Legislativas,seja no nível da União, no dos Estados oudos municípios. São elas a ostensiva e asecreta. Como regra geral adota-se a vota-ção ostensiva, na qual o representante aber-tamente manifesta a sua decisão quanto aofato ou à norma em exame.

A votação secreta constitui uma exceçãoe ocorre, em princípio, em situações expres-samente previstas no texto constitucional —perda de mandato parlamentar, suspensãode imunidades parlamentares durante o Es-tado de Sítio, eleição para membros daMesa Diretora, decisão sobre veto presiden-cial. O Regimento Interno da Câmara dosDeputados prevê, também, a possibilidadeda adoção de votação secreta quando sejaaprovado requerimento nesse sentido, apre-sentado por um décimo dos parlamentaresou líderes.

Ao lado das modalidades apontadas há,também, dois tipos de procedimentos dife-renciados de votação: o simbólico e o nomi-nal. O procedimento simbólico, no qual amanifestação de vontade do representantese dá por gestos ou palavras proferidas con-comitantemente por toda a coletividade,constitui a regra geral. No Congresso brasi-leiro, uma vez anunciado o início do processode votação os parlamentares favoráveis auma determinada proposição são instadosa permanecerem como se encontram (as-sentados ou de pé); no Congresso norte-americano a manifestação se faz em primeirolugar pela manifestação de voz por todos ospresentes (pronuncia-se “aye” quando se éfavorável e “no”, quando se é contrário) e,em caso de dúvida quanto ao volume do som,por procedimento análogo ao brasileiro.

O procedimento de votação nominal éadotado, no caso brasileiro, quando se exi-ge quorum especial para a aprovação dedeterminada matéria. Isso acontece nos ca-sos de proposta de emenda à Constituição,de Projeto de Lei Complementar, de análisede veto presidencial e em algumas outrassituações específicas mencionadas nos re-gimentos internos, normalmente relaciona-das com a aprovação de indicações para oexercício de funções públicas relevantes oua remoção dos ocupantes de determinadoscargos.

Os resultados apurados em votação os-tensiva e pelo procedimento simbólico —regra geral — podem ser co-validados pormeio de apuração por procedimento nomi-nal, a partir de requerimento aprovado paraque se tenha a sua verificação, desde que ofato seja solicitado por seis centésimos dosparlamentares, tanto no Congresso brasilei-ro, quanto no norte-americano (31 deputadosno caso brasileiro, 44, no norte americano).

Deve-se notar que a modalidade secretade votação exige sempre o procedimentonominal, pois o simbólico pressupõe que setenha alguma forma de manifestação pública,embora diluída na coletividade. Nesse caso,divulga-se apenas o resultado final do pro-cesso de votação, sem a discriminação daorientação de cada um dos parlamentaresconsiderados individualmente.

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Para a efetivação das votações nominaispodem ser utilizados sistemas distintos deapuração da vontade dos parlamentares. Osmais modernos, adotados no CongressoNacional e em praticamente todas as Assem-bléias Legislativas estaduais, são os eletrô-nicos, nos quais os representantes registramsua decisão em sistemas computadoriza-dos, protegidos por senhas individuais deacesso. Na impossibilidade técnica de utili-zação dos sistemas eletrônicos ou nos ca-sos de eleição para postos de direção noLegislativo, utilizam-se cédulas de papel,que são depositadas em urnas. No Senadobrasileiro, o regimento interno prevê a opçãode utilização de bolas (branca para aprova-ção, preta para rejeição), nos casos de falhano sistema eletrônico.

O Quadro I permite a visualização da tipo-logia descrita.

Aceitando-se como válidas as formulaçõesde Mayhew e Arnold acerca da conveniênciada exposição ou do ocultamento da atividadeparlamentar e de sua relação com a conti-nuidade nas carreiras políticas, podemospensar em uma associação entre o processode votação e o interesse principal dos ocu-pantes dos cargos eletivos, o que leva àpredominância de uma forma que associa amédia visibilidade do posicionamento indi-vidual com a alta freqüência no processo. Aregra geral que determina a votação osten-siva pelo procedimento simbólico exemplificaclaramente essa opção: resguarda-se o prin-cípio da publicidade, inerente à moderna

Quadro I - Modalidades e Procedimentos de Votação no Congresso Brasileiro

Modalidade de Votação Procedimento de Votação Matéria (exemplos)

Ostensiva Simbólico Leis e proposições em geral

Nominal Normas com quorum especial

Quando decorrente de requerimentopreviamente aprovado

Quando decorrente de verificação de votação

Secreta Nominal Perda de mandato parlamentar

Suspensão de imunidadesdurante o Estado de Sítio

Exame de veto presidencial

Quando decorrente de requerimentopreviamente aprovado

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democracia representativa, mas dilui-se aapuração da atividade individual — e conse-qüente responsabilização — em um ato apa-rentemente coletivo e indistinto. O Quadro IIsintetiza essa situação.

Considerando-se que o acompanha-mento das atividades dos representantes ea instauração de uma dinâmica permanentede responsabilização não se limitam apenasao momento eleitoral, pode-se discutir ummodelo de transparência que varia desde aalta visibilidade, presente nas votações dotipo ostensiva-nominal, até a inexistente, notipo secreta-nominal. Não há, no entanto,como se julgar a priori a validade de um ououtro tipo: deve-se conjugar a sua aplicabili-dade com a natureza dos assuntos a seremdecididos. Nesse sentido, pode-se conside-rar inadequada para a responsabilização dosrepresentantes e para o funcionamento damoderna democracia a alternativa existenteno Congresso brasileiro em que se permitea substituição de uma votação ostensiva-sim-bólica por uma secreta-nominal, tendo comofundamento apenas a aprovação de requeri-mento decorrente de conveniências políticas.Mas, por outro lado, não se pode condenara adoção deste último tipo de votação noscasos de eleição dos membros das mesasdiretoras, situação em que o processo guar-da grande semelhança com aquele que re-gulamenta a própria eleição geral dosparlamentares e que tem no sigilo do votoum dos elementos centrais para a livre ma-nifestação da vontade dos eleitores.

Quadro II - Tipos de Votação: Freqüência e Visibilidade

Tipo de Votação Freqüência Visibilidade(nº de Ocorrências)

Ostensiva simbólica Alta (regra geral) Média

Ostensiva nominal Baixa (situações específicas) Alta

Secreta nominal Rara (situações excepcionais) Inexistente

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Pertencimentodo Mandato

Maria Hermínia Tavaresde Almeida

O mandato está no cerne das relaçõesentre representantes e representados emum sistema político democrático. Logo, adiscussão sobre sua natureza e amplitudeocupa lugar especial nas controvérsias sobreo que é e o que deve ser a democracia repre-sentativa.

Mandato eleitoral pode ser entendidocomo um conjunto de poderes concedidospelo eleitor, por meio do voto, a um candi-dato a representá-lo, habilitando-o a tomardecisões de governo, tanto no Legislativoquanto no Executivo.

Sendo o mandato uma delegação depoderes, pertence, em última instância, aquem o concede. Em uma democracia repre-sentativa, por definição, o mandato pertenceaos cidadãos que, a cada eleição, podemreafirmá-lo ou revogá-lo. Presume-se que osmandatários correspondam às aspiraçõesdos eleitores e lhes prestem contas. Mas amaneira como o fazem e o grau com que ofazem são objeto de controvérsia muito antiga.O mandato tanto pode ser entendido comoautorização ampla para agir, como pode sercircunscrito por uma definição precisa dosobjetivos almejados e dos meios e condu-tas preferidos para atingi-los.

As discussões sobre a latitude dos man-datos eleitorais acompanharam a história dossistemas representativos que terminaramdando origem às democracias contemporâ-neas.

A idéia de mandato como autorizaçãoampla está associada ao pensador e políticoinglês Edmund Burke (1729-1797). Em seufamoso Discurso aos eleitores de Bristol, de1774, Burke afirmou que os parlamentaresnão devem ser agentes ou advogados deinteresses determinados nem o Parlamento,um congresso de “embaixadores de inte-resses diferentes e hostis”. Ao eleger um

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representante por seu distrito, os eleitoresestão escolhendo um parlamentar que nãodeve abrir mão da sua “opinião imparcial,de seu juízo maduro e da sua consciênciailustrada”. Por trás dessa concepção está apremissa de que a eleição é um procedi-mento de escolha dos melhores entre todos,que receberão um mandato aberto para de-cidir entre alternativas de políticas de acordocom sua consciência e seu discernimento.

Raciocínio semelhante é o dos autores deOs artigos federalistas, de 1787. No capítulo10, James Madison (1751-1836) argumentaque uma das razões da superioridade darepública (representativa) sobre a democracia(direta) é precisamente o mecanismo dadelegação do governo a um pequeno númerode cidadãos eleitos pelos demais. O sistemaassim concebido permite que “as opiniõesdo povo” sejam “filtradas por uma assem-bléia seleta de cidadãos, cuja sabedoriapode melhor discernir o verdadeiro interessede seu país e cujo patriotismo e amor à jus-tiça serão menos propensos a sacrificá-lo aconsiderações temporárias e parciais”. Omandato como autorização ampla seria,assim, a condição da deliberação políticalivre das injunções de interesses particularese do espírito de facção.

No outro extremo, não foram poucos osque, desde os primórdios do governo repre-sentativo, defenderam o mandato impera-tivo, ou seja, uma delegação limitada, pormeio da qual o titular estabelece o modopelo qual o mandatário deverá agir em seunome.

O governo representativo e, a seguir, ademocracia representativa desde o início foramperseguidos pela sombra de uma outra idéiade democracia, aquela que postulava a parti-cipação direta dos cidadãos nas decisõespúblicas e negava a legitimidade de umaorganização política assentada no mandato.O mandato imperativo é a revanche dademocracia direta sobre o princípio vitoriosoda representação. Já que a delegação é inevi-tável, que seja mínima sua amplitude e má-ximo o controle do titular sobre o mandatário.

O povo deve reter o poder em suas mãos,entregá-lo apenas com parcimônia e só soba mais estrita supervisão, afirmava James

Burgh (1714-1775), filósofo inglês queexerceu poderosa influência sobre os anti-federalistas, durante as discussões queacompanharam a votação da Constituiçãonorte-americana, na Convenção da Filadélfia(1787), e à sua ratificação pelos Estados, noano seguinte. Da mesma forma, os autoresde Catto’s Letters (1748), outra influênciaimportante sobre os que se opunham àConstituição, afirmavam que “O ciúme polí-tico (...) no povo é uma Paixão necessária emerecedora de aplauso.” Os governantesdevem ser “estritamente vigiados, e contra-balançados com Restrições mais fortes doque sua Tentação de rompê-las”.

Posição semelhante tiveram as correntesdemocratas radicais e socialistas européias.O mandato imperativo e a revocabilidade dosmandatos por decisão dos eleitores foramadotados pelos revolucionários da Comunade Paris em 1871 e saudados como instru-mentos da democracia socialista, em opo-sição à democracia burguesa, por Karl Marx(1818-1883), em seu estudo A Guerra Civilna França (1871).

Nos séculos 18 e 19, as discussões entrepartidários do mandato de conteúdo amploe do mandato imperativo tiveram um carátereminentemente normativo. Tratava-se deestabelecer que tipo de mandato era maisadequado para realização de um dado idealde democracia.

Os estudiosos da democracia, no século19, sem abandonar de todo as preocupaçõesnormativas, deslocaram a discussão para oterreno das condições que favorecem omaior ou menor controle dos eleitores sobreos representantes eleitos. Os argumentossituam-se em níveis variados de abstraçãoe dizem respeito a duas questões: a inteligi-bilidade da vontade dos eleitores e a capa-cidade dos eleitores para efetivamentecontrolar seus representantes.

Joseph Schumpeter (1883-1950) pôs emdúvida a possibilidade de se atribuir um con-teúdo preciso à escolha dos eleitores. EmCapitalismo, socialismo e democracia(1942) negou que “‘o povo’ tivesse umaopinião definida e racional sobre todas asquestões individuais” e que objetivasse“essa opinião — numa democracia —

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escolhendo ‘representantes’ que zelariampara que essa opinião fosse seguida”. Afirmou,ao contrário, que o nível de informação e odiscernimento dos eleitores eram baixos e,em conseqüência, nula a sua capacidade decontrolar a ação dos eleitos, a não ser recu-sando-se a reelegê-los. Dessa forma, todomandato seria necessariamente delegaçãoampla e vazia de conteúdo.

Em outro registro, a discussão sobre anatureza e a amplitude do mandato exploraos problemas inerentes a toda delegação depoderes e atribuições.

Assim, a teoria do “titular-agente”, desen-volvida por economistas, assenta-se na idéiade que a contratação de um agente sempreocorre em circunstâncias de informação incom-pleta e assimétrica, que beneficiam o agenteem detrimento do controle do titular sobreseu desempenho. O mandatário sempresabe algo que o titular desconhece e quelhe permite agir em benefício próprio àsexpensas dos interesses ou expectativasdo titular.

Aplicada à relação específica entre eleitore mandatário eleito, essa teoria afirma que orepresentante tem interesses próprios — nãonecessariamente coincidentes com os doseleitores — e que ele sempre goza de signi-ficativa liberdade de ação em relação àquelesque lhe conferiram o mandato. Isto porque omandatário conhece mais do que o eleitoras alternativas efetivamente disponíveis e ascondições em que as decisões são tomadas.Como lembra Giovanni Sartori “a distinçãocrucial quando se trata de poder é entre ostitulares que o detém e os que na realidadeo exercem”, pois o “poder é, em última ins-tância, exercitium: exercício do poder”. Emoutros termos, o mandatário tem sempre apossibilidade de exercer os poderes que lheforam delegados sem muita consideraçãopelas expectativas dos eleitores que lhesoutorgam a delegação.

Titular do mandato, o eleitor, em umademocracia representativa, de fato tem poucocontrole sobre como ele é efetivamente exer-cido. Mantém o poder de punir o mandatário,ex post, votando pela não renovação de seumandato.

Alguns sistemas democráticos dispõemdo mecanismo constitucional do recall, que

possibilita a cassação dos eleitos diretamen-te pelos eleitores, por meio da convocaçãode eleição com esse objetivo específico.Considerado um instrumento de democra-cia direta, o recall não é uma instituição muitodifundida fora dos Estados Unidos, onde foiadotado por 26 estados. Alguns cantõessuíços possuem uma forma de recall, o aber-rufungrecht, que possibilita a revogação domandato de toda a assembléia legislativa.A constituição venezuelana de 1999 adotouo procedimento, que possibilitou o referen-do sobre o governo Chavez em 2004.

Entretanto, tanto o poder de punir o man-datário não o reelegendo quanto o de revo-gar seu mandato por meio do recall, ondeele existe, dependem da quantidade e daqualidade de informações de que o eleitordisponha e de sua capacidade de proces-sá-la para formar um juízo sobre o desem-penho de seu representante.

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Migração Partidária

André Marenco

Migração partidária corresponde à estra-tégia individual de troca de partido, adotadapor candidatos ou parlamentares, buscan-do incrementar suas oportunidades de car-reira política. Pode ocorrer durante o mandatopara o qual o representante tenha sido eleitoou, ainda, como infidelidade partidária re-gistrada em algum ponto ao longo de suacarreira. Pelo menos um em cada quatrodeputados federais eleitos no Brasil, entre1986 e 2002, abandonou o partido respon-sável por sua eleição para a Câmara dosDeputados (Melo, 2004). Considerando-se afidelidade partidária registrada ao longo dacarreira política, 53% dos deputados fede-rais eleitos em 2002 possuíam registro defiliação a mais de um partido durante suatrajetória pública. A proporção de deputadosque mudam de legenda — alguns, váriasvezes na mesma legislatura — tem contri-buído para o reforço de uma imagem nega-tiva do Legislativo brasileiro, relacionada àfragilidade dos partidos, ao governismo eao predomínio de ambições particulares ecomportamento antiético.

Referências à migração partidária emoutras instituições, como o Congresso ame-ricano (Grose, 2003), o Parlamento europeu(McElroy, 2003) e Legislativos da Itália(Heller; Mershon, 2005) e do leste da Europa(Kreuzer, 2004; Thames, 2005) indicam quesua ocorrência nesses casos se verifica emescala residual. Este também foi o caso doBrasil, nas legislaturas eleitas entre 1946 e1962, quando as raras ocorrências de mu-dança de sigla não chegaram a afetar signi-ficativamente a composição das bancadaspartidárias no Congresso Nacional (Nicolau,1996; Marenco dos Santos, 2001). Da mesmaforma, uma rígida legislação em vigor du-rante o regime autoritário (1964/1985) estabe-lecia penas severas para a infidelidade

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partidária, inibindo a adoção dessa estra-tégia. Contudo, a expansão do multipartida-rismo e a crise do PMDB e, em menormedida, do PFL, durante a legislatura eleitaem 1986, contribuíram para incrementar afreqüência nas trocas de legenda, conver-tendo esse comportamento em um fenô-meno endêmico na dinâmica legislativa enas carreiras políticas no Brasil. Isso significaque os altos índices de migração não estãorelacionados apenas a processos de reali-nhamento político, como a criação do PSDB,em 1988, ou o colapso do PRN, após o pro-cesso de impeachment do ex-presidenteCollor de Mello. Mesmo com a estabilidadedo sistema partidário verificada a partir de1994, sem cisões nos principais partidos, afreqüência das trocas de legenda manteve-seelevada, revelando não se tratar de fenômenode reacomodação de identidades ideológicas,mas comportamento individual visando maxi-mizar oportunidades de carreira política.

Conseqüências

Quando a defecção partidária ocorre du-rante o mandato parlamentar, a principalconseqüência institucional desse comporta-mento implica uma alteração na correspon-dência entre votos e cadeiras, violando umaregra básica da representação política, deque a distribuição de preferências dos elei-tores constitua a condição e medida paradefinir as oportunidades de acesso a postospúblicos. Para entendermos isso, devemoslembrar que apenas um pequeno númerode candidatos às cadeiras legislativas obtémsufrágios nominais em número igual ou su-perior ao quociente eleitoral (a relação entreo número de votos válidos e as vagas emdisputa), assegurando sua eleição com osseus próprios votos. A grande maioria doseleitos, embora tendo obtido votos nominaisem proporção inferior ao quociente, conquistasua vaga beneficiando-se dos votos parti-dários: os votos excedentes dos deputadosque alcançaram o quociente eleitoral, osvotos dos candidatos partidários que não sãoeleitos e os votos conferidos à legenda

partidária (Santos, 2003). Assim, mesmoque afirme que sua eleição deveu-se à suareputação individual e ao voto pessoal deseus eleitores, esses votos foram insufi-cientes para assegurar a eleição da maioriados deputados eleitos. Mais uma vez, valerepetir: o êxito eleitoral de um candidato amandato legislativo depende do desempe-nho de seu partido e da cota de vagas queeste terá direito com base na soma dos vo-tos de todos os seus candidatos. Por outrolado, a regra de voto preferencial, operandono Brasil, permite que o eleitor, com um úni-co voto, interfira sobre a distribuição de po-der em dois planos: 1) escolhendo ocandidato de sua preferência e definindo aordem dos eleitos; e 2) determinando o ta-manho de cada bancada partidária nas Câ-maras Legislativas. Quando troca de legenda,o parlamentar despreza os votos responsá-veis por sua eleição e viola a distribuição depoder político entre os partidos, tal comodeterminada originalmente pelos eleitores.Considerando a observação de uma tendên-cia governista presente na migração partidá-ria, especialmente em contextos de governosde coalizão e com alta popularidade presiden-cial (Melo, 2004), pode-se concluir que esteprocesso interfira, ainda, sobre a disposiçãoe a capacidade do Legislativo em adotar com-portamento pró-ativo, na produção legislativae no monitoramento e controle sobre agênciasgovernamentais, inibindo processos de ac-countability horizontal.

Duas outras conseqüências negativaspodem ser associadas à migração partidá-ria, seja quando ocorre durante o mandatoou ao longo da carreira política. Infidelidadepartidária revela que os partidos não são —ao menos para os deputados que trocamde legenda — condições indispensáveispara a geração de oportunidades de carreirapolítica. Quando se pode trocar de partido eainda assim assegurar uma reeleição, ou,ainda, a mobilidade nos cargos políticos,indica que a fidelidade partidária possui pou-co valor na definição das estratégias da elitepolítica. Ou, ainda, que os insumos para amaximização de carreiras são obtidos junto aoutras agências (como acesso à patronagem

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e a recursos distributivos alocados peloPoder Executivo, vínculos com organizaçõessociais ou meios de comunicação), às quaisasseguram-se lealdades preferenciais. Emcontraste, a durabilidade temporal nos vín-culos de fidelidade partidária representauma situação em que a filiação partidáriaprovê meios relevantes para a manutençãodo posto político, implicando custos maiorespara sua ruptura, sendo racional para o parla-mentar cultivá-la.

Outra conseqüência associada ao fenô-meno da troca de legendas pode ser identi-ficada no incremento do custo da informaçãopara os eleitores sobre reputações partidá-rias. Repetidamente, ouve-se a frase que,no Brasil, os eleitores votam “na pessoa enão no partido”. O que pode ser válido,sobretudo, quando se considera o volumede informação necessária para que o eleitorpossa estabelecer as diferenças entre cadalegenda, dificuldade potencializada pelo nú-mero de partidos e candidatos que incre-menta os custos de monitoramento doseleitos pelos eleitores (Nicolau, 2002). Aestabilidade eleitoral associada à fidelidadepartidária pode, em longo prazo, gerar ainformação necessária para a produção dereputações partidárias à medida que aovotar uma eleição após a outra, em seu candi-dato preferido, o eleitor resulte por associá-loà legenda, e com isso, termine por constituiridentidade partidária. Ao mudar de partido,o representante introduz custo adicional paraa geração de identidades partidárias, umavez que torna mais difícil a conversão de suareputação pessoal em reputação partidária.

Causas

Explicações para a infidelidade partidá-ria entre os políticos brasileiros costumamidentificar como causas para tal comporta-mento a redução da incerteza associada àmanutenção da carreira política e os incenti-vos oferecidos pelas regras eleitorais e osprocedimentos que regulamentam o funcio-namento interno das Casas Legislativas.

Assim, para Mainwaring (1991), a regraeleitoral de lista aberta, ao não promover umaordem prévia dos candidatos partidários apostos legislativos, teria estimulado a auto-nomia dos candidatos em relação a seuspartidos, uma vez que sua eleição não de-penderia da indicação partidária, mas daquantidade de votos personalizados que cadapostulante seja capaz de conquistar, condi-ção para o ranqueamento dos candidatos,uma vez conhecida a cota proporcional decada partido. A partir de um estudo compa-rativo buscando medir o efeito de diferentesmodelos de listas eleitorais sobre a robustezdos sistemas partidários, Carey e Shugart(1996) propuseram um escore para mensuraros meios de controle à disposição da lide-rança partidária: controle das nominações eda ordem dos eleitos, transferência de vo-tos, restrições à competição intrapartidáriae existência de barreiras à formação de no-vos partidos, promovida pela magnitude dosdistritos eleitorais. Nesta direção, a combi-nação lista aberta com elevada magnitudedas circunscrições eleitorais (tal como obser-vado no Brasil) incrementaria o potencial decompetição intrapartidária, reduzindo, simul-taneamente, o controle da liderança partidá-ria sobre seus membros e candidatos, comconseqüências presumíveis sobre a infideli-dade partidária.

Analisando as trocas de partidos na Câ-mara dos Deputados, Melo (2004) observouque este fenômeno apresenta regularidades,associadas: 1) ao ciclo eleitoral, sendo maisprováveis no primeiro e terceiro ano de cadalegislatura; 2) a ocorrência entre parlamen-tares com menor acesso aos recursos dePoder Legislativo (Mesa, liderança partidá-ria, presidência de comissão ou cargos noExecutivo); e 3) a uma direção que varia con-forme a natureza e a popularidade do gover-no: migração governista, quando de governode coalizão e com popularidade presidencialem alta, ou migração não-governista, emgovernos de cooptação ou apartidários e,ainda, baixa popularidade.

Analisando os registros de migração par-tidária com base em variáveis de recruta-mento eleitoral (Marenco dos Santos, 2003,

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2006), pode-se verificar que a adoção deestratégias de infidelidade não constitui fenô-meno homogêneo, variando segundo: 1)características da circunscrição eleitoral decada candidato (os estados), positivamenterelacionadas com as taxas estaduais de vola-tilidade eleitoral (a flutuação partidária do elei-torado entre uma eleição e a anterior), sendoirrelevante o efeito provocado pela magnitudeeleitoral; 2) o tempo de filiação partidáriaprévio à conquista da cadeira legislativa.Maior probabilidade de defecção partidáriapode ser verificada entre deputados filiadosa menos de quatro anos no partido respon-sável pela vaga, e, quando a troca de parti-do é seguida pela tentativa de reeleição paraa legislatura seguinte, são observadas me-nores taxas de reeleição entre os infiéis epior desempenho eleitoral (votos e posiçãona ordem final) entre aqueles que trocaramde legenda após períodos de filiação parti-dária prévia mais longos (acima de quatroanos).

Alternativas

As proposições de reformas políticas vi-sando neutralizar os incentivos à migraçãopartidária obedecem a escopos distintosquanto à sua amplitude e seguem os diag-nósticos sobre as causas responsáveis pelaadoção desta estratégia. A exposição demotivos do Projeto de Lei 2.679 correlacionavoto preferencial com precário controle exer-cido pela liderança dos partidos sobre ascarreiras políticas de seus membros e ado-ta uma proposta de reforma política maisradical, com a introdução de procedimentode listas fechadas, nas quais o ordenamentodos candidatos a ocupar a cota proporcionalde cadeiras partidárias ocorre antes da eleiçãoe com base em decisões tomadas pelosórgãos partidários:

O voto em candidato, em vez de em partido,tem sido diagnosticado, de longa data, inclu-sive por eminentes líderes políticos, comonocivo à disciplina e coesão partidárias. Namedida em que boa parcela de nossa repre-

sentação política enfrenta o desafio eleitoralatravés de esforços e estratégias individu-ais, inclusive no financiamento de campa-nhas, certamente, seu comportamento emrelação ao partido não terá as mesmas carac-terísticas que teria, caso o partido fosse rele-vante para a escolha dos eleitores. (Projetode Lei 2.679, Comissão Especial de ReformaPolítica, 2003.)

Paralelamente, propostas de reformasincrementais supõem que medidas focali-zadas que ampliem o custo para a infideli-dade, como o aumento do tempo mínimode filiação partidária, poderiam inibir estra-tégias de migração, sem os efeitos perversoseventualmente associados ao reforço demáquinas partidárias.

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Cláusula de Barreira

Mônica MataMachado de Castro

A cláusula de barreira é, hoje, um doselementos da Lei Eleitoral brasileira. O Códi-go Eleitoral estabelece que os partidos polí-ticos alcancem certo patamar de votos, alémdo já exigido pelo quociente eleitoral, parater direito ao funcionamento parlamentar.

Esse instituto é, até certo ponto, diferen-te da cláusula de exclusão, adotada em al-guns sistemas eleitorais do mundo, comoos da Alemanha, Grécia e Argentina, ondeum partido é excluído da competição porcadeiras nos parlamentos e não elege repre-sentantes se não superar determinado limiarde votação em termos nacionais. Esse me-canismo foi concebido como um antídotocontra a tendência de fracionamento do sis-tema partidário, característica dos sistemaseleitorais de representação proporcional:impede-se, por meio da cláusula de exclusão,a possibilidade da existência de diversospartidos pequenos com representação nosparlamentos, o que dificultaria a formaçãode governos de maioria estável e prejudicaria,conseqüentemente, a chamada governabili-dade ou estabilidade do sistema político.Nos países em que essa norma foi adota-da, como a Alemanha, impediu-se, de fato,a proliferação de partidos pequenos ao longodo tempo, promovendo-se a concentraçãopartidária.

No Brasil, no fim do regime militar (1964-1985), tentou-se instituir a cláusula de exclu-são, por meio da Emenda Constitucional 25,de 27 de novembro de 1985, que, modifi-cando o artigo 152, parágrafo 1º da Consti-tuição de 1967, estabeleceu que não teriadireito a representação no Senado Federal ena Câmara dos Deputados o partido que nãoobtivesse o apoio, expresso em votos, de3% do eleitorado, apurados em eleição geral

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para a Câmara dos Deputados e distribuí-dos em, pelo menos, cinco estados, com omínimo de 2% do eleitorado de cada umdeles.

No parágrafo seguinte, entretanto, acres-centou-se: “Os eleitos por partidos que nãoobtivessem os percentuais exigidos peloparágrafo anterior terão seus mandatos pre-servados, desde que optem, no prazo desessenta dias, por qualquer dos partidosremanescentes.”

Mais ainda, de acordo com o artigo 5ºda mesma Emenda, esse dispositivo nãose aplicaria às eleições de 15 de novembrode 1986, quando foi escolhida a AssembléiaNacional Constituinte.

Essas normas nunca entraram em vigor,porque a Constituição promulgada em 1988nada dispôs sobre votação mínima em par-tidos políticos para obterem representaçãoparlamentar, impedindo, dessa forma, a ins-tituição da cláusula de exclusão por meio delei ordinária. Assegurou-se, no texto consti-tucional, o funcionamento parlamentar dospartidos políticos, a ser estabelecido em lei,de acordo com o inciso IV do artigo 17.

Foi a Lei 9.096, de 19 de setembro de1995, que, ao regulamentar o artigo 17 daConstituição Federal de 1988, estabeleceu achamada cláusula de barreira, ao dispor, nocapítulo II, artigo 13, que:

Tem direito a funcionamento parlamentar,em todas as Casas Legislativas para as quaistenha elegido representante, o partido que,em cada eleição para a Câmara dos Deputa-dos obtenha o apoio de, no mínimo, cincopor cento dos votos apurados, não compu-tados os brancos e os nulos, distribuídos em,pelo menos, um terço dos Estados, com ummínimo de dois por cento do total de cadaum deles.

Entretanto, nas Disposições Finais e Tran-sitórias, a mesma lei, no artigo 57, abran-dou as exigências para o funcionamentoparlamentar dos partidos políticos na Câma-ra dos Deputados, Assembléias Legislati-vas e Câmara dos Vereadores, nas duaslegislaturas subseqüentes, ou seja, até 2007,ao dispor que:

No período entre o início da próximaLegislatura [a de 1999] e a proclamaçãodos resultados da segunda eleição geralsubse-qüente para a Câmara dos Depu-tados, será observado o seguinte:1 – direito a funcionamento parlamentar aopartido com registro definitivo de seusestatutos no Tribunal Superior Eleitoral atéa data da publicação desta Lei que, a partirde sua fundação tenha concorrido ou venhaa concorrer às eleições gerais para a Câmarados Deputados, elegendo representanteem duas eleições consecutivas:a) na Câmara dos Deputados, toda vez queeleger representante em, no mínimo, cincoEstados e obtiver um por cento dos votosapurados no País, não computados os brancose nulos.

Para ter funcionamento nas AssembléiasLegislativas e nas Câmaras de Vereadores,durante o mesmo período, as exigências,em geral, eram as mesmas: o partido deviaobter 1% dos votos apurados na Circuns-crição, não computados os brancos e nulos.

Assim, a cláusula de barreira, tal comoinstituída na Lei 9.096, somente entra emvigor a partir da eleição de 2006: na próximalegislatura, apenas os partidos que alcança-rem, no mínimo, 5% dos votos válidos paradeputado federal, em pelo menos nove esta-dos, com pelo menos 2% do total de votosem cada um, terão direito ao funcionamentoparlamentar nas Casas Legislativas (Senado,Câmara dos Deputados, Assembléias Legis-lativas e Câmara dos Vereadores).

Ter funcionamento parlamentar é exigência,estabelecida na mesma lei, para participarda distribuição de 99% do Fundo Partidário,na proporção dos votos obtidos pela siglapara deputado federal (art. 41, inciso II daLei 9.096). Além disso, somente partidoscom funcionamento parlamentar terão asse-gurado o acesso gratuito ao rádio e à tele-visão: poderão realizar um programanacional e um em cadeia estadual e noDistrito Federal em cada semestre, comvinte minutos de duração e utilizar quarentaminutos, por semestre, para inserções detrinta segundos ou um minuto nas redesnacionais e emissoras estaduais (art. 49).

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Somente os partidos que atingirem a cláu-sula de barreira terão direito a uma bancadano legislativo federal, com estrutura de lide-rança, salas e assessores. E somente ospartidos com liderança podem pedir apalavra a qualquer tempo em sessões doCongresso e escolher representantes parapresidir as comissões de trabalho.

Os partidos que não atingirem a cláusulade barreira participarão da distribuição desomente 1% do Fundo Partidário e terão di-reito a apenas um programa gratuito de doisminutos por semestre, em rede nacional.Esses partidos pequenos elegerão deputadosse alcançarem o quociente eleitoral, masseus parlamentares não terão direito a todaa infra-estrutura existente nas Casas Legisla-tivas para garantir o funcionamento partidá-rio. Sem acesso aos recursos asseguradosna Câmara dos Deputados aos partidos mé-dios e grandes, os congressistas eleitos porpartidos pequenos que não tenham atingidoa cláusula de barreira vão trabalhar quasecomo se fossem avulsos.

A assessoria da Câmara dos Deputadoscalcula que, se a cláusula de barreira tivessesido adotada para a legislatura de 2003, con-siderados os votos da eleição de 2002,somente sete partidos teriam garantido seufuncionamento parlamentar: PT, PSDB, PFL,PMDB, PP, PSB e PDT. Depois da eleição,também PL e PTB incorporaram deputadoseleitos por outros partidos e atingiram as exi-gências da cláusula de barreira.

Pode-se afirmar que a cláusula de barrei-ra, como instituída na lei brasileira, funciona-rá como verdadeira cláusula de exclusão, namelhor das hipóteses, no médio prazo. Nãoafetará diretamente a representação políticanum primeiro momento, já que os parlamen-tares eleitos pelos partidos pequenos quealcançarem o quociente eleitoral poderãoassumir seus cargos. Mas, sem acesso arecursos, esses políticos só terão provavel-mente duas alternativas: mudar de partido,o que afeta a representação política e au-menta a desproporcionalidade da distribui-ção das cadeiras nos parlamentos, outrabalhar com uma série de limitações, de

forma isolada e sem visibilidade. A tendên-cia, com o tempo, é que esses partidosdeixem de existir, incorporando-se ou fundin-do-se com outros partidos. Especialmentepara os pequenos partidos ideológicos tra-dicionais no Brasil, a cláusula de barreirapode significar uma sentença de morte. Jáos membros dos partidos nanicos, “de alu-guel”, se eleitos, provavelmente se adapta-rão mais facilmente às novas circunstâncias,inscrevendo-se em partidos médios e gran-des.

Diversos projetos em tramitação na Câ-mara dos Deputados modificam as exigên-cias da cláusula de barreira: há propostasde redução do percentual de votos exigidospara o funcionamento parlamentar dos par-tidos dos atuais 5% para 2% ou mesmo 1%dos votos nacionais para a Câmara dos De-putados; há projeto que garante funciona-mento parlamentar ao partido que tenhaelegido pelo menos um deputado em cincoestados da Federação; outro revoga os dis-positivos da cláusula de barreira; há, ainda,a proposta de se considerar superada a cláu-sula de barreira quando o partido preencheruma ou outra das duas exigências: 5% dosvotos nacionais ou 2% dos votos em 1/3 dosEstados. Esses projetos foram elaboradospor deputados do PCdoB e do PL, mas tam-bém tramita na Câmara um projeto de de-putado do PSDB que reduz de 5% para 2%dos votos válidos nacionais a exigência dacláusula de barreira para o partido ter funcio-namento parlamentar.

Esses projetos, se levados à votação eaprovados ainda em 2006, supostamentenão afetarão o funcionamento parlamentartal como previsto na lei de 1995, cujas exi-gências passam a vigorar somente agora.Dessa forma, tudo indica que será experi-mentada, pela primeira vez na democraciabrasileira, a chamada cláusula de barreira.

Agradeço a Felipe Nunes dos Santos, aluno do Cursode Ciências Sociais, que recolheu informações paraeste verbete, em pesquisa no sítio da Câmara dosDeputados.

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ReformaConstitucional

Gláucio Soares

As posições relativas à reforma constitu-cional formam um contínuo desde as quenos dizem que a Constituição de 1988 nãoprecisa de reformas e sim de tempo; pas-sando pelas que preconizam mudançaspontuais, pequenos ajustes, mantendo a atualestrutura e até as que afirmam que a Cons-tituição reflete uma concepção errada do Es-tado e das suas relações com a cidadania,devendo ser amplamente reformada ousubstituída. Este texto usa a experiência deoutros países para analisar a questão da re-forma constitucional a partir de três consi-derações:

• A extensão da Constituição

• O caráter da Constituição

• A representação dos partidos no Congresso

O tamanho das Constituições varia, emuito. A do Brasil é das maiores, como osão a da Argentina, a da Índia e a do Méxi-co. Do lado “curto”, estão as constituiçõesde países como a França (1958; 1982), aCoréia do Sul, a Indonésia e a de Hong Kong(de 1990). Algumas são breves, mas de co-bertura ampla, como as do Canadá, da Aus-trália, e de Singapura. Muitos acham queuma constituição deve ser breve e direta,usando como exemplo a Constituição dosEstados Unidos, que se destaca pela suaduração e brevidade, tem sete artigos e vin-te e sete emendas. A XXVII

a emenda foi pro-

posta em 25 de setembro de 1789 e ratificadaem 7 de maio de 1992, mais de dois sécu-los depois. Nos últimos cinqüenta anos ape-nas quatro emendas, de números XXIII aXXVI, foram propostas e aprovadas; do ladooposto, a da Índia, com 395 artigos, já teve93 emendas (até 14 de fevereiro de 2006).

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Historicamente, as constituições tende-ram a crescer. Sartori, comentando a Cons-tituição da Índia, que tem 395 artigos, e anossa, com 245 artigos, afirmou que existeuma tendência ao crescimento das consti-tuições desde o fim da Segunda Guerra Mun-dial.

1 O número das constituições é função

do surgimento de novas nações: mais dametade das constituições existentes são pos-teriores a 1974. Há mais constituições, maselas também são maiores. A tendência aocrescimento das constituições também seobserva no nível estadual. Robert Luce, umimportante político que era um estudioso dasconstituições estaduais americanas, concluiuque na primeira década elas tinham, na mé-dia, dez páginas e meia; nas três décadasseguintes, 12 páginas, e de 1815 a 1845, 16páginas. Outros estados aumentaram o ta-manho das suas constituições: Pensilvâniade 11 para 31 e Delaware de 6 para 36.

A brevidade depende da cobertura, dequantos temas diferentes estão na Consti-tuição. Uma, bem escrita, direta, com am-pla cobertura será maior do que outra,igualmente bem escrita e direta, mas de co-bertura estreita. Uma decisão crucial, queafeta o tamanho das constituições, é o queincluir e o que deixar de fora, para leis me-nores.

As primeiras constituições eram políticase dispunham sobre como deveria ser o Es-tado, suas divisões e seus poderes. Emmuitos casos, foram seguidas por emendase disposições sobre os direitos e liberdadesindividuais. A americana introduziu o famo-so Bill of Rights. Muitas constituições poste-riores adotaram essa modificação. Porém,como notaram Sicat e Sicat, analisando asConstituições tomando a americana comoponto de partida, “a extensa presença dedireitos econômicos e sociais e garantias”nas constituições mais recentes, demons-tra que “a ênfase nas liberdades individuaisnão era mais suficiente”. Direitos sociais eeconômicos foram introduzidos. Essas incor-porações, de inspiração progressista, cres-ceram com as várias formas de estadossocialistas e social-democratas, mas foram

sendo incorporadas por outros estados. Acrise financeira dos estados trouxe à baila anecessidade de moderar alguns desses di-reitos. Uma linha recente de pensamento in-corpora a noção de “equilíbrio” entre direitose deveres. É possível ter uma idéia de se oequilíbrio existe numa Constituição simples-mente contando artigos ou palavras relacio-nados com os direitos e os deveres.

Os direitos e os deveres estão desigual-mente representados na Constituição de1988 por esse critério. Os “deveres” apa-recem apenas nove vezes, e destas, os“deveres” estão imediatamente precedidospor “direitos” em sete; as outras duas sereferem ao Poder Judiciário e ao MinistérioPúblico. Já “direitos” (no plural) aparecem93 vezes. Outras presenças freqüentes sãogarantia (ias, etc.), que surge 85 vezes,aposentadorias, etc. surge 65 vezes; suaparenta próxima, pensões (incluindo pensãoe pensionistas) outras 41; os benefícios têmforte presença, 81 vezes; a proteção e seme-lhantes outras 48 vezes, e assim por diante.A forte presença de direitos, combinada coma escassez de deveres, sugere que podehaver um desequilíbrio na concepção daConstituição. Não é uma imagem de “nós, opovo”, mas de uma instituição externa queestá lá para servir a quem tem “direitos” sobreela. Vários itens que, em muitos países, sãoobjeto de lei ordinária estão presentes naConstituição de 1988.

Figura 1Direitos e Deveres na Constituição de 1988

O equilíbrio entre direitos e deveres éuma ampliação da posição de Hayek de quea criação de direitos acarreta, simultanea-mente, a criação de deveres e que os que

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terão esses novos deveres precisam dosmeios para cumpri-los. Com meios adequa-dos, os direitos constitucionais têm um im-pacto positivo, como demonstraram LorenzBlume e Stefan Voigt da Universidade deKassel

2. Blume e Voigt analisaram muitos

indicadores de direitos humanos, políticos esociais, chegando a quatro fatores, um dosquais tem que ver com direitos de proprie-dade, outro com direitos específicos, eman-cipatórios (de mulheres e de trabalhadores)e dois que se relacionam com direitos políticose com estruturas democráticas. Todos se rela-cionam com a renda per capita em 2000 (log),mas os direitos de propriedade foram os quemais se correlacionaram; foram, também,os únicos que se correlacionaram significa-tivamente com outros indicadores, como ocrescimento da renda per capita entre 1993e 2000. Contrariamente ao mito, as ditadurase regimes opressivos são economicamenteineficientes.

O caráter paternalista, protecionista eassistencialista do Estado se revela na fre-qüência com que certos temas aparecemna Constituição.

Figura 2Outros tipos de Protecionismo eAssistencialismo na Constituição

países com alta renda per capita. A previ-dência do setor público causa um desequilí-brio maior do que a privada, que se refere aum número muito maior de pessoas. Essadiscriminação é um dos fatores que levam acidadania a um afastamento em relação aoideal de ver no Estado e na Constituição “nós,o povo”. Estado, Constituição, políticos e po-der integram a alteridade. A falta de identi-dade com “eles” gerou uma espécie de “leide Gerson” em relação a “eles” e as conse-qüentes atitudes reivindicatórias. O corporati-vismo impede que o Estado e suas instituiçõessejam percebidos como “nossos”; a Nação,sim, o Estado, não.

Como saber se uma constituiçãoé “boa” ou não?

O teste do tempo tem sido enfatizadocomo critério para avaliar a qualidade dasConstituições. Hague, Harrop e Breslin, em2001, reforçam a imagem das constituiçõescomo produtos da engenharia política, quedevem ser julgadas por quão bem resistemao teste do tempo. Esses autores achamque freqüentes emendas constitucionais in-dicam um sistema político sob pressão. Nãodevemos esquecer que há dois parâmetrosimportantes na análise das emendas (e re-formas) constitucionais, o tempo e a dimen-são. Há mais o que emendar e reformar emConstituições de ampla cobertura, e se es-pera que as emendas diminuam depois decerto tempo. A maneira de emendar as cons-tituições varia muito.

No Brasil, as emendas constitucionaisexigem maioria de 60% em cada Casa:

Art. 60, III - § 2º - A proposta será discutida evotada em cada Casa do Congresso Nacional,em dois turnos, considerando-se aprovadase obtiver, em ambos, três quintos dos votosdos respectivos membros.

Esta maioria nas duas casas não é fácilde ser obtida em temas que separem go-verno e oposição devido à pulverização parti-dária. Os dados referentes à Câmara dos

No Brasil, a herança corporativista pesoumuito sobre os gastos do Estado, conce-dendo ao funcionalismo privilégios e prerro-gativas não encontráveis na maioria dos

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Deputados mostram que, em 1990, era neces-sário que os cinco maiores partidos se unis-sem para garantir a aprovação de emendasconstitucionais e quatro para obter maioria sim-ples; em 1994, eram necessárias as cadeirasdos três maiores partidos para a maioria sim-ples e quatro para obter os 60%; situação quese repetiu em 1998. Em 2002, tanto a maioriasimples quanto as emendas necessitavam detodos os votos dos quatro maiores partidos.

Figura 3 - Número de partidos necessários paraobter maioria simples e para Emendas Constitu-cionais na Câmara dos Deputados

Carlos Ranulfo.4 Antes mesmo de iniciadas

as sessões, assim como nos primeirosmeses de cada legislatura, observa-se umadebandada de deputados de vários partidosna direção de partidos da base governista.Esse movimento só existe porque as cadei-ras são consideradas como pertencentes aodeputado e não ao partido e porque as tro-cas são permitidas.

Pensar a formação de maiorias governis-tas estáveis com base em partidos é, ape-nas, a primeira aproximação. Os arranjosinstitucionais brasileiros estimulam outracaracterística, a infidelidade partidária, quepulveriza as negociações para a formaçãode maiorias estáveis com que governar. Alémde negociar com partidos e grupos, o gover-no é forçado a negociar individualmente comos parlamentares.

Reformas constitucionais de interesse dogoverno podem, com relativa facilidade, serbloqueadas pela oposição; não obstante, asmais necessárias são as relativas à crise fi-nanceira do Estado, porque tocam no seucaráter assistencialista, as que eliminemprivilégios e as que corrijam o desequilíbrioentre direitos e deveres.

Um ponto importante de uma reformaconstitucional seria aumentar o controle doseleitores sobre os eleitos. Lars P. Feld e MarcelR. Savioz (1997) estudaram os efeitos dademocracia direta e do maior controle sobreo desempenho econômico na Suíça, con-cluindo que existe uma associação robustaentre os dois.

Num sistema eleitoral em que alguns inte-resses corporativos e particulares garantema eleição de parlamentares, é difícil alterar aconcepção do Estado, tal qual refletida naConstituição, de representação muito desi-gual de interesses, com privilégios e prerro-gativas espalhados no seu texto, a umEstado onde todos sejam, efetivamente,iguais perante a Lei e onde direitos e deve-res, gastos e receitas, se equilibrem. E, maisimportante, que tenhamos uma atitude depaternidade e responsabilidade pelo Estadoe não uma atitude exclusivamente reivindi-catória. Nós, o povo...

Não obstante, esse é apenas um exer-cício ilustrativo. Em 2002, a segunda maiorbancada, a do PFL, e a quarta, do PSDB,eram da oposição. Situação semelhante seconfigurou nas legislaturas que se iniciaramem 1998, 1994 e 1990. Com base, apenas,nos partidos, este exercício analítico sugereque a distribuição de cadeiras na Câmarados Deputados tornou difícil governar e maisfácil fazer bloquear a ação do governo e queapenas as mudanças constitucionais quaseconsensuais são aprovadas. Não obstante, aConstituição trazia embutida a necessidadede muitas emendas, haja vista a que a pa-lavra “emenda” aparece nada menos do que759 vezes no seu texto. As emendas e refor-mas constitucionais podem ter um impactosobre o crescimento econômico como argu-mentam Sicat e Sicat.

3

A tentativa de obter maioria para podergovernar se reflete nos dados sobre a mu-dança de partidos, muito bem estudada por

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Notas

1 Não obstante, há várias revisões que reduziram onúmero de artigos, como a da Somália de 156 para130, e a da Coréia do Sul de 171 para 166.

2 The Economic Effects of Human Rights, Paper Nº66/04.

3 Ver, da mesma série, The Constitution and economicprogress: when “more is less and less is more”.Discussion Paper No. 0413, September 2004.

4 Ver Retirando as cadeiras do lugar: migração partidáriana Câmara dos Deputados (1985/2002). BeloHorizonte: Editora UFMG, 2004. 212 p.

Referências

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FELD, Lars P.; SAVIOZ, Marcel R. Direct democracy matters for economicperformance: an empirical investigation. Kyklos, 50, 4, p. 507-538, 1997.

HAGUE, R.; HARROP, M; BRESLIN, S. Comparative governmentand politics. 5. ed. New York: Palgrave Macmillan, 2001.

HAYEK, F. (1976). Law, legislation and liberty. The mirage of socialjustice. Chicago: University of Chicago Press. v. 2.

SARTORI, Giovanni. Comparative Constitutional Engineering. 2.ed. 1997.

SICAT, Gerardo P.; SICAT, Loretta Makasiar. An internationalcomparison of constitutional style: implications for economicprogress, university of the philippines school of economics.Discussion Paper No. 0412, September 2004.

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EmendasParlamentares

Marcus Melo

Juntamente com o trabalho em comis-sões, a apresentação de emendas parlamen-tares representa parte essencial do trabalholegislativo. Uma emenda é qualquer propo-sição apresentada como acessória a pro-posta de emenda à Constituição, a Projetode Lei ordinária, de lei complementar, dedecreto legislativo ou de resolução (estesúltimos se referem a competências privati-vas do Legislativo, e têm pouca relevânciapolítica em sentido mais amplo). As emen-das apresentadas visam influenciar as deci-sões de política pública e, como tal, sãoiniciativas legítimas no processo legislativo.No Brasil, no entanto, as emendas ao orça-mento passaram a ser vistas como meca-nismos ilegítimos e escusos de barganhapolítica em virtude de sua estreita vincula-ção com jogos de patronagem e corrupção.

Em sistemas presidencialistas, principal-mente os multipartidários, como é o casobrasileiro, em que são freqüentes os gover-nos de coalizão, as emendas e sua eventualincorporação representam, potencialmente,mecanismos importantes de negociação en-tre os membros da coalizão. O desenho ins-titucional híbrido do país em que traçosproporcionalistas (por exemplo, sistema elei-toral proporcional) coexistem com caracte-rísticas majoritárias (presidentes com amplospoderes) implica maior espaço para o tra-balho das oposições ou para a barganha queocorre durante a tramitação legislativa deuma proposição no seio da própria coalizãode governo. O espaço privilegiado para oemendamento são as comissões congres-suais, embora as emendas também pos-sam ser apresentadas no plenário das CasasLegislativas, seja a de origem da emendaou a revisora, conforme o caso.

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Em países cujos sistemas políticos apre-sentam corte majoritário há pouca atividadede emendamento. Isso se deve, fundamen-talmente, a três fatores. Em primeiro lugar,nesses sistemas são freqüentes os gover-nos majoritários de partido único, em queos partidos também são fortes e disciplina-dos (por exemplo, Reino Unido ou França).Em segundo lugar, o(s) partido(s) de oposi-ção interfere(m) muito pouco na atividadelegislativa e governativa, seja porque as re-gras de organização dos trabalhos legislati-vos conferem grande poder ao partido nogoverno, convertendo os partidos de oposi-ção em expectadores da atividade governa-tiva, ou em virtude de o trabalho dascomissões ser inexpressivo. Em terceiro lu-gar, nos sistemas majoritários de tipo parla-mentarista, há pouco incentivo para oemendamento, o qual, em muitos casos, seconfunde com o voto de desconfiança doLegislativo. Em muitos países que adotaramas instituições parlamentaristas britânicas aprática de apresentação de emendas a Pro-jetos de Lei ou ao orçamento é virtualmentedesconhecida. Ela é substituída por nego-ciação no plano intrapartidário entre lide-ranças partidárias e suas bases.

Esse padrão de baixa atividade de emen-damento é ainda mais expressivo no casode emendas ao orçamento. A despeito dealguns traços que são universais como, noscasos onde há a possibilidade de apresen-tação de emendas, a exigência de não seexceder o teto fixado na lei do Executivo, hágrande variação quanto ao papel do legisla-dor no processo orçamentário (OECD/WorldBank, 2003). Em alguns países de claro de-senho majoritário como Austrália, Irlanda,Japão, Grécia e Nova Zelândia (além de ou-tros, como Israel e Uruguai), é vedado aoLegislativo alterar ou emendar o orçamento,cabendo-lhe apenas rejeitá-lo ou aprová-lona íntegra. Em outros casos, embora nãohaja vedação, os parlamentares nunca intro-duzem mudanças no orçamento (por exem-plo, Reino Unido, Suécia, Bélgica). Há aindacasos em que a proposição de uma emen-da ao orçamento equivale a um voto de des-

confiança (seis países em conjunto de 37países do survey OECD/World Bank). Emalguns países é permitida a apresentaçãode emendas, mas se isso não ocorrer, a pro-posta do Executivo é aprovada por decursode prazo (por exemplo, Chile). Em paísescomo a Colômbia e o Brasil, as emendasparlamentares devem ser aprovadas peloExecutivo para terem efeito legal (no casobrasileiro estão sujeitas ao veto presidencial,sendo passíveis, portanto, de serem aindaderrubadas). Há variações também quantoao grau de agregação do orçamento. Emmuitos casos, permitem-se emendas apenasno que se refere a agregados, e não no nívelprogramático e setorial (idem).

Com as mudanças introduzidas desde aConstituição de 1988, o Brasil tornou-se par-ticularmente permissivo no que se refere aoativismo parlamentar na área do orçamento– cerca de 70 mil emendas foram apresen-tadas ao orçamento em 1993 (em francocontraste com a Constituição de 1967 que,em seu artigo 65, vedava a apresentação deemendas parlamentares). Após sucessivasmedidas restritivas, adotadas depois doescândalo do orçamento, os parlamentarespodem apresentar emendas limitadas quantoao valor total da apropriação, ao número eao tipo de emenda (individual, coletiva e derelatoria), e com elevado nível de desagre-gação (em nível de projeto). No entanto, essarelativa liberalidade é compensada pelo fatode que o orçamento é apenas autorizativo e,não, mandatório (caso dos EUA, entre ou-tros). O Executivo tem o poder negativo dedeixar de executar emendas, o que lhe per-mite selecionar o orçamento a ser executa-do conforme suas preferências (Alston et al.,2005).

As emendas parlamentares adquiriramgrande centralidade no debate público re-cente, e na literatura de ciência política bra-sileira, em três contextos distintos, dois dosquais marcados por forte crise institucional.Em primeiro lugar, durante o processo dereforma constitucional na década de 90,quando a questão do suposto abuso doprocesso de emendamento por parte dos

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partidos de oposição foi colocada na agenda.A principal questão, neste contexto, refere-se ao impacto do processo de emendamentosobre a capacidade governativa, especial-mente no que se diz respeito à aprovação eimplementação da agenda de reformas dogoverno. Neste contexto, o atribulado pro-cesso de tramitação de emendas constitu-cionais na área da previdência social, daadministração pública e da reforma tributá-ria, pelo seu passo relativamente errático esua extensão no tempo, levou a críticas epropostas de reforma institucional. Essas crí-ticas também estavam vinculadas ao rito pro-cessual de aprovação de emendas, queincluíam dispositivos sobre a apresentaçãode destaques para votação em separado(DVS) as quais favoreciam a obstrução porparte da oposição ao governo.

O segundo contexto foi o do escândalodo orçamento no início da década de 90,que revelou os mecanismos de corrupçãona apresentação de emendas. Finalmente,os escândalos ocorridos durante o governoLuiz Inácio Lula da Silva, a chamada crisedo “mensalão” e a crise da “máfia dossanguessugas” envolvendo a execução deemendas ao orçamento na área da saúde.

O debate na ciência política brasileira einternacional em torno dessas questões tevecomo eixo articulador as relações Executivo-Legislativo e o papel das emendas ao orça-mento na formação da base de apoioparlamentar ao Executivo. Esse debate seinscreve em uma discussão mais amplasobre as instituições políticas e seus efeitossobre a governabilidade. Duas perspectivasrivais podem ser identificadas. O argumen-to geral que conclui que as instituições polí-ticas produzem ingovernabilidade focaliza osseguintes aspectos e relações de causali-dade: acredita-se que o presidencialismoproduz ingovernabilidade devido às origensseparadas dos mandatos do Executivo eLegislativo, abrindo-se, dessa forma, a pos-sibilidade de existência de executivos semsustentação parlamentar (Ames, 1995).

Argumenta-se, também, que esses efei-tos são potencializados pelo uso de regras

eleitorais que produzem incentivos para ocomportamento individualista dos parlamen-tares, como o voto proporcional com listaaberta adotado no país (idem). Esses incen-tivos minariam, segundo essa perspectivaanalítica, a coesão e a disciplina partidárias.A regra proporcional com cláusulas de bar-reira excessivamente permissivas tambémimpactaria a governabilidade por produzir umquadro de fragmentação partidária, expres-so em um elevado número de partidos efeti-vos, exacerbando os problemas de formaçãode base de apoio para o governo. O federa-lismo, por sua vez, contribuiria para a ingo-vernabilidade por fortalecer as lealdadespolíticas de caráter local e regional. Nessaperspectiva, portanto, executivos débeis se-riam reféns de um congresso fragmentadoe voltado para questões de caráter localistae paroquial. As emendas parlamentaresseriam, ainda, nessa perspectiva analítica,os exemplos paradigmáticos de compor-tamento de tipo localista.

Na perspectiva rival, argumenta-se queos executivos dispõem de um conjunto deinstrumentos institucionais que garantem aoExecutivo preponderância nas relações como Congresso (Figueiredo; Limongi, 2002).Dentre esses, destacam-se as medidas pro-visórias, as competências privativas na áreaadministrativa financeira e orçamentária, e ocontrole da agenda dos trabalhos congres-suais. Segundo tal perspectiva analítica, osincentivos existentes na arena extracongres-sual — arena eleitoral, por exemplo — têmpouca influência no comportamento parla-mentar no Congresso. Nesta última arena,as regras de funcionamento do Congressoconferem forte primazia ao Executivo e aoslíderes partidários, possibilitando previsibili-dade ao resultado da interação entre o Exe-cutivo e o Legislativo: poder-se-ia preverefetivamente grande sucesso do Executivona aprovação de sua agenda.

Como a questão das emendas parlamen-tares pode ser analisada nessas distintaslinhas argumentativas? Três aspectos po-dem ser destacados. O primeiro refere-se àrelação entre execução de emendas e apoio

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ao Executivo. A questão fundamental é sehá efetivamente uma correlação entre essasduas variáveis e qual é o mecanismo causalenvolvido. Os parlamentares são premiadoscom a execução de suas emendas pelo seuapoio ao Executivo ou passam a apoiar oExecutivo porque têm suas emendas exe-cutadas? Mueller e Pereira (2002) encontramevidências para ambas as hipóteses, elimi-nando os problemas de endogeneidade nes-sa correlação com o uso de variáveisinstrumentais. Limongi e Figueiredo (2005)contestam a plausibilidade dessas hipóte-ses, argumentando que a filiação partidáriaseria um preditor mais importante do com-portamento de apoio do parlamentar, embo-ra o modelo estatístico que testam sejainconclusivo sobre o papel isolado da variá-vel apoio ao Executivo na explicação. Comoas duas variáveis estão correlacionadas,permanecem problemas metodológicospara a explicação. A questão também nãopode ser adequadamente discutida consi-derando-se o comportamento de parlamen-tares da oposição (que, supostamente,seriam aqueles propensos a serem coopta-dos pela execução estratégica de suasemendas). Afinal, grande parte do jogo orça-mentário envolve parlamentares da própriabase do governo. Ou seja, não há incon-gruência entre a correlação entre apoio aogoverno e partido, por um lado, e premiaçãoao parlamentar com base no seu comporta-mento.

Algumas questões ainda não estão ade-quadamente respondidas pela literatura,como, por exemplo, a existência de parla-mentares que não apresentam emendas aoorçamento, mas apóiam o governo. Não épossível concluir, com base no conheci-mento existente, que o governo dependeexclusivamente da liberação de verbas paragovernar. A refutação dessa tese tambémexigiria, obviamente, a consideração deoutras variáveis para mensurar o efeito iso-lado desta variável.

O segundo aspecto da discussão refere-se à interpretação da natureza do jogo políticoem torno do orçamento. Uma interpretação

desse jogo é que os parlamentares tentammaximizar suas chances de reeleição e, paratanto, buscam fundamentalmente apre-sentar emendas que maximizem essaschances. Essa premissa comportamentaltem como implicação que as agendas doExecutivo Federal e dos parlamentares indi-viduais são distintas em virtude do impera-tivo da chamada conexão eleitoral. Como abase eleitoral do presidente abrange o paíscomo um todo, o Executivo Federal buscamaximizar seu desempenho nas questõespara as quais é responsabilizado nas elei-ções: questões fiscais, desempenho macro-econômico e nível de desemprego (e,crescentemente, também para programasde transferência de renda). Os parlamen-tares individuais concentram seus esforçosem patrocinar emendas que atraiam bene-fícios tangíveis para as suas bases (micror-regiões ou estados, ou setores). Essastransferências freqüentemente representamum custo para o governo federal (ou um des-vio em relação ao ponto que expressa me-lhor sua preferência em uma representaçãoespacial de alternativas de políticas). Críti-cos dessa visão sustentam não haver umaagenda parlamentar e outra do ExecutivoFederal, mas, sim, uma agenda de gover-no e uma da oposição. No limite, argu-menta-se que o Executivo Federal dominao processo orçamentário e ele próprio, atra-vés de suas lideranças (no caso do orça-mento, os relatores da comissão), defineparte importante do conteúdo das emendasparlamentares que já são parte da agendapolítica (e por extensão eleitoral) do Execu-tivo (Limongi; Figueiredo, 2005).

O terceiro aspecto refere-se ao papel dasemendas individuais no comportamentoparlamentar. Após as mudanças voltadaspara racionalizar o processo orçamentário eque foram introduzidas desde 1996, asemendas individuais diminuíram sua impor-tância no conjunto das emendas. Sua poucaexpressão em termos de valores quantitativosalocados e em termos relativos vis-à-vis asemendas coletivas (cerca de 20% do total)e de relatoria tem levado a críticas sobre seu

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papel no jogo entre o Executivo e o Legis-lativo. No entanto, permanece o enigma depor que tantos parlamentares se envolvemativamente com o emendamento e a cons-tatação de que, embora diminutas em va-lores, as emendas influenciam as chancesde reeleição.

A agenda de pesquisas sobre essa ques-tão deve considerar outros aspectos em aná-lises que controlem o efeito potencial de umamplo número de variáveis explicativas doapoio parlamentar ao Executivo. Dentre essesse destacam a distribuição de portfóliosministeriais, de postos de comando nasempresas estatais e cargos na administra-ção pública federal, nos fundos de pensãodas empresas, como também alocação decontratos e concessão de crédito. Uma aná-lise mais fina deveria desagregar os parla-mentares por categorias, uma vez que érazoável supor que o jogo das emendas in-dividuais ao orçamento envolve um conjuntoespecífico de parlamentares — provavelmenteos que não têm acesso a outros recursospolíticos, tais como os citados acima. Outravariável que deve ser considerada é a dis-tância ideológica entre os membros da coa-lizão — pode-se hipotetizar que os membrosmais distantes do partido hegemônico seriammais propensos a trocar apoio por votos. Porsua vez, a operacionalização dos testes paraconfirmação dessas hipóteses freqüente-mente envolve o uso dos registros de vota-ções nominais para matérias em que hajaencaminhamento conhecido do Executivosobre a matéria. O uso de votações nomi-nais também apresenta problemas metodo-lógicos conhecidos, de forma que o debateem torno dessas questões deverá perdurar.

Em síntese, é possível identificar poten-cialmente um trade off entre eficiência go-vernativa e extensão da atividade deemendamento. Se, por um lado, o processode emendamento pode levar ao aprimora-mento técnico de propostas e, conseqüen-temente, a um maior alinhamento ouconsistência entre as preferências da socie-dade (ou do chamado eleitor mediano), eletambém pode comprometer a eficácia de

governos, ao produzir uma demora indese-jável no processo de tomada de decisões,sobretudo em contexto de choques adver-sos ou crises, e ao afetar a racionalidade naalocação de recursos. Contudo, como assi-nalado, as emendas parlamentares passarama representar, simbolicamente, as distorçõese as mazelas da democracia brasileira e asvicissitudes de governos de coalizão.

Referências

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FIGUEIREDO, Argelina; LIMONGI, Fernando (2002). Incentivos elei-torais, partidos políticos e política orçamentária. Dados. Revista deCiências Sociais, v. 32, n. 2.

LIMONGI, Fernando; FIGUEIREDO, Argelina (2005). Processo orça-mentário e comportamento legislativo. Dados. Revista de CiênciasSociais, v. 48, n. 4.

OECD/World Bank (2003). Results of the survey on budget practicesand procedures, Paris.

PEREIRA, Carlos; MUELLER, Bernardo (2002). Comportamentoestratégico em presidencialismo de coalizão. Dados. Revista deCiências Sociais, v. 45, n. 2.

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EmendasConstitucionais

Cláudio Gonçalves Couto

Sucintamente, emendas constitucionaissão mudanças pontuais do texto constitu-cional, efetuadas de acordo com procedi-mentos específicos, que são, eles mesmos,fixados na Constituição. Em regra, tais pro-cedimentos são mais exigentes do que osnecessários à aprovação de leis, deman-dando consensos políticos mais amplos doque os que propiciam a formação de maioriasparlamentares estritas (50% + 1), requeridaspara que leis sejam aprovadas pelo Legisla-tivo. Isso ocorre por ser a Constituição maisimportante do que as demais normas legais— que a ela se subordinam —, pois servede base à vida política. Por isso, entende-seque deva possuir maior permanência, razãopela qual se dificulta sua modificação, con-ferindo-lhe estabilidade e preservando-a dealterações freqüentes, suscetíveis de ocor-rer no calor das disputas políticas momen-tâneas. Sua condição de mudanças pontuaisdistingue as emendas de processos espe-ciais chamados de Revisão Constitucional,que por vezes têm caráter mais abrangentee são capazes de alterar mais profundamentea Constituição.

Tanto as emendas como a revisão podemservir, em princípio, para corrigir imperfeiçõesdo texto constitucional (Levinson, 1995), se-jam elas decorrentes da perda de atualida-de diante das mudanças sociais, seja emvirtude do que possa ser considerado a pos-teriori um erro dos constituintes. De qualquermodo, tanto a importância da distinção entreemenda e revisão, quanto os procedimen-tos exigidos para o emendamento constitu-cional variam muito entre os países, sendoimpossível estabelecer um modelo único,válido para todos os casos. Tal variação de-corre dos diversos entendimentos sobre o

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significado da própria Constituição para oregime político que embasa.

Podemos considerar uma Constituição deduas perspectivas, uma ideal, outra empíri-ca. Do ponto de vista ideal, Constituição é oordenamento jurídico supremo e primário doEstado, determinando (1) suas estruturasfundamentais, (2) as regras básicas de seufuncionamento e (3) os direitos essenciais deseus cidadãos. Logo, normas que não cor-respondam a esses três elementos não sãoconstitucionais e ficam foram do texto daConstituição, sendo remetidas às leis. É esteo caso de normas que: (a) entrando em mi-núcias, não contemplam exclusivamente oque é fundamental, essencial ou básico nostrês elementos tipicamente constitucionais,mas especificam seu funcionamento; ou (b)simplesmente não tratam desses três as-pectos, referindo-se a outros assuntos. Tam-bém não são constitucionais as normas queregulamentam de forma partidariamentecontroversa aspectos dos três elementosconstitucionais mencionados. Ao deixar deestipular normas básicas, as leis estabele-cem, ao invés disso, normas de caráter se-cundário, terciário, etc. Estas devem ser,contudo, logicamente compatíveis com asnormas fundamentais que compõem a Cons-tituição.

A importância da compatibilidade decorreda supremacia da Constituição sobre asdemais normas: estando hierarquicamentesubmetidas à Constituição, podem variarapenas dentro dos limites que a normativi-dade constitucional admite. Por exemplo, sea Constituição fixa que X > Y, a normativida-de infraconstitucional pode variar infinitamen-te na sua regulamentação de X, fixando X’,X’’, X’’’, etc., mas sempre sob a condiçãode que todo X > Y. Se alguma norma infra-constitucional — uma lei, um decreto —implicar que X < Y, então ela será conside-rada inconstitucional. Desse modo, se osatores políticos desejarem que X < Y, elesnão poderão fazê-lo por meio de leis ou atosadministrativos, que são hierarquicamenteinferiores à Constituição, precisando mudá-la,emendando-a ou revisando-a.

Entretanto, empiricamente uma Consti-tuição pode se afastar desse modelo idealde duas formas distintas. Na primeira, alémdo ordenamento jurídico primário, uma Cons-tituição pode conter normas de caráter secun-dário, terciário, etc., com isso: a) adentrandoao detalhamento dos elementos fundamen-tais da organização de um Estado; b) tratan-do de matérias referidas a esses elementosfundamentais de um modo sujeito a contro-vérsias partidárias contínuas; ou c) normati-zando assuntos estranhos aos elementosfundamentais da organização estatal. Nestecaso, o critério de conteúdo para distinguir oque diz ou não respeito à Constituição perdeimportância, e resta apenas verificar qualtexto legal é formalmente designado comosendo “a Constituição”, independentementedo que possa conter (Couto; Arantes, 2006).

A segunda maneira pela qual uma Cons-tituição realmente existente se afasta domodelo ideal é quando ela não é, na prática,o ordenamento jurídico supremo do Estado,não ocupando efetivamente uma posiçãosuperior na hierarquia das normas (Kelsen,1990). Isso ocorre caso a normatividade cons-titucional não estabeleça limites ao que podeser feito nas arenas legislativa ou executiva,deixando legisladores ou membros do Exe-cutivo livres para decidir normas que contra-riam a Constituição e mesmo assim sãoválidas. Embora em democracias tal latitu-de decisória dificilmente seja desfrutadapelo Executivo, ela em vários casos o é peloParlamento, considerado soberano e, portan-to, habilitado a modificar ilimitadamente todoo direito em vigor.

Em tais casos, sendo a Constituição equi-parada à legislação comum, não mais severifica uma hierarquia de normas — ao me-nos na prática —, e a modificação das deter-minações constitucionais ocorre facilmente.A facilidade se deve à possibilidade de: a)criar normas que contrariam a Constituiçãosem a exigência de que esta seja emendadaou revisada; b) passar emendas cuja dificul-dade de aprovação é a mesma da aprova-ção de leis; c) aprovar leis que contrariam aConstituição, mas não são derrogadas em

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função disso. A primeira situação vale na-queles países que não têm uma Constitui-ção escrita, sendo o direito constitucionalcostumeiro renovável e revogável por deci-sões parlamentares comuns (Reino Unido,Nova Zelândia); a segunda, naqueles casosque, mesmo dispondo de uma constituiçãoescrita, exigem-se para sua modificaçãoprocedimentos equivalentes aos da aprova-ção de leis (Áustria); a terceira se verificaonde uma lei que contrarie a Constituiçãonão possa ser derrogada senão pela vonta-de do mesmo Parlamento que a aprovou(França).

Outra conseqüência da soberania do Par-lamento nos países sem supremacia cons-titucional é que não haverá outro órgão capazde derrogar leis inconstitucionais. Porém,onde a Constituição for soberana, a derro-gação da legislação e de outras normas jurí-dicas ocorrerá pela intervenção dos tribunais.Esta pode ocorrer: a) apenas de forma loca-lizada, para o caso concreto, quando alguémrequer o direito de não cumprir leis inconsti-tucionais, sem, contudo, implicar a anulaçãoda lei, que continua valendo para os demais;ou b) de forma geral, abstrata, por meio deum tribunal constitucional ou de uma cortesuprema, que se torna instrumento-chavepara assegurar sua prevalência sobre asdemais normas, anulando decisões parla-mentares majoritárias que porventura estejamem desacordo com disposições constitu-cionais. Portanto, o controle judicial da cons-titucionalidade das leis impede que decisõeslegislativas contrariem preceitos constitu-cionais, requerendo a aprovação de emen-das constitucionais. Daí que, na tentativa deexplicar os processos de mudança consti-tucional, costume-se relacionar estreitamenteas regras de emendamento à forma comoas cortes controlam (ou não) a constitucio-nalidade da legislação.

Todavia, essa relação é complicada parao funcionamento da democracia, pois oJudiciário pode agir não apenas como umprotetor da Constituição contra normas incons-titucionais, mas também como um ator cons-tituinte não-eleito. Donald Lutz (1995) observa

que quanto mais difícil for mudar uma Cons-tituição por meio de emendas, mais prová-vel será a intervenção dos juízes na políticacotidiana. O Judiciário torna-se uma “válvulade escape” para mudanças constitucionaisdesejadas por setores da população, porémdifíceis de realizar pelos trâmites políticosnormais. Levando para os tribunais a redefi-nição dos limites constitucionais à legisla-ção transforma-se a interpretação judicialnum atalho para mudanças: constitucionali-zam-se ou inconstitucionalizam-se judicial-mente normas vigentes que permaneceriaminalteradas até que se conseguisse modifi-car o próprio texto da constituição medianteemendamento. Cria-se, porém, um sérioproblema de legitimidade democrática, jáque juízes não têm representatividade, poisnão são eleitos. Esse quadro caracteriza asituação dos Estados Unidos, onde a Cons-tituição é pouquíssimo emendada, e a Su-prema Corte possui papel importantíssimona política cotidiana.

É engano supor que o ativismo judicialnos EUA decorra de ser a Constituição dessepaís muito sucinta e genérica, tornando-sealvo fácil da interpretação das cortes e facili-tando sua intromissão na vida política. Oproblema não está no caráter genérico dotexto, mas na dificuldade de emendá-lo. Asexigências para modificar formalmente otexto constitucional nos EUA são rigorosís-simas: requer-se o apoio de 2/3 de cada umadas câmaras do Congresso (Casa de Repre-sentantes e Senado) para se iniciar uma pro-posta que, depois disso, deve ser aprovadapor três quartos dos estados da Federaçãonas Assembléias Legislativas ou em con-venções convocadas somente para isso. Nãoé casual que se aprovaram apenas 27 emen-das em 220 anos; ou 17 emendas em 215anos, desconsiderando-se as 10 primeiras,aprovadas num único pacote negociadoquatro anos antes, quando da aprovação dotexto original. Noutro extremo está o Brasil:em apenas 18 anos a Constituição foi emen-dada 58 vezes. O que explica essa diferença?

O Brasil apresenta uma situação peculiar,comparado a outros países. A Constituição

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de 1988 não contém apenas normas funda-mentais, mas uma série de disposições, quesão: a) detalhamentos de normas funda-mentais; b) regulamentações partidaria-mente controversas delas; ou c) normascompletamente estranhas às fundamentais.Nos três casos, a Carta brasileira, em vezde estabelecer apenas disposições consti-tucionais propriamente ditas, estipula polí-ticas públicas. Isto traz duas conseqüências,uma prática, outra de princípio.

Conseqüência prática: a constitucionali-zação de políticas públicas restringe a liber-dade de governos e maiorias parlamentaresestritas para implementar suas agendas. Amodificação de qualquer dispositivo da Cartaexige maiorias ampliadas de 3/5 dos legis-ladores na Câmara dos Deputados e no Se-nado Federal, em duas votações em cadaCasa, sendo que qualquer modificação efe-tuada por uma delas naquilo decidido pelaoutra obriga a uma nova apreciação do pon-to alterado, até haver concordância. Isto re-quer coalizões parlamentares ampliadas,bem mais onerosas do que as normalmentenecessárias para que partidos eleitoralmentevencedores sustentem seus governos e im-plementem suas agendas. Porém, comoas exigências para o emendamento consti-tucional no Brasil são relativamente menoresdo que em outros países, verifica-se um ele-vado índice de emendamento constitucionalem termos comparativos — cerca de 3,13emendas por ano. Assim, nossa Constituiçãoapresenta grande volatilidade formal, emborao grosso das modificações incida não sobreprovisões verdadeiramente constitucionais,mas sobre políticas públicas constituciona-lizadas (Couto; Arantes, 2003).

Conseqüência de princípio: a constitucio-nalização de políticas públicas é antidemo-crática. Em decorrência dos trâmites maisexigentes para o emendamento constitu-cional em relação à aprovação de leis, aconstitucionalização de matérias que são alvoda controvérsia cotidiana dos partidos napolítica competitiva obstaculiza a alteraçãodo status quo por governos e maiorias parla-mentares eleitas para fazê-lo. Curiosamente,

tal situação foi gerada por uma AssembléiaNacional Constituinte que decidiu com basenuma regra de maioria estrita (50% + 1) emsessão unicameral, mas que determinou anecessidade de 3/5 dos votos em duas câ-maras para alterar suas decisões no futuro.Portanto, criou-se no Brasil um problema delegitimidade intertemporal: uma maioriaestrita constitucionalizou matérias de natu-reza infraconstitucional, permitindo que nofuturo apenas maiorias ampliadas pudessemmodificá-las, onerando governos e maioriaslegislativas com o ônus de construir con-sensos ampliados, caso desejassem imple-mentar agendas conflitantes com as políticasherdadas.

De fato, os governos brasileiros empe-nharam-se em construir supermaiorias paragovernar mudando a Constituição. FernandoHenrique Cardoso construiu coalizões que lhederam cerca de 75% das cadeiras nas duascasas do Congresso; aprovaram-se 35emendas. Luiz Inácio Lula da Silva chegou adeter apoio semelhante na Câmara, mas jamaisultrapassou 60% dos votos no Senado; apro-varam-se 13 emendas. As 48 emendas apro-vadas durante os mandatos desses doispresidentes dão uma média de quatro porano, idêntica à do período Itamar Franco,quando oito emendas passaram em poucomais de dois anos, seis delas (EmendasConstitucionais de Revisão) durante a Revi-são Constitucional agendada no próprio tex-to da Carta de 1988 para ocorrer cinco anosapós sua promulgação, indicando que ospróprios constituintes anteviam que dispo-sições como as da Constituição brasileiranecessitariam de mudanças, mesmo quepouco tempo após sua aprovação.

Como negociações para a aprovação demudanças sobre disposições de teor parti-dário geram muita barganha, essas emen-das freqüentemente inseriram ainda maispolíticas públicas na Carta, sendo raras asemendas que desconstitucionalizaram polí-ticas. Durante o período FHC a Constituiçãobrasileira cresceu 15,3%, e a maior partedessa taxa decorre de novos dispositivos depolíticas públicas (Couto; Arantes, 2003).

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Essa dinâmica engendrará novas tentativasde modificação no futuro, e, conseqüente-mente, permaneceremos longamente presosa uma agenda constituinte. A hipótese inversa,da desconstitucionalização de políticas pú-blicas, parece bastante improvável.

Referências

COUTO, Claudio; ARANTES, Rogério Bastos. Constitución o políticaspúblicas? Una evaluación de los años FHC. In: PALERMO; Vicente(Comp.). Política brasileña contemporánea: de Collor a Lula en años detransformación. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2003. p. 95-154.

COUTO, Claudio; ARANTES, Rogério Bastos. Constituição, governoe democracia no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, SãoPaulo, v. 21, n. 61, 2006. No prelo.

KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. São Paulo: MartinsFontes; Brasília: Editora UnB, 1990.

LEVINSON, Sanford. Responding to imperfection: the theory andpractice of constitutional amendment. Princeton: PrincetonUniversity Press, 1995.

LUTZ, Donald. Toward a theory of constitutional amendment. In:LEVINSON, Sanford. Responding to imperfection: the theory andpractice of constitutional amendment. Princeton: PrincetonUniversity Press, 1995.

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Orçamento Público noBrasil Democrático

Paulo Calmon

O orçamento público é o documento queconsolida as estimativas das receitas e des-pesas do governo. Nesse sentido, o orça-mento pode ser considerado como um planoque orienta as decisões do governo sobremobilização e o destino a ser dado aos re-cursos a serem extraídos da sociedade.

O orçamento público resolve um proble-ma recorrente no governo, isto é, a definiçãodo perfil de alocação de seus recursos. Pro-blemas recorrentes no governo tendem agerar soluções institucionalizadas. Esse pro-cesso institucionalizado de alocação de re-cursos públicos é chamado de “processoorçamentário”. Cabe enfatizar que além dafase de elaboração das estimativas de re-ceitas e despesas, o processo orçamentá-rio inclui também as fases de execução eavaliação da alocação desses recursos.

O estudo da evolução dos processos orça-mentários não é tarefa simples. Ele vai alémda análise centrada apenas na evolução dastécnicas de gestão das finanças públicas.Isso porque o processo orçamentário revelamuito sobre a natureza do Estado e do regimepolítico existente. Algumas das perguntasmais interessantes desse estudo dizem res-peito à evolução das regras que regem asdiferentes formas de organização desse pro-cesso. Esse conjunto de regras é tambémchamado de “estrutura de governança” doprocesso orçamentário. As característicasgerais da estrutura de governança do pro-cesso orçamentário são normalmente espe-cificadas na Constituição de um país, sendoposteriormente complementadas por umconjunto de normas adicionais.

A estrutura de governança do processoorçamentário tem várias funções, das quaisse destacam: a) a definição das arenas

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decisórias; b) a certificação dos atores queparticiparão dessas arenas; e c) a estrutura-ção das normas e procedimentos que orien-tarão a negociação entre esses atores.

Os processos orçamentários têm umpapel muito importante na sociedade. Emúltima instância, eles geram decisões queirão definir os ganhadores e perdedores daação do Estado. Não é por acaso que al-gumas das grandes revoluções na históriativeram, entre suas principais causas, odescontentamento com os tributos e o perfildo gasto público. Como bem afirmou JosephSchumpeter, um dos grandes pensadoresdo século XX e pai da sociologia fiscal,

O espírito de um povo, seu nível cultural,sua estrutura social, o resultado das suaspolíticas — tudo isso e muito mais está re-fletido em sua história fiscal, desnudada detodas as frases. Aquele que consegue ouvirsua mensagem é também capaz de discernir,com maior clareza, os trovões da história.

Considere, por exemplo, as duas diferen-tes origens da palavra que usualmente é uti-lizada para denominar o “orçamento público”e como estas refletem, em grande medida,diferentes percepções do que deveria ser aestrutura de governança do processo orça-mentário. Na língua portuguesa, a palavra“orçar” é um termo originalmente relacionadoà tentativa de direcionar uma embarcação,estimando onde se encontra a linha do vento.Nesse sentido, orçar é uma atividade voltadapara a resolução de um problema técnico.No entanto, em grande parte dos paíseseuropeus o termo mais utilizado para se refe-rir ao orçamento público é a palavra budget.Trata-se de palavra com origem curiosa:budget era a pasta de couro que o Chancelerdo Erário inglês levava ao Parlamento con-tendo a estimativa das receitas e despesasdo Rei. O Parlamento então requeria que oChanceler “abrisse sua pasta” (open thebudget) revelando as intenções do Rei e sub-metendo-as ao crivo dos representantes elei-tos pelo povo. A prática de submeter oorçamento público ao Legislativo prevaleceuna Inglaterra desde o início do século 13.

Ela se fundamentava no princípio de que semrepresentação não haveria taxação. Esseprincípio se consolidou e passou a estabe-lecer um dos pilares dos sistemas políticosde vários outros países. O orçamento enten-dido como budget é fundamentalmente umato de natureza política, refletindo a naturezae a dinâmica das instituições democráticasnesses países.

E no Brasil? Que estrutura de governançaé adotada no processo orçamentário brasi-leiro? Como essa estrutura evoluiu ao longodo tempo? Qual a relação entre a evoluçãodo processo orçamentário e a trajetória dademocracia representativa no país?

O processo orçamentário no Brasil tempeculiaridades que estão diretamente rela-cionadas à sua estrutura social, econômicae política. Primeiramente, há que se consi-derar a evolução do Estado e como ela afe-tou a capacidade de programar e controlaras finanças do governo. Ao longo dos anos,o setor público brasileiro foi se tornando maiore mais complexo. Em função disso, os con-flitos dentro do Estado se multiplicaram etornou-se cada vez mais difícil estabelecermecanismos eficazes para a coordenaçãoda ação pública. Apesar dos avanços nastecnologias de gestão do setor público, atarefa de elaborar e executar o orçamento éhoje muito mais difícil e complexa do queera há décadas.

Em segundo lugar, mas igualmente im-portante, há que se considerar também ascondições socioeconômicas do país. O Bra-sil é um país em desenvolvimento cujo pro-cesso de crescimento foi marcado pelageração de externalidades sociais importan-tes que aprofundaram um perfil desigual dedistribuição de renda e riqueza, somado auma trajetória da atividade produtiva caracte-rizada por períodos de grande instabilidademacroeconômica. Tais condições impõem aogoverno uma enorme pressão. Há sempre aexpectativa de que este seja capaz de preco-nizar e implementar ações que resolvam osproblemas sociais e econômicos do país. Essaspressões afetam as condições de governa-bilidade democrática e criam constante incer-teza na gestão dos recursos públicos.

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Finalmente, pode-se examinar as parti-cularidades da trajetória do sistema políticoe como estas reverberaram na evolução daestrutura de governança do orçamento pú-blico. De maneira geral, pode-se constatar aexistência de um movimento pendular nessaestrutura, cuja dinâmica é regida pela tenta-tiva de elevar a participação do Legislativonas decisões sobre alocação de recursos epelas frustrações que esse processo gerou,resultando em um movimento oposto, decentralização de poder no âmbito do Execu-tivo. No entanto, o que se constata é queesse movimento pendular afetou mais osaspectos instrumentais da estrutura de go-vernança do processo orçamentário do quesua substância.

Em outras palavras, o processo de cons-trução da estrutura de governança do pro-cesso orçamentário tem ocorrido em doisníveis. Em um primeiro nível, que define adistribuição de poder decisório entre o Exe-cutivo e o Legislativo, há um movimento pen-dular que reflete a trajetória do sistemapolítico brasileiro. Em um segundo nível, hárestrições de caráter estrutural, associadasà dinâmica do Estado brasileiro e à evolu-ção da democracia no país. Nesse segundonível manifesta-se, de forma consistente aolongo do tempo, a existência de um profundohiato de capacidade no setor público, eviden-ciando as dificuldades enfrentadas pelo Es-tado brasileiro em mobilizar e programarrecursos, assim como em coordenar, con-trolar e avaliar adequadamente suas açõesno sentido de atender às expectativas e de-mandas da sociedade.

Se considerarmos apenas o primeiro nível,isto é, o movimento pendular de concentraçãoou desconcentração do poder decisório,nota-se que ele ocorre de maneira não harmô-nica. De forma muito sumária, poderíamosdestacar os seguintes marcos principaisnesse movimento:

• A aprovação das Constituições de 1824 e1891, que estruturam o processo orçamen-tário brasileiro, dando papel de destaque aoLegislativo, mas concedendo ao Ministérioda Fazenda a iniciativa de elaborar a propostaorçamentária.

• O veto presidencial à proposta orçamentá-ria aprovada pelo Legislativo em 1922, emfunção do uso abusivo das emendas parla-mentares, no episódio que marcaria o fimdas chamadas “caudas orçamentárias” e seconstitui na primeira tentativa de disciplinarsistematicamente a intervenção do Legislativoem matéria orçamentária.

• A tentativa de concentrar o poder decisórionas mãos do Executivo ao longo do EstadoNovo e a iniciativa frustrada de transferir afunção de elaborar o orçamento do Ministé-rio da Fazenda para o DASP.

• A recuperação da influência do Legislativono período de vigência da Constituição de1946 e as dificuldades de ordenar o proces-so orçamentário em função da sucessão deconflitos envolvendo partidos políticos, con-gressistas e burocratas.

• A reforma orçamentária instaurada pelaConstituição de 1967 e a Emenda 01/69, quepreconizava um papel meramente cerimo-nial ao Legislativo, estabelecia a ComissãoMista de Orçamento, com poder terminativopara aprovar o orçamento e criava o orça-mento plurianual de investimentos (OPI). Pa-ralelamente, se transferiu para Secretaria dePlanejamento da Presidência da República,hoje Ministério do Orçamento, Planejamentoe Gestão a responsabilidade de elaborar aproposta orçamentária.

De maneira geral, a centralização preco-nizada pela reforma orçamentária de 1967teve pouco sucesso. Na verdade, as esti-mativas contidas na dobradinha formadapelo Orçamento Geral da União e pelo OPIse tornavam rapidamente obsoletas em fun-ção das altas taxas de inflação que prevale-ceram nos anos 70 e 80. Com isso, oorçamento era continuamente redesenhadoao longo do ano a partir de reestimativas dareceita e da concessão de créditos suple-mentares. Além disso, o orçamento tinhaabrangência muito limitada, ficando de forauma série de despesas e receitas importan-tes para o governo. Em suma, a despeitoda existência de um regime autoritário e, su-postamente, gerido de forma hierárquica, acapacidade do governo de programar suas

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despesas era pequena e sujeita a diferentestipos de manipulação e manobras.

A Assembléia Constituinte de 1987 al-mejou modificar a estrutura de governançado processo orçamentário, com intuito detornar esse processo mais transparente edemocrático. Com esse intuito objetivou-serestaurar a influência do Legislativo nas de-cisões e deliberações sobre o orçamentopúblico. Ao mesmo tempo, se intentou au-mentar a abrangência do orçamento, quepassaria a incluir as receitas e despesas coma previdência social e os investimentos dasempresas estatais. Por outro lado, mantive-ram-se vários dos elementos estabelecidosanteriormente, tais como uma ComissãoMista de Orçamento separada das demaiscomissões permanentes do Legislativo, queteve seus poderes ampliados. Embora tivesseperdido seu poder terminativo, a ComissãoMista de Orçamento passou a centralizartodas as decisões sobre matéria orçamen-tária, constituindo, na prática, quase comouma terceira casa no Congresso Nacional.Em termos de instrumentos, conforme jámencionado, a Lei Orçamentária Anual (LOA)teve seu escopo ampliado e o OPI foi subs-tituído pelo PPA (Lei do Plano Plurianual), queproporcionava uma perspectiva de médioprazo (quatro anos) sobre os investimentosgovernamentais. Esses instrumentos foramcomplementados pela Lei de Diretrizes Orça-mentárias (LDO). A função da LDO era fixarmetas e prioridades da administração pú-blica federal, incluindo a meta para o supe-rávit primário e orientando a elaboração daLOA e do PPA.

Havia grande esperança de que a novaestrutura de governança pudesse tambéminaugurar uma nova fase no processo orça-mentário. No entanto, a própria AssembléiaConstituinte de 1987 reconheceu a necessi-dade da elaboração de uma lei complemen-tar, que complementasse e especificasse osvários dispositivos fixados na Constituição.Até o momento, tal lei ainda não foi subme-tida ao Congresso Nacional. Isso significaque a reforma orçamentária de 1988 perma-nece até hoje fundamentalmente incompleta.

Em 2006 a estrutura de governança doprocesso orçamentário completará 18 anosde vigência. Ao atingir a maioridade, eviden-cia-se a frustração daqueles que esperavamque as reformas implementadas pela Cons-tituição de 1988 proporcionariam uma ma-neira mais eficiente e democrática deplanejar, executar e avaliar os gastos gover-namentais. No entanto, ao longo desses anosforam inúmeros os escândalos envolvendoa má alocação de recursos públicos, muitosdesses tendo atores no Legislativo comoprincipais protagonistas. Esses escândalostêm afetado não apenas a imagem do Le-gislativo, mas a própria crença nas institui-ções democráticas. Portanto, é urgente efundamental que se faça uma reflexão críti-ca sobre a atual estrutura de governança doprocesso orçamentário. Dentre as muitasquestões que poderiam pautar essa refle-xão, cabe citar as seguintes:

a) Como estabelecer mecanismos transpa-rentes e democráticos para negociação doajuste fiscal, reduzindo a rigidez orçamen-tária hoje existente, manifesta em um gran-de número de vinculações e despesasmandatórias, mas ao mesmo tempo garan-tindo um perfil de gastos públicos que sejapoliticamente sustentável, economicamentecoerente e justo do ponto de vista social?

b) Como integrar melhor as funções deplanejamento e orçamento, gerando umaprogramação de gastos que verdadeira-mente reflita as prioridades definidas noCongresso Nacional e que seja factível deser implementada, tanto do ponto de vistada administração financeira, quanto do pontode vista da análise e avaliação das políticaspúblicas? Como criar condições para o esta-belecimento de um orçamento impositivo,e não apenas autorizativo como existe hoje,mas que ao mesmo tempo gere um perfilde gastos coerente com os recursos dispo-níveis e as prioridades elegidas?

c) Como fortalecer o controle e a avaliaçãoda ação governamental, reduzindo a oportu-nidade de ocorrência de desvios ou o usoinapropriado dos recursos públicos, mastambém evitando o surgimento de um estilo

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de auditoria ineficiente ou predatória, queconsuma tempo e recursos disponíveis, masque gere pouco impacto substantivo emtermos de efetividade das políticas públicas?

d) Como estruturar cronogramas, procedi-mentos, regras e arenas decisórias do pro-cesso orçamentário que viabilizem umaparticipação substantiva, e não apenas ceri-monial, do Congresso Nacional nas decisões?E, de semelhante forma, como estruturarcanais de deliberação e participação diretada sociedade nas discussões e debates sobreos vários aspectos do orçamento público?

e) Como estabelecer uma trajetória coerentee sustentável para criação de capacidade nosetor público federal, estadual e municipalpara elaboração, implementação e avaliaçãodas ações preconizadas não apenas nos seusorçamentos? Como capacitar a sociedadepara participar desse processo de uma formaconstrutiva?

Tais questões exigirão mudanças que nãopoderão ser geradas apenas pela adaptaçãodo processo orçamentário hoje existente.Elas requerem transformações estruturais,que estão diretamente associadas às mu-danças no sistema político do país. Portanto,as discussões sobre a reforma orçamentáriae a reforma política deveriam caminhar ladoa lado. Elas se complementam e se reforçam.O êxito ou o fracasso dessas reformas afetará,de maneira muito importante, os limites e aspossibilidades da governabilidade democrá-tica do país.

Referência

SCHUMPETER, J.A. 1918. The crisis of the tax state. In: SWEDBERG,R.A. (Ed.). Joseph A. Schumpeter: the economics and sociology ofcapitalism. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1991.

Sugestão de 10 textos para seremconsultados sobre o tema

AZEVEDO, Sergio; FERNANDES, Rodrigo. Orçamento Participativo:construindo a democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

BEZERRA, Marcos Otavio. Em nome das bases: política, favor edependência pessoal. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999.

BIDERMAN, Ciro; ARVATE, Paulo. Economia do setor público no Brasil.São Paulo: Campus, 2005.

FIGUEIREDO, Argelina; LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativona nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: Fundação GetúlioVargas, 1999.

GIACOMONI, James. Orçamento público. 13. ed. São Paulo: Atlas,2005.

LOPREATO, Francisco Luiz. O colapso das finanças e a crise da fede-ração. São Paulo: UNESP, 2003.

MONTEIRO, Jorge Vianna. Lições de economia constitucional brasi-leira. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004.

OLIVEIRA, Fabrício Augusto. Autoritarismo e crise fiscal no Brasil.São Paulo: Hucitec, 1995.

REZENDE, Fernando; CUNHA, Armando. O orçamento público e atransição de poder. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004.

SENADO FEDERAL. Planos e orçamentos públicos: conceitos, ele-mentos básicos e resumos dos projetos de leis do Plano Plurianual2004-2007 e do Orçamento 2004. Editado pela Consultoria de Orça-mentos, Fiscalização e Controle – CONORF do Senado Federal.Obtida, por meio eletrônico, em 9 de Junho de 2006 no endereço:<http://www.senado.gov.br/sf/orcamento/sistema/CARTILHA2004.pdf.>.

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Autonomia/Independência dosBancos Centrais

William Ricardo de Sá

O estado-da-arte do debate normativosobre o desenho e a implementação dapolítica monetária indica como recomendávelum alto grau de autonomia dos bancos cen-trais, por razões teóricas e pela evidênciaempírica disponível. Conceitualmente, a auto-ridade monetária é dita independente quandoautônoma na definição de seus objetivos einstrumentos de atuação. Se sua liberdadeé restrita à escolha desses instrumentos,trata-se de um banco central com autonomiaoperacional ou com independência de instru-mentos (Fischer, 1994; Maziero; Werlang,2004).

Como indicadores de independência ouautonomia são usualmente considerados osprocessos de indicação das diretorias dosbancos centrais e a eventual existência demandatos para os seus membros, bemcomo o seu tempo de permanência no car-go. Também importam os objetivos e a for-mulação da política monetária, assim comoas definições quanto à concessão de crédi-tos pelo banco.

Mandatos mais longos e legalmente de-finidos — de modo a impedir ou dificultar ademissão dos seus diretores — sinalizammaior autonomia, assim como a eleição dadefesa da estabilidade de preços como oobjetivo exclusivo do Banco Central, que te-ria a palavra final quando este conflitasse comoutras preferências do governo. Outros ob-jetivos ou a incapacidade de decidir entreprioridades concorrentes implicariam menorautoridade. Por fim, a maior restrição aopapel de emprestador do Banco Central otornaria mais autônomo. Se o acesso aosseus recursos é restrito ao governo central,menos mal. Caso se estenda a outros níveis

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de governo, a empresas públicas e ao setorprivado, perde-se no quesito autonomia(Cukierman et al., 1992; Grilli et al., 1991).

Contudo, a diversidade de atribuições earcabouços legais entre Bancos Centrais nãodá conta das variações na sua autoridadede facto. Tal fica evidente, por exemplo,quando se constata que mesmo sem alte-rações no indicador de independência legaldo Banco Central brasileiro entre 1964 e1989, tenha caído tanto a sua autoridadede facto a partir de 1967 (Maxfield, 1997).Há, pois, que também ter em conta indica-dores informais. Nessa linha, Cukierman eWebb (1995) desenvolvem um índice devulnerabilidade política dos Bancos Centraisque indica que parcela das transições polí-ticas implica a troca da direção da autori-dade monetária em um prazo de até seismeses. Quanto maior aquela, maior a vulne-rabilidade.

Em termos teóricos, um primeiro argu-mento a favor da maior autonomia destacaos prazos para que se manifestem os efei-tos da política monetária, primeiro sobre ocrescimento da renda ou produto e, depois,sobre os níveis de inflação. A não visualizaçãodos benefícios de médio e longo prazo dapolítica, aliada à evidência de seus custosmais imediatos — ainda que passageiros— sobre os níveis de renda e emprego, poriaem risco a sua continuidade. Um risco maiorem conjunturas eleitorais, quando mais im-portaria angariar suporte político já (Blinder,1999). Além disso, a desinflação tende a im-plicar custos concentrados e benefícios difu-sos, propensos a angariar apoios menosdecididos e oposição mais acirrada, tanto maisse considerada a sua incidência temporal.

Mas a maior autoridade dos Bancos Cen-trais não seria um bom antídoto apenas paraos excessos dos políticos: sem barreiras aouso eleitoral da política monetária, abre-senos mercados a possibilidade do ganhoespeculativo em um ambiente de incertezas.Fugas de capitais, desvalorização cambiale mais inflação são os problemas que seevitam se esvaziadas essas incertezas porum Banco Central comprometido com a esta-bilidade dos preços. Afinal, a sua correção

após as eleições sempre impõe custos sobreos investimentos, a renda real e o emprego,como no Brasil em 2002-2003, quando daeleição e do primeiro ano do governo Lula.Assim, um guardião da moeda com auto-nomia ou independência também seria umbom antídoto para os excessos dos merca-dos!

Além disso, destaque-se o argumentosobre o viés inflacionário dos governos quese preocupam tanto com a estabilidade depreços quanto com a taxa de desemprego,do que resultaria um nível pretendido deemprego maior do que o que se considera asua taxa natural — aqui entendida como olimite a partir do qual mais emprego acarre-taria pressões inflacionárias. Essa discrepân-cia entre taxa natural e pretendida resultariado “peso morto” (custo social) da tributação(Barro; Gordon, 1983) ou da obtenção pelossindicatos de salários reais maiores do queos que permitiriam ajustar o mercado detrabalho, gerando desemprego excessivo(Cukierman, 1992, cap. 3). A busca de suadiminuição pela expansão monetária é quedaria viés inflacionário à política econômica.

Sabe-se, contudo, que só uma “inflaçãoinesperada” teria impacto sobre o nível doemprego ou da renda real, e uma vez reconhe-cido que os agentes econômicos têm amplacapacidade de prever as ações do governo,daquela expansão monetária apenas resul-taria, ao fim e ao cabo, a manutenção dataxa natural de desemprego combinada comum mais alto nível de preços.

Porém, a expansão monetária motivadapela busca de alta do nível de emprego seriamais típica de países desenvolvidos. Nosoutros, em especial pela pequena dimensãode seus mercados de capitais, seria outra arazão mais provável das expansões mone-tárias e do viés inflacionário dos governos: amonetização de seus déficits, dada a impos-sibilidade de se financiá-los a custos razoá-veis, sem uma alta concomitante e significativados juros (Cukierman, 2006, p. 4).

Também se tem boa evidência empíricade suporte à defesa da autoridade dosBancos Centrais. Alesina e Summers (1993);

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Cukierman et al. (1992); Eijffinger e Hann(1996) e Fischer (1994) deixam claro quepaíses desenvolvidos com Bancos Centraiscom maior independência de jure convivemcom índices médios de inflação mais baixos,sendo que em Alesina e Summers (1993)também se demonstra que tal não implicamenores índices de crescimento econômico.Aliás, a evidência de que a ação dos BancosCentrais não tem impacto sobre o crescimentoreal da economia é também corroborada porGrilli et al. (1991) e Cukierman et al. (1993).

Porém, a correlação negativa entre a auto-nomia legal do Banco Central e a inflaçãonão prevalecia quando também considera-dos os países em desenvolvimento. Nesses,contudo, é mais precária a justaposição en-tre indicadores de facto e de jure da autono-mia dos Bancos Centrais, o que sugeriu duasqualificações à abordagem inicial: por umlado ter-se em conta indicadores “informais”relevantes e, por outro, a eventual constitucio-nalização do status da autoridade monetá-ria, de modo a reduzir-se a distância entresuas dimensões legal e real.

Quando indicadores como a rotatividadedas direções dos Bancos Centrais e a suavulnerabilidade política foram considerados,também para os países em desenvolvi-mento reapareceu a correlação negativa entreinflação e autonomia da autoridade mone-tária (Cukierman, 1992, cap. 19; Cukiermanet al., 1992; Cukierman; Webb, 1995).

Na linha da segunda qualificação acimareferida, Gutiérrez (2003)

considera no índice de independência asmedidas constitucionais com relação aosobjetivos (...), formulação da política, autono-mia econômica e política e prestação de con-tas da autoridade monetária, sob a alegaçãode que para países em desenvolvimento,mudanças constitucionais refletem melhora independência de fato do Banco Centraldo que leis ordinárias (Maziero; Werlang,2004, p. 330).

Isso feito, também para o conjunto con-siderado de países da América Latina e doCaribe obtém-se a correlação negativa entre

inflação e independência da autoridade mo-netária, nesses casos garantida por provi-são constitucional (Gutiérrez, 2003, p.1 e 24).

No que respeita à relação entre status doBanco Central e crescimento econômico nospaíses em desenvolvimento, Cukierman etal. (1993) apontam duas evidências: se consi-derada a autonomia legal (infraconstitucional),não se verifica qualquer relação, como nocaso dos países desenvolvidos; se a variávelé a autonomia de facto do Banco Central,constata-se que a vulnerabilidade da suadireção bem como a freqüência da sua subs-tituição estão negativamente associadas aocrescimento da renda per capita. Ou seja,quanto maiores aquelas — e menor a auto-nomia da autoridade monetária —, menor ocrescimento per capita. Mais ainda, em algunscasos verifica-se também um impacto nega-tivo similar sobre a parcela do investimentono total do PIB.

Destaque-se que tais resultados esvaziamuma das mais eloqüentes e pouco funda-mentadas críticas à autonomia dos BancosCentrais, a de que esta comprometeria o cres-cimento econômico, por seu foco na estabi-lidade de preços. Ou não há evidência nessesentido ou existe evidência contrária, aindaque não generalizável para todos os paísese variáveis consideradas. Uma constataçãoalinhada com o consenso macroeconômicoa respeito de que “a política monetária nãoafeta, no longo prazo, as variáveis reais daeconomia, como o crescimento do produtoe da renda”, que devem ser “(...) o objetivoda política econômica como um todo. (...) Amaior contribuição da política monetária aosobjetivos de crescimento sustentado delongo prazo é a estabilidade do nível depreços da economia” (Maziero; Werlang,1994, p. 326).

Outra crítica usual ao aumento da autori-dade dos Bancos Centrais destaca o seucaráter supostamente antidemocrático.Mas, ainda quando da referência ao propó-sito de independência — que implicaria darà autoridade monetária inclusive a definiçãodos seus objetivos —, cabe reconhecer quesua adoção em qualquer democracia teria

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de cumprir todo um rito prévio de legitimaçãopolítica no Executivo e no Legislativo, porrepresentantes eleitos. Em se tratando deautonomia do Banco Central, permanece aaprovação prévia por políticos eleitos e aindase restringe a sua autoridade à mera escolhados instrumentos para perseguir objetivosdefinidos por governos também eleitos.

Além disso, há que considerar a farturade mecanismos de informação e prestaçãode contas típica da atuação da autoridademonetária independente ou autônoma nasmodernas democracias. Em especial coma difusão do uso das chamadas “metas deinflação”, a partir dos anos 90, criou-se umindicador facilmente monitorável do desem-penho dos Bancos Centrais. No caso brasi-leiro, por exemplo, a grande disponibilidadede informações e a periodicidade da presta-ção de contas sobre a atuação do BancoCentral é uma exceção em um universo degrande opacidade decisória. Assim, cabereconhecer na autonomia do Banco Central areal possibilidade de representação priori-tária das preferências mais permanentes dasociedade sobre o controle da inflação frenteàs dos governos, eventualmente mais orien-tadas pela busca do sucesso eleitoral decurto prazo.

Por fim, cabe lembrar as palavras de Lijphart(2003):

Dar poder independente aos Bancos Centraisé também outra forma de dividir o poder, e seenquadra no grupo de características da di-visão do poder (a segunda dimensão) domodelo consensual de democracia. OsBancos Centrais subservientes ao Executivose enquadram na lógica do poder concen-trado da democracia majoritária (p. 265, 266).

Por tudo isso, também a crítica ao carátersupostamente antidemocrático da maiorautonomia dos Bancos Centrais deve servista com reservas.

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Independência doBanco CentralIncompatibilidadeentre Teoria e Prática

Frederico G. Jayme Jr.Marco Aurélio Crocco

A teoria

O tema da independência do BancoCentral ganhou corpo no final dos anos 70,após a publicação de um importante artigosobre a questão da inabilidade dos policymakers em lidar com o problema do trade-off entre inflação e desemprego (Kydland;Prescott, 1977). Conhecido como o problemade inconsistência dinâmica, o argumentocentral é o de que se a inflação esperada ébaixa, de modo que o custo marginal de umainflação adicional seja baixo, os policy makersestarão estimulados a produzir políticas queaumentem o produto temporariamente alémde seu nível de equilíbrio de longo prazo. Oproblema é que o público conhece esseincentivo e não irá esperar inflação mais baixa.O resultado é que haverá mais inflação semcrescimento do produto. A solução para essainconsistência dinâmica é a delegação dapolítica monetária para alguém ou algumainstituição extragoverno, no caso, um currencyboard ou um Banco Central Independente.Posteriormente, Barro e Gordon (1983) sofis-ticaram o modelo ao incluir o problema dacredibilidade da política monetária.

Do ponto de vista teórico, um primeiroaspecto que merece uma análise mais de-talhada é a hipótese da existência de umataxa natural de desemprego para a qual aeconomia tende no longo prazo. Admitir essahipótese significa admitir que os diversosmercados — de bens, serviços, crédito ede trabalho — se ajustam automaticamente,

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fazendo com que a economia caminhe paraseu ponto de equilíbrio natural.

Um segundo pressuposto teórico estárelacionado ao comportamento dos agenteseconômicos, que formariam suas previsõesacerca do futuro de acordo com a teoria dasexpectativas racionais. Desse modo, qual-quer atitude discricionária do Banco Centralproduz “ruídos” que podem levar os agen-tes formadores de preços a errar. Os errosdiminuem a credibilidade do Banco Central,ao mesmo tempo em que produzem efeitossobre o nível de produto e emprego somenteno curto prazo. No longo prazo, no entanto, amoeda é neutra, ou seja, não é capaz deafetar os níveis de emprego e renda, massomente o nível de preços. Esse argumento,portanto, justifica eventuais políticas de jurosaltos porque a taxa de juros, que é a contra-partida de uma política monetária, deve serviraos objetivos de manter a inflação baixa. Osefeitos de curto prazo sobre emprego e renda,no entanto, tendem a se dissipar no longoprazo. Este é um ponto central na argumen-tação e que será retomado adiante.

Segundo Kydland e Prescott (1977), sen-do a moeda neutra no longo prazo, a políticamonetária deve se submeter ao objetivo pre-cípuo de garantir inflação constante e baixa.Com efeito, a inabilidade dos formuladoresde política econômica em se comprometeremcom uma política econômica de inflaçãobaixa conduzirá a um crescimento excessivoda inflação. Segundo esses autores, os polí-ticos são incentivados, sistematicamente, aproduzir mais inflação através de uma polí-tica monetária mais expansiva (com taxasde juros abaixo da taxa de equilíbrio). Emgeral, tendem a fazer isso principalmente emperíodos pré-eleitorais. Não obstante possamter sucesso em algum momento, como oaumento do emprego e da renda, porque osagentes não esperariam esta atitude do go-verno, este sucesso ocorre apenas no curtoprazo. Como visto, no longo prazo, a políticamonetária expansionista produziria apenasaumento de preços sem efeito sobre em-prego e renda. À medida que o governo vairepetindo esta estratégia, e os agentes não

cometem erros sistemáticos, o Banco Centralperde credibilidade, e a tentativa de aumentaremprego e renda via política monetária nãotem nenhum efeito, causando apenas au-mento da inflação. Essa é a essência do argu-mento. A reputação e a credibilidade parase manter uma política monetária crível, eque não produza viés inflacionário, é centralpara o argumento aqui apresentado (Barro;Gordon, 1983).

Para lidar com o problema da reputação eda credibilidade dos formuladores de polí-tica, três seriam as possibilidades, quaissejam, regra fixa de política monetária;Currency Board (o Banco Central se com-promete a manter o câmbio fixo, e a políticamonetária é toda ela dependente do volumede reservas internacionais disponíveis) ouBanco Central Independente. Neste caso, opresidente do Banco Central deve ser esco-lhido entre pessoas de reconhecida capaci-dade técnica e que seja avesso à inflação. Asuposição implícita é que este critério deescolha seja dado, ou seja, não se discutequem e o porquê dessa escolha.

Segundo Cukierman (1992), ao apresentaros argumentos teóricos que sustentam atese de independência, um Banco Centralque esteja comprometido com a inflaçãobaixa acabaria atuando positivamente sobreos agentes privados, via credibilidade e repu-tação. Esses efeitos positivos na performanceeconômica ocorreriam devido ao fato de queestando livre de pressões políticas, o BancoCentral pode promover a estabilidade, prin-cipalmente devido ao isolamento da políticamonetária dos ciclos políticos eleitorais. Vejaque aqui também está implícita a suposição,com limitados resultados empíricos, de quebaixa inflação garante maior estabilidade docrescimento.

Importante observar que toda a construçãoteórica acima apresentada pressupõe, implí-cita ou explicitamente, que a interferência daautoridade monetária para aumentar o nívelde produto e emprego é necessariamentedeletéria no curto ou no longo prazos. Maisdo que isso, pressupõe um sistema de domi-nância monetária, ou seja, que a políticafiscal é dependente da política monetária.

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Neste caso, a política fiscal expansionistagera, cedo ou tarde, a necessidade deaumentar a oferta monetária para financiargastos, ou mesmo para monetizar a dívida.O corolário do fundamento teórico que dásustentação à tese da Independência (bemcomo da autonomia) do Banco Central é queo Estado deve evitar intervir na atividade eco-nômica, principalmente através da políticamonetária, pois não terá qualquer efeitosobre produto e renda. As evidências empí-ricas não demonstram que a independênciado Banco Central seja a panacéia para seobter crescimento virtuoso via mercado.Essas evidências são ainda mais problemá-ticas em países em desenvolvimento, que— em sua maioria — sofrem de restriçõesestruturais de divisas. De fato, países quepossuem Bancos Centrais mais ou menosindependentes, EUA e o Banco CentralEuropeu são os exemplos mais típicos, pos-suem moedas conversíveis e com liquidezinternacional.

Críticas à proposta de BancoCentral independente

Sem esgotar as diversas visões críticassobre independência do Banco Central, po-demos levantar dois grupos, quais sejam:crítica aos pressupostos teóricos e crítica aoconceito de credibilidade e insuficiência deevidências empíricas.

Pressupostos teóricos

O primeiro aspecto teórico a ser anali-sado é a suposição da existência de umataxa natural de desemprego. Vários questio-namentos podem ser feitos a esta hipótese.Em primeiro lugar, estão os fatos empíricos.Na história do capitalismo são raros — paranão dizer inexistentes — os períodos em quea economia operou na sua respectiva taxanatural de desemprego.

1 Em segundo lugar,

há a discussão sobre em que medida osdiversos mercados funcionam da formasupracitada. Limitando-se apenas ao caso

do mercado de trabalho, é amplamenteconhecido o fato de que não existe um me-canismo automático de ajuste que reduza,ou aumente, os salários reais de acordo coma oferta e procura por mão-de-obra. É possívelobservar em vários países, em diversos mo-mentos, a existência de trabalhadores desem-pregados que estão dispostos a trabalharpor salários mais baixos do que os vigentes.Estão desempregados não porque existauma suposta falha de mercado, mas simporque os empresários não estão dispostosa contratar, mesmo com salários rebaixados.Não o fazem porque contratam em funçãode sua expectativa de demanda de seusprodutos e não em função do custo de suaprodução. O importante aqui é ter claro quetrabalhadores e empresários não se confron-tam com a mesma correlação de forças. Emúltima instância, quem define quando equanto contratar são os empresários.

Isto nos leva ao questionamento de umsegundo aspecto do ponto de vista teórico:o de que a política monetária só afetaria asvariáveis monetárias no longo prazo. A acei-tação dessa hipótese implica utilizar a políticamonetária, e principalmente a taxa de juros,com o único objetivo de controlar a inflação.Além disso, em conjunção com a primeirahipótese, isto supõe admitir que a utilizaçãoda política monetária para tentar alterar onível de atividade econômica seria inócua,uma vez que a economia sempre tenderia avoltar a operar no nível de sua taxa naturalde desemprego, apenas agora com níveisde inflação mais elevados.

Se entendermos a economia capitalistacomo sendo aquela em que capitalistasbuscam preservar, e aumentar, sua riquezaatravés da posse de ativos diversos, comobens de capital, ativos financeiros, ativos fixose, até mesmo, a posse de moeda, a políticamonetária teria o poder de alterar a rentabili-dade de diversos ativos. Dependendo doresultado dessa política, expresso na renta-bilidade comparada da posse de cada umdestes ativos, é possível existir situações quefaçam com que os capitalistas prefiramvalorizar sua riqueza em ativos cuja ampliaçãode sua oferta não implique na geração de

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emprego, como é o caso dos ativos finan-ceiros. Ou seja, a política monetária tem opoder de permitir que a valorização do capitalocorra no chamado circuito financeiro e nãono circuito produtivo (produção de bens eserviços). Além disso, não existiria meca-nismo algum em uma sociedade capitalistaque garantisse, naturalmente, a alteraçãodesse quadro. A política monetária poderia,indefinidamente, possibilitar aos capitalistasa ampliação de sua riqueza demandandoativos cuja oferta não implicasse na contra-tação de mão-de-obra.

Aceitar que a política monetária possaafetar permanentemente o nível de atividadeeconômica implica também aceitar que énecessária uma coordenação entre esta e apolítica fiscal. A não coordenação pode deter-minar o surgimento de duas situações alta-mente prejudiciais ao desempenho daeconomia. Em primeiro lugar, poderia surgiruma situação de conflito entre a política mo-netária e a fiscal. Por exemplo, poderia ocorrerde o Executivo estar conduzindo uma políticafiscal expansionista, enquanto, no mesmomomento, o Banco Central estaria implemen-tando uma política monetária contracionista.

2

Finalmente, do ponto de vista teórico,faltaria discutir os determinantes da inflação.A proposta do BCI pressupõe que a inflaçãoseja um fenômeno puramente monetário,onde a quantidade de moeda na economiadeterminaria o nível geral de preços. Essahipótese é questionável. Aceitando essequestionamento, a explicação sobre os de-terminantes da inflação deve ser buscadaem outra matriz teórica. Entre as diversasexplicações para este fenômeno se destacaaquela que trata a inflação como resultadode um conflito distributivo, principalmenteentre capital e trabalho, sobre o excedenteproduzido na sociedade.

A fragilidade doconceito de credibilidade

Um dos argumentos fundamentais paraa tese de independência é a suposta credi-bilidade que esta decisão daria à política

monetária, facilitando, assim, o combate àinflação. Sem dúvida, uma política governa-mental confiável, qualquer que seja ela, faci-lita a sua implementação e a obtenção deseus objetivos. No entanto, o que deve serdiscutido é como esta credibilidade é obtidae o que ela significa. Existem vários proble-mas com esta interpretação que merecemuma análise mais detalhada.

Inicialmente é necessário reconhecer queo conceito de política econômica que tenhacredibilidade incorre em um problema decircularidade. Uma política para ter credibili-dade deve atingir seus objetivos. No entanto,segundo os adeptos do Banco Central Inde-pendente, para atingir seus objetivos, a auto-ridade monetária deve possuir credibilidade.Ou seja, credibilidade é condição e resultadode uma política monetária. A necessidadede se implementar políticas confiáveis paraa obtenção dos resultados desejados fazcom que políticas alternativas à dominantesejam excluídas a priori. A possibilidade dese testar outras políticas é descartada pordefinição. Ou seja, a própria reação de setoresda sociedade faz com que alternativas nãopossam ter o tempo necessário para atingirseus objetivos, não conseguindo, assim, acredibilidade necessária para se sustentaremno decorrer do tempo.

O comportamento de setores da socie-dade anteriormente descrito nos leva ao se-gundo ponto a ser destacado, vale dizer, acredibilidade de uma política econômica édeterminada por fatores endógenos à socie-dade onde é implementada, e não determi-nada, exogenamente, por um manual deeconomia qualquer. No atual mundo de libe-ralização financeira e globalização, a credibi-lidade de políticas econômicas é asseguradapela mobilização de poderes políticos eeconômicos. Como salienta Grabel (1998),programas econômicos não neoliberais setornam endogenamente não confiáveis umavez que aqueles governos que os põem emprática, normalmente, são incapazes deimpedir que o capital, tanto doméstico, quantointernacional, se engaje em atividades queminem tais programas, como, por exemplo,

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fuga de capital, suspensão de linhas de cré-dito ou ajudas financeiras. Uma ressalva éimportante: não se está afirmando aqui queapenas as políticas neoliberais possam tersucesso no atual contexto, mas, sim, que ocritério de credibilidade não é econômico,mas político. (Blinder, 1997).

Notas

1 A dificuldade em encontrar qual seria a taxa naturalde desemprego motivou pesquisadores a utilizar umconceito mais “moderno” de NAIRU (Non acceleratinginflationary rate of unemployment), que consiste nataxa de desemprego compatível com a não aceleraçãoda inflação.

2 Esse é um problema recorrente na relação entre oBanco Central e o Tesouro Nacional. No caso doBrasil, a dificuldade em coordenar a política fiscal e apolítica monetária é visível. Mas mesmo Alan Blinder,um observador acima de qualquer suspeita comrelação à sua vinculação teórica, aponta que um BancoCentral independente não conseguiria lograr êxitoem sua política monetária sem a coordenação com oTesouro. Neste caso, sua proposta seria uma políticafiscal sempre equilibrada intertemporalmente, o que,em última instância, impediria o governo de fazerpolítica econômica no curto prazo (Blinder, 1997).

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O Presidencialismo deCoalizão Precisa SerMudado?

ParteIII

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Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:30222

Governos de Coalizãono Sistema Presidencial

O Caso do Brasil sob a Égideda Constituição de 1988

Fabiano Santos

1. Introdução

A reforma política no Brasil se tornou uma espécie de superstição— modificações, de preferência radicais, são vistas como capazesde grandes e revolucionárias transformações na cultura cívica decandidatos e eleitores. Recentemente, volta às colunas dos jornaise discursos de políticos a questão do sistema de governo. Nãobasta a população ter se pronunciado duas vezes e com amplamaioria a favor do atual modelo — colocam-se os presidencialistas,mais uma vez, na defensiva. Ora, qual é a grande diferença entreos dois sistemas? De imediato, é importante assinalar aquilo quenão os distingue: estudos recentes e rigorosos sobre o assunto,bem como, atenta observação da história recente dos países de-mocráticos comprova que não existem vantagens de um sistemasobre o outro quanto aos quesitos transparência e honestidade.Ademais, é também verdade que a suposta superioridade do parla-mentarismo, no que concerne a estabilidade do regime, foi contes-tada de maneira vigorosa pelas análises do cientista político JoséAntonio Cheibub, da Universidade de Yale (2005): a aparente insta-bilidade dos regimes presidenciais não passa de uma correlaçãoespúria, ilusão alimentada pelo fato de serem os países presiden-cialistas, em sua maioria, membros do continente sul-americano enações vítimas de ditaduras militares, estas sim, as nações her-deiras de ditaduras militares, parlamentaristas ou presidencialistas,mais propensas a enfrentar crises e retrocessos em sua trajetóriade redemocratização.

Mas, então, a pergunta retorna: qual a diferença entre os siste-mas de governo? Vale a pena, ainda, explorar aquilo que, emboraapareça como diferença, não distingue os dois sistemas em suaessência. Diz-se que os sistemas parlamentares garantem a emer-gência de governos majoritários, ao passo que os presidenciaispermitiriam a formação de governos minoritários. Nada mais longeda verdade — em torno de 40% dos governos formados nos paísesparlamentaristas da Europa Ocidental do pós-guerra não eram com-postos por partidos que controlavam a maioria das cadeiras no

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Legislativo.1 Em uma palavra, a incidência de

governos de minoria é tão comum no parla-mentarismo, quanto no presidencialismo.Argumenta-se, além disso, que os sistemaspresidenciais não geram incentivos para aformação de governos de coalizão, o que,mais uma vez, longe está de corresponderaos fatos da vida. Só para ficarmos emnosso continente, desde a última onda deredemocratização, o modelo institucionalpor excelência na América do Sul é o presi-dencialismo de coalizão, experiência rica naqual se observam exemplos de sólida esta-bilidade com a Concertación no Chile, convi-vendo com momentos fugazes e turbulentos,como foi o caso, inédito na Argentina, degoverno de coalizão com os radicais e aFREPASO.

Voltemos, então, ao tema das diferenças.Uma pergunta talvez elucide a dúvida fun-damental: Como é possível a formação degovernos de minoria em sistemas parlamen-taristas, se a confiança da maioria do Parla-mento é necessária para a sustentação dogoverno? A explicação é simples: ter a con-fiança do Parlamento significa basicamenteexistir uma maioria partidária que pelo me-nos tolera o governo. Ora, tolerar um gover-no não é o mesmo que dele participar.Portanto, freqüentemente, governos se for-mam sem que do gabinete façam parte par-tidos cuja soma das bancadas alcance amaioria das cadeiras. É assim a prática maiscomum na Escandinávia, em algumas oca-siões na França, na Espanha e em vários ou-tros países da Europa. Contudo, quando umaoposição não tolera o governo, derrotando-oem algum ponto importante de sua agendaou, mais explicitamente, votando uma mo-ção de desconfiança, aí, sim, novas eleiçõessão convocadas ou nova coalizão de gover-no se forma — e é aqui que reside diferençafundamental entre um e outro sistema.

Quando em um sistema parlamentar amaioria legislativa é formada por partidosque fazem oposição, o Parlamento pode vo-tar uma moção de desconfiança e haver aconvocação de novas eleições, ao passo queesta possibilidade não existe no sistema pre-sidencial, isto é, o governo pode sobreviver,

mesmo enfrentando uma oposição majori-tária no Legislativo — outra não é a experiên-cia predominante nos EUA do pós-guerra,os chamados governos divididos, nos quaisa maioria que controla o Congresso não éformada pelo partido ao qual é filiada e peloqual se elegeu o presidente. Do ponto devista da condução do processo político e denegociação da agenda, governos divididossão certamente marcados por idas e vindas,negociações e, às vezes, conflitos abertos,todavia, isto em nada autoriza a conclusãosegundo a qual as chances de estabiliza-ção do processo democrático, de sucessoeconômico dos governos, da capacidademaior ou menor de aprovar agendas sejammaiores no parlamentarismo. De novo, to-dos os fenômenos que tornam o processogovernativo mais lento e negociado, como,por exemplo, governos de minoria, de coali-zão, ou os dois, ocorrem com a mesma fre-qüência num e noutro sistema. O que osdiferencia, sim, é que no parlamentarismo oExecutivo possui a prerrogativa de dissolvero Parlamento quando lhe parecer de conve-niência política, na expectativa de aumentarseu poder de barganha no Legislativo. Ade-mais, nesse sistema, uma maioria parlamen-tar tem o poder de derrubar os mandatáriosdo Executivo, nas ocasiões em que a mes-ma decide não tolerar a situação. No presi-dencialismo, por seu turno, a única formade interrupção de mandatos parlamentarese do chefe do Executivo, guardados casosextremos de má conduta que levam ao im-pedimento ou à cassação, é o velho e bomvoto popular.

A partir destas considerações, toda umaagenda de pesquisa surge em torno dasexperiências presidencialistas com foco nadinâmica de montagem e manutenção deapoios no Legislativo ao chefe do Executivo.Basicamente, duas práticas institucionais nocontexto desse sistema de governo têm cha-mado a atenção dos analistas: os governosdivididos e o presidencialismo de coalizão.Neste texto, a ênfase recairá sobre a segun-da prática institucional.

1 O estudo clássico sobre o tema é de STROM (1990).

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225Governos de Coalizão no Sistema Presidencial ... | Fabiano Santos

2. Definição e prática dopresidencialismo de coalizãona América do Sul

O que é o presidencialismo de coalizão?O termo, que aparece no ano de 1988 emartigo clássico de Sérgio Abranches (1988),descreve o modelo institucional típico daAmérica do Sul: o presidente constrói basede apoio concedendo postos ministeriais amembros dos partidos com representaçãono Congresso, e estes, em troca, fornecemos votos necessários para aprovar sua agen-da no Legislativo.

Assim definido, de fato, a prática do pre-sidencialismo de coalizão é bastante difun-dida em nosso continente. Evidênciascoletadas e analisadas por Anastasia, Meloe Santos (2004) revelam que, durante a dé-cada de 90, apenas a Argentina não montougovernos desse tipo. Bolívia, Brasil e Chile,por outro lado, somente conheceram gover-nos com apoio multipartidário no Legislati-vo. Colômbia e Uruguai também podem sercontabilizados como países com prática pre-dominante de gabinetes de coalizão. A inci-dência de governos minoritários não édesprezível: nada menos do que 42 gabi-netes contaram com partidos cujo númerode cadeiras ficou abaixo dos 50% da câmarabaixa. Destes, 19 foram gabinetes uniparti-dários (além da Argentina, com a participaçãoda Colômbia, Equador, Peru e Uruguai).Equador e Venezuela sempre foram gover-nados por presidentes com apoio minori-tário no Parlamento.

Alguns países, como Brasil, Bolívia, Chile,Colômbia e Uruguai praticam de forma bas-tante consolidada a política de montagemde governos majoritários ou supermajoritáriosde coalizão. Nesse aspecto, as experiênciassão díspares: enquanto o Brasil navega prefe-rencialmente entre coalizões com maioriasamplas e alguns poucos experimentos mino-ritários (caso isolado do governo Collor), ospresidentes chilenos não montaram governosminoritários, oscilando entre maioria estritae maiorias amplas, sendo também rara estaexperiência na Bolívia. De outra forma, en-quanto na Colômbia prepondera o formato

quase consensual, no Uruguai a prática estábem distribuída entre os diversos formatos.Ainda segundo Anastasia, Melo e Santos(2004), as condições estruturais para umarelação conflituosa entre presidente e Assem-bléia estão dadas em poucos casos, maisespecificamente, Equador e Peru — nosquais existem presidentes com escassoapoio no Legislativo, mas dotados de consi-deráveis poderes de agenda, como, porexemplo, o poder de decreto. Em menormedida, algo semelhante aconteceu noBrasil de 1991 a 1992, período durante o qualo país foi governado de maneira claramenteapartidária, o que contribuiu decisivamentepara o impedimento do presidente Collor.

Nas próximas seções, o objetivo será,num primeiro momento, o de examinar operfil das coalizões partidárias de apoio aoPresidente no Brasil, assim como os meca-nismos auxiliares de governabilidade cons-tantes da Carta de 1988. Num segundomomento, detectar as conseqüências dopresidencialismo de coalizão no Brasil noque concerne ao comportamento dos par-tidos no Legislativo. Cumpre notar ainda queo intuito da análise é, basicamente, o dedescrever processos, apoiada em dadosagregados e na literatura contemporâneasobre relações entre Executivo e Legislati-vo em nosso país.

3. Coalizões parlamentares ea montagem de ministérios nopresidencialismo brasileiro

Vários estudiosos criticam os efeitos dacombinação entre presidencialismo e multi-partidarismo sobre a governabilidade. Se-gundo Mainwaring, o sistema partidáriobrasileiro — devido ao alto grau de fragmen-tação e indisciplina — não consegue com-pensar os poderes institucionais conferidosao presidente se este tenta estabelecer umabase estável de apoio: “De forma resumida,a combinação de presidencialismo, sistemamultipartidário fragmentado e federalismorobusto é, na maioria das vezes, difícil.”(1997, p. 56). Outra predição corrente na

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literatura é que o parlamentarismo forneceria forte incentivo à for-mação de coalizões majoritárias (somada ao fato de que os partidosrepresentados nos gabinetes agiriam de forma disciplinada no ple-nário), enquanto que nos regimes de separação de poderes o resul-tado mais provável seria a formação de bases de apoio instáveis edependentes da formação de coalizões ad hoc.

Pois bem, no caso brasileiro é possível demonstrar que nosdois períodos democráticos os governos se empenharam em maiorou menor grau em formar ministérios levando em conta a força eo peso relativo dos partidos no Parlamento (Abranches, 1988;Meneguello, 1998; Amorim Neto, 2000). Apesar de não dispor daameaça de dissolução do gabinete tal como no parlamentarismo,os presidentes podem promover mudanças ministeriais pararecompor suas bases de apoio.

2

2 Segundo MENEGUELLO (1998) a necessidade de adequar a formaçãoministerial à heterogeneidade de interesses conduz os governos a modificarem,com certa freqüência, a estrutura organizacional dos órgãos ministeriais —aumentando o seu número, desmembrando ministérios, fato que visa muitomais à pressão da diversidade de interesses do que propriamente à critériostécnicos.

3 AMORIM NETO (2000) usa o indicador taxa de coalescência para indicar odesvio de proporcionalidade da relação entre postos ministeriais e o tamanhodas diversas bancadas na Câmara. O índice varia de 0 — indicando nenhumacorrespondência entre as variáveis — a 1, indicando uma alocaçãoperfeitamente proporcional. Ver a coluna taxa de coalescência da Tabela 4. Aúltima coluna da tabela indica a porcentagem de ministérios em que osocupantes não estão filiados a nenhum partido político.

Tabela 1 – Gabinetes presidenciais

Sarney I 03/85 - 02/86 PMDB-PFL-PTB-PDS 0,66 93,5 18

Sarney II 02/86 - 01/89 PMDB-PFL 0,64 69,3 14

Sarney III 01/89 - 03/90 PMDB-PFL 0,41 53,3 35

Collor I 03/90 - 10/90 PMDB-PFL-PRN 0,40 50,3 60

Collor II 10/90 - 01/92 PFL-PDS-PRN 0,40 29,6 60

Collor III 01/92 - 04/92 PFL-PDS 0,30 26,2 60

Collor IV 04/92 - 10/92 PFL-PDS-PSDB-PTB-PL 0,46 43,7 45

Itamar I 10/92 - 01/93 PMDB-PFL-PSDB-PTB-PDT-PSB (s/partido) 0,62 61,6 20

Itamar II 01/93 - 05/93 PMDB-PFL-PSDB-PTB-PDT-PSB-PT 0,59 67,4 38

Itamar III 05/93 - 09/93 PMDB-PFL-PSDB-PTB -PSB 0,51 53,3 38

Itamar IV 09/93 - 01/94 PMDB-PFL-PSDB-PTB -PP 0,48 58,6 52

Itamar V 01/94 - 01/95 PMDB-PFL-PSDB -PP 0,22 55,3 76

FHC I (1) 01/95 - 04/96 PSDB-PMDB-PFL-PTB 0,57 56,3 32

FHC I (2) 04/96 - 12/98 PSDB-PMDB-PFL-PTB-PPB-PPS 0,60 76,6 32

FHC II (1) 01/99 - 03/99 PSDB-PMDB-PFL-PTB-PPB-PPS 0,70 74,3 23,8

FHC II (2) 03/99 - 10/01 PSDB-PMDB-PFL-PPB-PPS 0,59 68,2 37,5

FHC II (3) 10/01 - 03/02 PSDB-PMDB-PFL-PPB 0,68 62,0 31,6

FHC II (4) 03/02 - 12/02 PSDB-PMDB-PPB 0,37 45,1 63,2

Lula I 01/03 - 12/03 PT-PSB-PDT-PPS-PCdoB-PV-PL-PTB 0,64 49,3 17,2

Fonte: Amorim Neto (2004).

Taxa decoalescência

3

Tamanho (%)nominal dogabinete - CD

Presidentee Gabinete

Duraçãodo governo

Partidos representadosno ministério

% ministrossem filiaçãopartidária

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227Governos de Coalizão no Sistema Presidencial ... | Fabiano Santos

A Tabela 1 fornece dados sobre as coali-zões formadas entre 1985 e 2003. Nela po-demos observar o empenho da maioria dosgovernos em formar gabinetes com forçaparlamentar suficiente para a futura apro-vação de suas agendas — tal fato pode sernotado na percentagem total de cadeirascontroladas (nominal) pelos partidos perten-centes à coalizão governamental. No Senadoestas porcentagens são mais significativas;para se ter uma idéia, nas formações minis-teriais de início de mandato as coalizõesgovernamentais no governo Sarney, Collor eFHC detinham o controle de cerca de 81,7%,58,1% e 68,6% das cadeiras respectiva-mente.

Mesmo o governo Collor que tentou seafastar da referida estratégia, com sua pos-tura antipartidária, num momento seguintefoi obrigado a se render a ela, e isto podeser observado pela sua tentativa final de for-mar um gabinete mais inclusivo. Tanto o go-verno FHC quanto o governo Lula seempenharam em tornar correspondentes adistribuição de ministérios com o peso dospartidos na coalizão, embora o tamanho dabancada parlamentar de apoio montada porFHC fosse bem superior. O inédito governode esquerda eleito em 2002 detinha 49,5%das cadeiras na Câmara, mas já no início degoverno negociava a entrada do PMDB nacoalizão, o que aumentaria a bancada emmais 14,4%, quase alcançando o requerimentode 3/5 para mudanças no texto constitucional.A participação formal através da ocupação depastas ministeriais não se consumou, mas,mesmo assim, o governo contou com o apoio

do PMDB e do PP à agenda presidencial nosdois primeiros anos de governo.

Ademais, além dos critérios partidáriosos governos também se empenham em res-ponder à diversidade federativa (Abranches,1988; Meneguello, 1998). Tanto no meio jor-nalístico como no acadêmico são comunsas referências relativas à influência dos go-vernadores sobre as bancadas parlamenta-res na Câmara. Segundo Meneguello, no quetange a formação ministerial, “pode-se ob-servar que a composição partidária das co-alizões governamentais federais acompanhao controle partidário dos governos estaduaisno período” (Meneguello, 1998, p. 77). Ossubsistemas partidários regionais são, por-tanto, outro parâmetro relevante para a cons-trução de maiorias governativas. A regiãoSudeste tem sido de forma crescente, aolongo do período, a maior beneficiária noprocesso de formação ministerial — no go-verno FHC a região chegou a ocupar 67%dos ministérios — seguida em menor medi-da pela região Nordeste (Meneguello, 1998).Tal fato também deveria ser consideradorelevante para aqueles que insistem no de-bate sobre a desproporcionalidade represen-tativa dos estados e regiões no Parlamento.

No caso brasileiro evidencia-se, então,que quase todos os “gabinetes” comandamuma maioria nominal na Câmara; mas o quedizer dos níveis de disciplina partidária? Nasdiversas coalizões analisadas por AmorimNeto (2000) a disciplina partidária foi funçãoprincipalmente do grau de coalescência doministério e do desenrolar do mandato pre-sidencial e, dependendo do partido, da dis-tância ideológica em relação ao Executivo.

4

O resultado final indica que uma maior pro-porcionalidade entre o peso dos partidos noministério e sua contribuição em cadeiraspara a coalizão governamental no Legislati-vo tem efeitos positivos sobre a disciplinados partidos governantes, mas a disciplinadecresce durante o mandato presidencial.Além da distribuição de ministérios,

5 o pre-

sidente e os líderes partidários possuemprerrogativas em suas esferas de atuaçãoque induzem os parlamentares a coopera-rem. Este será o tema da próxima seção.

4 Há algumas premissas subjacentes às hipóteses que é bom esclarecer. Ahipótese principal — quanto maior o grau de coalescência, mais disciplinadoo comportamento dos partidos pertencentes à coalizão governante — implicamotivações office-seeking. No entanto, partidos também têm outrasmotivações: maximização de votos e/ou de políticas. A primeira é checadapela hipótese 2: à medida que avança o mandato, a disciplina diminui (devidoa considerações eleitorais futuras formam-se facções de oposição), e a outra,pela hipótese 3: quanto mais ideologicamente diversa a composição dacoalizão, mais baixa a disciplina.

5 “A escassa autonomia do Poder Legislativo na formulação de políticas públicastorna a participação no governo ainda mais importante para os parlamentaresinteressados em garantir retornos eleitorais. Sendo assim, o controle decargos fornece mecanismos que permitem cobrar disciplina partidária. Osparlamentares podem incorrer em custos, votando a favor de medidascontrárias aos seus interesses imediatos, em função dos ganhos que podemauferir como membros da coalizão de governo” (FIGUEIREDO; LIMONGI,1999, p. 38).

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228

4. Poderes de agendado Presidente

Na República de 46 o principal recursode poder disponível ao presidente era a utili-zação da patronagem num ambiente em queo Legislativo possuía importantes prerroga-tivas decisórias e, por isso, compartilhava aagenda com o Executivo (Santos, 1997).Comparativamente, a Constituição de 1988alterou drasticamente o equilíbrio entre ospoderes através de várias prerrogativas deagenda concedidas ao governo. Como pro-vam os indicadores — referentes à propor-ção de leis iniciadas e aprovadas na mesmaadministração — no período pré-64 o Exe-cutivo apresentava taxas de sucesso em tor-no de 30% e no período pós-88 esse índicese inverte. Mais impressionante ainda é agrande variação no primeiro período dos per-centuais entre diferentes governos (entre9,8% e 45%); enquanto que no período pós-88, ao contrário, observa-se uma maior es-tabilidade ou uma menor variação nas taxasde sucesso (entre 65,4%

6 e 72%); indican-

do que esses novos fatores institucionais têmexercido um importante peso, a despeito defatores circunstanciais e da variação do ta-manho dos partidos dos diversos presiden-tes (Figueiredo, 2000).

O período atual se diferencia tambémpelo maior grau de disciplina dos partidosque pertencem à coalizão de governo. Parteda explicação é encontrada no fato de aagenda ser quase toda originada no Execu-tivo e, geralmente, aprovada em regime deurgência o que a qualifica como uma agen-da imposta.

7 A grande diferença, entre os

dois períodos democráticos, é que a patro-nagem acompanhada de poder de agendafornece uma base mais segura de apoio

8

parlamentar do que o recurso isolado à pri-meira. Os atuais poderes de agenda do pre-sidente derivam do monopólio do Executivona iniciação de projetos (na área orçamen-tária e administrativa), no recurso a requeri-mentos de urgência e, principalmente, napossibilidade de emitir medidas provisóriascom vigência imediata a partir de sua publi-cação.

9

Figueiredo e Limongi (1999) fornecemevidências de que a taxa de aprovação delegislação em que o Executivo detém mono-pólio de iniciativa é altíssima — apenas qua-tro leis referentes a matérias orçamentárias(pedido de abertura de crédito) foram rejei-tadas em 10 anos na Câmara! Por sua vez, odireito de requerer urgência confere outrasvantagens estratégicas ao presidente e éaltamente correlacionada com as taxas deaprovação das leis, pois: 1) estipula prazospara apreciação da matéria, independente-mente da complexidade do assunto e dosinteresses envolvidos (a apreciação deve serfeita em 45 dias em cada uma das Câmaras;não havendo manifestação sobre a matériaela vai imediatamente para a ordem do dia);2) altera o fluxo Legislativo ordinário ao retirara matéria das comissões, onde vinham sen-do apreciadas, e remetê-las diretamente aoplenário; 3) quanto maior o número e o tempogasto para apreciar matérias oriundas doExecutivo, menor o tempo para a Câmaradiscutir e votar seus próprios projetos. Por-tanto, o requerimento de urgência permite aintervenção na agenda do plenário, indepen-dentemente da vontade dos parlamentares(já que o mesmo não é submetido à votação),contrariamente ao caso norte-americano emque o Legislativo controla a agenda autono-mamente (Amorim Neto; Cox; McCubbins,2003).

6 Essa menor taxa ocorreu durante o governo Collor.

7 Para a comparação entre os períodos atual e o de 1946-1964, ver SANTOS(2003). Uma boa definição de poder de agenda: “definição dos temassubstantivos a serem apreciados e determinação dos passos e da seqüênciade procedimentos a serem seguidos ao longo do processo decisório”(FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999, p. 69).

8 “É lícito supor, então, que a dinâmica da interação Executivo-Legislativo assumiráfeição inteiramente distinta na ausência do poder de agenda em favor dopresidente. Sem que seja possível ao governo manipular estrategicamente adistribuição de preferências dos deputados e ocupar a agenda do plenário,retirando tempo para a tramitação de matérias originadas no Legislativo, pode-se imaginar um cenário de extrema incerteza para as pretensões do presidente.Não só os deputados adquirem maior influência legislativa, como também ataxa de cooperação com o presidente tende a ser sistematicamente menor”(SANTOS, 1997, p. 477).

9 O presidente tem também o poder de veto total ou parcial em relação às leisaprovadas pelo Congresso, que podem ser derrubados por uma maioriaabsoluta.

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229Governos de Coalizão no Sistema Presidencial ... | Fabiano Santos

Medidas Provisórias. Os poderes deagenda anteriores têm efeitos modestos secomparados com aqueles provenientes dasmedidas provisórias (MP), ou seja, referen-tes à capacidade do Executivo de emitirdecretos com força de lei imediata e semconsulta ao Legislativo. O seu uso, a princí-pio, seria limitado a questões de urgência erelevância, mas com o tempo passou a en-globar inclusive problemas administrativose rotineiros. Segundo a Constituição de 1988,a MP teria vigência a partir da data de suapublicação e deveria ser apreciada pelo Con-gresso em trinta dias, caso contrário perde-ria sua validade. Na prática, no entanto, oExecutivo freqüentemente reeditava as me-didas e, por meio disso, obtinha sucesso aocontornar a necessidade de submetê-las avotação. A edição e as freqüentes reediçõesevitavam que o Executivo incorresse noscustos de formação de maiorias, ao contrá-rio, estes encargos da ação coletiva eramrepassados ao Legislativo.

Compreendidos estes aspectos básicosdas MPs, abre-se o debate sobre suas conse-qüências no padrão de relação entre o Exe-cutivo e o Legislativo. Tal padrão dependemuito das estratégias escolhidas pelos presi-dentes; se ele opta por montar um governode coalizão concedendo postos ministeriaisem proporção à força dos partidos no Parla-mento, provavelmente ao emitir MPs ele ten-tará observar o interesse da maioria governativaque lhe dá sustentação (e tentará governarpor meios ordinários). O caso do governo FHCé emblemático, pois além de montar umgabinete com razoável grau de coalescência,permitiu que os textos legais de diversas ree-dições sofressem alterações negociadas(Amorim Neto; Tafner, 2002). Collor deu oexemplo oposto ao formar, no primeiro anode governo, um ministério não inclusivo eao abusar da edição de MPs originais. OCongresso, por sua vez, reagiu ao colocarem discussão uma lei com o objetivo de re-gular a utilização dessa forma de poder deagenda, fato que repercutiu de maneira di-dática sobre o presidente, diminuindo seuímpeto de tentar governar unilateralmente(Power, 1998).

As medidas provisórias tinham, por outrolado, o efeito de proteger os membros dacoalizão da repercussão de medidas impo-pulares. Segundo Figueiredo (2000), com asreedições, os líderes partidários não assumi-am diretamente a responsabilidade públicapela aprovação das MPs, embora participas-sem das modificações feitas no texto legal.Por isso, as freqüentes reedições não po-dem, por outro lado, ser consideradas comoabdicação por parte do Legislativo.

Poder de agenda e controle sobre o processolegislativo são instrumentos dos governospara a proteção de sua maioria de apoio dedecisões impopulares e preservação de acor-dos em torno de políticas. Neste sentido, for-jam ações concertadas entre o governo e amaioria que o apóia, elevando, conseqüente-mente, a cooperação (Figueiredo, 2000, p. 12).

Em 2001, contudo, o Congresso Nacionalaprova o projeto de Emenda ConstitucionalN° 32, conferindo nova regulamentação aouso das medidas provisórias. Sob a novametodologia, a MP passou a ter validade de60 dias, prorrogáveis por mais 60, findos osquais o Congresso é obrigado a se manifestarem até 45 dias, sob pena de ter sua pautatrancada. O intuito da PEC 32 era mitigar oímpeto do Executivo em legislar via MPs.Pressupunha-se que os governos selecio-nariam medidas relevantes e urgentes demodo a não paralisar os trabalhos legisla-tivos. A realidade, como comumente ocorrecom matérias relacionadas a reformas polí-ticas, mostrou-se bem diferente. A novaregra, ao invés de inibir, produziu um númeromaior de emissões tanto no final do go-verno FHC como no atual governo Lula. Aomesmo tempo, fato de certa forma raro soba antiga regra, foram rejeitadas 14 MPs nogoverno FHC e, até agora, sete no governoLula — o que corrobora o ponto a respeito domanto protetor do mecanismo das reedições.Em suma, a eliminação da possibilidade dereedição, assim como a obrigatoriedade damanifestação do plenário, traz à tona a possi-bilidade de conflito aberto e público.

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230

A Tabela 2 apresenta as MPs emitidas em cada governo com asrespectivas médias mensais, e revela, de outro lado, o contraste entre aemissão das MPs sob a antiga regulamentação e a atual — a PEC 32.

Se tomarmos como base os dois primeiros anos do mandato, ogoverno Lula,

10 em média, emitiu muito mais MPs do que os gover-

nos anteriores. Os dados são mais impressionantes se levarmosem conta a excepcionalidade dos anos de implantação dos planosde estabilização em 1990 e 1994, que empurraram as médias dosgovernos Collor e Itamar para cima. Neste sentido, os númerosabsolutos nesses anos poderiam ser justificavéis sob a ótica darelevância e urgência. No entanto, uma análise cuidadosa da Tabe-la 2, nos revela que tal fato pode ter a ver mais com o novo tipo deregulamentação das MPs do que com o particular ocupante dapresidência. Ou seja, ocorreu um maior número de emissões sobas regras da PEC 32, no final do mandato de FHC e início do gover-no Lula. Este aspecto, os efeitos não antecipados da PEC 32, me-receria análise mais detida em outra oportunidade.

Devido ao renovado ímpeto de Lula em continuar emitindo gran-de número de MPs, sob o funcionamento das regras da PEC 32, osparlamentares agitam-se de novo para propor um novo freio institu-cional. Estas propostas de uma nova PEC, para regular o institutodas MPs, vêm de deputados tanto de fora como de dentro da basede governo. Não é de se admirar, já que Lula não só manteve omesmo padrão de governos anteriores, qual seja, de usar as MPspara legislar também sobre matérias não relevantes e urgentes,como também os excedeu em número.

11

10 A partir do terceiro ano o governo tem sua agenda emperrada devido àsacusações de corrupção e às investigações das Comissões Parlamentares deInquérito.

11 Devemos reiterar, inclusive pela análise feita do conteúdo das proposições,que não haveria motivos justificáveis para o excessivo número de emissõesde MPs no governo Lula.

Tabela 2 - Medidas Provisórias Originais por Governo

Fernando Collor Itamar Franco Fernando H. Cardoso

1990 1991 1992 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998mar./dez. jan./dez. jan./out. out./dez. jan./dez. jan./dez. jan./dez. jan./dez. jan./dez. jan./dez.

N 76 9 4 4 47 91 30 41 34 55

Médiamensal 8 0,75 0,44 1,33 3,92 7,58 2,5 3,42 2,83 4,58

Total 89 142 160

Média porgoverno 2,92 5,26 3,33

FHC II FHC II - após PEC 32/2001 Lula – Sob regras da PEC 32/2001

1999 2000 2001 2001/2002 2003 2004 2005 2006jan./dez. jan./dez. jan./set. (15 meses) jan./dez. jan./dez. jan./dez. 2 meses

N 47 23 33 102 56 73 42 4

Médiamensal 3,92 1,92 3,67 6,8 4,7 6,1 3,5 X

Total 103 102 175

Média porgoverno 3,12 6,8 4,6

Fonte: Secretaria Geral da Presidência da República.

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231Governos de Coalizão no Sistema Presidencial ... | Fabiano Santos

5. Centralização decisóriano Legislativo

Outro fator, que ajuda a tornar concentra-do o processo de formulação de políticaspúblicas é a centralização do processo le-gislativo ordenado pelo Regimento Internoda Câmara dos Deputados. Na Câmara dosDeputados, a distribuição de direitos parla-mentares é feita sob critérios partidários: oprincípio da proporcionalidade partidáriadetermina a composição da Mesa Diretorae a distribuição dos parlamentares pelas co-missões. O regimento reconhece a existên-cia do Colégio de Líderes,

12 instância

decisória, que atua de forma centralizada nadeterminação da pauta dos trabalhos legis-lativos juntamente com o presidente da MesaDiretora.

Os líderes,13

na prática, controlam o fluxode trabalhos legislativos e os direcionam aoplenário, que passa a ser o principal locusdecisório, neutralizando, assim, as comissõescomo locus de poder descentralizado. Isto éfeito através do requerimento de urgência (temque ser votado e aprovado, ao contrário daurgência constitucional; mas, em compen-sação, seus prazos são bem menores), queretira a lei da comissão competente e a enviaimediatamente ao plenário.

14 Para o requeri-

mento são necessários 1/3 dos membrosda Câmara ou o apoio dos líderes que repre-sentem esse número ou 2/3 dos membros

de uma comissão ou da Mesa Diretora. Naprática, essa prerrogativa acaba se restrin-gindo aos líderes, pois há óbvios problemasde coordenação e formação de maioria, otempo é reduzido e é difícil reunir o contin-gente necessário antes que o assunto sejadado por encerrado. Dessa forma, os parla-mentares individuais têm capacidade muitoreduzida de direcionar os trabalhos legisla-tivos, o que contrasta com a assinatura dolíder, que é representativa, ou seja, sufici-ente para expressar a vontade do partido(Figueiredo; Limongi, 1999). O requerimentode urgência limita, ainda, o direito de proporemendas em plenário: é necessário 1/5 dosmembros para garanti-lo. A maioria dos pe-didos de urgência é feita no interesse doExecutivo, sendo que cerca de 70% delessão feitos pelo próprio Congresso (Pereira;Mueller, 2000). Outro fato interessante, avali-zando o papel das lideranças no período1995-1998, é que quanto mais extrema foi apreferência mediana da comissão em rela-ção às preferências do plenário, maior foi àprobabilidade da utilização do requerimentode urgência (Pereira; Rennó, 2001).

A nomeação de parlamentares para ascomissões é feita pela Mesa Diretora deacordo com a indicação dos líderes partidá-rios. Segundo Santos (2003), a seleção da-queles que vão compor as comissões ébaseada na lealdade dos membros à posiçãodo partido nas votações em plenário. Esse, noentanto, não é o único critério, pois os líderesse preocupam com a qualidade informacionaldas leis, principalmente em relação àscomissões-chave. Então, a par da lealdadepartidária, entra também no cálculo dos lí-deres a questão da policy expertise,

15 ou

seja, leva-se em conta a especializaçãoprévia dos parlamentares.

Na Câmara, as duas comissões quepreenchem este requisito (e são de extremaimportância tanto para a agenda presidencialcomo para os membros da coalizão gover-namental) são as comissões de Constituiçãoe Justiça e de Redação, que são respon-sáveis pela constitucionalidade das leis apro-vadas; e a Comissão de Finanças e Tributaçãoresponsável pelas leis que têm impacto fiscal

12 O Colégio de Líderes é um órgão decisório composto pelas liderançaspartidárias e pelo líder do governo. Suas decisões devem se dar por consenso.Se isto não ocorre, os votos dos líderes passam a ter o peso proporcional àsua bancada, sendo sob esse critério obtida a maioria absoluta (PACHECO;MENDES, 1998).

13 Segundo o Regimento Interno, os líderes podem usar a palavra nas sessõesdurante um tempo proporcional ao tamanho de sua bancada; podem — semdireito a voto — participar dos trabalhos de qualquer comissão; encaminharvotações em plenário; indicar os membros a compor as comissões; registraros candidatos do partido aptos a concorrerem aos cargos da Mesa; inscrevermembros para as comunicações parlamentares antes da ordem do dia epodem, ainda, indicar os vice-líderes da sua bancada (PACHECO; MENDES,1998).

14 Para os líderes, há a preocupação com a reputação coletiva do partido. Assim,nomeações para comissões com amplas jurisdições — àquelas cujo impactoafeta a imagem pública do partido — e altas externalidades (suas decisõesafetam membros que não participam da comissão) são objeto de interesseprimordial para os líderes.

15 As comissões apresentam significativas taxas de rotatividade, o que dificultao desenvolvimento endógeno de expertise.

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(que afetam as políticas distributivas); ambascom poder de veto sobre a apreciação deleis (Santos, 2003). Para os partidos, a preo-cupação, em virtude de sua posição estra-tégica, é de indicar para a presidênciadessas comissões líderes cujas preferênci-as sejam representativas do partido. No tra-balho de Pereira e Mueller (2000) verificou-seque, na composição da maioria das comis-sões no período entre 1995 e 1998, o mem-bro mediano apresentava altos índices delealdade ao Executivo. Isso implica que acoalizão governante dispõe de ótimo meca-nismo para barrar leis contrárias aos seusinteresses e, ainda, de forma complemen-tar, evitar confrontos no plenário. Esses nãosão os únicos mecanismos de que dispõemos líderes partidários vis-à-vis às comissões,pois os líderes podem a qualquer momentosubstituir seus membros ou ainda mitigaras comissões permanentes através da cria-ção de comissões especiais

16 (Pereira; Mue-

ller, 2000).As comissões

17 e o plenário são esvazia-

dos como instâncias decisórias na medidaem que as discussões substantivas sãodeliberadas no Colégio de Líderes. A parti-cipação dos parlamentares é, então, restritaà fase final do processo, quando a lei é sub-metida à votação. A centralização decisóriano Colégio de Líderes favorece o Executivoao diminuir as incertezas próprias de um pro-cesso de negociação descentralizado (Figuei-redo; Limongi, 1999).

Outro bom indicador do reduzido direitodos parlamentares é o curtíssimo tempo detramitação das matérias aprovadas, o queindicaria que os parlamentares se limitam avotar matérias previamente acordadas entreos líderes e o Executivo. Além disso, as leisintroduzidas pelo Legislativo, geralmente porparlamentares individuais, demoram trêsvezes mais tempo para serem aprovadas doque as do Executivo: há problemas de sele-ção e apreciação devido à quantidade e aotempo — a organização legislativa não foiotimizada para tratar as demandas dosparlamentares individualmente (Figueiredo;Limongi, 1999).

6. Os partidos políticosna Câmara dos Deputados

As duas próximas seções serão dedica-das ao estudo das conseqüências do presi-dencialismo de coalizão em termos decomportamento partidário. Dois temas, emparticular, interessam na análise a seguir: adisciplina partidária e a indicação das lide-ranças partidárias em votações em plenário.

Figueiredo e Limongi (1999) observaramser possível, seguindo a indicação dos líde-res partidários no período 1989-1998, disporos partidos num continuum ideológico comose segue: PPB, PFL, PTB na direita, PMDBe PSDB como partidos de centro, e PDT ePT como partidos de esquerda — dispo-sição esta consistente com outros estudos.A idéia sugerida por esta ordenação é quepartidos adjacentes têm maior probabili-dade de encaminharem votos semelhantes;e essa probabilidade decresce à medida queaumenta a distância entre eles — conside-rando aquela ordenação como a disposiçãoideológica dos partidos num espaço unidi-mensional. Em linhas gerais, considerandoo contraste entre a coalizão de governo decentro-direita e a oposição, podemos acei-tar esta hipótese, adicionando o fato de queos partidos referidos respondiam por quase90% das cadeiras da Câmara.

16 As comissões especiais são obrigatórias quando se sobrepõem jurisdiçõesou estiverem em tramitação projetos de emendas constitucionais.

17 Só para enfatizar: o papel de destaque dos líderes partidários não dependeexclusivamente do Colégio de Líderes; depende do peso ponderado desuas assinaturas para requerimentos, destaques de votação, apresentaçãode emendas, mas, principalmente, através dos requerimentos de urgência(acordados antes de ir a plenário) que alteram o fluxo normal de tramitaçãodas matérias, retirando-as das comissões e incluindo-as na ordem do dia; oque dificulta a apreciação crítica de seu conteúdo pelo plenário (retira dascomissões sua prerrogativa decisória). Vale notar que, por outro lado, osconstituintes tinham dotado as comissões com poder terminativo — ou seja,com o poder de aprovar projetos em caráter final sem passar pelo plenário(que evitaria a centralização dos trabalhos no plenário, ocasionaria ganhos dequalidade por meio de especialização e desafogaria a pauta), exceto sehouvesse recurso contra. As comissões como instância primeira e obrigatóriade passagem dos projetos, onde se emitem pareceres e se selecionamaqueles aptos à consideração do plenário, não deixam de ter sua funçãotécnica. Mas os dados evidenciam que apenas 29% das leis passam pelofluxo ordinário (até chegar ao plenário) e apenas 16% são aprovadas emcaráter terminativo. A imensa maioria tramita em regime de urgência (entre1988-1994, cerca de 55%) e, em sua maioria, urgência urgentíssima;desconsiderando o trabalho das comissões e esvaziando-as (FIGUEIREDO;LIMONGI, 1999).

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233Governos de Coalizão no Sistema Presidencial ... | Fabiano Santos

Pode-se replicar este método18

para o segundo mandato de FHCe para os dois primeiros anos do governo Lula, com a diferença deque incluímos dois partidos — o PL e o PSB. Esses partidos repre-sentavam menos de 6% das cadeiras na Câmara no período 1994-2001, logrando, todavia, uma ampliação nesta participação para10% no governo Lula. Ou seja, a inclusão dos dois partidos se deveà importância que adquiriram recentemente.

O padrão de contraste entre a centro-direita e a esquerda, consi-derando a indicação de voto das lideranças é semelhante nos doismandatos de FHC. O exame da Tabela 3 confirma a hipótese daconsistência ideológica no segundo mandato do presidente FHC,mas não no governo Lula. A liderança do PL, no período 1999-2002,na maior parte das vezes, indicou votos conjuntamente com a es-querda, entretanto, neste ínterim era um partido irrelevante que re-presentava, em média, 2,4% das cadeiras na Câmara (e que alémdisso sofreu um esvaziamento devido à migração partidária, aocontrário do que ocorreu quando se tornou o parceiro eleitoral prefe-rencial de Lula).

Tabela 3 - Indicações Semelhantes de Voto pelas Lideranças Partidárias (%)

Governo FHC II (1999-2002) Governo Lula (2003-2004)

PFL PTB PL PSDB PMDB PDT PSB PT PFL PTB PL PSDB PMDB PDT PSB PT

PPB 93 82 39 95 94 16 13 21 27 90 88 32 88 78 86 87

PFL 79 40 94 92 18 16 22 22 23 74 26 27 18 19

PTB 42 83 81 32 23 31 95 25 92 85 94 94

PL 39 41 69 69 65 27 92 87 92 93

PSDB 97 20 17 25 30 28 22 23

PMDB 21 17 26 82 89 90

PDT 82 82 87 88

PSB 85 98

Fonte: Banco de dados NECON.

Este padrão de consistência se desfaz justamente com a as-censão à presidência de um partido fortemente estruturado e ideo-lógico — o PT —, ao incorporar dois partidos de direita à coalizãode governo, o PL e o PTB. Além disso, outro partido de direita, oPPB, também se alinha com o governo nas votações, mesmo semparticipação em ministérios. O PMDB, como de praxe, segue areboque do governo. A popularidade do governo e a atratividadeexercida pelo Executivo podem ser a explicação desse alinhamentoinformal dos dois últimos partidos. Por sua vez, PSDB e PFL apre-sentaram baixo nível de coordenação no primeiro ano, indicandoencaminhamentos semelhantes em apenas 61% das votações (e86% no segundo).

18 A amostra utiliza as votações que apresentam algum nível de conflito em plenário, eliminando aquelasconsensuais. Uma votação é definida como consensual se os líderes dos maiores partidos — PT, PFL, PMDB,PSDB, PP, PTB, PL, PSB e PDT — sinalizam a mesma indicação de voto e, ao mesmo tempo, quando nãoocorre a oposição de pelo menos 10% do plenário. No entanto, é bom advertir o leitor de que foramnecessárias algumas adaptações. Por isso, são seguras as observações das tendências gerais dentro de cadamandato, mas não tão rigoroso quando se comparam governos diferentes. Por exemplo, é seguro observarque o PL, no segundo mandato FHC II, votou a maior parte das vezes com a esquerda, mas não é tãoaconselhável comparar a diferença numérica entre esse mandato e o de Lula. Neste último, os partidos deoposição entraram constantemente em obstrução.

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De imediato percebe-se que um fenômeno muito interessanteocorre no governo Lula: se durante todo o período de redemocrati-zação, passando pelos governos Sarney, Collor, Itamar Franco eFHC, predominou um claro padrão ideológico no modo pelo qualos líderes se posicionavam diante das questões postas à votação,isto não mais se verifica no período que se inicia em janeiro de2003. O padrão atual sofre alteração significativa, pois o tom doposicionamento dos partidos deixa de ser ideológico, tornando-semais propriamente governo (com partidos de esquerda e direita) eindependentes (PMDB e PPB) versus oposição. Aqui, já podemosobservar uma mudança significativa na operação do presidencia-lismo de coalizão.

7. Disciplina partidária

Segundo Ames (2001), o sistema eleitoral brasileiro de repre-sentação proporcional com lista aberta produz o custo de gerarpartidos fracos e uma política personalizada, que se reflete emindisciplina generalizada dentro da arena legislativa. O PR brasileiroenfraqueceria, então, o controle partidário no momento eleitoral —durante a campanha — e posteriormente no controle do comporta-mento dos deputados no Legislativo e impediria a emergência deuma agregação de interesses coerentes. Uma outra vertente, en-campada inicialmente por autores como Figueiredo e Limongi (1999),insiste na tese de que a impossibilidade de punição aos membrosindisciplinados no Congresso não implica na irrelevância do parti-do. Como vimos, o presidente e os líderes partidários possuemuma série de prerrogativas decisórias que induzem os parlamenta-res a um comportamento cooperativo.

A Tabela 4 apresenta a percentagem média de deputados quedeclararam o mesmo voto que a liderança partidária. Há diversasformas de interpretar estes dados, uma delas é afirmando de queos índices de disciplina são maiores do que aqueles encontrados

Tabela 4 - Disciplina Partidária19

por Governo %

Sarney Collor Itamar FHC I FHC II Lula 1986-1989 1990-1992 1993 1994-1998 1999-2002 2003-2004

PT 98,8 96,7 97,8 97,1 98,9 95,8

PDT 93,5 92,9 91 91,5 94,3 86,4

PSDB 86,8 88,3 87 92,9 96,4 84,6

PFL 88,2 90,3 87,4 95,1 95 84,3

PPB 85,2 90,9 87,4 84,3 91,2 83,7

PTB 79,5 84,6 83,9 89,7 87 91,3

PMDB 83,7 87,5 91,2 82,3 86,8 83,1

Média 88,0 90,2 89,4 90,4 92,8 90,0

Fonte: Figueiredo e Limongi (1999), com exceção dos dados referentes à FHC II e Lula (Banco de dados Necon).

19 Na seleção das votações, optei pelo método sugerido por FIGUEIREDO e LIMONGI (1999) de considerarcomo expressando algum grau de conflito as votações onde pelo menos um partido dos sete maiores colocaruma posição contrária aos outros, e quando ocorrer a oposição de pelo menos 10% no plenário. No entanto,algumas adaptações se fizeram necessárias a fim de incluir outros partidos menores.

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235Governos de Coalizão no Sistema Presidencial ... | Fabiano Santos

no período 1946-1964. Santos (1997) afirmaque uma diferença fundamental entre osperíodos é que a partir da Constituição de1988, a patronagem conjugada com os po-deres de agenda ajudara a construir umabase mais segura de apoio parlamentar eincidiram de forma mais incisiva sobre a dis-ciplina partidária. Contrasta também a mu-dança de uma agenda partilhada na primeiraexperiência democrática para uma agendaimposta, quase toda originada no Executivoe, em sua maioria, aprovada em regime deurgência.

Por outro lado, podemos analisar os da-dos em si mesmos. Para todo o período1986-2004 a média de disciplina ficou emtorno de 90%. Considerando apenas o perí-odo mais recente, observamos que nos doismandatos de FHC o padrão de disciplina dospartidos é muito semelhante, à exceção doPPB, que aumentou seu nível de adesão nosegundo mandato de FHC. Nos dois primei-ros anos do governo Lula a queda da médiade disciplina foi causada pelo aumento daindisciplina no PPB e no PDT, e em maiorgrau nos dois principais parceiros da ex-co-alizão no governo FHC, agora na oposição.Dito de outra forma, há evidências de que apresença no governo dos partidos de esquer-da pode produzir quedas nos indicadoresde disciplina; nos partidos de direita, aocontrário, seria a não-participação formal nogoverno o fator que causaria impacto nega-tivo sobre a disciplina. Entretanto, ainda écedo para afirmarmos isto com segurança.

As duas vertentes apresentam elemen-tos importantes ao debate sobre o caráter eintensidade da disciplina partidária. Por umlado, os índices de disciplina calculados emrelação às votações nominais podem repre-sentar a última fase de um processo intensode barganha, como aponta Ames (2001), eeste fato não é irrelevante, pois os índicespodem não revelar os custos de transaçãoincorridos. No entanto, de outro lado, é funda-mental considerar que os índices do períodopós-Constituição de 1988 são consistente-mente mais elevados do que no períododemocrático anterior (que também era umregime presidencialista, federal e comrepresentação proporcional de lista aberta).

Ou seja, o argumento de Ames não ajuda aexplicitar a variação entre os períodos. Alevar em conta, principalmente, os trabalhosde Figueiredo e Limongi (1999) e Santos(2003) a explicação residiria na centralizaçãodo processo decisório na presidência e naslideranças partidárias.

8. Conclusão

A análise até o momento pode transmitira impressão de acordo com a qual não exis-tem riscos de instabilidade no sistema pre-sidencial baseado em coalizões. Umaquestão que vem imediatamente à tona dizrespeito à crise aguda no relacionamento doExecutivo com o Legislativo, a partir de me-ados do mandato do presidente Luiz InácioLula da Silva. O atual quadro de instabilida-de possui pelo menos duas dimensões fun-damentais: 1) em primeiro lugar, o conflitopolítico-partidário que se desenvolve no Con-gresso; 2) em segundo lugar, o conflito nointerior da base de apoio ao governo.

A observação do processo político emoutras partes do mundo indica, ao contráriodo que supuseram, durante boa parte dadécada de 1990, os teóricos liberais e deesquerda — encantados alguns, desani-mados outros, pelo fenômeno da globali-zação econômica — uma acentuação daclivagem entre conservadores e trabalhistas,liberais e social-democratas, direita e esquer-da. Seja nos EUA, com a polarização entrerepublicanos e democratas, seja no Parla-mento Europeu, com a divisão dos “grupospartidários” entre liberais e social-demo-cratas, seja na América do Sul, com a emer-gência dos socialistas no Chile, com o FrenteAmplio no Uruguai e o PT no Brasil, o fato éque as divergências no que tange à basesocial, aos interesses e às idéias dos parti-dos posicionados à direita e esquerda doespectro político só têm se aprofundado. Inú-meros analistas e políticos brasileiros insis-tem em olhar apenas para a política monetáriae, a partir daí, verificando a convergência notratamento da política cambial e de juros,concluir que não existem diferenças signi-ficativas entre os interesses e a coalizão

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social dos que apóiam o governo Lula edos que lhe fazem oposição. Entretanto,sem considerar tais diferenças não conse-guimos entender as motivações e as estra-tégias dos partidos de oposição, notadamente,PSDB e PFL. CPIs, para a oposição, sãoum instrumento de combate político, com-bate que tem em sua raiz uma disputa pelopoder de definir as políticas de distribui-ção e redistribuição de recursos e incenti-vos administrados pelo Estado.

O segundo tópico refere-se aos conflitosno interior da base de sustentação do governo— Lula administra um conjunto grande eheterogêneo de atores partidários. Alémdisso, herda uma agenda de problemas cujoenfrentamento divide aliados e seu própriopartido. Partidos como PL, PTB e PP, deforça intermediária e lutando com todos osmeios para sobreviver, dado o espectro dareforma política, acabaram disputandoespaço no espólio ministerial com atores tãodiversos quanto o PT, o PSB, PCdoB e, numprimeiro momento, PDT, PPS e PV. Métodose concepções tão diversos acabaram pordificultar o trabalho de coordenação dabase, surpreendido sistematicamente comdenúncias, fogo amigo e derrotas no ple-nário e nas comissões congressuais.

O atual quadro de instabilidade nos ensinao quanto o contexto em que se desenrola oconflito partidário é importante. Boa parte dasdificuldades pelas quais passa o governodecorre do manejo de uma coalizão comparceiros muito distantes em termos de in-serção social, trajetória política e visão demundo. O preço que partidos como PP e PLcobram para se associar a um partido como perfil do PT parece alto demais aos olhosdo presidente. O ideal, nestas situações, éque o governo organize um ministério maishomogêneo e negocie a aprovação de suaagenda com os partidos de oposição nascomissões do Congresso. Nestas condições,o ganho em termos de transparência dasnegociações e coordenação intragoverna-mental superará, certamente, os custos emtermos de conflitos intrabase no Legislativoe das disputas por espaço de poder noExecutivo. Em outras palavras, a práticade coalizões no Brasil tem dado enorme

contribuição ao processo governativo, toda-via, alternativas podem e devem ser bus-cadas quando o contexto não é tão propíciopara a montagem de ministérios tão am-plos. A experiência européia de governosde minoria e a norte-americana de gover-nos divididos estão aí para provar que aparticipação no Executivo não é condiçãonecessária para a viabilização da agenda go-vernamental no Legislativo.

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Presidencialismo eGoverno de Coalizão

Fernando Limongi

De uns tempos para cá, referir-se ao sistema político brasileironomeando-o como presidencialismo de coalizão se tornou comum.A adjetivação que passou a acompanhar nosso presidencialismodeixa subentendido que este tem algo de peculiar, de especial.Não praticaríamos um presidencialismo qualquer, vulgar. Teríamosum regime com características próprias. Para o bem ou para o mal,o presidencialismo brasileiro funcionaria dessa forma particular;como um presidencialismo de coalizão.

E esse modo peculiar de operar do sistema político é invocadotanto em tempos de calmaria quanto de turbulência. Se o cenário éde tranqüilidade e o governo tem sucesso em suas iniciativas, opresidencialismo de coalizão é convocado para dar conta do que sepassa. Em momentos de crise, recorre-se a ele para explicar osacontecimentos pouco abonadores que se lê nas páginas dos jor-nais e/ou dificuldades enfrentadas pelo governo para aprovar estaou aquela medida.

A entrada em voga do termo, seu uso generalizado no interior daliteratura acadêmica e entre jornalistas, é relativamente recente, le-vando-nos a concluir que esse formato peculiar de operar teria to-mado corpo há pouco. Uma nova denominação que se prestaria auma nova realidade, ou mais precisamente, para dar conta de umamutação ocorrida nos últimos anos.

Não é tão claro, no entanto, o que está por detrás dessa conver-gência terminológica. O que afinal seria um presidencialismo decoalizão? Qual sua forma peculiar de operação? Os dois termosque compõem a expressão, presidencialismo e coalizão, são bemconhecidos e de uso generalizado. Sabemos — ou deveríamos saber— o que é um sistema de governo presidencialista. Sabemos — outambém deveríamos saber — como operam os governos basea-dos em coalizões partidárias. Não há nada de especial em umsistema presidencialista e em governos mantidos por coalizõespartidárias. Mas, então, cabe se indagar por que a junção dos ter-mos seria capaz de nomear algo novo?

A primeira parte deste artigo é dedicada a investigar as razõesque poderiam explicar esta aspiração à originalidade, isto é, àspossíveis especificidades do sistema político brasileiro que justifi-cariam tomá-lo como um novo tipo de regime, como um presiden-cialismo de coalizão com direito a grifo e itálico. A segunda partetrata do funcionamento do sistema político brasileiro, de sua estru-tura, procurando mostrar como o sistema presidencial brasileiro

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opera de forma similar a regimes parlamen-taristas. A produção legal em um e outroregime é controlada pelo Executivo a partirde seu controle sobre o processo decisório.O exame da produção legal mostra que opresidente brasileiro não apenas controla aprodução legal como também tem altas ta-xas de sucesso em suas proposições. Essestraços, usualmente associados a governosparlamentaristas, desmentem boa parte dosdiagnósticos existentes acerca da paralisiagovernamental. Não há evidências de que ogoverno brasileiro se veja paralisado em fun-ção dos obstáculos que o Congresso ante-poria às suas pretensões. Se algo, overdadeiro, é oposto: o Congresso cooperacom o Executivo.

A dominância e o sucesso legislativo dogoverno se devem ao apoio consistente dospartidos que participam do governo. Em sis-temas multipartidários como o brasileiro,quando o Executivo não controla a maioriadas cadeiras, recorrer à formação de umacoalizão partidária para governar é uma op-ção usual.

1 Não há nada de excepcional nes-

ta estratégia. Governos de coalizão é umresultado corriqueiro onde não existe umpartido majoritário tanto em regimes presi-dencialistas como em parlamentaristas. Assuspeitas de que governos de coalizão seri-am inviáveis no presidencialismo não resis-tiram ao exame empírico e teórico. Aindaassim a possibilidade de que partidos atu-em e o façam de forma consistente, votan-do de forma coesa e seguindo as orientaçõesdo governo, desafia a credulidade da maioriados observadores da cena política brasileira.A despeito destas convicções arraigadas, éisto que se passa. Ou seja, a conclusão a quese chega, portanto, é que não precisamosrecorrer a especificidades ou característicassingulares para explicar o funcionamento dogoverno brasileiro.

A terceira parte examina as objeçõesusualmente levantadas à caracterização e áexplicação oferecida na segunda parte. Sus-peita-se que o governo brasileiro carece dasbases mínimas para operar recorrendo aoapoio consistente de uma coalizão partidária.

O fato de o governo aprovar a maioria dasalterações do status quo legal ocorridas des-de a promulgação da Constituição de 1988e de sofrer poucas derrotas na arena legisla-tiva tendem a ser minimizados. As objeçõesusuais, a de que a análise não considera asalterações impostas pelos legisladores etampouco leva em conta a parcela da agen-da do governo não submetida em função daantecipação da derrota, são consideradas ediscutidas a fundo. Retoma-se também nes-ta seção o debate acerca das bases do apoioconsistente às propostas governamentaisem votações nominais. Qual o “preço” pagopelo presidente para manter unida a sua basede governo? Pode-se dizer que as negocia-ções políticas são levadas a cabo por parti-dos?

Por fim, a última seção oferece conclu-sões a partir da reconstituição do argumen-to desenvolvido. O presidencialismo decoalizão não deve tomar foro de mais umadestas realidades que só teriam lugar no Bra-sil. Governos de coalizão são ocorrênciasnormais onde nenhum partido controla amaioria das cadeiras no Legislativo. O po-der de agenda com que Executivos tendema ser dotados, seja em sistemas presiden-cialistas, seja em parlamentaristas, reverteem controle sobre o processo decisório. Estemesmo controle, permite a estruturação e aproteção da base legislativa de apoio aogoverno que se expressa no suporte dosparlamentares em votações das matérias deinteresse do Executivo. A coesão da basedo governo explica o sucesso e o domíniodo Executivo na arena legislativa.

Parte 1:Da denominação

Quando o General Ernesto Geisel desen-cadeou o processo de distensão, as expec-tativas entre os acadêmicos quanto ao futuropolítico de um possível regime civil eram fran-camente pessimistas. As chances de que

1 Outras possibilidades devem ser consideradas, por exemplo um governo deminoria comandado pelo presidente ou, em um caso extremo, a formação deuma coalizão legislativa majoritária por partidos de oposição.

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239Presidencialismo e Governo de Coalizão | Fernando Limongi

aquele processo culminasse em uma demo-cracia estável, de acordo com a maioria dosanalistas, eram diminutas. As razões invo-cadas para prognósticos tão negativos eramas mais variadas. Esta certeza da inviabili-dade de uma ordem democrática plena ten-deu a crescer ao longo do penoso e tortuosoprocesso. Com a proximidade do retorno dosmilitares aos quartéis, ganhou importânciacrescente o diagnóstico institucional, segun-do o qual a combinação do presidencialismoe do multipartidarismo condenaria a demo-cracia à instabilidade e ao fracasso.

Quando da convocação da Constituinte,isto é, quando a distensão já havia desem-bocado em uma democracia, parece-mecorreto afirmar que havia se formado umconsenso no interior das elites intelectuais epolíticas do país. Reformas políticas seriamcondições sine qua non para a consolidaçãoda democracia.

2 Tais reformas pediriam dois

passos essenciais e fundamentais, a saber,o abandono do sistema de governo presi-dencialista e a revogação da representaçãoproporcional. O mantra repetido por todosera: a consolidação da democracia requerpartidos fortes e estes são inviáveis sob presi-dencialismo e representação proporcionalcom lista aberta. A insistência nas velhasfórmulas levaria o país a conviver permanen-temente com a crise de governabilidade. Nãohavia consenso quanto à fórmula alternativaa abraçar — se o melhor seria adotar o parla-mentarismo puro ou semipresidencialismo,se o sistema eleitoral misto ou o majoritário— mas havia convicção de que mudar eravital. Qualquer outro modelo institucional seriamelhor do que o adotado pela Constituiçãode 1946.

No mais das vezes, a condenação dopresidencialismo seguiu as pegadas do tra-balho clássico de Juan Linz (1990 e 1994).Como é fartamente sabido, o cientista políticoespanhol oferece uma pletora de razões eargumentos em favor do parlamentarismo.

Para fins da discussão desse texto, é impor-tante salientar que o exame aprofundado dascondições apontadas revela que estas só sesustentam se for verdade que presidentesnão podem ser apoiados por uma coalizãopartidária no Congresso. Dito de maneirainversa: se presidentes, à maneira dos pri-meiros-ministros em governos parlamenta-ristas multipartidários, puderem contar como apoio de uma maioria formada a partir deuma coalizão de partidos, se isso for possívelentão, não há razão para supor que a sepa-ração de poderes leve, necessariamente, aconflitos insuperáveis entre o Executivo e oLegislativo (ver Figueiredo; Limongi, 1999e Cheibub e Limongi, 2000 para a reconsti-tuição desse argumento).

O ponto de partida do raciocínio de Linzé conhecido. O presidencialismo é um regi-me baseado no princípio da separação dospoderes e, portanto, o Executivo e o Legisla-tivo devem concordar para que alteraçõesdo status quo legal venham a ocorrer. Nãohá garantias de que a maioria dos legislado-res esteja em acordo com a vontade do Exe-cutivo. Mais do que isso, não há incentivosgerados pelo próprio sistema para que acooperação entre os poderes ocorra. Isto sedeve, fundamentalmente, ao fato de os man-datos serem obtidos e mantidos de formaindependentes. Assim, esta é a conclusão,salvo condições excepcionais, o presidenci-alismo tende a gerar conflitos insolúveis en-tre os poderes. A separação de poderes éigualada, assim, a conflito entre poderes comvontades e pretensões políticas diversas,conflito este que não pode ser arbitrado pornenhum fórum legítimo. Ambos os poderestêm origem na vontade popular e não estãosubmetidos a qualquer outro poder.

Há situações em que tal conflito não deveemergir. Se o partido do presidente contro-lar a maioria das cadeiras no Legislativo,espera-se que ambos os poderes sejamcapazes de adotar uma agenda política co-mum. Quando esta feliz coincidência nãoocorrer, argumenta Linz, o chefe do Executivoestará condenado ao fracasso legislativo, eo país, à paralisia decisória. No caso de

2 Outro ponto consensual era o de que a democracia sem avanços substantivosimediatos, isto é, sem ganhos concretos em termos sociais para a populaçãomais carente também seria inviável, não sobreviveria. Em boa parte das análises,estes dois pontos estavam intimamente relacionados.

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240

países que adotam a representação propor-cional, como é o nosso caso, a possibilidadede presidentes cujos partidos sejam majori-tários, para todos os efeitos, pode ser des-cartada.

Para fins de argumentação, no entanto, épreciso reter esta possibilidade. Partidospolíticos podem estabelecer o elo entre ospoderes, a razão para que a ação dos pode-res seja coordenada. É certo que nestes ar-gumentos, mesmo esta possibilidade équalificada ou minimizada na medida em quese postula que o presidencialismo não favo-rece a emergência de partidos disciplinados.Deixando esta objeção para consideraçãoposterior, cabe então indagar por que presi-dentes minoritários não recorreriam à forma-ção de uma coalizão partidária para obter oapoio da maioria dos legisladores? Afinal,governos apoiados por coalizões partidáriassão algo normal e corriqueiro em paísesparlamentaristas multipartidários. Por quepresidentes não lançariam mão do expe-diente a que recorrem primeiros-ministros?

Linz e seguidores oferecem duas razões,ambas singelas e diretas, para rejeitar estapossibilidade. Primeira: presidentes não ofarão porque não querem. Simplesmente,relutarão em dividir o poder após terem con-quistado o “grande prêmio”. Assim, inebria-dos pelo poder obtido nas urnas, em lugarde buscar apoio partidário no Congresso,presidentes preferirão apelar diretamente aoseleitores, ou melhor, às massas, para recu-perar o tom do argumento, para pressionaro Legislativo e impor sua agenda.

A segunda razão oferecida por Linz é quese por ventura o fizerem, isto é, se buscaremformar uma coalizão, os presidentes ouvirãorespostas negativas de todos os partidosconvidados. Estes preferirão apostar nofracasso do governo, esperando assim con-quistar o “grande prêmio”, o cargo de presi-dente, nas eleições vindouras. Logo, buscaro apoio do povo, usando-o para pressionar oCongresso, seria a única alternativa políticaviável deixada a presidentes em exercício.Presidencialismo, portanto, levaria a um tipode política plebiscitária.

3

Retornando ao tema deste artigo: o usocorrente da expressão presidencialismo decoalizão pode ser interpretado como o reco-nhecimento de que o Brasil teria superadoos obstáculos vislumbrados por Linz. Daí anecessidade de qualificar o presidencialis-mo brasileiro, de tomá-lo como especial.Combinar presidencialismo e coalizões nãoé o normal, o esperado.

Na realidade, a expressão “Presidencia-lismo de Coalizão” foi cunhada por SérgioAbranches em artigo que é hoje um verda-deiro clássico da literatura política nacional.Para Abranches, a estrutura institucional bra-sileira seria problemática e tendente a gerarcrises não pelo fato de combinar presiden-cialismo e multipartidarismo, como argu-mentavam os adeptos das proposições deLinz, mas sim da adição de um terceiro ele-mento a esta fórmula, a saber, o federalismo.

Da presença do federalismo, cuja análi-se pelo autor não se limita a seus aspectospuramente institucionais, cobrindo tambéma diversidade e heterogeneidade socioeco-nômica, Abranches deriva que as coalizõespara apoiar o chefe do Executivo teriam queatender a critérios extrapartidários. Isto é, aoconstruir sua base de apoio parlamentar, opresidente teria que combinar critérios parti-dários e federativos, levando em conta, so-bretudo, o poder dos governadores. Aconseqüência deste recurso é a composi-ção de uma coalizão de apoio que, do pontode vista socioeconômico e político, serámarcada pela heterogeneidade.

Para que sejam capazes de atender esteduplo critério — o partidário e o federal — ascoalizões serão necessariamente, sobredi-mensionadas e, mais importante, dada adiversidade dos interesses sociais que abar-cam, fadadas à ineficiência governamental.Ou seja, ainda que as coalizões sejam con-cebidas com o objetivo de superar o conflitoentre os Poderes Executivo e Legislativo, agrande coalizão partidária-regional acabará

3 Note que o argumento depende fortemente de que os atores políticosrelevantes mantenham sua crença de que só há um prêmio a disputar eobter: a presidência. Se presidentes souberem que dependem da cooperaçãodo Congresso e congressistas souberem que podem influenciar a políticaparticipando do governo, torna-se impossível sustentar que o presidencialismoseja um jogo de soma zero. Para o desenvolvimento desse argumento,consultar LIMONGI, 2003.

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241Presidencialismo e Governo de Coalizão | Fernando Limongi

reduzida à impotência. Muito dificilmente elaserá capaz de garantir a aprovação de umaagenda presidencial consistente.

Assim, na visão de Abranches, o presi-dencialismo de coalizão seria uma formapeculiar de funcionamento de governos pre-sidencialistas

4 encontrado apenas no Brasil,

ainda que a amostra de regimes presiden-cialistas com que trabalhe seja reconheci-damente limitada. O fundamental, noentanto, é notar que o presidencialismo decoalizão, dada a natureza heterogênea dascoalizões formadas, seria de um regime comalta propensão a se defrontar com crisespolíticas. Nas palavras do próprio autor, opresidencialismo de coalizão seria

um sistema caracterizado pela instabilidade,de alto risco e cuja sustentação baseia-sequase exclusivamente no desempenho cor-rente do governo e de respeitar estritamenteos pontos ideológicos ou programáticos con-siderados inegociáveis, os quais nem sem-pre são explícita e coerentemente fixados nafase da formação da coalizão (1988, p. 27).

O texto original é repleto de referências àimpossibilidade de funcionamento normal ecorriqueiro desta forma peculiar de regimepolítico. Na raiz dos problemas enfrentados,estaria a falta de mecanismos ou instânciaspara superar os prováveis conflitos entre oExecutivo e o Legislativo:

Governos de coalizão têm como requisitofuncional indispensável uma instância, comforça constitucional, que possa intervir nosmomentos de tensão entre o Executivo e oLegislativo, definindo parâmetros políticospara resolução de impasses e impedindo queas contrariedades políticas de conjuntura le-vem à ruptura do regime (1988, p. 31).

Abranches escrevendo antes da elabo-ração da Constituição de 1988, tomando aexperiência da República de 46 e os anosiniciais do governo Sarney como exemplos,

5

via poucas chances de sucesso do presi-dencialismo de coalizão. Ao recorrer a coali-zões heterogêneas, o presidente se tornaria“prisioneiro de compromissos múltiplos, par-tidários e regionais”, situação em que “suaautoridade pode ser contrastada por lideran-ças dos outros partidos e por lideranças re-gionais, sobretudo os governadores” (1988,p. 26). A outra opção, uma “coalizão con-centrada”, também não seria a solução, pos-to que esta se, por um lado, “lhe conferemaior autonomia em relação aos parceirosmenores”, por outro, obriga o presidente “amanter mais estreita sintonia com seu pró-prio partido. Se o partido majoritário é hete-rogêneo interna e regionalmente, obtém-seo mesmo efeito: a autoridade presidencial éconfrontada pelas lideranças regionais e fac-ções intrapartidárias” (1988, p. 26). Em últi-ma análise, a leitura destes excertos revelaque, qualquer seja o curso adotado, presi-dentes não contam com a possibilidade deobter apoio partidário. Partidos são semprecaracterizados por sua heterogeneidade epelas considerações regionais.

Linz e Abranches, portanto, discordamquanto à possibilidade da formação de coa-lizões sob presidencialismo. Pouco provávelpara o primeiro, inevitável para o segundo.A despeito dessa discordância de fundo, hápontos comuns a notar. Ambos partem damesma suposição, a de que a separaçãode poderes pode ser equiparada a conflitoentre poderes. As relações entre o Poder Exe-cutivo e o Legislativo são pensadas a partirde uma perspectiva vertical, assumindo-seque estes poderes têm vontades divergen-tes e, em última instância, inconciliáveis.

Um segundo aspecto comum deve sernotado: a ausência da consideração da hi-pótese de que partidos possam oferecerbases suficientes para a constituição de co-alizões legislativas. Afinal, por que as coali-zões consideradas por Abranches devem tercomo eixo considerações federativas? Porque o simples critério partidário não seriasuficiente? A razão para tanto decorre da rí-gida linha demarcatória traçada para distin-guir os regimes parlamentaristas dos

4 O autor reconhece ao longo do texto a existência de outros dois tipos depresidencialismos, o bipartidário e o de gabinete.

5 Abranches recorre ao seu modelo para explicar as dificuldades do segundogoverno Fernando Henrique Cardoso. Ver ABRANCHES, 2001, p. 263 et seq.Uma discussão sobre o termo pode ser encontrada em Insight/InteligênciaVII (8), 2005.

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presidencialistas. Neste caso, em verdade,há sobredeterminação, isto é, duas razõespara que essa hipótese sequer seja cogita-da. De um lado, a suposta incompatibilida-de entre presidencialismo e partidos fortes.De outra, a fragilidade notória dos partidospolíticos no Brasil, decorrência não apenasdo sistema de governo, mas também dalegislação eleitoral e da, no caso de Abran-ches, heterogeneidade social. A possibilida-de de que partidos brasileiros possam serpólos a organizar e estruturar o apoio políti-co ao presidente parece ser inimaginável. Ahipótese não é sequer cogitada, quanto mais,testada. No entanto, se não chega a ser ob-jeto de análise sistemática, cabe perguntar,de onde vem tamanha certeza?

Pesquisas recentes mostram que não hárazões para descartar a viabilidade de coali-zões partidárias sob o presidencialismo. Emprimeiro lugar, do ponto de vista empírico,Linz estava redondamente enganado. Presi-dentes minoritários formam coalizões paragovernar (Deheza, 1998; Amorim Neto, 1995,Chasquetti, 1998). Em segundo lugar,Cheibub, Przeworski e Saiegh (2004) mos-traram que a lógica que regula a formaçãode governos em uma e outra forma de go-verno não é radicalmente diversa. No funda-mental, o modelo usado para dar conta doprocesso que organiza a distribuição depastas ministeriais e obtenção de apoiolegislativo no parlamentarismo pode serestendido ao presidencialismo. Em sendoassim, resta indagar se permanece algo quepoderia justificar o tom especial com que otermo presidencialismo de coalizão vemsendo empregado no Brasil.

Se coalizões são normais sob presiden-cialismo por que usar o termo presidencia-lismo de coalizão como se ele denotassealgo muito especial? Resta examinar o fun-cionamento, a operação cotidiana do governobrasileiro. Seguindo as pistas oferecidas porAbranches, é preciso investigar a naturezadas coalizões formadas. Estas são as tarefasa que se volta a seção seguinte.

Parte 2:Da estrutura e funcionamento

A distinção entre as lógicas de funcio-namento dos regimes em que há fusão dosPoderes Executivo e Legislativo (parlamen-tarismo) e aqueles em que vigora a sepa-ração de poderes (presidencialismo) estáno cerne dos argumentos político-institu-cionais correntes. No entanto, cabe per-guntar se a distinção entre estes doissistemas de governo é, de fato, tão radicalquanto normalmente se apregoa. Sobre-tudo, para o caso em discussão, é precisoreconsiderar os efeitos e significado que aseparação de poderes têm nos atuais sis-temas presidencialistas.

Executivo e Legislativo têm origem dis-tintas sob o presidencialismo. Não segueque sejam dois poderes a operar de formatotalmente independente. A definição de pre-sidencialismo oferecida por Shugart e Carey(1992) aponta nesta direção. Segundo es-ses autores, o presidencialismo seria defini-do pela independência dos mandatos dopresidente e dos legisladores, pela duraçãopredeterminada e fixa desses mesmos man-datos e, este o ponto a ressaltar, pelo fatode o chefe do Poder Executivo possuir con-sideráveis poderes legislativos.

Consideráveis poderes legislativos é umtanto impreciso para figurar como critério emuma definição. Ainda assim, o fato é que,em regimes presidencialistas, presidentessão, por definição, dotados de poderes le-gislativos. Não têm assento na Legislaturamas são legisladores. O qualificativo consi-deráveis é necessário para dar conta da va-riação destes poderes. O mínimo é garantidopela Constituição norte-americana, que re-serva ao presidente apenas o poder de veto.Em geral, esta opção minimalista não foi se-guida pelos demais regimes presidenciais.Do ponto de vista de seus poderes legislati-vos, quando comparados ao presidente nor-te-americano, os demais presidentes tendema ser “consideravelmente” mais poderosos.Na realidade, as constituições recentes têmampliado, e muito, os poderes legislativos

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243Presidencialismo e Governo de Coalizão | Fernando Limongi

presidenciais, conferindo ao chefe do Exe-cutivo a prerrogativa exclusiva de iniciativadas propostas legislativas nas áreas maisimportantes, como tributação e proposiçãodo orçamento. Além disso, presidentes pas-saram a deter meios para forçar a inclusãode suas propostas na agenda do Poder Le-gislativo, por meio, por exemplo, da solicita-ção de apreciação sob regime de urgênciaou em casos extremos, por recurso ao po-der de decreto.

Assim, onde o presidente é dotado de“consideráveis” poderes legislativos, o sig-nificado e as conseqüências da separaçãoprecisam ser considerados. Presidentes, porforça dos textos constitucionais vigentes emboa parte dos países presidencialistas, têmpresença garantida no interior do Poder Le-gislativo. Ao lhe conferir prerrogativas exclu-sivas de iniciar legislação nas áreas maisimportantes, estas constituições acabam porlhe reservar o papel de principal legisladordo país.

A prerrogativa exclusiva para iniciar legis-lação confere ao chefe do Executivo vanta-gens estratégicas que podem ser usadaspara estruturar o apoio às suas medidas nointerior do Poder Legislativo. Isto é, podemser usados da mesma forma que se supõesejam usados por primeiros-ministros. Nãohá boas razões para supor que estes pode-res serão usados de forma diversa em um eoutro regime. A suposição de que serão usa-dos para confrontar e submeter a oposiçãodo Legislativo parte de uma leitura equivo-cada do significado da separação de pode-res. Nestas, o Legislativo é sempre pensadocomo um ator único, dotado de um interessecomum cuja realização o coloca em confrontocom o Executivo. No entanto, legisladorestêm interesses políticos diversos e conflitan-tes entre si, expressos em sua filiação parti-dária. Alguns se beneficiam do sucesso doExecutivo, outros de seu fracasso. Logo, paraos primeiros, os poderes de agenda do Exe-cutivo são bem-vindos.

A comparação entre a estrutura da pro-dução legislativa brasileira com a que temlugar em países parlamentaristas mostraquão próximo o nosso presidencialismo se

encontra desses regimes. Espera-se quegovernos parlamentaristas controlem a pro-dução legislativa. Esse controle é demons-trado computando-se dois índices, o desucesso e o de dominância das iniciativaslegislativas do Executivo. Os dois índices sãosimples de ser construídos e sua interpreta-ção é imediata. Quanto ao primeiro, mede-se basicamente a capacidade do Executivode aprovar as propostas que envia ao Legis-lativo. A maneira óbvia de medir o sucessodo governo é dada pela razão entre o quelogra aprovar sobre o total que envia. A do-minância mede o controle exercido pelo exe-cutivo sobre a produção de novas normaslegais, o que pode ser mostrado dividindoas leis aprovadas cuja proposição se deveao Executivo pelo total de leis aprovadas.

Tabela 1 - Successo e Dominância do Executivona Produção Legislativa

Democracias Parlamentares (1971-1976)Sucesso * Dominância **

Alemanha 69,2 81,1

Austrália 90,6 100,0

Áustria 86,7 84,1

Bahamas 97,6 100,0

Canadá 71,0 83,0

Dinamarca 89,4 99,4

Finlândia 84,3 84,3

Inglaterra 93,2 83,1

Irlanda 90,1 88,2

Israel 76,4 94,4

Japão 80,0 83,2

Malta 90,0 100,0

Nova Zelândia 84,6 88,3

* Proporção dos Projetos de Lei do Executivo aprovados.

** Proporção de leis propostas pelo executivo sobre ototal de leis.

Fonte: Brasil: Banco de Dados Legislativos, Cebrap;outros países: Inter-Parliamentary Union, Parliamentsof the World, 1976.

O sucesso e a dominância do Executivo sãotanto maiores quanto mais estes índices seaproximam de 100. As expectativas de queo Executivo tenha altos índices de sucessoe de dominância em regimes parlamenta-ristas, como mostra a Tabela 1, são ampla-mente confirmadas pelos dados. Estesíndices são resultados da inter-relação entreo monopólio exercido pelo governo sobre a

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agenda dos trabalhos legislativos, e o comportamento disciplinadodo(s) partido(s) que apoia(m) o governo.

Passemos ao Brasil. Os dados, como mostram a Tabela 2, nãosão radicalmente diferentes. Antes o contrário. Aqui, como nasdemais democracias consideradas anteriormente, cabe ao Execu-tivo legislar. Do total de 3.165

6 leis ordinárias aprovadas entre a

promulgação do novo texto constitucional em outubro de 1988 edezembro de 2004, o Executivo foi responsável pela iniciativa denada mais nada menos que 2.710 delas, isto é, o índice de domi-nância aplicado ao Brasil chega a 85,6%. Dito de maneira direta: doponto de vista legal, o que muda no país, muda por iniciativa doExecutivo.

7

Mas não apenas isto. O Executivo raramente é derrotado. A taxade sucesso das iniciativas do Executivo é de 70,7% para as leisordinárias. Isto é, sete em dez projetos submetidos são aprovadosdurante o termo do presidente que fez a proposta. Rejeições explí-citas são raras: apenas 25 projetos do Executivo foram rejeitadosem todo o período. Ou seja, a maioria dos projetos não aprovadosnão foi rejeitada. Obviamente, o Congresso não precisa rejeitar umaproposta para barrar as pretensões do Executivo. Projetos podemser engavetados ou barrados em pontos estratégicos de sua trami-tação por minorias ativas sem que seja necessário votar o projeto.No entanto, o oposto também é verdadeiro: não segue que todoprojeto não aprovado do Executivo tenha sido barrado. Por vezes, oExecutivo lança balões de ensaios, trata de uma mesma matériaem dois projetos paralelamente, retirando um deles quando o outroé aprovado. Há ainda projetos retirados pelo próprio autor, isto é,projetos apresentados por presidentes no final de seus mandatos eretirados pelos seus sucessores. Além disso, entre os projetos nãoaprovados encontram-se ainda os que estavam tramitando no mo-mento da coleta dos dados.

Tabela 2 - Legislação Ordinária. Produção Legislativa por GovernoBrasil (1989-2004)

Governo

Sarney

Collor

Franco

Cardoso I

Cardoso II

Lula

Total

Partido do Presidentena Câmara dosDeputados(% Cadeiras)

36,8

8,0

0,0

15,3

18,5

17,5

14,7

Coalizão de Governona Câmara dosDeputados(% Cadeiras)

64,4

34,8

58,7

73,4

72,8

50,4

59,1

Sucesso doExecutivo (%)

71,3

65,0

66,0

73,0

70,4

79,8

70,7

Dominância doExecutivo (%)

77,9

76,5

91,0

84,6

84,4

95,6

85,6

Fonte: Banco de Dados Legislativos, Cebrap.

6 Excluindo as 206 leis de origem do Judiciário.

7 A dominância, em realidade, se estende a produção de outras normas comoLeis Complementares e Emendas Constitucionais.

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245Presidencialismo e Governo de Coalizão | Fernando Limongi

A análise detida dos projetos de lei propostos pelo Executivo eque não foram aprovados revela que, em geral, não é possívelcreditar esse resultado à ação dos congressistas. O Legislativoestá longe de ser um obstáculo às pretensões manifestas peloExecutivo. (Para uma análise detalhada destes casos, consultarFigueiredo e Limongi, 1996. Para uma análise cuidadosa da legisla-ção referente à área de trabalho e sindical, ver Diniz, 2005).

Possíveis objeções ao significado destes dados serão tratadasadiante. Há dois pontos cruciais a frisar no momento. A dominân-cia e o sucesso do Executivo na arena legislativa são traços estrutu-rais do atual sistema político brasileiro. Se assim não fossem, sedependessem do tipo de coalizão formada pelo presidente ou desuas qualidades pessoais como negociador, como querem alguns,apresentariam maior variação governo a governo. Deve-se ressaltarque estes são traços do nosso sistema atual, posto que não eraassim sob o regime de 1946, como mostra a Tabela 3. Ou seja, hádiferenças significativas entre os dois textos constitucionais nãopercebidas pela maioria dos analistas. O sistema de governo e alegislação partidária e eleitoral não foram mudados. No entanto, otexto de 1988 trouxe consigo modificações de fundo na estrutura ena relação entre os poderes. O poder presidencial foi enormementereforçado, mantendo-se o espírito e as alterações impostas peloregime militar para fortalecer o Poder Executivo (ver Figueiredo;Limongi, 1995).

Os poderes de agenda que a Constituição de 1988 confere aopresidente não são, em si mesmos, suficientes para garantir suapredominância e sucesso legislativo, mesmo na sua versão maisextrema, o poder de alterar unilateralmente o status quo legal viaMedida provisória. O chefe do Executivo não pode legislar sem oapoio da maioria. Medidas Provisórias, por exemplo, só se tornamleis se aprovadas pelo plenário. O mesmo se dá em áreas de inicia-tiva exclusiva, como taxação e leis relativas ao orçamento. Sem oapoio da maioria, presidentes, simplesmente, não governam.

Tabela 3 - Legislação Ordinária. Produção Legislativa por GovernoBrasil (1949-1964*)

Governo

Dutra

Vargas

Café Filho

NereuRamos

Kubitschek

Quadros

Goulart*

Total

Partido do Presidentena Câmara dosDeputados(% Cadeiras)

52,8

16,8

7,9

33,9

33,9

2,1

23,5

24,3

Coalizão de Governona Câmara dosDeputados(% Cadeiras)

74,0

88,0

84,0

66,0

66,0

93,0

72,0

77,1

Sucesso doExecutivo (%)

30,0

45,9

10,0

9,8

29,0

0,80

19,4

29,5

Dominância doExecutivo (%)

34,5

42,8

41,0

39,2

35,0

48,4

40,8

38,5

* Até 31 de março de 1964. Os três primeiros anos da administração Dutra (1946-1948) foramexcluídos por falta de informação sobre a origem das leis.

Fonte: Banco de Dados Legislativos, Cebrap.

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246

A observação pode parecer óbvia, mas é necessária diante deduas objeções comuns, ainda que conflitantes. Primeiro, não sepode equiparar ou confundir o recurso a poderes de agenda comexpedientes antidemocráticos. Ou seja, os dados apresentados nãoindicam que estaríamos diante da reedição de algum tipo de cau-dilhismo ou autoritarismo disfarçado. Tampouco se justifica falarem um novo tipo de regime, a democracia delegativa, por exem-plo. Poderes de agenda incidem sobre a capacidade do presidentede formar e manter unida a coalizão partidária que o apóia.

Segundo: a referência para medir se o governo é ou não capazde governar não pode ser a vontade do Executivo. Isto é, se emdeterminada matéria não prevalecer a vontade do Executivo, não sepode inferir daí que tenhamos mau funcionamento do governo ouqualquer tipo de obstáculo estrutural à governabilidade. Se a vonta-de do Executivo prevalecesse, a despeito da preferência da maio-ria, então, aí sim, poderíamos definir o governo brasileiro comouma ditadura disfarçada. Não é este o caso, o governo depende damaioria, isto é, governa porque esta lhe apóia.

O fato é que os dados relativos ao sucesso e à dominância dogoverno apontam para uma grande proximidade entre a forma deoperar do presidencialismo brasileiro e os governos parlamenta-ristas. A presunção usual é a de que a dominância e sucessolegislativo dos governos parlamentaristas dependem do apoiodisciplinado dos partidos que sustentam o governo. Podemosestender esta presunção ao governo brasileiro? Esta possibili-dade pede, ao menos, consideração. Vejamos.

O objetivo é identificar qual a base e a natureza do apoio políticocom que conta o Executivo para aprovar sua agenda legislativa, oque pode ser feito recorrendo a dados relativos às votações nomi-nais que tiveram lugar na Câmara dos Deputados.

8 Se o apoio po-

lítico ao governo brasileiro segue os padrões usuais em sistemasparlamentaristas, então presidentes distribuem posições no minis-tério aos partidos políticos para obter apoio no Legislativo. Presi-dentes, então, devem “formar governos”, montar sua base de apoiocongressual. Se as coisas se passarem dessa forma, então parti-dos que recebem postos ministeriais passam a fazer parte do go-verno e, como conseqüência, passam a apoiar as suas propostas.Faz-se necessário, portanto, identificar a coalizão formada e testarse esta, de fato, dá suporte ao governo nas votações nominais.

A Tabela 4 traz informações relevantes sobre as coalizões degoverno formadas pelos presidentes no período pós-1988. A nor-ma tem sido a de formar coalizões majoritárias. Somente FernandoCollor não o fez, já que em nenhum momento chegou a contar comuma maioria na Câmara dos Deputados. Fernando Henrique e Lula,de outra parte, buscaram formar governos que lhes assegurassem

8 Inclui as votações dos deputados nas Seções Conjuntas do Congresso Nacional.A quase totalidade dessas votações se refere a medidas provisórias quetramitavam pelo Congresso Nacional até setembro de 2001.

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247Presidencialismo e Governo de Coalizão | Fernando Limongi

* Composição dos Blocos Parlamentares:

BLOCO 1 = PFL, PRN, PMN, PSC e PST;

BLOCO 2 = PFL, PSC, PRN e PL;

BLOCO 3 = PFL, PSC e PRN;

BLOCO 4 = PFL, PSC e PRS;

BLOCO 5 = PPB, PL, PMDB, PMN, PSC, PSD e PSL;

BLOCO 6 = PFL, PL, PMN, PSC, PSD, PSL e PST;

BLOCO 7 = PL e PSL.

As cadeiras dos membros dos partidos componentes do bloco só são contabilizadas quando os partidos permanecem nobloco por todo o período da coalizão.

** O PDT rompe oficialmente com o governo Lula e deixa a base aliada em 12/12/2003. No entanto, mantivemos o critériode mudança ministerial com a saída do ministro Miro Teixeira em 23/01/2004.

Fonte: www.planalto.gov.br; Meneguello, 1998; Banco de Dados Legislativos, Cebrap.

Elaboração: Argelina Figueiredo e Fernando Limongi.

Critérios: 1. mudança de mandato e mudança na composição partidária do ministério (saída ou entrada de ministro de umnovo partido formalmente membro da coalizão); 2. início de nova legislatura ou de bloco parlamentar, alterando, portanto, aporcentagem de cadeiras da coalizão no Congresso.

super maiorias em razão da importância que reformas constitucio-nais tiveram em seus governos. Note-se, por fim, que apenas oprimeiro governo civil formou uma coalizão composta por apenasdois partidos, os demais formaram coalizões multipartidárias.

Uma vez definidas as coalizões de apoio ao governo, o segundopasso é testar empiricamente sua força no plenário. O teste é faci-litado pelo fato de os líderes do governo e dos grandes partidosencaminharem votos antes das votações nominais. Assim, sabe-se como votam o governo e os principais partidos, sejam elesmembros da coalizão do governo ou não. Dessa forma, pode-seanalisar o comportamento tanto das bancadas partidárias como dacoalizão do governo.

Tabela 4 - Coalizões de Governo no Brasil – 1988-2004

Presidente

Sarney 2

Collor 1

Collor 2

Collor 3

Itamar 1

Itamar 2

Itamar 3

FHC I 1

FHC I 2

FHC II 1

FHC II 2

Lula 1

Lula 2

Partido doPresidente

PMDB

PRN

PRN

PRN

Sem Partido

Sem Partido

Sem Partido

PSDB

PSDB

PSDB

PSDB

PT

PT

Partidos nasCoalizões de Governo

PMDB-PFL

PRN-PDS-PFL

PRN-PDS-PFL (BLOCO1)*

PDS-PTB-PL-PFL (BLOCO2)*

PSDB-PTB-PMDB-PSB- PFL(BLOCO3)*

PSDB-PTB-PMDB-PP- PFL(BLOCO3)*

PSDB-PP-PMDB-PFL(BLOCO4)*

PSDB-PTB-PMDB-PFL

PSDB-PTB-PMDB-PFL-PPB(BLOCO5)*

PSDB-PMDB-PPB-PTB-PFL(BLOCO6)*

PMDB-PSDB-PPB

PT-PL-PCdoB-PDTPPS-PSB-PTB-PV

PT-PL-PCdoB-PPS-PSBPTB-PV-PMDB(BLOCO7)*

Início daCoalizão

06/10/1988

15/03/1990

01/02/1991

15/04/1992

01/10/1992

31/08/1993

25/01/1994

01/01/1995

26/04/1996

01/01/1999

06/03/2002

01/01/2003

23/12/2004

Duração daCoalizãoDias Meses

529 17,5

322 10,5

438 14,5

168 5,5

333 11

146 5

340 11

449 16

979 32

1.159 38

300 10

355 12,5

343 11,5

% Cadeirasna Câmara(na data de início)

64,40

29,70

34,59

43,54

60,04

55,64

55,27

57,26

77,19

76,61

45,22

41,91

61,21

Fim daCoalizão

14/03/1990

31/01/1991

14/04/1992

30/09/1992

30/08/1993

24/01/1994

31/12/1994

25/04/1996

31/12/1998

05/03/2002

31/12/2002

22/01/2004**

31/12/2004

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:30247

248

Evidentemente, nem todas as votações nominais envolverammatérias de interesse do Executivo. Só são consideradas na análi-se as votações em que houve manifestação explícita do líder dogoverno. Estas formam a “agenda legislativa do Executivo”. Pode-mos verificar o funcionamento da base do governo examinando arelação entre a posição do líder do governo e a dos partidos queintegram a base de apoio ao governo.

9 É importante ressaltar que

não há uma correspondência unívoca entre os projetos aprovados eas votações nominais. Leis ordinárias podem ser aprovadas porvotação simbólica. Além disso, uma mesma matéria pode ser ob-jeto de mais de uma votação, uma vez que, por exemplo, emendasàs proposições apresentadas podem ser objeto de votação nomi-nal. Além disso, definições da pauta e do próprio processo delibe-rativo — solicitações de urgência, encerramento de discussão, etc.— também podem provocar votações nominais.

As decisões mais importantes e controversas do ponto de vistapolítico tendem a provocar votações nominais. Isto porque essemodo de votação é obrigatório em matérias cuja aprovação exigequórum qualificado, como é o caso das emendas constitucionais edas leis complementares. Quando a aprovação da matéria depen-de de apoio de maioria simples, votações nominais ocorrem so-mente quando solicitadas pelos líderes partidários. Nestes casos,como o Regimento Interno estabelece um prazo mínimo de umahora entre o término de uma votação nominal e a apresentação deum novo requerimento, líderes devem usar estratégica e comedi-damente este recurso escasso, isto é, reservam seus requerimentosàs matérias mais importantes e politicamente sensíveis.

Vejamos, então, se de fato, a coalizão partidária formada peladistribuição de pastas ministeriais age no interior do Legislativo.Para tanto, a Tabela 5 distingue duas situações: quando todos oslíderes dos partidos da coalizão indicam posição similar à do líderdo governo e quando ao menos um dos líderes de um dos partidosque faz parte da coalizão anuncia posição contrária à do governo. Oprimeiro caso é classificado como uma votação em que a coalizãoage unida, e a segunda, como um caso de divisão na coalizão.Como se vê, em poucas ocasiões, 142 em 786 votações, há confli-tos entre os partidos da coalizão do governo, mesmo se utilizandoum critério deveras exigente para tomar a coalizão como unida. Ouseja, pode-se concluir que, ao menos do ponto de vista das lideran-ças e das posições públicas dos partidos, a coalizão ministerialcorresponde a uma coalizão legislativa. Resta analisar como secomportam os parlamentares.

9 Para evitar distorções na composição da amostra, foram usadas duas regrasadicionais para compor a agenda legislativa do Executivo. Em primeiro lugar,foram incluídas as votações de matérias introduzidas pelo governo mesmoquando o líder do governo não encaminha voto. Nestes casos é possíveldeduzir a posição do governo. Com isso, procura-se sanar dois problemas:omissões estratégicas, isto é, o líder do governo não indicaria voto ao anteciparderrotas e períodos em que o governo não conta com um líder em plenário.Além disso, foram excluídas as votações em que não há conflito partidário,isto é, as votações consensuais ou unânimes, evitando não inflar artificialmenteas taxas de apoio ao governo. Operacionalmente, uma votação é classificadacomo unânime se há consenso na orientação dos líderes dos sete grandespartidos e a minoria representa menos do que 10% dos votos válidos.

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249Presidencialismo e Governo de Coalizão | Fernando Limongi

Tabela 5 - Apoio da Coalizão de Governo à Agenda Legislativa do Executivo, Segundo a Indicação dos Líderes e os Votosdas Bancadas

Coalizão de Governo Coalizão Unida* Coalizão Dividida** Total

Sarney 2

Collor 1

Collor 2

Collor 3

Itamar 1

Itamar 2

Itamar 3

FHC I 1

FHC I 2

FHC II 1

FHC II 2

Lula 1

Lula 2

Total

* Todos os líderes dos partidos da coalizão de governo indicam de acordo com a indicação de voto do líder do governo. (Inclui casos emque pelo menos um líder libera a bancada.

** Pelo menos um líder dos partidos da coalizão de governo se opõe à indicação de voto do líder do governo.

*** % de votos dos membros dos partidos da coalizão de governo.

Fonte: PRODASEN, Câmara dos Deputados. Diário do Congresso Nacional; Banco de Dados

Legislativos do Cebrap.

N° votaçõesProjetos doGoverno

6

22

24

9

9

2

3

81

209

159

14

77

29

644

% deDisciplina***

90,7

95,0

93,1

94,6

90,7

93,9

95,9

90,0

87,8

93,8

92,4

95,6

90,1

91,4

N° votaçõesProjetos doGoverno

2

1

17

1

23

1

1

13

22

46

1

7

7

142

% deDisciplina***

41,57

40,21

55,1

77,3

72,3

78,3

69,6

62,0

69,9

79,6

64,8

67,4

67,3

70,1

N° votaçõesProjetos doGoverno

8

23

41

10

32

3

4

94

231

205

15

84

36

786

% deDisciplina***

78,4

92,6

77,4

92,9

77,5

88,7

89,4

86,2

86,1

90,7

90,5

93,2

85,7

87,6

A resposta está nos dados contidos na Tabela 5. Parlamentaresfiliados a partidos formalmente vinculados ao governo votam comseus líderes. Em média, 90,8% dos parlamentares votam favora-velmente à agenda do governo, quando a coalizão está unida semque se verifiquem variações significativas sob diferentes presidên-cias. Quando a coalizão está dividida, a disciplina dos parlamenta-res em relação ao governo cai para 66,8%.

10 Isto sugere que o

apoio dado ao governo pelos membros dos partidos da coalizãonão é incondicional. Quando líderes partidários se colocam contra ogoverno, parte dos parlamentares vota com seus partidos. Segue aconclusão: o apoio ao governo tem bases partidárias. Em outraspalavras, o governo negocia apoio com os partidos, e não individu-almente. O apoio do partido, em geral, garante o voto da bancada.

Partidos políticos são atores decisivos no interior do processolegislativo brasileiro. O processo decisório está longe de ser caóti-co ou ser governado por interesses individuais. O plenário é alta-mente previsível. Se as posições dos líderes partidários sãoconhecidas, é possível antecipar os resultados das votações nomi-nais. O governo não é derrotado por revoltas do plenário ou pelaindisciplina da sua base. Derrotas tendem a ocorrer quando o go-verno não conta com o apoio da maioria, quando acordos não sãofechados partidariamente. Por exemplo, o maior número de derro-tas do governo em votações nominais ocorreu sob a presidência de

10 Notem que esta média não pondera o tamanho da bancada do partidodissidente.

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:30249

250

Fernando Collor: 14 derrotas em 58 votaçõesem que a maioria simples era exigida. Comovimos, Collor não formou uma coalizão majo-ritária e, em muitas votações, apostou navitória contando com a indisciplina da ban-cada do PMDB. Assim, das derrotas quesofreu, 12 eram previsíveis, isto é, o governonão tinha apoio dos partidos que controla-vam a maioria das cadeiras. Quando Collornegociou e obteve o apoio do PMDB, não foiderrotado. O contraste com a performancede Fernando Henrique Cardoso não poderiaser maior. Em seus oito anos de presidên-cia, o governo FHC amargou 11 derrotas em191 votações de matérias que dependiamde quórum simples para sua aprovação. Abase do governo foi testada em 221 ocasi-ões em votações constitucionais, colhendoapenas 17 derrotas.

11 E é preciso entender o

significado de derrotas quando estamos fa-lando das matérias constitucionais: signifi-ca, na verdade, incapacidade para aprovaruma alteração do status quo constitucional.Isto é, o governo não conseguiu reunir os 3/5dos votos necessários para aprovar uma pro-posta. Derrotado, derrotado mesmo, no sen-tido da oposição lograr impor uma alteraçãoda constituição contrária aos seus interes-ses, o Executivo não foi uma vez sequer.

Em análises recentes, tem sido comumreconhecer que o governo FHC se mostroubem sucedido na arena legislativa ao sercapaz de introduzir modificações profundasno quadro legal do país. No entanto, man-tém-se o diagnóstico de que as instituiçõesvigentes tornariam o país ingovernável, atri-buindo o sucesso do presidente às suasqualidades pessoais, quando não à sua virtúpara dar tons mais elevados à explicação.O sucesso legislativo do governo FHC nãotem nada de especial. Sarney, Itamar e Lulacolheram resultados similares.

Em resumo, não há razões para tratar opresidencialismo de coalizão como signifi-cativamente diverso dos governos de coali-zão praticados sob regimes parlamentaristas.Estamos diante de um governo de coalizãoem seus moldes clássicos, isto é, em quepartidos organizam e garantem o apoio ao

Executivo. Este não é prisioneiro ou refémda sua base. Negociações políticas garan-tem a aprovação da agenda legislativa defi-nida pelo governo.

Parte 3:Das objeções

Pode-se argumentar que os dados apre-sentados não são suficientes para compro-var a capacidade do governo implementarsua agenda. Há inúmeras qualificações afazer que permitem suspeitar do alcance dosdados apresentados e das interpretaçõesavançadas. A dominância do Executivo so-bre a produção legislativa contaria apenasparte da história, uma vez que nada se dis-se sobre possíveis alterações feitas por par-lamentares por meio de emendas.

Como emendas podem representar des-de pequenas modificações e ajustes até acompleta desfiguração da proposta original,o mero cômputo do número de emendasaprovadas por projeto não basta para res-ponder à questão.

Cabe observar que não seria de se espe-rar ou mesmo desejável que os projetos en-viados pelo Executivo passassem incólumespelo Congresso. O Legislativo tem autorida-de e legitimidade para participar da elabo-ração das políticas públicas. Ou seja, aanálise da objeção pede mais do que a iden-tificação imediata de qualquer intervençãodos legisladores como um obstáculo às pre-tensões do Executivo. A questão de fundo,portanto, não é se emendas são ou não apro-vadas, mas sim como são, isto é, qual oprocesso que leva à aprovação de umaemenda.

A forma como os trabalhos legislativossão organizados, mais especificamente,como são regulados o direito a apresen-tação e apreciação de emendas é crucialpara entender a questão. A grande maioria

11 Para evitar confusões: uma emenda constitucional envolve um sem-númerode votações. Derrota não é o mesmo que rejeição da PEC proposta, mas simnão aprovação de um de seus pontos específicos.

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:30250

251Presidencialismo e Governo de Coalizão | Fernando Limongi

das propostas ordinárias apresentadas pelogoverno é aprovada sob regime de tramita-ção urgente. Isso implica a retirada do pro-jeto da comissão, diminuição dos prazos deapreciação e, este o ponto a frisar, imposiçãode restrições para consideração das emendasapresentadas. Nestes casos, em última aná-lise, são apreciadas apenas as emendas quecontam com apoio dos líderes partidários.

O fato é que o processo decisório no in-terior do Poder Legislativo se organiza emtorno das instâncias partidárias. A possibili-dade de participação individual na definiçãodo conteúdo das proposições legislativas élimitada. O Regimento Interno da Câmarados Deputados favorece os líderes partidá-rios cuja assinatura em questões procedi-mentais tem o peso proporcional à suabancada, ou seja, líderes são tomados comoagentes perfeitos das bancadas que repre-sentam, minimizando os custos da açãocoletiva dos partidos. Nestes termos, par-tidos, representados por suas liderançasformais, são peças centrais para qualquernegociação política envolvendo os interessesdo Executivo.

Note-se ainda que o Executivo conta comuma poderosa arma para lidar com emen-das indesejáveis ou contrárias ao seu inte-resse: o veto parcial e o total. Caso o projetoseja subvertido por meio da aprovação deemendas, o presidente pode simplesmentenão promulgá-lo, vetando-o na íntegra. Emcasos menos dramáticos, em que legisla-dores alteram aspectos específicos do pro-jeto ou aproveitam para usá-lo para pegar“carona”, o Executivo pode recorrer ao vetoparcial. O presidente faz amplo uso de am-bos os recursos. O veto parcial presidencialé usado, sobretudo, em suas próprias pro-postas, indicando que o presidente é capazde impedir mudanças indesejadas. Do totalde projetos aprovados de iniciativa do Exe-cutivo, 9,6% foram objeto de veto parcial.Quanto aos projetos propostos por legisla-dores submetidos à sanção presidencial,nada mais nada menos que 31,4% foramobjeto de veto total (Moya, 2006).

O significado dos vetos no interior dasrelações Executivo-Legislativo vai além dosaspectos notados acima. Isso porque, emgeral, os vetos presidenciais raramentechegam a ser considerados formalmentepelo Congresso Nacional. Isto é, não há umesforço visível para reverter a decisão presi-dencial. Se, de fato, tivessem expectativasde ver as propostas que aprovaram sancio-nadas, por que não procurar derrubar o veto?Uma possível explicação é que parlamen-tares sabem que a proposta será vetada,mas deixam ao Executivo o custo de fazê-lo.Outra possibilidade é de que os custos paraaprovar uma medida sejam sensivelmentemenores dos que os envolvidos para a consi-deração de um veto, afinal, vetos são anali-sados pelo Congresso Nacional em SessõesConjuntas, cuja convocação pede procedi-mentos próprios. Considerações estratégicasque envolvem a antecipação da ação do outroator, que, obviamente, não se encerram naquestão do veto, serão discutidas a seguir.

Seja como for, o fato é que a taxa de domi-nância do Executivo sobre a produção legis-lativa e o amplo uso que o presidente faz doveto sem que este seja contestado mostraque o Legislativo não é capaz de aprovar umaagenda alternativa à do Executivo. O núme-ro de projetos aprovados cuja iniciativa sedeve a legisladores é pequeno. Estudos decaso — e eles existem em bom número —mostram que as leis aprovadas a partir depropostas dos legisladores visam atenderinteresses miúdos e paroquiais (Almeida;Moya, 1997; Lemos, 2001; Ricci, 2003; Diniz,2005; Amorim Neto; Santos, 2003). Comojá foi dito anteriormente, esta assimetria éum produto direto das prescrições constitu-cionais que garantem ao Executivo a prerro-gativa exclusiva de iniciar a legislação nasáreas de maior importância. A vedação cons-titucional para a aprovação de legislação queenvolva gastos sem a previsão de seusrecursos neutraliza os incentivos com quecontariam deputados para propor medidasque beneficiem diretamente suas clientelaseleitorais. Os direitos legislativos para tantoforam subtraídos dos parlamentares.

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:30251

252

O significado das taxas de sucesso dasiniciativas presidenciais também pode serobjeto de questionamento. É perfeitamentepossível observar um presidente que rara-mente é derrotado e, ao mesmo tempo, queencontre no Congresso um obstáculo intrans-ponível para sua verdadeira agenda. Bastaque o presidente reconheça quais são asobjeções do Congresso às suas pretensõese não o desafie. Isto é, se o presidente ante-cipar corretamente quais as preferências doCongresso, só enviará as propostas quesabe, de antemão, serão aceitas. Seriamaprovadas apenas medidas anódinas, semmaior importância.

A objeção, uma vez mais, pede conside-ração aprofundada e, em última análise, nãopode ser respondida satisfatoriamente. Seatores forem capazes de antecipar correta-mente, se as relações forem modeladascomo um jogo em que atores têm informa-ção completa e perfeita, em equilíbrio, o pre-sidente só enviaria as propostas que sabeserão aprovadas (ver, por exemplo, Cameron,2000). Rejeições não deveriam ocorrer. Mastambém não deveriam ocorrer vetos, o Con-gresso também deveria ser capaz de ante-cipar as preferências do Executivo, nãoaprovando as emendas que sabe serão ve-tadas. No entanto, tanto rejeições das pro-postas enviadas pelo Executivo quanto vetosocorrem. Portanto, um modelo de informaçãocompleta e perfeita não é capaz de captaras relações envolvidas. Algumas possibili-dades podem ser consideradas.

Considere-se, por exemplo, que a infor-mação seja gerada pela própria repetiçãodas relações travadas no passado. A cadaproposta enviada e apreciada pelo Congres-so, o presidente recebe uma nova informa-ção sobre as preferências dos legisladores.Se o presidente usar a experiência anteriorcomo guia, isto é, o resultado das propos-tas submetidas no passado, há poucas ra-zões para suspeitar que ele seja levado arefrear significativamente suas pretensões.Para definir a estratégia do Presidente, é pre-ciso levar em conta ainda o fato de que ocusto em que incorre em função de umaderrota legislativa é relativamente pequeno.

Seu mandato, diferentemente do que sepassa com primeiros-ministros, não está emjogo. Ou seja, presidentes podem arriscar(Cheibub; Przeworski; Saiegh, 2004, p. 577).

O jogo não se encerra na arena legislativa.Tanto o presidente quanto os legisladoresestão de olho nas repercussões eleitorais deseus atos e decisões. Neste campo, umavez mais, o presidente conta com incentivospara tomar a dianteira e colocar o Congressoem posição desvantajosa. Presidentes po-dem apelar com maior facilidade à opiniãopública, invocando o interesse nacional delongo prazo, para obter concessões do Con-gresso.

Logo, a taxa de sucesso do Executivo éum indicador limitado de uma realidade maiscomplexa. Ainda assim, quando estes fato-res são considerados, eles não justificariama impotência do Executivo em virtude de umaantecipação de uma oposição renhida e crí-vel do Congresso. Para que essa resistênciaseja invocada, é preciso que sejamos capa-zes de identificar sinais da sua existência.Até onde eu saiba, isto nunca foi mostradode maneira convincente.

Recorrer a juízos e opiniões de membrosdo governo

12 e/ou inventariar as propostas

do Executivo veiculados pela imprensa13

nãoé suficiente para comprovar a existência de

12 STEPAN (1992, p. 242) pergunta o que é mais importante, se a aprovação damaioria das propostas enviadas pelo presidente ao Congresso, ou a decisãopresidencial de “não submeter formalmente ao Congresso a maior parte dasmedidas que deseja aprovar porque enxerga a existência de grupos deobstrução?”. A resposta é a seguinte: “Com base nas entrevistas que realizeicom ministros do governo Cardoso, no início de seu mandato e dois anosdepois, acho que a última opção é politicamente mais significativa.”

13 AMES (2003, p. 242) procura identificar a verdadeira agenda legislativa dopresidente para, assim, estudar o problema da não-decisão. Ames se pergunta“Como saber que proposições os presidentes iriam mandar ao Congresso sea aprovação lhes parece uma hipótese remota?” O autor argumenta que “amaioria das propostas razoáveis [do Executivo] é pelo menos ventilada naimprensa”. Em flagrante contradição com os supostos que informam suaanálise, o autor afirma em nota que a agenda compilada por este método“parte da hipótese de que as proposições originais do Executivo são sinceras,e não estratégicas.” Para além desses problemas, é difícil entender o métodode coleta de dados do autor. Ames chega a avaliar o sucesso de declaraçõesde ministros. Por exemplo, o que fazer com a seguinte “proposta” (Tabela 16,25/11/1993): “FHC diz que quer acelerar as privatizações e os cortes dosgastos do governo”. Mais difícil, ainda, é saber qual o critério para avaliar osucesso dessa proposta, quanto mais quando o conteúdo da decisãocorrespondente é: “Estoura o escândalo do orçamento, enfraquecendo acapacidade de o Congresso impor obstáculos às proposições do Executivo.”

Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:30252

253Presidencialismo e Governo de Coalizão | Fernando Limongi

uma agenda não submetida pela antecipa-ção da obstrução do Congresso. Este recur-so desconsidera os aspectos estratégicosinvocados para justificar a antecipação dereações. O anúncio de propostas e, mesmo,seu envio ao Congresso, é parte da estra-tégia do Executivo. O Executivo pode radica-lizar na proposta para depois ceder, recorrera “balões de ensaio”, ameaçar mexer aquipara obter vantagens acolá, etc. (ver Diniz,2005, para uma análise desse ponto). Emresumo, preferências são reveladas ao pú-blico como parte da relação estratégica emque os atores estão envolvidos.

Do ponto de vista metodológico, fica cla-ro que identificar a verdadeira agenda doExecutivo não é uma tarefa fácil. A identifi-cação da “segunda face do poder” há muitodesafia os cientistas políticos. Alguns pon-tos, no entanto, podem ser estabelecidos.Revelar uma suposta “verdadeira” ou “sin-cera” preferência dos atores políticos, ex-pressa privadamente, não é de qualquerinteresse. Interessa estudar as propostas quede fato integram o mundo político. Políticosatuam em um mundo repleto de restriçõespostas pelo aparato institucional e pelas pre-ferências dos demais atores. Para que umaproposta seja considerada como parte daagenda do Executivo deve-se requerer ummínimo de formalização. Objetivos e inten-ções não significam o mesmo que umaagenda. Por último, deve-se notar que pro-posições devem ser testadas tendo em vistasua própria formulação.

A tese de que o país viveria imerso empermanente “crise de governabilidade” pos-tula que o Congresso barrará as propostasfeitas pelos presidentes. As evidênciasempíricas nos mostram que tal obstáculosimplesmente não existe. Somente diantedessa constatação é que os analistas pro-curaram identificar uma agenda não apre-sentada. Na realidade, muitas vezes, aagenda não apresentada é inferida a partirdos resultados não obtidos. Por exemplo,Ames invoca a persistência da inflação,pobreza e desigualdade de renda como indi-cadores dos obstáculos postos pelo Con-gresso aos projetos presidenciais. O mínimoque se pede é a identificação de projetosefetivos com este fim não aprovados peloCongresso.

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Na verdade, o exemplo do combate àinflação deve nos alertar para os equívocoscontidos neste tipo de raciocínio. O PlanoReal foi aprovado sob a mesma estruturainstitucional que explicaria o fracasso dosPlanos Verão e Collor. Logo, o problema dofracasso do combate à inflação deve sercreditado a outros fatores. Não foi neces-sário reformar o sistema político para darfim à hiperinflação.

Custa a crer que “projetos” consistentese apoiados pela maioria da população nãosejam submetidos ao Congresso porque suarejeição seja antecipada com certeza. Sobre-tudo porque o presidente não pode ter suaspretensões barradas por minorias. Seu poderde agenda, expresso, no caso, na prerroga-tiva de editar medidas provisórias e de soli-citar urgência para apreciação dos projetos,impede que sua agenda legislativa seja“engavetada”. Isto é, o presidente está emcondições de forçar o Congresso a rejeitarexplicitamente a sua proposta. Por que o pre-sidente deveria ceder às ameaças veladasde congressistas? Por que não transferir o ônusda rejeição de uma proposta ao Congresso?

Em última análise, não há boas razõespara supor que as taxas de sucesso e domi-nância legislativa dos presidentes brasileirosescondam um governo acuado e paralisado.O significado destes índices não é diversodaquele que normalmente lhe é atribuído em

14 Ames inicia seu livro propondo a seguinte reflexão: “Imaginemos o seguinteenigma: um país formalmente democrático enfrenta durante anos crises deinflação, desperdício e corrupção no governo, déficits no sistemaprevidenciário, serviços sociais de má qualidade, violência e desigualdadesocial. Parcelas importantes da população apóiam os projetos destinados acombater estas crises. No Congresso, poucos parlamentares se opõem àspropostas por razões programáticas ou por pressão do eleitorado. E, apesardisso, os projetos raramente saem incólumes do processo legislativo. Muitossem qualquer chance de aprovação, jamais chegam às portas do Congresso.Outros morrem nas comissões. Alguns acabam sendo aprovados, mas ademora na decisão e concessões de substância minam seu impacto.Raramente o Executivo pode evitar o alto preço a pagar, em benefíciosclientelistas e patronagem, para obter apoio parlamentar” (2003, p. 15).

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regimes parlamentaristas. Do ponto de vistaanalítico, as objeções discutidas acima seaplicam igualmente à Inglaterra, à França, àDinamarca, etc.

A mera possibilidade de que o funciona-mento dos governos citados acima seja equi-parado ao do brasileiro desafia a credulidadede grande parte dos analistas. Existira umadiferença radical entre estes dois mundos,um mundo em que há partidos digno destenome e outro em que estes, simplesmente,inexistem. Dito de outra forma, a diferençade fundo estaria na forma como as taxas dedominância e sucesso legislativo são obti-das. Na Inglaterra e demais países citadosacima, o primeiro-ministro teria como ante-cipar a reação do Legislativo, uma vez que oParlamento é povoado por partidos discipli-nados. Já foi mostrado acima que no tocan-te à sua manifestação empírica, isto é, aosíndices de coesão dos partidos, os presi-dentes brasileiros contam com o mesmo tipode apoio. O funcionamento da base do go-verno, sua capacidade de garantir a aprova-ção das matérias de interesse presidencialestá acima de qualquer disputa. Em haven-do acordo com os partidos, a expectativade voto da base presidencial é da ordem de90% dos presentes. Ou seja, o plenário éperfeitamente previsível. As margens de in-certeza quanto ao resultado da votação sãomínimas, e é isto que importa para o Presi-dente. Análises feitas com as mais diversasmetodologias e seleção de casos revelam omesmo cenário: partidos são coesos.

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O que está aberto à discussão é o modocomo este apoio é obtido. A base funciona,mas o que a move? Qual o combustível usa-do? Que o Presidente, ou melhor, que o par-tido presidencial seja forçado a fazerconcessões para a montagem da sua coali-zão não é motivo de alarme. É da ordemdas coisas em governos democráticos. Paraobter apoio, o governo cede pastas minis-teriais e movimenta as políticas no espaçodecisório na direção dos parceiros que atrai.É assim que a se formam coalizões em qual-quer parte do mundo (Austen-Smith; Banks,1988; Cheibub; Saiegh; Przeworski, 2004).

As denúncias feitas por Roberto Jeffersonacerca da existência de pagamentos men-sais para azeitar o funcionamento da basedo governo teriam apenas provado o quetodos já saberiam. Sem vantagens diretas epalpáveis para os membros da base deapoio do governo, os parlamentares nãovotariam com o governo. O “mensalão” veioocupar o papel que se atribuía à liberaçãode verbas para a execução de emendas dosparlamentares. Ambos os expedientes reve-lariam um governo frágil, sempre pronto aceder às ameaças dos parlamentares.

Mas por que o Presidente seria forçadoa ceder? Seria, de fato, o Presidente o ladomais fraco nesta negociação? Custa crer.Está claro que o Presidente não fará “con-cessões de substância” ou pagará um pre-ço em “benefícios clientelistas e patronagempara obter apoio parlamentar” que excedamo valor esperado do projeto. Se o Presidentesabe calcular, está claro que não fará con-cessões que inviabilizem ou contrariem oprojeto.

Mesmo que se assuma que os parlamen-tares não tenham qualquer interesse realpelas políticas públicas, que só lhes inte-ressa obter vantagens, sejam elas eleitoraisou mesmo diretas para seus bolsos, a reali-zação desses interesses passa pelo aces-so aos recursos controlados pelo Executivo.Logo, na oposição, parlamentares não rece-bem nenhum desses benéficos e devemaguardar a próxima eleição. Esta a únicaameaça real que podem fazer, juntar-se àoposição e esperar a próxima eleição. Logo,se são tão interessados em benefícios, seestes são tão necessários para sua sobrevi-vência política, basta ao governo oferecer

15 A não ser que se recorra a raciocínios dúbios como a classificação propostapor AMES (2003, p. 262, nota 269) para votações contestadas eincontestadas. É difícil entender por que quando o PMDB, PFL e PSDB,membros da coalizão do governo FHC, votam, da mesma maneira o votodos líderes é definido como incontestado e, dessa forma, passa a ter menorpeso na análise dos coeficientes. Mais difícil ainda é saber qual critério queo levou a tomar o PDT e o PFL por referências para definir os votosincontestados do PPB. Já para o PDT, indicação similar ao PFL, representouausência de contestação. Note-se que as votações unânimes são excluídasda análise que adota o corte usual, isto é, maioria menor que 90%.

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qualquer valor maior que zero para obter co-operação. Deputados competem pelos re-cursos escassos controlados por uma únicafonte, o Executivo, este que fica em condi-ções de explorar esta situação em seu favor.

Tratar os parlamentares dotados de ummesmo interesse, mesmo que seja o dareeleição, desafia os fatos. Parlamentarescompetem por votos e, por isso mesmo,estão divididos em partidos. O poder de bar-ganha dos partidos cresce com o tamanhoda sua bancada e com suas perspectivaseleitorais futuras, isto é, com a possibilida-de de ganhar as próximas eleições presi-denciais. Logo, pequenos partidos nãoconstituem um problema para a construçãoda base do governo. Antes o contrário. Pordefinição, têm poucos votos a dar para oPresidente, e suas perspectivas eleitoraisfuturas não são propriamente auspiciosas.

Partidos maiores têm que pesar os próse contras de fazer parte do governo. O aces-so à máquina do governo e a formulação depolíticas traz dividendos, mas também en-volve custos eleitorais. Partidos com chan-ces de vitória em eleições futuras podempreferir aguardar. Ou, de outra parte, paraque os ganhos compensem os custos, po-dem não interessar ao governo, que contacom melhores opções para formar sua base.Por isso mesmo, pequenos e médios parti-dos são mais facilmente atraídos para a basedo governo do que os partidos grandes.

Na realidade, a experiência brasileiramostra que fazer oposição ao governo é umaopção que se reserva a poucos partidos,restrita aos partidos que podem aspirar diri-gir o governo em futuro próximo. Este foi ocaso do PT sob FHC e do PSDB/PFL sobLula. O PMDB, em ambos os períodos,ficou a meio caminho. A possibilidade deviabilizar uma candidatura presidencial pró-pria foi sempre o argumento dos que defen-deram que o partido fizesse oposição aogoverno. O reconhecimento da inviabilidadedessa alternativa alimentava os que propu-nham a adesão.

O combustível que sustenta a coalizãode governo no Brasil não é diverso do en-contrado em outros países. O processo de-cisório é desenhado de forma a favorecer as

iniciativas do governo. Este tem o direito depropor e, com isso, é capaz de estabeleceros termos da barganha com sua base desustentação.

Em resumo, a conclusão é a mesma aque se chega ao se examinar as objeçõesrelativas às taxas de sucesso e dominâncialegislativa. Em geral, salvo os preconceitos,os argumentos normalmente apresentadospara questionar o significado real das taxasde apoio à agenda legislativa do Presidentebrasileiro são igualmente aplicáveis aos de-mais países parlamentaristas.

O Executivo brasileiro está longe de es-tar paralisado. É descabido insistir na teseda crise de governabilidade após o governoter se mostrado capaz de aprovar tantasEmendas Constitucionais. Resta se apelarpara o caráter inconcluso ou incompleto dasreformas como prova das dificuldades dogoverno. As reformas aprovadas, tornou-seusual argumentar, foram parciais e, prova-velmente, as menos importantes. Há sem-pre uma reforma que poderia ter sidoaprovada. A agenda de reformas, no entan-to, não tem fim. A cada reforma feita, umanova agenda de reformas é proposta pelasagências multilaterais. Segundo a última con-tabilidade, o desafio atual é promover comsucesso a “terceira geração de reformas” (verMelo, 2005). E novas gerações de reformasnascem do reconhecimento das falhas daspropostas anteriores. Ou seja, o sucesso naimplementação da segunda geração não noslivra da necessidade de passar pela gera-ção seguinte. A conclusão é óbvia: o proble-ma pode estar na formulação das propostas.Dito de outra maneira, o resultado das políti-cas aprovadas e, mesmo, a sua qualidade,não pode ser o critério para mensurar o de-sempenho do governo. Estas são discussõesde outra ordem, isto é, que independem daestrutura do sistema político.

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Parte 4:Das conclusões

O que tomamos hoje como a definiçãodo parlamentarismo, a saber, a fusão e in-terdependência dos poderes Executivo eLegislativo é uma evolução não esperada enão teorizada de formas de governos mo-nárquicos. Para que o ponto fique claro, valea pena recorrer à caracterização do governoinglês de meados do século XIX oferecidapor Bagehot:

A breve descrição dos méritos característi-cos da Constituição Inglesa reside no fatode que suas partes relevantes são muitocomplicadas, antigas, veneráveis e, de certaforma, impositivas; enquanto sua parte efi-ciente, pelo menos enquanto grandes e crí-ticas ações, é decididamente simples emoderna. (…) O segredo da eficiência daConstituição Inglesa encontra-se na proximi-dade, na fusão quase completa dos poderesExecutivo e Legislativo. Segundo a teoria tra-dicional, a qualidade da nossa Constituiçãoconsiste na completa separação das autori-dades executiva e legislativa, mas, na verda-de, seu mérito consiste na sua aproximaçãosingular. O elo que conecta é o gabinete. Estanova palavra significa, segundo nosso en-tendimento, um comitê do corpo legislativoselecionado para ser o corpo executivo. (…)A legislatura escolhida para, em tese, elabo-rar a lei considera, de fato, como sua princi-pal função construir e manter o Executivo.

O presidencialismo é tradicionalmentecaracterizado como um sistema em que pre-valeceria a separação de poderes. A ênfasenessa característica leva a que se desconsi-derem as conseqüências dos poderes le-gislativos com que contam os chefes doExecutivo nos regimes presidenciais. Noentanto, quando estes são considerados,desaparece a rígida linha que dividiria o par-lamentarismo do presidencialismo.

Como mostrado nas seções anteriores,o Presidente brasileiro é, de jure e de fato, oprincipal legislador do país. De jure, porque aConstituição de 1988 confere ao Presidente aprerrogativa exclusiva de propor a alteração

da legislação nas áreas mais importantes,como orçamento, taxação e modificação daburocracia pública. Por isso, 85,6% das leisaprovadas após a promulgação da Consti-tuição de 1988 foram apresentadas pelo pre-sidente da República. Além disso, 71% detodos os Projetos de Lei submetidos ao Con-gresso pelos diferentes presidentes foramaprovados durante o seu mandato, a gran-de maioria deles no mesmo ano em que foienviado. Índices semelhantes de domínio esucesso são encontrados nas democraciasparlamentaristas.

A aprovação dos projetos presidenciaisé fruto do apoio sistemático e disciplinadode uma coalizão partidária. Em contraposi-ção às visões folclóricas vigentes, parlamen-tares seguem as orientações de seus líderes.O governo governa com apoio parlamentarestruturado e disciplinado. As votações no-minais do período 1989-2004 mostram queos partidos da coalizão do governo, ou seja,os que têm pastas ministeriais, apoiaramos projetos do governo. A disciplina médiadas bancadas que compõem a coalizão queapóia o governo foi de 90% ao longo do pe-ríodo, isto é, em uma votação qualquer, noveem dez deputados da base do governo se-guem a indicação de voto do líder do gover-no. As coalizões de governo no Brasil sãoformadas e obedecem a uma lógica que nãodifere da que se verifica em sistemas parla-mentaristas multipartidários.

O presidencialismo de coalizão, portanto,não é assim tão especial. O sistema políticobrasileiro produz decisões de acordo com amesma lógica que rege os demais sistemaspolíticos. O Executivo tem a prerrogativa daproposição, e suas iniciativas são aprova-das se apoiadas pela maioria. O presidentenão pode ir contra a vontade do Congresso.Por isso, precisa formar uma coalizão legis-lativa que lhe garanta a maioria necessária.Como lhe cabe se movimentar primeiro, oExecutivo pode explorar ao máximo as van-tagens estratégicas que tal prerrogativa lheconfere. Sobretudo, o Presidente pode usaro seu poder de agenda para formar e man-ter unida a sua base de apoio.

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257Presidencialismo e Governo de Coalizão | Fernando Limongi

O debate sobre a necessidade de reformaspolíticas no Brasil tem tonalidades surrealistas.Baseado em um diagnóstico institucional,ainda que considerações acerca da estruturasocial do país não fossem descartadas,advogou-se que reformas seriam necessáriaspara obter governabilidade. Presidencialismocombinado à representação proporcionalcom lista aberta seria uma fórmula explosiva,destinada a gerar partidos fracos e um Exe-cutivo impotente. Os defensores dessa fór-mula não se deram conta dos efeitos dasmodificações que a Constituição de 1988adotou em relação ao quadro vigente sob aexperiência democrática anterior. O PoderExecutivo foi reforçado, dotando-o do poderde agenda necessário para estruturar o pro-cesso decisório. O Poder Legislativo não fi-cou imune a essas transformações, passandotambém por uma redefinição de sua estru-tura organizacional e institucional que reco-locou a participação dos partidos no seuinterior. Sobretudo, o Regimento Interno daCâmara e do Senado tomam os partidospolíticos como as peças centrais em tornodas quais o processo decisório é organiza-do. Ou seja, do ponto de vista dos resulta-dos, o Brasil tem o que as reformaspreconizadas pretendem obter. O governoconta com as armas institucionais necessá-rias para governar. Nada que se assemelheà crise de governabilidade pode ser detec-tado pelas evidências empíricas disponíveis.Se democracias pedem partidos fortes, nostermos dessa formulação, os partidos bra-sileiros atendem esta exigência.

O Brasil, por certo, não é um país desen-volvido ou em que a pobreza e a desigual-dade tenham sido erradicadas, ou mesmo,talvez, enfrentadas com a seriedade e a fir-meza esperadas. Na verdade, as reformaspolíticas permanecem na agenda na medi-da em que seus objetivos se transformamna velocidade dos acontecimentos. As mes-mas medidas são propostas para sanarqualquer problema, dos riscos da radicali-zação política à paralisia governamental, docombate à inflação à erradicação da pobre-za, dos problemas da previdência ao com-bate à violência urbana.

Seja como for, o fato é que os governosbrasileiros ainda terão que se haver com inú-meras gerações e ondas de reformas. Até omomento, para as gerações e ondas já pro-postas, o sistema político brasileiro não foium empecilho. No frigir dos ovos, há de seconvir, o que constava no manual, foi apro-vado. Se as reformas, as já aprovadas e asfuturas, trarão os benefícios prometidos éuma outra questão. Uma questão que, combase nas evidências disponíveis, não passapela estrutura institucional adotada. Nemtodos os resultados de políticas podem serderivados das instituições. A política não seresume à escolha das instituições. Há mais,muito mais, em jogo.

(Este texto retoma temas desenvolvidos em trabalhosanteriores em co-autoria com Argelina Figueiredo. Souresponsável pela redação deste texto particular e,portanto, dos equívocos existentes.)

Referências

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Críticas ao Presidencialismode Coalizão no Brasil

Processos Institucionalmente Constritosou Individualmente Dirigidos?

Lucio R. Rennó

1. Introdução

O termo “presidencialismo de coalizão” foi cunhado por SérgioAbranches, em artigo publicado em 1988, e redescoberto recente-mente por vários autores que se debruçam sobre o tema da rela-ção Executivo/Legislativo e a questão da governabilidade no Brasil.Segundo Abranches, o sistema político brasileiro tem característicashíbridas (1988). A fim de evitar o trauma da paralisia decisória que,segundo interpretação dominante da crise de 1964 (Santos, 1986),em grande medida, resultou no golpe de Estado liderado por mili-tares, o sistema político brasileiro na Nova República tem um presi-dencialismo forte. Contudo, combina-se a isso uma maior capacidadede veto, de investigação e de influência na formulação de leis doPoder Legislativo.

Estabelece-se um sistema que prevê um Executivo com váriosrecursos de poder, como controle sobre o orçamento, uma burocra-cia repleta de cargos comissionados e mecanismos legislativosque facilitam o controle da agenda do legislativo, mas que define oPoder Legislativo como o local de negociação política última para aaprovação de leis.

1 Esses recursos facilitam que o Executivo seja o

iniciador das propostas legislativas e de formulação de políticaspúblicas. Mas, as novas regras deixam claro que o Executivo ne-cessita do apoio do Legislativo para governar. O Legislativo volta aser a arena de debate político por excelência e o lócus onde se dáa palavra final sobre as propostas legislativas. O Executivo precisanegociar com o Legislativo para ter sua agenda aprovada. O eixoda questão, portanto, passa a ser a formação de maiorias no Con-gresso.

Um fator a mais, é que a construção de apoio legislativo se dáem um ambiente de múltiplos partidos políticos. Essa é a grandediferença no funcionamento da relação Executivo/Legislativo no pe-ríodo democrático atual em contraste com o regime autoritário an-terior. Durante a ditadura militar, a dominância do Legislativo pelo

1 Não irei aqui discutir a relação Executivo-Legislativo nos estados da União.Para esse fim, ver SANTOS (2001). Para uma discussão sobre ohiperpresidencialismo brasileiro no nível estadual, ver ABRUCIO (1998).

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partido que apoiava o regime autoritário erapraticamente completa. Hoje, nenhum par-tido do Presidente, após as eleições presi-denciais de 1989, isoladamente obtevemaioria dos assentos no Congresso. Issosignifica que o Executivo precisa de coliga-ções com diversos partidos para poder apro-var seus projetos de interesse no Legislativo.Surge justamente daí o caráter de coalizãodo presidencialismo brasileiro. O jogo pas-sa a ser centrado na negociação entre Exe-cutivo e partidos políticos para construçãode apoio legislativo. Uma relação que antesera de apoio incondicional, após a redemo-cratização passa a ser de apoio negociado.A questão-chave do debate atual sobre o fun-cionamento do presidencialismo de coalizãoé justamente sobre os termos em que se dáa negociação entre Executivo e Legislativo ese os parâmetros da negociação variampelas diversas administrações, desde 1988,ou se são constantes, constritos institucio-nalmente. Na verdade, esse debate é talvezum dos mais interessantes e sofisticadosda literatura sobre política brasileira e temprestado contribuição significativa para adiscussão sobre política comparada naAmérica Latina.

O enfoque deste trabalho será discutir ascríticas acerca do funcionamento do presi-dencialismo de coalizão no Brasil. A ênfase,portanto, recai nas limitações, entraves epossíveis implicações negativas que o de-senho institucional presente possa ter paraa democracia no Brasil. Isso não quer dizerque não haja aspectos positivos no funcio-namento do sistema atual. Há, na verdade,um esforço por parte de alguns de demons-trar os lados positivos do presidencialismode coalizão. Tais argumentos fundamentam,inclusive, um ponto de vista desfavorável ànecessidade de reformas no sistema políticobrasileiro (Santos; 2006, Cheibub; Limongi;2006). Os aspectos positivos não serãoexaustivamente discutidos aqui, pois sãoexplorados em outros artigos deste volume.Contudo, há diversos autores que apontampara problemas no presidencialismo decoalizão. Segundo essa visão, há limitações

no atual arcabouço institucional e espaçopara reformas políticas.

As visões críticas podem ser divididasem três perspectivas: a primeira afirma queo sistema não permite a governabilidade.Os incentivos institucionais simplesmentelevam à paralisia decisória ou ao alto custode negociação entre Executivo e Legislativo,negociação essa que se dá de forma indi-vidualizada entre deputados e Presidente.A segunda não nega que o sistema funcio-ne com base na troca de recursos (cargos,emendas orçamentárias) e não apenas nadiscussão programática entre partidos, masque essa troca é intermediada por liderançaspartidárias. Ou seja, lideranças partidáriasda base aliada e o Executivo discutem osaspectos programáticos das propostas legis-lativas e utilizam recursos financeiros legaisa fim de criar um incentivo a mais para aobtenção de cooperação dos deputados.Essas duas visões têm em comum o enfo-que na construção de maiorias dentro doLegislativo. Discutem os mecanismos usadospelo Executivo para obter cooperação dosdeputados federais.

A terceira visão crítica enfoca principal-mente a discussão sobre qual é a naturezada relação entre Executivo e Legislativo, seuma de delegação ou de ação unilateral, ese há variação no tempo nos termos dessarelação. O ponto central, nesse caso, é queo presidencialismo de coalizão não funcionade forma uniforme através das distintasadministrações que governaram o país. Odesenho institucional não condiciona deforma fixa o comportamento dos atores, ge-rando incentivos contraditórios que ampliamem demasia a margem de manobra de go-vernantes e dão muito espaço para que acapacidade individual dos governantes tenhapapel central no gerenciamento da basede apoio no Congresso e na formação demaiorias. Cada uma dessas visões seráexplorada em seqüência no texto. Mas, antes,cabe uma rápida revisão da visão mais favo-rável ao presidencialismo de coalizão.

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261Críticas ao Presidencialismo de Coalizão no Brasil ... | Lucio R. Rennó

2. As vantagens de coordenação do Executivo

Argelina Figueiredo e Fernando Limongi desenvolveram em suapioneira e vasta obra um argumento muito forte favorável ao funcio-namento do atual sistema político brasileiro (1995; 1999; 2000). Aidéia central é que a predominância do Executivo provê ordem aofuncionamento do sistema político e garante a governabilidade. Talpredominância deve-se, principalmente, às regras de funcionamentointerno da Câmara, que geram incentivos para a atuação legislativaativa do Executivo. Os incentivos institucionais existentes dentro daCâmara são o principal determinante da relação Executivo/Legisla-tivo, na visão desses autores.

O Executivo tem direito a apresentar medidas provisórias e apedir urgência, dois mecanismos que facilitam o controle da agen-da legislativa. Além disso, o processo decisório dentro da Câmarados Deputados é muito centrado nas lideranças partidárias e namesa diretora. Comissões Permanentes da Casa têm poderes de-cisórios e de alocação de recursos bem mais restritos do que noperíodo de 1946 a 1964 (Santos; Rennó, 2004). Deputados que nãoexercem uma das poucas posições de poder na hierarquia da Casanão têm influência sobre o processo de tomada de decisão.

2 Por-

tanto, o arcabouço existente favorece a predominância legislativado Executivo.

A Figura 1 não deixa margem para dúvidas de que o processode produção de leis no Brasil é liderado pelo Executivo. No períodode 1946 a 1964, o Poder Legislativo era o principal legislador nopaís. O Legislativo tinha mais instrumentos de poder, como aloca-ção de mais recursos orçamentários e maior capacidade decisória

Executivo

Legislativo

Judiciário

Figura 1 - Produção Legislativa no Brasil por Instituição Iniciadora

2 Dentre as posições de poder no Legislativo, a Presidência da Mesa Diretoraganha relevância maior, pois é esse posto que controla a agenda da Casa. Porisso, não surpreende que o Executivo se preocupe tanto em ter um aliado,preferencialmente de seu partido ou um elemento de confiança de outropartido, mas da base governista, na presidência das duas Casas. Tambémnão surpreende as constantes tentativas de revolta do “baixo clero”, osdeputados que não têm posições de influência no Congresso e que sesentem excluídos do processo decisório. A vitória surpreendente do DeputadoSeverino Cavalcante para a Presidência da Câmara dos deputados foi, emgrande parte, um sinal claro da insatisfação de um grande número de deputadosque se sentem mudos no processo decisório.

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das comissões permanentes. Prevalecia um padrão muito maisclaro de fragmentação do poder dentro do Poder Legislativo e delimitação da capacidade do Executivo de liderar o processo legisla-tivo. Segundo Wanderley Guilherme dos Santos é a fragmentaçãodo poder dentro do Congresso, naquele período, que está na es-sência da existência de impasses sobre políticas necessárias e daparalisia decisória que contribuiu decisivamente para o golpe (1986).

O que se vê, durante o regime militar, é uma centralização muitogrande de poder nas mãos do Executivo e a completa usurpaçãode poder do Legislativo. O Legislativo passa a ser figura decorativano Brasil e existe apenas para dar aparência democrática ao que,de fato, era um regime de exclusão política, social e econômica.Com o retorno de governos civis ao poder e com a Constituição de1988, mantêm-se vários instrumentos de poder nas mãos do Exe-cutivo, mas se dá maior capacidade de influência legislativa e deinvestigação ao Congresso que no regime militar. É o arcabouço dopresidencialismo de coalizão.

Uma diferença também significativa entre o período democráti-co atual e o anterior, que indica a maior centralização de recursosde poder nas mãos do Executivo e de lideranças partidárias, dizrespeito ao funcionamento interno dos partidos políticos. O grau delealdade partidária, de deputados votarem de forma idêntica aosseus companheiros de legenda e de seguirem as indicações doslíderes, é muito maior no período atual. As Figuras 2 e 3, original-mente apresentadas em Santos e Rennó (2004), mostram que, noplenário como um todo, a média dos deputados que votam juntocom a linha partidária de 1991 a 1998 é bastante superior à médiado período de 1946-1964. Além disso, no período mais recente,uma grande parte dos deputados se encontra acima da média(Santos; Rennó, 2004).

Figura 2 - Lealdade Partidária, 1951-1963

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Além disso, há uma grande previsibilidade no comportamento departidos políticos dentro da Câmara. Segundo Figueiredo e Limongi(1995), os partidos políticos se alinham em um espectro ideológicoclaro que distingue uma coalizão de apoio ao Presidente e um con-junto de partidos de oposição. Saber o partido de um deputado,segundo essa perspectiva, permite prever as escolhas que o depu-tado fará frente às propostas em discussão na Casa.

Por último, uma crítica comum que se faz aos partidos dentroda Câmara refere-se às constantes mudanças partidárias de seusmembros. Muda-se de partidos com muita freqüência, o que é tidopor alguns como um sinal de fragilidade das lideranças partidáriasem controlar os membros do partido (Mainwaring, 1999). ScottDesposato, contudo, demonstrou recentemente que as mudançassão, de fato, indicações de depuração dos partidos políticos (2006).Os políticos que mudam de partido já tendiam antes da mudançaa votar de forma mais similar aos membros do partido para o qualeles/elas se transferiram do que o partido de origem (Desposato,2006). Portanto, partidos passam a ser vistos como atores-chavesno processo legislativo que tem como ator principal o Poder Execu-tivo. A centralização gerada pelos mecanismos institucionais queexistem dentro do Congresso é que impede a paralisia decisória eque fica como um contraponto a outras dinâmicas institucionaisque estimulam a fragmentação de poder, também existentes noBrasil.

Contudo, a pergunta que fica no ar é o que, de fato, gera acooperação de membros do partido (backbenchers) com as lide-ranças partidárias, e, em última análise, com o Executivo? É essapergunta que se fazem os principais críticos do funcionamento dopresidencialismo de coalizão no Brasil.

Figura 3 - Lealdade Partidária, 1991-1998

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3. Os entraves àdemocracia no Brasil

Os críticos mais ácidos do funcionamentodo sistema descrito acima argumentam queele gera incentivos para a descentralizaçãode poder dentro da Câmara e fragiliza a ca-pacidade de coordenação e agregação daspreferências, reduzindo a capacidade de for-mação de maiorias e gerando paralisia deci-sória (Lamounier, 1994; Novaes, 1994; Ames,1995, 2001; Mainwaring, 1999; Samuels,2003). Segundo essa visão, o Congresso é ouniverso do parlamentar individualizado. Osincentivos eleitorais gerados pelo sistema pro-porcional de lista aberta reduzem os incenti-vos para a cooperação de deputados frenteàs lideranças partidárias e engendra umanegociação direta entre deputados e Presi-dente. Por que o Executivo controla o orça-mento da União, que é autorizativo ao invésde mandatório, e por que o encaminhamentode recursos orçamentários tem papel impor-tante no sucesso eleitoral de deputados,deputados trocam apoio às propostas legis-lativas do Presidente por liberação de recur-sos orçamentários pelo Executivo que serãodestinados às bases eleitorais dos deputados(Pereira; Mueller, 2002, 2003; Pereira; Rennó2001, 2003). Segundo essa visão, é a trocade recursos públicos por apoio que permiteque o sistema funcione.

Provavelmente, o crítico mais veementedo funcionamento da relação Executivo/Le-gislativo no Brasil é Barry Ames (1995;1995a; 2001). Para ele, o que define essarelação é a tentativa exaustiva do Executivoe dos líderes partidários em obter a coope-ração dos membros do partido nas votaçõesde propostas do Executivo. Para Ames, osistema é ineficiente porque gera incentivospara a não-cooperação e para a proliferaçãode atores políticos com capacidade de veto.

3

A negociação, então, passa a ser cara e ine-ficiente, levando, se não à paralisia decisória,pelo menos ao atraso na aprovação de refor-mas necessárias e à modificação das pro-postas originais, às vezes alterando de formaradical seu conteúdo e seu efeito prático. Para

Barry Ames, os sucessivos fracassos naaprovação de reformas necessárias duran-te o governo FHC, a despeito de uma coali-zão de apoio bastante grande e consistente,é sinal que o apoio não era automático eorientado pelas lideranças partidárias.

A pergunta que Ames coloca é o queexplica a cooperação de deputados às lide-ranças partidárias. A resposta é simples:pork barrel. Pork barrel é o termo utilizadopela literatura americana para se referir, deforma pejorativa, a políticas distributivistas,que Theodore Lowi define como tendo be-nefícios concentrados e custos difusos(1963).

4 São as trocas de apoio por políticas

distributivistas, na forma de emendas orça-mentárias, que fazem com que o sistemapolítico brasileiro funcione, mas esse funci-onamento é subótimo, ineficiente. Pior, oLegislativo, principalmente pelos incentivosde caráter personalista e descentralizador dosistema eleitoral, foca muito mais na formu-lação de políticas localistas, de caráter cli-entelista, do que de políticas nacionais. Asimplicações, portanto, da troca de apoioentre o Legislativo e o Executivo é bastanteprejudicial à democracia brasileira. Essastrocas favorecem a continuidade de práticasantigas, mas ainda arraigadas, de cliente-lismo, fisiologismo e patrimonialismo, quepodem, em último caso, estar na base depráticas corruptas. Para Ames, um dos pro-blemas centrais do arcabouço institucionalbrasileiro é que ele não restringe suficiente-mente essas práticas que podem resultarem perdas coletivas graves e que um paísem desenvolvimento e necessitando drama-ticamente de reformas estruturais não sepode dar ao luxo.

Diferentemente de Limongi e Figueiredo,que dão maior importância para os compo-nentes centralizadores do sistema políticobrasileiro e enfatizam a predominância doExecutivo, Barry Ames enfoca muito maisos componentes de descentralização de

3 A interpretação de Ames é bastante influenciada pela discussão teórica deTSEBELIS (2002).

4 Para uma discussão sobre o impacto de políticas de pork barrel nos EstadosUnidos, veja STEIN e BICKERS (1994).

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poder, através do destaque dado ao impactodo sistema eleitoral. Fica claro, portanto,que o arcabouço político brasileiro gera incen-tivos contraditórios para os atores políticos.Elementos de centralização coexistem comdinâmicas que descentralizam o poder. Éjustamente nesse ponto, a existência de dinâ-micas institucionais contraditórias, que seembasa a segunda visão crítica sobre o funcio-namento do presidencialismo de coalizão.

4. Incentivos institucionaiscontraditórios

Para Pereira e Mueller (2003), o sistemapolítico brasileiro tem dimensões contradi-tórias. Há elementos que descentralizam opoder e há outros que centralizam o proces-so de tomada de decisão nas mãos de pou-cas lideranças. O sistema eleitoral, a estruturafederativa e o sistema pluripartidário, semdúvida, aumentam o número de atores polí-ticos com poder de veto e dificultam a cons-trução de apoio legislativo ao Presidente. Jáas regras internas da Câmara dos Deputa-dos e as prerrogativas legislativas do Presi-dente centralizam o processo decisório naslideranças partidárias e no Executivo. Essadinâmica contraditória, por exemplo, levaPereira e Mueller a argumentarem que ospartidos políticos são fortes na arena legis-lativa e, simultaneamente fracos, na arenaeleitoral.

Dentro do Legislativo, partidos políticoscoordenam a negociação pelo apoio às pro-postas do Executivo e influenciam o conteú-do programático dessas decisões. Fora doPoder Legislativo, quando da competição emeleições, partidos não funcionam claramen-te como mecanismos de orientação do votoe não afetam determinantemente a sorte elei-toral de seus membros. Essa dualidade épossível porque as leis que regulam eleiçõese que levam à fragilidade eleitoral de parti-dos são contrabalançadas pelas leis queregulam a interação entre partidos e Execu-tivo dentro do Legislativo. Diferentemente deBarry Ames, essa visão reconhece que há

mecanismos de centralização de poder.Barry Ames os desconsidera em sua análi-se, argumentando que mecanismos com oColégio de Líderes não têm autonomia deci-sória dentro da Câmara dos Deputados.

De forma similar a Barry Ames, no en-tanto, Pereira e Mueller (2002; 2003) argu-mentam que dentro do Legislativo, a relaçãoentre lideranças partidárias e o chamado“baixo clero” se dá com base na redistri-buição de políticas distributivas e cargos emtroca de apoio às propostas acordadas entreas lideranças partidárias da base governistae o Presidente. A diferença principal dessavisão em relação à posição de Ames é quea troca de recursos públicos controlados peloExecutivo por apoio no Legislativo não se dáde forma descentralizada, mas é interme-diada pelas lideranças partidárias. O Exe-cutivo discute com as lideranças partidáriaso conteúdo programático das propostasencaminhadas ao Legislativo, fornece os re-cursos públicos que irão facilitar aos líderespartidários a obtenção de apoio e, posterior-mente, premia os deputados que, de fato,votaram favoravelmente ao Executivo seguindoa indicação dos líderes partidários.

O mais importante na argumentação dePereira e Mueller (2002) é que o custo de segovernar baseado na distribuição de recur-sos públicos é baixa. Embora o sistema pri-vilegie as trocas localistas e clientelistas, issonão significa que o Legislativo não participena discussão sobre temas nacionais e nãoacarreta custos altos ao Executivo, tendo emvista que o gasto com emendas orçamentá-rias individuais de deputados federais é pe-queno, comparado com outros gastos dogoverno. Mais ainda, Pereira e Rennó (2001;2003) argumentam que o fato de emendasorçamentárias terem papel central nas chan-ces de sobrevivência eleitoral de deputadosfederais não indica que não haja algum tipode controle dos eleitores sobre seus repre-sentantes. Esse controle existe e enfoca opapel do deputado na alocação de recursosque melhoram a qualidade de vida de loca-lidades que não receberiam esses recursospor outro meio. Em um país que necessita

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de melhoras infra-estruturais urgentes, opapel de deputados federais em trazer ben-feitorias para localidades sem recursos deveser visto de forma positiva.

Segundo essa visão, como conclusão, osistema se encontra em um equilíbrio quepermite a governabilidade e que dá aos par-tidos políticos na esfera legislativa espaçopara negociar com o Executivo o conteúdo eo timing das propostas apresentadas. Avisão, portanto, tenta combinar a análisede Figueiredo e Limongi, que enfoca asinstituições internas da Câmara e seus in-centivos centralizadores, com a visão deAmes que enfatiza os incentivos descentra-lizadores gerados pelo sistema eleitoral. Acombinação dessas duas perspectivasresulta em uma visão menos negativa do quea de Ames sobre o funcionamento do sis-tema brasileiro, mas uma que ainda res-salta de forma contundente que uma dasmoedas centrais de troca entre o Executivoe o Legislativo são cargos na burocracia ea execução de emendas orçamentárias.

5. Delegação, ação unilaterale processos individualmenteorientados

Por último, uma terceira visão crítica aofuncionamento do presidencialismo de coa-lizão enfoca a natureza da relação entre Exe-cutivo e Legislativo no Brasil. A pergunta quese coloca é se o Executivo age ao largo dosinteresses do Legislativo ou se há uma co-munhão de preferências entre os dois pode-res que resulta no Legislativo delegando aoExecutivo a tarefa e os custos de apresentarpropostas legislativas que são do interesse deambos. A idéia é que o Executivo, por contade seus recursos de poder, como cargos econtrole do orçamento, tem mais facilidadepara resolver problemas de coordenação den-tro do Legislativo. Além disso, o Executivotem instrumentos legislativos que o próprioLegislativo não dispõe como medidas provi-sórias (MPs) e pedidos de urgência, queaceleram o processo de tomada de decisão.

Na verdade, a discussão sobre delegação eação unilateral problematiza o papel das MPsna relação Executivo/Legislativo e se preo-cupa menos com a formação de maioriasdentro da Casa, que é o foco dos debatesresumidos nas seções anteriores.

Amorim Neto e Tafner (2002), seguindoFigueiredo e Limongi (1999), argumentamque o uso de medidas provisórias não signi-fica necessariamente uma usurpação depoder por parte do Executivo, mas indica simuma relação onde o Legislativo delega aoExecutivo o papel de iniciador das propos-tas legislativas. Ou seja, o Legislativo nãoabdica de seu papel no processo legislativo,mas assume uma posição onde os custosda negociação de propostas e de aprovaçãode projetos passam a ser incumbência doExecutivo. Ainda mais, a base de apoio dopresidente no Congresso participa ativamenteda formulação de propostas e assume res-ponsabilidade por garantir o apoio dos mem-bros de seus partidos aos projetos propostos.Obviamente, o apoio só é garantido quandoa proposta não vai de encontro aos interessesdos membros do Legislativo. Ou seja, trata-sede um apoio do Legislativo condicional nãoapenas à troca de espólios do poder, mastambém ao fato do conteúdo programáticoda proposta satisfazer as preferências dospartidos da base de apoio ao governo.

O ponto mais importante da discussãode Amorim Neto e Tafner, onde eles acres-centam ao argumento de Figueiredo e Limon-gi, é a idéia de que o Legislativo controla ouso de medidas provisórias. Na essência daidéia de delegação está a presença de algumcontrole por parte de quem delega sobre aação do agente que recebe a delegação.Pois bem, o Legislativo controla o uso demedidas provisórias, segundo Amorim Netoe Tafner (2002), através de mecanismos de“alarme de incêndio” e não através demonitoramento constante. A reedição demedidas provisórias funciona como umapostura de espera por parte do legislativopara avaliar a reação da sociedade civil aoimpacto da medida provisória. Caso algumgrupo social seja negativamente afetado

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pela medida e se manifesta contrário, issofunciona como o acionamento de um alar-me de incêndio, que leva o Congresso areexaminar a medida. As reedições, navisão desses autores, são sempre alteraçõesde curso da proposta inicial levando emconsideração as objeções de grupos dasociedade civil captados pelo Congresso eacrescentados às novas versões das MPs.Dessa forma, o Congresso Nacional delegaao Executivo os custos de propor a política,mas monitora seu funcionamento e realizaajustes de curso.

Até aí, não há crítica nenhuma ao funcio-namento da relação Executivo/Legislativo noBrasil. A crítica, no entanto, vem em um ou-tro momento do argumento de Amorim Netoe Tafner. Um ponto que os autores trazem éque o presidencialismo de coalizão, confor-me a descrição feita por Abranches, só existemesmo no Brasil durante a primeira admi-nistração de Fernando Henrique Cardoso.Para esses autores, em períodos anterioreso sistema não funcionava de acordo com apremissa de que o Legislativo exercia con-troles claros sobre o Executivo e que esteúltimo conseguia construir maiorias consis-tentes e cooperativas. Portanto, o presiden-cialismo de coalizão não é um resultado clarodo arcabouço institucional brasileiro, comodefendem Figueiredo e Limongi, mas simum momento, possivelmente de exceção,durante uma administração que soube recom-pensar seus aliados e lhes dar voz no pro-cesso de formulação legislativa. Nos períodosde Sarney, Collor e Itamar Franco, não se podefalar de uma relação Executivo-Legislativo nosmoldes em que ela se dá na administraçãode Fernando Henrique Cardoso.

Pereira, Power e Rennó (2005; 2005a)fazem argumento semelhante. Esses autorescontrastam duas visões distintas sobre comose dá a relação entre Executivo e Legislativo.A primeira é a visão de que o Executivo ageunilateralmente, passando ao largo do Legis-lativo em suas decisões. O Executivo assumeessa postura principalmente porque encon-tra um ambiente de conflito e pouca coope-ração dentro do Legislativo e não consegueconstruir maiorias de apoio que permitam

que seus projetos legislativos sejam apro-vados. Para permitir que decisões sejamtomadas, o Executivo, então, apela para ouso de medidas provisórias para reduzir ainfluência do Legislativo no processo deci-sório. A reedição de MPs, nessa visão, éapenas um mecanismo de perpetuação daspropostas tomadas a fim de evitar a partici-pação do Legislativo.

A perspectiva da ação unilateral é con-traposta por Pereira, Power e Rennó à visãode que o Legislativo delega ao Executivo opapel de propor políticas e de negociar seusucesso. Nesse último caso, o uso de MPsse daria em um ambiente de concordânciae de cooperação entre Executivo e Legislativoe é um instrumento para tornar o processolegislativo mais rápido e eficiente. O uso deMPs não vem de encontro ao uso de outrosmecanismos de legislar, como Projetos deLei (PLs). O executivo usa diversos instrumen-tos para governar, sejam eles legislação ordi-nária (PLs, PLPs, etc.) ou extraordinária (MPs),sem visar com isso usurpar poder do Legis-lativo. Muito pelo contrário, toma as iniciati-vas contando com o apoio do Legislativo.

Estes autores concluem que no períodode 1988 a 1998 há uma variação por admi-nistração no uso de medidas provisórias.Essa variação não se dá quanto ao númeroabsoluto de medidas provisórias editadas.Outrosim, se dá quanto ao padrão de rela-cionamento entre Executivo e Legislativo nasadministrações de Sarney, Collor, ItamarFranco e Fernando Henrique Cardoso, todasdeveras condicionadas pelas diferenciadashabilidades dos distintos presidentes da re-pública e suas administrações de construirmaiorias no Congresso. O argumento é queessas variações contextuais impactaram asestratégias do Executivo sobre qual meca-nismo de formulação legislativa empregar eimpactaram a reação do Congresso frenteàs medidas provisórias. Ou seja, prevaleciauma relação de ação unilateral por partedo Executivo. Já no período FHC, quando oPresidente gerenciava sua coalizão de formabastante proporcional e contava com apoiomaior dentro do Legislativo, prevalecia uma

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relação de delegação do Legislativo para oExecutivo.

5 O impacto do ambiente interno

da Câmara, nas administrações de Sarney,Collor e Itamar Franco, quanto mais negativaem relação ao Executivo, mais levava ao usode medidas provisórias. Já no governo deFHC, quanto menos conflituosa e mais coo-perativa a relação entre Executivo e Legisla-tivo, mais MPs o governo usava. Essesachados levam os autores a argumentar queo uso de MPs em um momento de conflitoé uma forma de evitar que o Congresso blo-queie a proposta do Executivo; é, portanto,uma tentativa de usurpação do poder do Con-gresso. Por outro lado, o uso de MPs emum momento de cooperação entre Executi-vo e Legislativo é sinal de que o Legislativoconcorda com a MP. Nesse último caso, MPspassam a ser apenas um mecanismo deeficiência legislativa, pois aceleram a trami-tação de propostas que são do interesse tan-to do Executivo quanto do Legislativo.

Uma comparação no uso de MPs, me-didas extraordinárias de legislar, e PLs, legis-lação ordinária, nas diferentes administraçõespermite a análise da variação no uso de pro-postas distintas pelas diferentes administra-ções. Serão examinadas, de forma bastantesimples e apenas ilustrativa, duas hipóteses.A primeira é que o uso de estratégias mistas,combinando MPs e PLs, é sinal de dele-gação. O uso exagerado de MPs em compa-ração à PLs é uma indicação de açãounilateral. Já o Presidente que alterna o usode ambos os tipos de legislação as utilizapara avançar sua agenda governativa, semnecessariamente usar medidas extraordiná-rias para limitar a participação do Congresso.A segunda hipótese é que a variação, pormês, nas estratégias de uso dos diferentestipos de proposta legislativa, medida pelodesvio padrão, deve ser menor em ambientesmais estáveis, onde há maior apoio legisla-tivo e menos imprevisibilidade no comporta-mento do Legislativo. Ou seja, em ambientesmenos conflituosos e onde prevalece umarelação de delegação, o Presidente usa deforma consistente e previsível todos os me-canismos de legislar de que dispõe.

As médias mensais de uso de MPs ePLs nos 18 meses da administração Sarney,contidas no banco de dados de Pereira, Po-wer e Rennó (2005), são de sete e cinco comum desvio padrão de aproximadamente cin-co unidades para cada caso. Para os 31meses do governo Collor, as médias sãorespectivamente três MPs por mês e seisPLs por mês, com desvios padrão de aproxi-madamente cinco unidades em ambos oscasos. Nos 27 meses de administração deItamar Franco, as médias de ambos os ti-pos de legislação giram em torno de cincocom desvios padrão de aproximadamenteseis. Nos 48 meses do primeiro mandatode FHC, as médias são em torno de trêsMPs e quatro PLs, e o desvio padrão deambas é aproximadamente de dois.

A primeira hipótese levantada acima nãofavorece o argumento que há muita variaçãono uso de uma estratégia mista. Todas asadministrações usam, com freqüência si-milar, MPs e PLs. A exceção é Collor, quetende a usar mais PLs do que MPs, o quepode vir como uma surpresa para muitos,haja vista sua conflituosa relação com o Con-gresso. Isso favorece a idéia de Figueiredoe Limongi de que o impacto do presidencia-lismo de coalizão é constante nas estratégiaslegislativas do Executivo. Contudo, a avaliaçãoda média não é suficiente. A média mascarao padrão em que se deram as escolhas notempo e é sensível aos valores extremos dadistribuição. Por isso, também é necessárioavaliar uma medida de dispersão, e não sóde tendência central.

Quando investigamos a variação na es-colha do Executivo do tipo de legislação pormês, fica claro que o desvio padrão no go-verno FHC, onde há uma relação mais coo-perativa com o Congresso, é bem menor doque em administrações anteriores. FHC uti-lizou os dois mecanismos de forma bastanteconstante e com poucas alterações de um

5 AMORIM NETO propõe o índice de coalescência para me medir aproporcionalidade da representação dos partidos da base aliada no gabineteministerial. O índice leva em consideração o número de cadeiras que cadapartido tem na câmara e o número de ministérios que cada partido controla,gerando um indicador do equilíbrio da distribuição de espólios do poder combase na capacidade de influência dos partidos dentro do Congresso (2002).

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mês para o outro. Nos governos anteriores,a variação nas estratégias de escolha demecanismos de formulação legislativa foimuito maior e mais instável. A variação me-nor é, acima de tudo, indicação da previsibi-lidade das escolhas do Presidente, que sóé possível em um ambiente onde há umanoção clara das preferências do Congressoe da capacidade de formação de maiorias.Onde só há conflito e desordem, prevalecea lógica do oportunismo e reina a instabili-dade, o que se reflete em variação maiordos indicadores de escolha do Executivo dosmecanismos de formulação de leis. É exata-mente isso que acontece nas administraçõesanteriores à Fernando Henrique Cardoso.

Esses números indicam uma margem ra-zoável de manobra para as distintas admi-nistrações nas formas em que escolheminteragir com o Legislativo. Reflete um pa-drão que não é constante e que é sensívelao ambiente legislativo. O problema dessavariação para o sistema político é que o pre-sidencialismo de coalizão oferece grandeamplitude de ação para presidentes e nãopadroniza seus padrões de comportamentode forma a torná-los mais previsíveis. Insti-tuições devem aumentar a previsibilidade decomportamentos e reduzir o espaço paravariações comportamentais individuais. Aose examinar principalmente a variação nasescolhas dos presidentes no novo períododemocrático, fica claro que esses compor-tamentos são bastante instáveis, principal-mente em momentos quando a relação entreCongresso e Executivo é conflituosa.

6. Conclusão

Este artigo apresentou três visões críti-cas com relação ao funcionamento do pre-sidencialismo de coalizão no Brasil. Ascríticas são basicamente de dois tipos: 1) aconstrução de maiorias legislativas é tarefadifícil no Brasil e passa, necessariamente,pela troca de recursos econômicos, comoemendas orçamentárias e cargos na buro-cracia, por apoio político. Pior, o sistema,como argumenta Ames, cria estímulos apráticas corruptas, ilegais, que se confun-dem com clientelismo, nepotismo e outrasvariações de patrimonialismo, muitas já in-corporadas à estrutura legal do país.

6 2) a

natureza da relação entre Executivo e Legis-lativo não é constante no tempo, dandomargem para a influência da habilidade dogoverno em gerenciar sua base de apoio.Essa variabilidade de habilidades leva a pa-drões de maior ou menor incerteza em mo-mentos diferentes, o que leva a crer que oarcabouço institucional do presidencialismode coalizão dá excessiva margem de mano-bra para atores políticos e reduz a previsibi-lidade do sistema. Ou seja, o processopolítico é muito mais individualmente dirigi-do do institucionalmente constrito.

Recentemente, vários autores, citadosacima, escreveram diretamente sobre a ne-cessidade de reforma política no Brasil (So-ares; Rennó, 2006). O conjunto de visõessobre reformas políticas vai dos mais con-servadores, como Figueiredo e Limongi(2006) e Fabiano Santos (2006), que pregamque mudanças institucionais seriam teme-rárias neste momento, aos mais reformis-tas, como Carlos Pereira (2006) e OctavioAmorim Neto (2006), que propõem mu-danças no sistema de governo, aumentandoas características parlamentaristas do regime.Entre essas visões, há várias outras que su-gerem alterações menores de curso, comoreformas pontuais na lei eleitoral a fim dediminuir o número de candidatos compe-tindo em eleições (Rennó, 2006; Almeida,2006) e defensores de mudanças em regras

6 O uso legal da alocação de recursos públicos para localidades específicasatravés de emendas orçamentárias de parlamentares e o controle sobre umaenormidade de cargos públicos são sinais da legalização do uso de recursospúblicos para a obtenção de apoio político, que está na essência de definiçõesde patronagem e clientelismo (GAY, 1994; FOX, 1997; AMES, 1995; AMESet al., 2003).

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de lealdade partidária (Marenco, 2006). Oque fica claro é que não há consenso entreanalistas sobre a necessidade de reformas.Mas, também deixa claro que nem todosestão satisfeitos com o funcionamento dopresidencialismo de coalizão no Brasil. Osistema atual não é uma unanimidade entreos especialistas que o avaliam. Essa au-sência de consenso é sinal claro de quehá, pelo menos, alguns problemas com oseu funcionamento e que, portanto, ajustesde curso poderiam ser considerados.

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A presente edição foi composta pela Editora UFMG emcaracteres Zurich e impressa pela Label Artes Gráficas,em sistema off-set, papel off-set 90 g (miolo) e cartão duodesign 350 g (capa), em agosto de 2006.

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