REHFELD, A. O Que Diferencia Uma Abordagem Fenomenológico-existencial Das Demais

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    REHFELD, A. O que diferencia uma abordagem fenomenolgico-existencial das demais? In: Gestalt-terapia: Encontros

    O que diferencia uma abordagem fenomenolgico-

    existencial das demais?

    Ari Rehfeld

    Publicado no livro Gestalt-terapia : Encontros e apresentado no Congresso Latino deGestalt Macei , 20 a 24 out 2004 Abertura

    Comeo com algumas questes:

    A Gestalterapia, enquanto conhecimento, est pronta, acabada, ou no?

    Se no, estamos indo em direo a algum lugar?

    Se estamos indo, para onde vamos?

    Quando me pergunto o que a Gestalterapia, imediatamente me deparo com outrasquestes, tais como:

    - Devo pensar no que somos a partir de uma descrio do que estamos sendo?Ou, a partir do que penso que seremos?

    Ou, daquilo que acredito que devamos ser?

    Claro que a resposta deve contemplar todas estas perspectivas, mas no de um modomuito misturado, pois engendraria confuso.

    Por exemplo: posso estar dizendo o que acredito que devamos ser, e voc entende o quesomos. Ou, vice versa.

    Posso embaralhar o que penso com o que acredito. Posso mesclar o que acredito com oque quero, etc...

    Infelizmente essas misturas, sem as devidas demarcaes, so muito freqentes emnosso meio.

    Ser que possvel escaparmos deste desagradvel incmodo?

    Creio que sim. Se o campo estiver muito bem delimitado, e a questo tiver umaespecificidade muito ntida.

    Ento: Qual o campo? A Hermenutica.Qual a questo?

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    O que, efetivamente, nos diferencia na questo da interpretao?

    A Gestalterapia, como uma abordagem fenomenolgico-existencial, no pode ser vista

    como pronta, nem nunca estar. No essncia, e, sim, facticidade.

    enquanto se faz que se est sendo.

    Seremos aquilo que viermos a ser.

    Ou seja, temos um leque muito grande de possibilidades, porm, no todas. Algumasdelas retiram-nos do eixo fenomenolgico-existencial.

    Quais? As essencialistas, as entificadoras, objetificadoras, issificadoras, ou metafsicas,no sentido da crtica heideggeriana ao esquecimento do Ser.

    H at quem afirme ser Gestaltista, ou fenomenlogo, e que acredita no interpretar.Isto um erro. Trata-se de uma ingenuidade daquele que no empreende um pensarfilosfico, sistemtico e crtico.

    Toda afirmao uma interpretao. Todo juzo o . Qualquer traduo tambm. Cadafala inclui, necessariamente, uma leitura, uma compreenso de mundo. No possvel adico do sem alguma compreenso. Toda compreenso uma leitura, e toda leitura,

    uma interpretao.

    Eu sou meu mundo. Apresento-me falando de meu mundo. Meu mundo minhaordenao, organizao, meu colorido, meus significados, minha projeo para o futuro.

    Penso que a inteno daquele que acredita no interpretar de repdio leitura que, aoinvs de aproximar das coisas mesmas, leva para longe.

    Muitas vezes, a interpretao concebida somente no modo reduzido freudiano,

    (embora Freud no fosse to ingnuo) de caminho para o inconsciente, indo para ooculto, atravs do manifesto.

    Sentimos uma estranheza quando o interpretador se distancia por demais do fenmeno,chegando muitas vezes at as raias do delrio. Claro que estes delrios interpretativospromovem muita desconfiana, mas, nem toda interpretao tem, necessariamente, estaforma.

    No plano do conhecer, a primeira caracterstica do objeto a de aparecer. O homemno cria o real. Ele o recebe como uma presena. ... O que importa no final das contas, que o homem no se contente com a sua linguagem primria e espontnea, para

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    expressar toda a sua experincia. Ele precisa chegar a uma interpretao criadora desentido, a esta atitude filosfica do compreender. Para alm da experincia das coisas edos acontecimentos, situa-se o nvel da linguagem filosfica, linguagem interpretativacapaz de revelar uma experincia ontolgica que a relao do homem com aquilo que

    o constitui homem, vale dizer, foco de sentido.1

    Heidegger, no pargrafo 7 de Ser e Tempo afirma: o significado da descriofenomenolgica como um mtodo encontra-se na interpretao.

    Em outras palavras, a Fenomenologia , necessariamente, hermenutica. Hermenuticano sentido de dizer o no dito. Eventualmente, primeira visada, vai em direo aooculto, no sentido do no aparente primeira vista, mas que se mostra no que aparece.

    Voltemos a nossa questo: o que nos diferencia, a ns, fenomenlogos existenciais, dosdemais, quanto interpretao?

    Mas, antes disso: toda a interveno do terapeuta uma interpretao? Nonecessariamente.

    Sancho Pana dizia muitas vezes para Dom Quixote: Atente para o que est dizendo,senhor. Esta fala, utilizada muitas vezes, de diversos modos, por muitos analistas epsicoterapeutas, no uma interpretao no sentido literal.

    Usando um exemplo dado por Octave Mannoni, em seu livro Um espanto to intenso:a paciente, falando de sua me, faz este comentrio: Quando vivia era diferente . Elaqueria dizer, quando eu vivia com ela, pois sua me no tinha morrido.

    A fala do analista: Atente para o que est dizendo, apesar de no ser umainterpretao, somente foi possvel por uma leitura, uma interpretao do analista, dodesejo da morte da me. Ou seja, embora nem todas as intervenes sejaminterpretaes, todas as intervenes advm de interpretaes.

    oportuno aqui, como sempre fiz no papel de supervisor, defender que propiciar adescoberta ou o insight muito melhor, muito mais efetivo, do que dizer ao pacienteo que vemos, e que, portanto devemos tratar com muito mais carinho as intervenesque facilitem este insight, do que as interpretaes, pois na apropriao que mora apossibilidade de assimilao.

    certo, tambm, que devemos nos abster de explicaes tais como as Deutungrelacionadas aos smbolos, como fez Freud no incio de sua psicanlise e,posteriormente percebendo suas limitaes, as abandonou.

    Ricoeur, Paul Interpretao e ideologias, pg 3 e 4.

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    J consenso que o paciente quem deve dar a direo. E ele deve buscar o sentido, oque o terapeuta facilita atravs de suas intervenes do tipo de Sancho Pana.

    Lio difcil, esta, para jovens terapeutas, necessitados de mostrar servio, e tambm

    para narcisos, que necessitam do Oh! de seus pacientes.

    Mas, isto ainda no nos diferencia, somente demarca uma boa de uma m psicoterapia.

    O que efetivamente diferencia a abordagem fenomenolgico-existencial de uma que noo , o compromisso com uma compreenso ontolgica. Vale aqui distinguir acompreenso ontolgica da ntica.

    A compreenso ntica inclui todo conhecimento sobre mim mesmo como esta pessoaindividual, nesta situao concreta, com esta histria particular, com estas capacidades eincapacidades especficas, chances e adversidades, projetos de futuro, esperana emedos especficos. A autocompreenso ontolgica inclui todo conhecimento sobre mimmesmo como ser humano. o conhecimento sobre as condies humanas que eucompartilho com todos os outros. Cada um sabe, de alguma forma, que mortal, que pertencente a um sexo e lanado numa situao social no escolhida, que seu futuro basicamente incerto, fora de controle, que tem de tomar decises sem saber, comcerteza, o que certo ou errado, que no pode desfazer o que fez, que depende de outraspessoas, as quais pode perder a qualquer hora, pela morte ou pela livre vontade delas. 2

    Compreender como viver inclui mais do que compreender o mundo em que vivemos.Inclui, necessariamente, compreender o prprio ser no mundo; compreender incluisempre autocompreenso. Uma compreenso plena deve ser sempre ntico-ontolgica.Leituras nticas, sempre fazemos a granel, Ontolgicas, nem sempre, pois requeremuma abertura muito maior.

    Quero dar um exemplo de Alice Holzhey-Kunz: trata-se da hipocondria. Ohipocondraco sempre tem uma indisposio, ou vrias. Todas elas no se restringemunicamente ao mal estar especfico. Explico melhor:A dor de cabea, por pior que seja, incomoda muito mais por apontar a possibilidade deum tumor, do que por sua intensidade. Cada sintoma corporal, mesmo que ele seja beminofensivo, se refere tambm fragilidade de nosso corpo, e ao fato de podermos tornar-nos, repentinamente, vtimas de doenas graves, e mesmo mortais. Assim ocomportamento do hipocondraco, diante dos sintomas corporais, uma resposta......... ameaa opressiva de ser frgil e exposto morte a qualquer hora.

    Vigilncia incessante, idas sucessivas aos mdicos, so tarefas desesperadas para lidar,no com esta dor de cabea inofensiva, mas com a ameaa insuportvel, e inconsciente,de morrer.

    Alice Holzhey-Kunz, escrito no publicado.

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    Ora, manobras nticas no podem mudar a condio humana.

    Existem pensadores que formulam a terapia como uma interpretao mais til e feliz da

    prpria vida (Derrida e Rorty), substituindo a narrativa antiga que conduzia a umpensamento neurtico, por uma melhor, que possibilite viver bem.

    Mas o sofrimento neurtico no conseqncia de uma interpretao negativa daprpria vida, mas de uma especial sensibilidade para a verdade ontolgica.33

    A compreenso ontolgica encaminha o paciente a suportar a angstia derivada dadescoberta da fragilidade de nossa existncia, a incerteza do futuro, a estranheza dosoutros. Significa tambm suportar a culpa que repousa em cada deciso, e tambm, avergonha que revela meu ser exposto aos outros, com todas as minhas imperfeies.

    Enquanto eu tentar fugir, negar, esquecer de minha condio, da condio humana, vousempre fracassar. A cada doena, cada sinal de envelhecimento, eu vou sofrer.

    Ao aceitar minha condio, por mais paradoxal que possa parecer primeira vista,ganho a capacidade do prazer.

    Ao aceitar a insustentvel leveza do ser, aprendo a desapegar-me do controleneurtico e deixo a vida fluir.

    Em suma, as manobras nticas no so suficientes; o compromisso com umainterpretao, uma compreenso ontolgica que, em ltima anlise, distinguefundamentalmente a abordagem fenomenolgico-existencial das demais.

    Cabe ao gestalterapeuta no ficar restrito a manobras nticas.

    Bibliografia

    Heidegger, Martin Ser e Tempo, ed. Vozes, 1988.Holzhey-Kunz, Alice escrito no publicado.Mannoni, Octave - Um espanto to intenso, ed. Campos , 1992.Ricouer, Paul Interpretao e Ideologias, ed. Livraria Francisco Alves, 1977.Conflito das Interpretaes, ed. Imago, 1978.Schleiermacher, Friederich. D.E. - Hermenutica, ed. So Francisco, 2003.

    Alice Holzhey-Kunz, ibidem