reinações de narizinho

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Reinaes de NarizinhoMonteiro LobatoNARIZINHO ARREBITADOCaptulo 1 NarizinhoNuma casinha branca, l no stio do Picapau Amarelo, morauma velha de mais de sessenta anos. Chama-se dona Benta. Quempassa pela estrada e a v na varanda, de cestinha de costura ao colo eculos de ouro na ponta do nariz, segue seu caminho pensando:- Que tristeza viver assim to sozinha neste deserto ...Mas engana-se. Dona Benta a mais feliz das vovs, porquevive em companhia da mais encantadora das netas - Lcia, amenina do narizinho arrebitado, ou Narizinho como todos dizem.Narizinho tem sete anos, morena como jambo, gosta muito depipoca e j sabe fazer uns bolinhos de polvilho bem gostosos.Na casa ainda existem duas pessoas - tia Nastcia, negra deestimao que carregou Lcia em pequena, e Emlia, uma boneca depano bastante desajeitada de corpo. Emlia foi feita por tia Nastcia,com olhos de retrs preto e sobrancelhas to l em cima que veruma bruxa. Apesar disso Narizinho gosta muito dela;no almoa nem janta sem a ter ao lado, nem se deita sem primeiroacomod-la numa redinha entre dois ps de cadeira.Alm da boneca, o outro encanto da menina o ribeiro quepassa plos fundos do pomar. Suas guas, muito apressadinhas emexeriqueiras, correm por entre pedras negras de limo, que Lciachama as "tias Nast-cias do rio".Todas as tardes Lcia toma a boneca e vai passear beirad'gua, onde se senta na raiz dum velho ing-zeiro para dar farelo depo aos lambaris.No h peixe do rio que a no conhea; assim que ela aparece,todos acodem numa grande faminteza. Os mais midos chegampertinho; os grados parece quedesconfiam da boneca, pois ficam ressabiados, a espiar de longe. Enesse divertimento leva a menina horas, at que tia Nastcia apareano porto do pomar e grite na sua voz sossegada:- Narizinho, vov est chamando!...Captulo 2 Uma vez ...Uma vez, depois de dar comida aos peixinhos, Lcia sentiu osolhos pesados de sono. Deitou-se na grama com a boneca no brao eficou seguindo as nuvens que passeavam pelo cu, formando oracastelos, ora camelos. E j ia dormindo, embalada pelo mexerico dasguas, quando sentiu ccegas no rosto. Arregalou os olhos: um peixinhovestido de gente estava de p na ponta do seu nariz.Vestido de gente, sim! Trazia casaco vermelho, cartolinha nacabea e guarda-chuva na mo - a maior das galantezas! O peixinhoolhava para o nariz de Narizinho com rugas na testa, como quem noest entendendo nada do que v.A menina reteve o flego de medo de o assustar, assim ficandoat que sentiu ccegas na testa. Espiou com o rabo dos olhos. Era umbesouro que pousara ali. Mas um beyuro tambm vestido de gente,trajando sobrecasaca preta, culos e bengala.Lcia imobilizou-se ainda mais, to interessada estava achandoaquilo.Ao ver o peixinho, o besouro tirou o chapu, respeitosamente.- Muito boas tardes, senhor prncipe! - disse ele.- Viva, mestre Cascudo! - foi a resposta.- Que novidade traz Vossa Alteza por aqui, prncipe?- que lasquei duas escamas do fil e o doutor Caramujo mereceitou ares do campo. Vim tomar o remdio neste prado que muito meu conhecido, mas encontrei c este morro que me pareceestranho - e oArregalou os olhos: um peixinho vestido de gente estava de p naponta do seu nariz.O prncipe bateu com a biqueira do guarda-chuva na ponta do nariz deNarizinho.- Creio que de mrmore - observou.Os besouros so muito entendidos em questes de terra, poisvivem a cavar buracos. Mesmo assim aquele besourinho desobrecasaca no foi capaz de adivinhar que qualidade de "terra" eraaquela. Abaixou-se, ajeitou os culos no bico, examinou o nariz deNarizinho e disse:- Muito mole para ser mrmore. Parece antes requeijo.- Muito moreno para ser requeijo. Parece antes rapadura -volveu o prncipe.O besouro provou a tal terra com a ponta da lngua.- Muito salgada para ser rapadura. Parece antes...Mas no concluiu, porque o prncipe o havia largado para irexaminar as sobrancelhas.- Sero barbatanas, mestre Cascudo? Venha ver. Por que noleva algumas para os seus meninos brincarem de chicote?O besouro gostou da ideia e veio colher as barbatanas. Cada fioque arrancava era uma dorzinha aguda que a menina sentia - e bemvontade teve ela de o espantar dali com uma careta! Mas tudosuportou, curiosa de ver em que daria aquilo.Deixando o besouro s voltas com as barbatanas, o peixinho foiexaminar as ventas.- Que belas tocas para uma famlia de besouros! - exclamou.- Por que no se muda para aqui, mestre Cascudo? Sua esposa havia degostar desta repartio de cmodos.O besouro, com o feixe de barbatanas debaixo do brao, l foiexaminar as tocas. Mediu a altura com a bengala.- Realmente, so timas - disse ele. - S receio que more aquidentro alguma fera peluda.E para certificar-se cutucou bem l no fundo.- Hu! Hu! Sai fora, bicho imundo!... No saiu fera nenhuma,mas como a bengala fizesse ccegas no nariz de Lcia, o que saiu foi umformidvel espirro - Atchim!... e os dois bichinhos, pegados de surpresa,reviraram de pernas para o ar, caindo um grande tombo no cho.- Eu no disse? - exclamou o besouro, levantando-se eescovando com a manga a cartolinha suja de terra. - , sim, ninho defera, e defera espirradeira! Vou-me embora. No quero negcios com essa gente. Atlogo, prncipe! Fao votos para que sare e seja muito feliz. E l se foi,zumbindo que nem um avio. O peixinho, porm, que era muito valente,permaneceufirme, cada vez mais intrigado com a tal montanha ! que espirrava. Porfim a menina teve d dele e resolveu esclarecer todo o mistrio. Sentou-se desbito e disse:- No sou montanha nenhuma, peixinho. Sou Lcia, a meninaque todos os dias vem dar comida a vocs. No me reconhece?- Era impossvel reconhec-la, menina. Vista de dentro d'guaparece muito diferente... - Posso parecer, mas garanto que sou amesma. Esta senhora aqui a minha amiga Emlia.O peixinho saudou respeitosamente a boneca, e em seguidaapresentou-se como o prncipe Escamado, rei do reino das guasClaras.- Prncipe e rei ao mesmo tempo! - exclamou a meninabatendo palmas. - Que bom, que bom, que bom! Sempre tive vontadede conhecer um prncipe-rei.Conversaram longo tempo, e por fim o prncipe convidou-a parauma visita ao seu reino. Narizinho ficou no maior dosassanhamentos. - Pois vamos e j - gritou - antes que tiaNas-tcia me chame.E l se foram os dois de braos dados, como velhos amigos. Aboneca seguia atrs sem dizer palavra.- Parece que dona Emlia est emburrada - observou oprncipe.- No burro, no, prncipe. A pobre muda de nascena.Ando procura de um bom doutor que a cure.- H um excelente na corte, o clebre doutor Caramujo.Emprega umas plulas que curam todas as doenas, menos a gosmadele. Tenho a certeza de que o doutor Caramujo pe a senhora Emliaa falar plos cotovelos.E ainda estavam discutindo os milagres das famosas plulasquando chegaram a certa gruta que Narizinho jamais havia vistonaquele ponto. Que coisa estranha! A paisagem estava outra.- aqui a entrada do meu reino - disse o prncipe. Narizinhoespiou, com medo de entrar.- Muito escura, prncipe. Emlia uma grande medrosa.A resposta do peixinho foi tirar do bolso um vaga-lume de cabode arame, que lhe servia de lanterna viva. A gruta clareou at longe ea "boneca" perdeu o medo. Entraram. Pelo caminho foram saudadoscom grandes marcas de respeito, por vrias corujas e numerosssimosmorcegos. Minutos depois chegavam ao porto do reino. A meninaabriu a boca, admirada.- Quem construiu este maravilhoso porto de coral, prncipe? to bonito que at parece um sonho.- Foram os Plipos, os pedreiros mais trabalhadores eincansveis do mar. Tambm meu palcio foi construdo por eles,todo de coral rosa e branco.Narizinho ainda estava de boca aberta quando o prncipe notouque o porto no fora fechado naquele dia.- a segunda vez que isto acontece - observou ele com carafeia. Aposto que o guarda est dormindo.Entrando, verificou que era assim. O guarda dormia um sonoroncado. Esse guarda no passava dum sapo muito feio, que tinha oposto de major no exrcito marinho. Major Agarra-e-no-larga-mais.Recebia como ordenado cem moscas por dia para que ali ficasse, delana em punho, capacete na cabea e a espada cinta, sapeando aentrada do palcio. O Major, porm, tinhao vcio de dormir fora de horas, e pela segunda vez fora apanhado emfalta.O prncipe ajeitou-se para acord-lo com um pontap na barriga,mas a menina interveio.- Espere principe! Eu tenho uma idia muito boa. Vamos vestir este sapo demulher, para ver a cara dele quando acordar.E sem esperar resposta, foi tirando a saia da Emlia e vestindo-a,muito devagarinho, no dorminhoco. Ps-lhe tambm a touca daboneca em lugar do capacete, e o guarda-chuva do prncipe em lugarde lana. Depois o deixou assim tranformado numa perfeita velhacoroca, disse ao prncipe:- Pode chutar agora.O prncipe, zs!... pregou-lhe um valente pontap na barriga.- Hum! ...- gemeu o sapo, abrindo os olhos, ainda cego desono.O prncipe engrossou a voz e ralhou:- Bela coisa. Major! Dormindo como um porco e ainda porcima vestido de velha coroca... Que significa isto?O sapo, sem compreender coisa nenhuma, mirou-seapatetadamente num espelho que havia por ali. E botou a culpa nopobre espelho.- mentira dele, prncipe! No acredite. Nunca fui assim ...- Voc de fato nunca foi assim - explicou Narizinho. - Mas,como dormiu escandalosamente durante o servio, a fada do sono ovirou em velha coroca. Bem feito...- E por castigo - ajuntou o prncipe - est condenado aengolir cem pedrinhas redondas, em vez das cem moscas do nossotrato.O triste sapo derrubou um grande beio, indo, muito jururu,encorujar-se a um canto.Captulo 3 No palcioO prncipe consultou o relgio.- Estou na hora da audincia - murmurou. - Vamos depressa,que tenho muitos casos a atender.L se foram. Entraram diretamente para a sala do trono, no quala menina se sentou a seu lado, como se fosse uma princesa. Lindasala! Toda dum coral cor de leite, franjadinho como musgo ependuradinho de pingentes de prola, que tremiam ao menor sopro.O cho, de ncar furta-cr, era to liso que Emlia escorregou trsvezes.O prncipe deu o sinal de audincia batendo com uma grandeprola negra numa concha sonora. O mordomo introduziu osprimeiros queixosos. Um bando de moluscos nus que tiritavam defrio. Vinham queixar-se dos Bernardos Eremitas.- Quem so esses Bernardos? - indagou a menina.- So uns caranguejos que tm o mau costume de seapropriarem das conchas destes pobres moluscos, deixando-os emcarne viva no mar. Os piores ladres que temos aqui.O prncipe resolveu o caso mandando dar uma concha nova acada molusco.Depois apareceu uma ostra a se queixar dum caranguejo que lhehavia furtado a prola.- Era uma prola ainda novinha e to galante! - disse a ostra,enxugando as lgrimas. Ele raptou-a s de mau, porque oscaranguejos no se alimentam de prolas, nem as usam como jias.Com certeza j a largou por a nas areias .. .O prncipe resolveu o caso mandando dar ostra uma prolanova do mesmo tamanho.Nisto surgiu na sala, muito apressada e aflita, uma baratinha demantilha, que foi abrindo caminho por entre os bichos at alcanar oprncipe.- A senhora por aqui? - exclamou este, admirado. - Quedeseja?- Ando atrs do Pequeno Polegar - respondeu a velha. - Hduas semanas que fugiu do livro onde mora e no o encontro emparte nenhuma. J percorri todos os reinos encantados sem descobriro menor sinal dele.- Quem esta velha? - perguntou a menina ao ouvido doprncipe. - Parece que a conheo ...- Com certeza, pois no h menina que no conhea a clebredona Carochinha das histrias, a baratinha mais famosa do mundo.E voltando-se para a velha:- Ignoro se o Pequeno Polegar anda aqui pelo meu reino. Noo vi, nem tive notcias dele, mas a senhora pode procur-lo. No faacerimnia ...- Por que ele fugiu? - indagou a menina.- No sei - respondeu dona Carochinha - mas tenho notadoque muitos dos personagens das minhas histrias j andamaborrecidos de viverem toda a vida presos dentro delas. Queremnovidade. Falam em correr mundo a fim de se meterem em novasaventuras. Aladino queixa-se de que sua lmpada maravilhosa estenferrujando. A Bela Adormecida tem vontade de espetar o dedonoutra roca para dormir outros cem anos. O Gato de Botas brigoucom o marqus de Carabs e quer ir para os Estados Unidos visitar oGato Flix. Branca de Neve vive falando em tingir os cabelos depreto e botar ruge na cara. Andam todos revoltados, dando-me umtrabalho para cont-los. Mas o pior que ameaam fugir, e oPequeno Polegar j deu o exemplo.Narizinho gostou tanto daquela revolta que chegou a baterpalmas de alegria, na esperana de ainda encontrar pelo seu caminhoalgum daqueles queridos personagens.- Tudo isso - continuou dona Carochinha - por causa doPinquio, do Gato Flix e sobretudo de uma tal menina do narizinhoarrebitado que todos desejam muitoconhecer. Ando at desconfiada que foi essa diabinha quemdesencaminhou Polegar, aconselhando-o a fugir. O corao deNarizinho bateu apressado.- Mas a senhora conhece essa tal menina? - perguntou,tapando o nariz com medo de ser reconhecida.- No a conheo - respondeu a velha - mas sei que moranuma casinha branca, em companhia de duas velhas corocas.Ah, por que foi dizer aquilo? Ouvindo chamar dona Benta develha coroca, Narizinho perdeu as estribeiras.- Dobre a lngua! - gritou vermelha de clera. - Velha coroca vosmec, e to implicante que ningum mais quer saber das suashistrias emboloradas. A menina do narizinho arrebitado sou eu, masfique sabendo que mentira que eu haja desencaminhado o PequenoPolegar, aconselhando-o a fugir. Nunca tive essa "bela ideia", masagora vou aconselh-lo, a ele e a todos os mais, a fugirem dos seuslivros bolorentos, sabe?A velha, furiosa, ameaou-a de lhe desarrebitar o nariz daprimeira vez em que a encontrasse sozinha.- E eu arrebitarei o seu, est ouvindo? Chamar vov de coroca!Que desaforo!...Dona Carochinha botou-lhe a lngua. uma lngua muito magrae seca. e retirou-se furiosa da vida, a resmungar que nem umanegra beiuda.O prncipe respirou de alvio ao ver o incidente terminado.Depois encerrou a audincia e disse ao primeiro-ministro:- Mande convite a todos os nobres da corte para a grande festaque vou dar amanh em honra nossa distinta visitante. E diga amestre Camaro que ponha o coche de gala para um passeio pelofundo do mar. J.Captulo 4 O bobinhoO passeio que Narizinho deu com o prncipe foi o mais belo detoda a sua vida. O coche de gala corria por sobre a areia alvssima dofundo do mar conduzido pormestre Camaro e tirado por seis parelhas de hipocampos, unsbichinhos com cabea de cavalo e cauda de peixe. Em vez depingalim, o cocheiro usava os fios de sua prpria barba parachicote-los.- lept! lept!...Que lindos lugares ela viu! Florestas de coral, bosques deesponjas vivas, campos de algas das formas mais estranhas. Conchasde todos os jeitos e cores. Polvos, enguias, ourios - milhares decriaturas marinhas to estranhas que at pareciam mentiras do barode Mun-chausen.Em certo ponto Narizinho encontrou uma baleia dando demamar a vrias baleinhas novas. Teve a ideia de levar para o stiouma garrafa de leite de baleia, s para ver a cara de espanto que donaBenta e tia Nastcia fariam. Mas logo desistiu, pensando: "No vale apena. Elas no acreditam mesmo ..."Nisto apareceu ao longe um formidvel espadarte. Vinha com oseu comprido esporo de pontaria feita para o cetceo, que como ossbios chamam a baleia. O prncipe assustou-se.- L vem o malvado! - disse ele. - Esses monstros divertem-seem espetar as pobres baleias como se elas fossem almofadinhas dealfinetes. Vamo-nos embora, que a luta vai ser medonha.Recebendo ordem de voltar, o Camaro estalou as barbas e psos "cabecinhas de cavalo" no galope.De volta ao palcio o prncipe deixou a menina e a boneca nagruta dos seus tesouros, indo cuidar dos preparativos da festa.Narizinho ps-se a mexer em tudo ... Quantas maravilhas! Prolasenormes aos montes. Muitas, ainda na concha, punham as cabecinhasde fora, espiavam a menina e escondiam-se outra vez. De medo daEmlia. Caramujos, ento, era um nunca se acabar. de todos osjeitos possveis e imaginveis. E conchas! Quantas, Deus do cu!Narizinho teria ficado ali a vida inteira, examinando uma poruma todas aquelas jias, se um peixinho derabo vermelho no viesse da parte do prncipe dizer que o jantarestava na mesa.Foi correndo e achou a sala de jantar ainda mais bonita que asala do trono. Sentou-se ao lado do prncipe e gabou muito aarrumao da mesa.- Artes das senhoras sardinhas - disse ele. - So as melhoresarrumadeiras do reino.A menina pensou consigo: "No toa que sabem arrumar-seto direitinhas dentro das latas ..."Vieram os primeiros pratos - costeletas de camaro, fils demarisco, omeletas de ovos de beija-flor, linguia de minhoca - umpetisco de que o prncipe gostava muito.Enquanto comiam, uma excelente orquestra de cigarras epernilongos tocava a msica do fium, regida pelo maestro Tangar,de batuta no bico. Nos intervalos trs vagalumes de circo fizerammgicas lindas, entre as quais foi muito apreciada a de comer fogo.Para lidar com fogo no h como eles.Encantada com tudo aquilo, Narizinho batia palmas e davagritos de alegria. Em certo momento o mordomo do palcio entrou edisse umas palavras ao ouvido do prncipe.- Pois mande-o entrar - respondeu este.- Quem ? - quis saber a menina.- Um anozinho que nos apareceu aqui ontem para contratar-secomo bobo da corte. Estamos sem bobo desde que o nosso queridoCarlito Pirulito foi devorado pelo peixe-espada.O candidato ao cargo de bobo da corte entrou conduzido pelomordomo, e logo saltou para cima da mesa, pondo-se a fazer graas.Narizinho percebeu inconti-nnti que o bobinho no passava doPequeno Polegar, vestido com o clssico saiote de guizos e umacarapua tambm de guizos na cabea. Percebeu mas fingiu no terdesconfiado de nada.- Como o seu nome? - perguntou-lhe o prncipe.- Sou o gigante Fura-Bolos! - respondeu o bobinhosacudindo os guizos.Polegar no tinha o menor jeito para aquilo. No sabia fazercaretas engraadas, nem dizer coisas que fizessem rir. Narizinho teveum grande d dele e disse-lhe baixinho:- Aparea l no stio de vov, senhor Fura-Bolos. Tia Nastciafaz bolinhos muitos bons para serem furados. V morar comigo, emvez de levar essa vida idiota de bobo da corte. Voc no d para isso.Nesse momento reapareceu na sala a baratinha de mantilha, denariz erguido para o ar como quem fareja alguma coisa.- Achou o fugido? - perguntou-lhe o prncipe.- Ainda no - respondeu ela - mas aposto que anda poraqui. Estou sentindo o cheirinho dele.E farejou outra vez o ar com o seu nariz de papagaio seco.Apesar de ser muito burrinho, o prncipe desconfiou que o talFura-Bolos fosse o mesmo Polegar.- Talvez esteja - disse ele. - Talvez Polegar seja o bobinho queveio oferecer-se para substituir o Carlito Pirulito. Para onde foi? -indagou correndo os olhos em redor. - Estava aqui ainda agora, no fazmeio minuto ...Procuraram o bobinho por toda a parte, inutilmente. que amenina, mal viu entrar na sala a diaba da velha, disfaradamente otinha agarrado e enfiado na manga do vestido.Dona Carochinha remexia por todos os cantos, at dentro dasterrinas, sempre resmungona.- Est aqui, sim. Estou sentindo o cheirinho dele cada vez maisperto. Desta feita no me escapa.Vendo-a aproximar-se mais e mais, Narizinho perturbou-se. Epara disfarar gritou:- Dona Carochinha est caducando. Polegar usa as botas desete lguas e, se esteve aqui, j deve estar na Europa.A velha deu uma risada gostosa.- No v que no sou boba? Assim que desconfiei que eleandava querendo fugir, fui logo tratando de trancar suas botas na minha gaveta. Polegar fugiu descalo e no meescapa.- H de escapar, sim! - gritou Narizinho em tom de desafio.- No escapa, no! - retrucou a velha - e no me escapaporque j sei onde est. Est escondido a na sua manga, ouviu? eavanou para ela.Foi um rebulio na sala. A velha atracou-se com a menina, ecertamente que a subjugaria, se a boneca, que estava na mesa ao ladode sua dona, no tivesse tido a bela ideia de arrancar-lhe os culos esair correndo com eles.Dona Carochinha no enxergava nada sem culos, de modo queficou a pererecar no meio da sala como cega, enquanto a meninacorria a esconder Polegar na gruta dos tesouros, bem l no fundo deuma concha.- Fique aqui bem quietinho at que eu volte, recomendou-lhe.E regressou sala, muito lampeira da sua faanha.Captulo 5 A costureira das fadasDepois do jantar o prncipe levou Narizinho casa da melhorcostureira do reino. Era uma aranha de Paris, que sabia fazervestidos lindos, lindos at no poder mais! Ela mesma tecia afazenda, ela mesma inventava as modas.- Dona Aranha - disse o prncipe - quero que faa para estailustre dama o vestido mais bonito do mundo. Vou dar uma grandefesta em sua honra e quero v-la deslumbrar a corte.Disse e retirou-se. Dona Aranha tomou da fita mtrica e,ajudada por seis aranhinhas muito espertas, principiou a tomar asmedidas. Depois teceu, depressa, depressa, uma fazenda cr-de-rosacom estrelinhas douradas, a coisa mais linda que se possa imaginar.Teceu tambm peas de fitas e peas de renda e peas de entremeio- at carretis de linha de seda fabricou.- Que beleza! - ia exclamando a menina, cada vez maisadmirada dos prodgios da costureira. Conheo muitas aranhas emcasa de vov, mas todas s sabem fazer teias de pegar moscas;nenhuma capaz de fazer nem um paninho de avental...- que tenho mil anos de idade - explicou dona Aranha, esou a costureira mais velha do mundo. Aprendi a fazer todas ascoisas. J trabalhei durante muito tempo no reino das fadas; fui quemfez o vestido de baile de Cinderela e quase todos os vestidos decasamento de quase todas as meninas que se casaram com prncipesencantados.- E para Branca de Neve tambm costurou?- Como no? Pois foi justamente quando eu estava tecendo ovu de noiva de Branca que fiquei aleijada. A tesoura caiu-me sobreo p esquerdo, rachando o osso aqui neste lugar. Fui tratada pelodoutor Caramujo, que um mdico muito bom. Sarei, embora ficassemanca pelo resto da vida.- Acha que esse tal doutor Caramujo capaz de curar umaboneca que nasceu muda? - perguntou a menina.- Cura, sim. Ele tem umas plulas que curam todas as doenas,exceto quando o doente morre.Enquanto conversavam, dona Aranha ia trabalhando no vestido.- Est pronto - disse ela por fim. Vamos prov-lo. - Narizinhovestiu-se, indo ver-se ao espelho.- Que beleza! - exclamou, batendo palmas. - Estou que nemum cu aberto!...E estava mesmo linda. Linda, to linda no seu vestido de teiacr-de-rosa com estrelinhas de ouro, que at o espelho arregalou osolhos, de espanto.Trazendo em seguida o seu cofre de jias, dona Aranha ps nacabea da menina um diadema de orvalho, e braceletes de rubis domar nos braos, e anis de brilhantes do mar nos dedos, e fivelas deesmeraldas do mar nos sapatos, e uma grande rosa do mar no peito.Mais linda ainda ficou Narizinho, to mais linda que o espelhoarregalou um pouco mais os olhos, comeando a abrir a boca.- Pronto? - perguntou a menina, deslumbrada.- Espere - respondeu dona Aranha Costureira. - Faltam os psde borboleta.E ordenou s suas seis filhinhas que trouxessem as caixas de pde borboleta. Escolheu o mais conveniente, que era o famoso pFurta-tdas-as-Cres, de tanto brilho que parecia p de cu-semnuvens misturado com p de sol-que-acaba-de-nascer. Polvilhadacom ele a menina ficou tal qual um sonho dourado! Linda, to linda,to mais, mais, mais linda, que o espelho foi arregalando ainda maisos olhos, mais, mais, mais, at que - craque! ... rachou de alto abaixo em seis fragmentos!Em vez de ficar danada com aquilo, como Narizinho esperava,dona Aranha ps-se a danar de alegria.- Ora graas! - exclamou num suspiro de alvio. - Chegouafinal o dia da minha libertao. Quando nasci, uma fada rabugenta,que detestava minha pobre me, virou-me em aranha, condenando-mea viver de costuras a vida inteira. No mesmo instante, porm, umafada boa surgiu, e me deu esse espelho com estas palavras: "No diaem que fizeres o vestido mais lindo do mundo, deixars de ser aranhae sers o que quiseres."- Que bom! - aplaudiu Narizinho. - E no que vai a senhoravirar?- No sei ainda - respondeu a aranha. - Tenho de consultar oprncipe.- Sim, mas no vire em nada antes de fazer destes retalhos umvestido para a Emlia. A pobrezinha no pode comparecer ao baileassim em fraldas de camisa como est.- Agora tarde, menina. O encantamento est quebrado; j nosou costureira. Mas minhas filhas podero fazer o vestido da boneca.No sair grande coisa, porque no tm a minha prtica, mas h deservir. Onde est a senhora Emlia?Narizinho no sabia. Depois que furtou os culos da velha e saiucorrendo, ningum mais vira a boneca. Dona Aranha voltou-se paraas seis aranhinhas.- Minhas filhas - disse ela - o encanto est quebrado e logoestarei virada no que quiser. Vou portanto abandonar esta vida decostureira, deixando a vocs o meu lugar. O encantamento continuaem vocs. Cada uma tem de conservar um pedao do espelho e passara vida costurando at que consiga um vestido que o faa rachar deadmirao, como sucedeu ao espelho grande.Nisto o prncipe apareceu. Narizinho contou-lhe toda a histria,inclusive a atrapalhao da aranha quanto escolha do que havia deser.O prncipe observou que seu reino estava com falta de sereias,sendo muito do seu agrado que ela virasse sereia.- Nunca! - protestou Narizinho, que era de muito bonssentimentos. - Sereias so criaturas malvadas, cujo maior prazer afundar navios. Antes vire princesa.Houve grande discusso, sem que nada fosse decidido. Por fim aaranha resolveu no virar em coisa nenhuma.- Acho melhor ficar no que sou. Assim, manca duma perna, seviro princesa ficarei sendo a Princesa Manca; se viro sereia, ficareisendo a Sereia Manca - e todos caoaro de mim. Alm do mais,como j sou aranha h mil anos, estou acostumadssima.E continuou aranha.Captulo 6 A festa e o MajorChegou a hora da festa. Dando a mo a Narizinho, o prncipedirigiu-se sala de baile.- Como linda! - exclamaram os fidalgos l reunidos aoverem-na entrar. - Com certeza a filha nica da fada dos Sete Mares ...O salo parecia um cu bem aberto. Em vez de lmpadas, viam-sependurados do teto buqus de raios de sol colhidos pela manh.Flores em quantidade, trazidas e arrumadas por beija-flres. Tantasprolas soltas no cho que at se tornava difcil o andar. No houveostra que no trouxesse a sua prola, para pendur-la num galhinhode coral ou jog-la por ali como se fosse cisco. E o que no era prolaera flor, e o que no era flor era ncar, e o que no era ncar era rubi eesmeralda e ouro e diamante. Uma verdadeira tontura de beleza!O prncipe havia convidado s os seres pequeninos, visto sertambm pequenino e muito delicado de corpo. Se um hipoptamo oubaleia aparecesse por l seria o maior dos desastres.Narizinho correu os olhos pela assistncia. No podia havernada mais curioso. Besourinhos de fraque e flores na lapelaconversavam com baratinhas de mantilha e miostis nos cabelos.Abelhas douradas, verdes e azuis, falavam mal das vespas de cinturafina - achando que era exagero usarem coletes to apertados. Sardinhasaos centos criticavam os cuidados excessivos que as borboletasde toucados de gaze tinham com o p das suas asas. Mamangavas deferres amarrados para no morderem. E canrios cantando, e beijaflres beijando flores, e camares camaronando, e caranguejoscarangue-jando, tudo que pequenino e no morde, pequeninando eno mordendo.Narizinho e o prncipe danaram a primeira contradana sob osolhares de admirao da assistncia. Pelas regras da corte, quando oprncipe danava todos tinham de manter-se de boca aberta e olhosbem arregalados. Depois comeou a grande quadrilha.Foi a parte de que Narizinho gostou mais. Quantas cenasengraadas! Quantas tragdias! Um velho caranguejo que tirara umagorda taturana para valsar, apertou-a tanto nos braos que a furoucom o ferro. A pobre dama deu um berro ao ver espirrar aquelelquidoverde que as taturanas tm dentro de si. Ao mesmo tempo que issose dava, outro desastre acontecia com um besouro do InstitutoHistrico, que tropeou numa prola, caiu e desconjuntou-se todo.O doutor Caramujo foi chamado s pressas para consertar ataturana e o besouro.- Que bom cirurgio! - exclamou Narizinho, vendo a perciacom que ele arrolhou a taturana e consertou o besouro. E trabalhacientificamente, refletiu a menina, notando que antes de tratar dodoente o doutor nunca deixava de fazer o "diagnstico". - Amanhsem falta vou levar Emlia ao consutrio dele - disse ela aoprncipe.- E, por falar, onde anda a senhora Emlia? - indagou este.Desde a briga com a dona Carochinha que no a vi mais.- Nem eu. Acho bom que o senhor prncipe mande procur-la.O peixinho gritou para o mordomo que achasse a boneca semdemora.Enquanto isso o baile prosseguia. Vieram as lib-lulas, quegozam a fama de ser as mais leves danarinas do mundo. De fato!Danam sem tocar os pezinhos no cho - voando o tempo inteiro. Alinda valsa das li-blulas estava na metade quando o mordomoreapareceu, muito afobado.- Dona Emlia foi assaltada por algum bandido! - gritou ele.Est l na gruta dos tesouros, estendida no cho, como morta.Imediatamente Narizinho pulou do trono e correu em salvaoda sua querida bruxa. Encontrou-a cada por terra, com o rostoarranhado, sem dar o menor acordo de si. O doutor Caramujo,chamado com urgncia, despertou-a logo com um bom belisco,depois de fazer o indispensvel "diagnstico".- Quem ser o monstro que fez isto para a coitada? - exclamoua menina, examinando-lhe a cara e vendo-a com um dos olhos deretrs arrancado. - No bastava ser muda, vai ficar cega tambm. Coitadinha da minha Emlia! .. .- Impossvel descobrir o criminoso - declarou o prncipe.- No h indcios. S depois que o doutor Caramujo cur-la da mudez que poderemos descobrir alguma coisa.- Havemos de tratar disso amanh bem cedo - concluiuNarizinho. - Agora muito tarde. Estou pendendo de sono...E dando boas noites ao prncipe, retirou-se com Em-lia para osseus aposentos.Mas Narizinho no pde dormir. Mal se deitou, ouviu gemidosno jardim que havia ao lado. Levantou-se. Espiou da janela. Era osapo que fora vestido de velha coroca.- Boa noite, Major Agarra! Que gemidos to tristes so esses?No est contente com a sua sainha nova?- No caoe, menina, que o caso no para caoada -respondeu o pobre sapo com voz chorosa. - O prncipe condenou-me aengolir cem pedrinhas redondas. J engoli noventa e nove. No possomais! Tenha d de mim, gentil menina, e pea ao prncipe que meperdoe.Tanta pena do sapo sentiu Narizinho que mesmo em camisolacomo estava foi correndo ao quarto do prncipe, em cuja porta bateuprecipitadamente - toc, toc, toc!...- Quem ? - indagou de dentro o peixinho, que estava adespir-se de suas escamas para dormir.- Narizinho. Quero que perdoe ao pobre do Major Agarra.- Perdoar de qu? - exclamou o prncipe, que tinha amemria muito fraca.- Pois no o condenou a engolir cem pedrinhas redondas? Jengoliu noventa e nove e est engasgado com a ltima. No entra.No cabe! Est l no jardim, de barriga estufada, gemendo echorando que no me deixa dormir.O prncipe danou.- muito estpido o Major! Eu falei aquilo de brincadeira.Diga-lhe que desengula as pedrinhas e nome incomode.Narizinho foi, pulando de contente, dar a boa notciaao sapo.- Est perdoado, Major! O prncipe manda ordempara desengolir as pedrinhas e voltar ao servio.Por mais esforo que fizesse, o sapo no conseguiualiviar-se das pedras. Estava empachado.- Impossvel! - gemeu ele. - O nico jeito o doutor Caramujoabrir-me a barriga com a sua faquinha e tirar as pedras uma por uma como ferro de caranguejoque lhe serve de pina.- Nesse caso, muito boa noite, senhor sapo. Samanh poderemos tratar disso. Tenha pacincia e cuidede no morrer at l.O sapo agradeceu a boa ao da menina, prometendoque se pudesse fugir das garras do prncipe iria morar no stio de donaBenta para manter a horta limpa de lesmas e lagartas.Narizinho recolheu-se de novo, e j ia pulando paraa cama quando se lembrou do Pequeno Polegar, que deixara escondidona concha.- Ah, meu Deus! Que cabea a minha! O coitadinhodeve estar cansado de esperar por mim...E foi correndo gruta dos tesouros. Mas perdeu a viagem. Polegar haviadesaparecido com a concha etudo...Captulo 6 A plula falanteNo outro dia a menina levantou-se muito cedo para levar aboneca ao consultrio do doutor Caramujo. Encontrou-o com cara dequem havia comido um urutu recheado de escorpies.- Que h, doutor?- H que encontrei o meu depsito de plulas saqueado.Furtaram-me todas ...- Que maada! - exclamou a menina aborrecidssima. - Masno pode fabricar outras? Se quiser, ajudo a enrolar.- Impossvel. J morreu o besouro boticrio que fazia asplulas, sem haver revelado o segredo a ningum. A mim s merestava um cento, das mil que comprei dos herdeiros. O miservelladro s deixou uma - e imprpria para o caso porque no plulafalante.- E agora?- Agora, s fazendo uma certa operao. Abro a garganta daboneca muda e ponho dentro uma falinha, respondeu o doutor,pegando na sua faca de ponta para amolar. J providenciei tudo.Nesse momento ouviu-se grande barulheira no corredor.- Que ser? - indagou a menina surpresa.- o papagaio que vem vindo - declarou o doutor.- Que papagaio, homem de Deus? Que vem fazer aqui essepapagaio?Mestre Caramujo explicou que como no houvesse encontradosuas plulas mandara pegar um papagaio muito falador que havia noreino. Tinha de mat-lo para extrair a falinha que ia pr dentro daboneca.Narizinho, que no admitia que se matasse nem formiga,revoltou-se contra a barbaridade.- Ento no quero! Prefiro que Emlia fique muda toda a vida asacrificar uma pobre ave que no tem culpa de coisa nenhuma.Nem bem acabou de falar, e os ajudantes do doutor, unscaranguejos muito antipticos, surgiram porta, arrastando um pobrepapagaio de bico amarrado. Bem que resistia ele, mas os caranguejospodiam mais e eram murros e mais murros.Furiosa com a estupidez, Narizinho avanou de sopapos epontaps contra os brutos.- No quero! No admito que judiem dele! - berrouvermelhinha de clera, desamarrando o bico do papagaio e jogandoas cordas no nariz dos caranguejos.O doutor Caramujo desapontou, porque sem plulas nempapagaios era impossvel consertar a boneca. E deu ordem paraque trouxessem o segundo paciente.Apareceu ento o sapo num carrinho. Teve de vir sobrerodas por causa do estufamento da barriga; parece que as pedrashaviam crescido de volume dentro. Como ainda estivesse vestido coma saia e a touca da Emlia, Narizinho viu-se obrigada a tapar a bocapara no rir-se em momento to imprprio.O grande cirurgio abriu com a faca a barriga do sapo e tiroucom a pina de caranguejo a primeira pedra. Ao v-la luz do sol suacara abriu-se num sorriso cara-mujal.- No pedra, no! - exclamou contentssimo. - uma dasminhas queridas plulas! Mas como teria ela ido parar na barrigadeste sapo? . ..Enfiou de novo a pina e tirou nova pedra. Era outra plula! Eassim foi indo at tirar l de dentro noventa e nove plulas.A alegria do doutor foi imensa. Como no soubesse curar semaquelas plulas, andava com medo de ser demitido de mdico dacorte.- Podemos agora curar a senhora Emlia - declarou ele depoisde costurar a barriga do sapo.Veio a boneca. O doutor escolheu uma plula falante e ps-lhena boca.- Engula duma vez! - disse Narizinho, ensinando Emliacomo se engole plula. E no faa tanta careta que arrebenta o outroolho.Emlia engoliu a plula, muito bem engolida, e comeou a falarno mesmo instante. A primeira coisa que disse foi: "Estou com umhorrvel gosto de sapo na boca!" E falou, falou, falou mais de umahora sem parar. Falou tanto que Narizinho, atordoada, disse ao doutorque era melhor faz-la vomitar aquela plula e engolir outra maisfraca.- No preciso - explicou o grande mdico. - Ela que fale atcansar. Depois de algumas horas de falao,sossega e fica como toda gente. Isto "fala recolhida",que tem de ser botada para fora.E assim foi. Emlia falou trs horas sem tomar flego. Por fimcalou-se.- Ora graas! - exclamou a menina. - Podemos agora conversarcomo gente e saber quem foi o bandido que assaltou voc na gruta.Conte o caso direitinho.Emlia empertigou-se toda e comeou a dizer na suafalinha fina de boneca de pano:- Pois foi aquela diaba da dona Carocha. A corocaapareceu na gruta das cascas ...- Que cascas, Emlia? Voc parece que ainda noest regulando ...- Cascas, sim - repetiu a boneca teimosamente.- Dessas cascas de bichos moles que voc tanto admira e chama conchas.A coroca apareceu e comeou a procurar aquele boneco ...- Que boneco, Emlia?- O tal Polegada que furava bolos e voc escondeu numa cascabem l no fundo. Comeou a procurar e foi sacudindo as cascas umapor uma para ver qual tinha boneco dentro. E tanto procurou queachou. E agarrou na casca e foi saindo com ela debaixo do cobertor...- Da mantilha, Emlia!- Do COBERTOR.- Mantilha, boba!- COBERTOR. Foi saindo com ela debaixo do COBERTOR eeu vi e pulei para cima dela. Mas a coroca me unhou a cara e me bateucom a casca na cabea, com tanta fora que dormi. S acordei quandoo doutor Carade Coruja ...- Doutor Caramujo, Emlia!- Doutor CARA DE CORUJA. S acordei quando o doutorCARA DE CORUJSSIMA me pregou um liscabo.- Belisco - emendou Narizinho pela ltima vez,enfiando a boneca no bolso. Viu que a fala da Emliaainda no estava bem ajustada, coisa que s o tempo poderiaconseguir. Viu tambm que era de gnio teimoso e asneirenta pornatureza, pensando a respeito de tudo de um modo especial todo seu.- Melhor que seja assim, - filosofou Narizinho. - As ideias de vov etia Nastcia a respeito de tudo so to sabidas que a gente j asadivinha antes que elas abram a boca. As ideias de Emlia ho de sersempre novidades.E voltou para o palcio, onde a corte estava reunida para outrafesta que o prncipe havia organizado. Mas assim que entrou na salade baile, rompeu um grande estrondo l fora - o estrondo duma vozque dizia:- Narizinho, vov est chamando ... Tamanho susto causouaquele trovo entre os personagens do reino marinho, que todos sesumiram, como por encanto. Sobreveio ento uma ventania muitoforte, que envolveu a menina e a boneca, arrastando-as do fundo dooceano para a beira do ribeiroznho do pomar. Estavam no stio dedona Benta outra vez. Narizinho correu para casa. Assim que a viuentrar, dona Benta foi dizendo:- Uma grande novidade, Lcia. Voc vai ter agora um bomcompanheiro aqui no stio para brincar. Adivinhe quem ?A menina lembrou-se logo do Major Agarra, que prometera virmorar com ela.- J sei vov! o Major Agarra-e-no-larga-mais. Ele bemme falou que vinha.Dona Benta fez cara de espanto.- Voc est sonhando, menina. No se trata de major nenhum.- Se no o sapo, ento o papagaio! - continuou Narizinho,recordando-se de que tambm o papagaio prometera vir visit-la.- Qual sapo, nem papagaio, nem elefante, nem jacar. Quemvem passar uns tempos conosco o Pedrinho, filho da minha filhaAntonica.Lcia deu trs pinotes de alegria.- E quando chega o meu primo? - indagou.- Deve chegar amanh de manh. Apronte-se. Arrume oquarto de hspedes e endireite essa boneca. Onde se viu uma meninado seu tamanho andar com uma boneca em fraldas de camisa e de umolho s?- Culpa dela, dona Benta! Narizinho tirou minha saia paravestir o sapo rajado - disse Emlia falando pela primeira vez depoisque chegara ao stio.Tamanho susto levou dona Benta, que por um triz no caiu desua cadeirinha de pernas serradas. De olhos arregaladssimos, gritoupara a cozinha:- Corra, Nastcia! Venha ver este fenmeno ... A negraapareceu na sala, enxugando as mos no avental.- Que , sinh? - perguntou.- A boneca de Narizinho est falando!... A boa negra deu umarisada gostosa, com a beiaria inteira.- Impossvel, sinh! Isso coisa que nunca se viu. Narizinhoest mangando com mec.- Mangando o seu nariz! gritou Emlia furiosa. Falo, sim, ehei de falar. Eu no falava porque era muda, mas o doutor Cara deCoruja me deu uma bolinha de barriga de sapo e eu engoli e fiqueifalando e hei de falar a vida inteira, sabe?A negra abriu a maior boca do mundo.- E fala mesmo, sinh! ... - exclamou no auge do assombro.- Fala que nem uma gente! Credo! O mundo est perdido ...E encostou-se parede para no cair.O STIO DO PICAPAU AMARELOCaptulo 1 As jabuticabasDe volta do reino das guas Claras, Narizinho comeou todas asnoites a sonhar com o prncipe Escamado, dona Aranha, o doutorCaramujo e mais figures que conhecera por l. Ficou de jeito queno podia ver o menor inseto sem que se pusesse a imaginar a vidamaravilhosa que teria na terrinha dele. E quando no pensava nissopensava no Pequeno Polegar e nos meios de o fazer fugir de novo dahistria onde o coitadinho vivia preso.Era este o assunto predileto das conversas da menina com aboneca. Faziam planos de toda sorte, cada qual mais amalucado.Emlia tinha ideias de verdadeira louca.- Vou l - dizia ela - e agarro nas orelhas da dona Carocha edou um pontap naquele nariz de papagaio e pego o Polegada pelasbotas e venho correndo.Narizinho ria-se, ria-se ...- Vai l onde, Emlia?- L onde mora a velha.- E onde mora a velha?A boneca no sabia, mas no se atrapalhava na resposta. Emlianunca se atrapalhou nas suas respostas. Dizia as maiores asneiras domundo, mas respondia.- A velha mora com o Pequeno Polegada.- Polegar, Emlia!- PO-LE-GA-DA.Era teimosa como ela s. Nunca disse doutor Caramujo. Erasempre doutor Cara de Coruja. E nunca quis dizer Polegar. Erasempre Polegada.- Muito bem - concordou a menina. - A velha mora comPolegar e Polegar mora com a velha. Mas onde moram os dois?- Moram juntos.Narizinho ria-se, dizendo: "Possa-se com uma dia-binhadestas!"Dona Benta era outra que achava muita graa nas maluquices daboneca. Todas as noites punha-a ao colo para lhe contar histrias.Porque no havia no mundo quem gostasse mais de histria do que aboneca. Vivia pedindo que lhe contassem a histria de tudo - dotapete, do cuco, do armrio. Quando soube que Pedrinho, o outroneto de dona Benta, estava para vir passar uns tempos no stio, pediua histria de Pedrinho.- Pedrinho no tem histria - respondeu dona Benta rindo-se. um menino de dez anos que nunca saiu da casa de minha filhaAntonica e portanto nada fez ainda e nada conhece do mundo. Comoh de ter histria?- Essa boa! - replicou a boneca. - Aquele livro de capavermelha da sua estante tambm nunca saiu de casa e no entanto temmais de dez histrias dentro.Dona Benta voltou-se para tia Nastcia.- Esta Emlia diz tanta asneira que quase impossvelconversar com ela. Chega a atrapalhar a gente.- porque de pano, sinh - explicou a preta - e dumpaninho muito ordinrio. Se eu imaginasse que ela ia aprender a falar,eu tinha feito ela de seda, ou pelo menos dum retalho daquele seuvestido de ir missa.Dona Benta olhou para tia Nastcia dum certo modo, como queachando aquela explicao muito parecida com as da Emlia ...Nisto apareceu Narizinho, com uma carta para dona Bentatrazida pelo correio.- Letra da sua filha Tnica, vov - disse a menina. - Comcerteza marcando a viagem de Pedrinho.Dona Benta leu. Era isso mesmo. Pedrinho viria dali umasemana.- Uma semana ainda? - comentou Narizinho, desanimada detanta demora. Que pena! Tenho tanta coisa a contar a Pedrinho -coisas do reino das guas Claras...- No sei que reino esse. Voc nunca me falou nele, - dissedona Benta com cara de surpresa.- No falei nem falo porque a senhora no acredita. uma belezade reino, vov! Um palcio de coral que parece um sonho! E oprncipe Escamado, e o doutor Caramujo, e dona Aranha com suasseis filhinhas, e o major Agarra, e o papagaio que salvei da morte -quanta coisa!. . . At baleias vimos l, uma baleia enorme, dando demamar a trs baleinhas. Vi um milho de coisas mas no posso contarnada nem para vov nem para tia Nas-tcia porque no acreditam.Para Pedrinho, sim, posso contar tudo, tudo . ..Dona Benta, de fato, nunca dera crdito s histrias maravilhosasde Narizinho. Dizia sempre: "Isso so sonhos de crianas." Masdepois que a menina fez a boneca falar, dona Benta ficou toimpressionada que disse para a boa negra: - Isto um prodgiotamanho que estou quase crendo que as outras coisas fantsticas queNarizinho nos contou no so simples sonhos, como sempre pensei.- Eu tambm acho, sinh. Essa menina levada da breca. bem capaz de ter encontrado por a alguma varinha de condo quealguma fada tenha perdido ... Eu tambm no acreditava no que eladizia, mas depois do caso da boneca fiquei at transtornada da cabea.Pois onde que j se viu uma coisa assim, sinh, uma boneca depano, que eu mesma fiz com estas pobres mos, e de um paninho toordinrio, falando, sinh, falando que nem uma gente!... Qual, ou nsestamos caducando ou o mundo est perdido ...E as duas velhas olhavam uma para a outra, sacudindo a cabea.Narizinho no gostava de esperar; ficou pois aborrecida de ter de esperarPedrinho ainda uma semana inteira. Felizmente era tempo de jabuticabas.i No stio de dona Benta havia vrios ps, mas bastava um para que todosse regalassem at enjoar. Justamente naquela semana as jabuticabastinham chegado "no ponto" e a menina no fazia outra coisa senochupar jabuticabas. Volta e meia trepava rvore, que nemuma macaquinha. Escolhia as mais bonitas, punha-as entre os dentese tioc! E depois do ploc, uma engolidinha de caldo e pluf! - caroofora. E tioc, pluf, - tioc, pluf, l passava o dia inteiro na rvore.As jabuticabas tinham outros fregueses alm da menina. Umdeles era um leito muito guloso, que recebera o nome de Rabic.Assim que via Narizinho trepar rvore, Rabic vinha correndopostar-se embaixo espera dos caroos. Cada vez que soava l emcima um tioc! seguido de um pluf! ouvia-se c embaixo um nhoc! doleito abocanhando qualquer coisa. E a msica da ja-buticabeira eraassim: tioc! pluf! nhoc! - tioc! pluf! nhoc!...Sanhaos tambm, e abelhas e vespas. Vespas em quantidade,sobretudo no fim, quando as jabuticabas ficavam que nem um mel,como dizia Narizinho. Escolhiam as melhores frutas, furavam-nascom o ferro, enfiavam meio corpo dentro e deixavam-se ficar muitoquietinhas, sugando at carem de bbedas.- E no mordiam?- No tinham tempo. O tempo era pouco para aproveitaremaquela gostosura que s durava uns quinze dias.No mordiam um modo de dizer. Nunca tinham mordido, issosim. Porque justamente naquela tarde uma mordeu. Estava Narizinhono seu galho, distrada em pensar na surpresa que teria o prncipeEscamado se recebesse uma jabuticaba de presente, quando levou boca uma das tais furadinhas, com meia vespa dentro. Dessa vez emlugar do tioc do costume o que soou foi um berro - ai! ai! ai!... tobem berrado que l dentro da casa as duas velhas ouviram.- Que ser aquilo? - exclamou dona Benta assustada.- Aposto que vespa, sinh! - disse tia Nastcia. - Ela no saida "fruteira" e, como nunca foi mordida, abusa. Eu vivo dizendo:"Cuidado com as vespas!" mas no adianta, Narizinho no faz caso.Agora, est a...E foi correndo ao pomar acudir a menina.Encontrou-a j de volta, berrando com a lngua mostra, porquefora bem na ponta da lngua que a vespa ferroara. A negra trouxe-apara casa, botou-a no colo e disse:- Sossegue, boba, isso no nada. Di mas passa. Ponhaa lngua para eu arrancar o ferro. Vespa quando morde deixa o ferro nolugar da mordedura. Bem para i fora. Assim.Narizinho espichou meio palmo de lngua e tia Nas-tcia, commuito custo, porque j tinha a vista fraca, pde afinal descobrir oferrozinho e arranc-lo.- Pronto! - exclamou mostrando qualquer coisa na pontaduma pina. - Est aqui o malvado. Agora ter pacincia e esperar quea dor passe. Se fosse mordida de cachorro bravo seria muito pior . ..Narizinho curtiu a dor por alguns minutos, de lngua inchada eolhos vermelhos, soluando de vez em vez. Depois que a dor passou,foi contar boneca toda a histria.- Bem feito! - disse Emlia. - Se fosse eu, antes de comerolhava cada fruta, uma por uma, com o binculo de dona Benta.Apesar do acontecido, Narizinho no pde reprimir umagargalhada, que tia Nastcia ouviu l da cozinha."Narizinho j sarou", disse consigo a preta, "e daqui um instantinhoest trepada na rvore outra vez".E tinha razo. Indo dali a pouco ao rio com a trouxa de roupasuja, ao passar pela jabuticabeira parou para ouvir a msica desempre - tioc! pluf! nhod... L estava Narizinho trepada rvore.L estavam as vespas com meio corpo metido dentro das frutas. Lestava Rabic esperando a queda dos caroos.- Est tudo regulando! - murmurou consigo a preta, e pondoo pito na boca seguiu o seu caminho.Captulo 2 O enterro da vespaDe noite, hora de deitar-se, Narizinho lembrou-se de que haviadeixado a boneca debaixo da jabuticabeira.- Pobre da Emlia! Deve estar morrendo de medo das corujas... epediu a tia Nastcia que fosse busc-la.A negra foi e trouxe Emlia, toda mida de orvalho, danadssimacom o esquecimento da menina. E s com a promessa de um belovestido novo que desamarrou o burro. Um vestido de chita cr-de-rosacom pintinhas.E de saia bem comprida.- Por que, Emlia? - indagou a menina estranhando aquelegosto.- Porque sujei a perna aqui no joelho e no queroque aparea.- O mais fcil ser lavar o joelho.- Deus me livre! Tia Nastcia diz que sou de ma-cela por dentro epor isso no posso me molhar. Embo-loro. Um dia ainda posso virarcondessa e no quero serchamada a condessa do Bolor.- Testo, panela, bolor, fedor! Tem razo, Emlia. O melhor fazerum vestido de cauda. Para condessas fica bem. Mas condessas de qu?- Quero ser a condessa de Trs Estrelinhas! Acho lindo tudo que detrs estrelinhas.- Pois muito bem, Emlia. Desde este momento fica vocnomeada condessa de Trs Estrelinhas e para no haver dvida voupintar trs estrelinhas na sua testa. Todas as criaturas do mundo votorcer-se de inveja!...- Todas menos uma - observou a boneca.- Quem?- A vespa que ferrou sua lngua.- Explique-se, Emlia. No estou entendendo nada.- Quero dizer que a tal vespa est morta e bem enterrada nofundo da terra - explicou a boneca. - Assisti a tudo. Quando elamordeu sua lngua e voc fez pluf! antes de berrar ai! ai! ai!, ajabuticaba cuspida, ainda com a vespa dentro, caiu bem perto demim. Vi ento tudo o que se passou depois que voc desceu darvore, berrando que nem um bezerro, e l foi de lngua de fora.E a boneca contou direitinho o triste fim da pobre vespa.- Ela ficou ainda quase uma hora metida dentro da casca, todaarrebentadinha, movendo ora uma perna, ora outra. Afinal parou.Tinha morrido. Vieram as formigas cuidar do enterro. Olharam,olharam, estudaram o melhor meio de a tirar dali. Chamaram outras epor fim deram comeo ao servio. Cada qual a agarrou por umaperninha e, puxa que puxa, logo a arrancaram de dentro dajabuticaba. E foram-na arrastando por ali afora at cova, que oburaquinho onde as formigas moram. La pararam espera do fazedorde discursos...- Orador, Emlia!- FAZEDOR DE DISCURSOS. Veio ele, de dis-cursinhodebaixo do brao, escrito num papel e leu, leu, leu que no acabavamais. As formigas ficaram aborrecidas com o besourinho (era umbesourinho do Instituto Histrico) e apitaram. Apareceu ento umlouva-deus policial, de pauzinho na mo. "Que h?" - perguntou."H que estamos cansados e com fome e este famoso orador noacaba nunca o seu discurso. Est muito pau", disseram as formigas."Para pau, pau!" - resolveu o soldado - e arrolhou o orador com oseu pauzinho.As formigas, muito contentes, continuaram o servio e levarampara o fundo da cova o cadver da vespa. Em seguida apareceu umatrazendo um letreiro assim, que fincou num montinho de terra:"AQUI NESTE BURACO JAZ UMA POBREVESPA ASSASSINADA NA FLOR DOS ANOSPELA MENINA DO NARIZ ARREBITADO. ORAI PORELA!"Feito isso, recolheu-se. Era noite quase fechada. No pomardeserto s ficou o besourinho, sempre engasgado com o pau. Queria viva fora continuar o discurso. Por fim conseguiu destapar-se eimediatamente continuou: "Neste momento solene..." Nisto um sapo, que ia passando,alumiou o olho dizendo: "Espere que eu te curo!..." Deu um pulo eengoliu o fazedor de discursos!- No reparou, Emlia, se esse sapo era o Major Agarra-e-nolarga-mais ? - perguntou a menina.- No era, no! - respondeu a boneca. - Era o Coronel Comeorador-com-discurso-e-tudo...Captulo 3 A pescariaAfinal acabaram as jabuticabas. Somente nos galhos bem l doalto que ainda se via uma ou outra, todas furadinhas de vespa.Rabic - rom, rom, rom, - volta e meia aparecia por ali porfora do hbito. Ficava imvel, muito srio, esperando que cassemcascas; mas, como no casse coisa nenhuma, desistia e retirava-se,rom, rom, rom...Narizinho tambm ainda aparecia de vez em quando decomprida vara na mo e nariz para o ar, na esperana de "pescar"alguma coisa.- Arre, menina! - gritou l do rio tia Nastcia, numa dessasvezes. - No chegou quase um ms inteiro de oc, tioc? Largue dissoe venha me ajudar a estender esta roupa, que o melhor.Narizinho jogou a vara em cima do leito, que fez coim! e foicorrendo para o rio, com a Emlia de cabea para baixo no bolso doavental.L teve uma ideia: deixar a boneca pescando enquanto elaajudava a preta.- Tia Nastcia, faa um anzolzinho de alfinete para a Emlia. Acoitada tem tanta vontade de pescar...- Era s o que faltava! - respondeu a negra, tirando o pito daboca. - Eu, com tanto servio, a perder tempo com bobagem.- Faz? - insistiu a menina. - Alfinete, tenho aqui um. Linha, hno alinhavo da minha saia. Vara no falta. Faz?A negra no teve remdio.- Como no hei de fazer, demoninho? Fao, sim... Mas se ficaratrasada no servio, a culpa no minha.E fez. Dobrou o alfinete em forma de gancho, amarrou-o naponta duma linha e descobriu uma vara - uma varinha de doispalmos, imaginem! Narizinho completou a obra, atando a vara aobrao da boneca.- E isca? - indagou depois.- Isca o de menos, menina. Qualquer gafanhoti-nho serve.Salta daqui, salta dali, Narizinho conseguiu apanhar umgafanhoto verde. Espetou-o no anzol. Depois arrumou a boneca beirad'gua, muito tensa, com uma pedra ao colo para no cair.- Agora, Emlia, bico calado! Nenhum pio, seno espanta ospeixes. Logo que um deles beliscar, zuctf, d um puxo na linha.E, deixando-a ali, foi ter com a preta.- Voc me frita para o jantar o peixinho da Emlia, Nastcia?Frita?- Frito, sim! Frito at no dedo!...- No caoe, Nastcia! Emlia uma danada. Ningumimagina de quanta coisa ela capaz.Palavras no eram ditas e - tchbum!... pescadora de panorevirava dentro d'gua, com pedra e tudo.- Acuda, Nastcia! Emlia est se afogando!... - gritou amenina aflita.De fato. Um peixe engolira a isca e, lutando por safar-se doanzol, arrastara a boneca para o meio do rio.Tia Nastcia arranjou uma vara de gancho e com muito jeito foipuxando para a beira do crrego a infeliz pescadora, at o ponto ondea menina a pudesse agarrar.Assim aconteceu. e qual no foi o assombro de Narizinhovendo sair d'gua, presa ao anzol de Emlia, uma trairinha querabeava como louca!A negra pendurou o beio.- Credo! At parece feitiaria! - resmungou.Muito contente da aventura, Narizinho disparou para casa com o peixena mo.- Vov - gritou ela ao entrar, - adivinhe quem pescou estatrairinha ...Dona Benta olhou e disse:- Ora, quem mais! Voc, minha filha.- Errou!- Tia Nastcia, ento.- Qual Nastcia, nada!...- Ento foi o saci - caoou Dona Benta.- Vov no adivinha! Pois foi a Emlia...- Est bobeando sua av, minha filha?- Juro! Palavra de Deus que foi a Emlia. Pergunte a tiaNastcia, se quiser.A preta vinha entrando com a trouxa de roupa lavada cabea.- No foi mesmo, tia Nastcia? No foi Emlia quem pescou atrairinha?- Foi, sim, sinh - respondeu a preta dirigindo-se para donaBenta. - Foi a boneca. Sinh no imagina que menina reinadeira essa! Arranjoujeito de botar a boneca pescando na beira do rio e o caso que o peixe t a...Dona Benta abriu a boca.- Bem diz o ditado, que quanto mais se vive mais se aprende.Estou com mais de sessenta anos e todos os dias aprendo coisas novas com estaminha neta do chifre furado...- Criana de hoje, sinh, j nasce sabendo. No meu tempo,menina assim desse porte andava no brao da ama, de chupeta na boca. Hoje?...Credo! Nem bom falar...E com a menina danando sua frente, tia Nastcia l foi para acozinha fritar a trara.Captulo 4 As formigas ruivasS depois de comer o peixe frito que Narizinho se lembrou da pobreboneca, encharcada pelo banho no rio.- A coitada!... bem capaz de apanhar pneumonia ...E foi correndo cuidar dela. Despiu-a e p-la num lugar debastante sol. Dum lado estendeu suas roupi-nhas molhadas e do outro,a pobre Emlia nua em plo. E j ia retirar-se quando a boneca fezcara de choro.- Eu aqui no fico sozinha!. ..- Por que, sua enjoada? Tem medo que o leito venha espiaresses cambitos magros?- Espiar no nada, mas ele capaz de me comer. Tia Nastciadiz que Rabic devora tudo o que encontra.- Nesse caso, penduro voc na rvore.- Isso tambm no! - protestou Emlia. - Alguma vespapode me ferrar.- Boba! No sabe que vespa no ferra pano?- Mas se eu cair com o vento?- Grande coisa! Boneca de pano quando cai no se machuca.Eu que no posso ficar neste sol firano espera de que aexcelentssima senhora condessa de Trs Estrelinhas seque! Quemmandou molhar-se?- Mal agradecida! Se no fosse a minha molha-dela voc nocomia a trara.- Est pensando que era uma grande coisa a tal trara? Sespinho...- , mas voc comeu-a com espinho e tudo. e at lambeu osbeios.- Lbios, alis. Beio de boi. Comi porque quis, sabe? Notenho que dar satisfaes a ningum, em! e Narizinho ps-lhe alngua.Emburraram ambas. Narizinho, porm, ficou, porque l nontimo estava com receio de deixar a boneca sozinha.Fazia um sol quente e parado. Nas rvores, um ou outro ticotico s; e no cho, s formiguinhas ruivas.Para matar o tempo a menina ps-se a observar o corre-corre delas,esquecendo a briga com a boneca.- J reparou, Emlia, como as formigas conversam? Que pena agente no entender o que dizem...- A gente modo de dizer - replicou Emlia - porque euentendo muito bem o que dizem.- Srio, Emlia?- Srio, sim, Narizinho. Entendo muito bem e, se voc ficaraqui comigo, contarei todas as historinhas que elas conversam. Repare.Vem vindo aquela de l e esta de c. Assim que se encontrarem, voparar e conversar.Dito e feito. As formiguinhas encontraram-se, pararam ecomearam a trocar sinais de entendimento.- Fiquei na mesma! - disse a menina.- Pois eu entendi tudo, - declarou a boneca. -A que veio de ldisse: "Encontrou o cadver do grilinho verde"? A que veio de crespondeu: "No"! A de l:"Pois volte e procure perto daquela pedra onde mora o besouromanco." Esta formiga que d ordens deve ser alguma dona-de-casa ldo formigueiro. E repare seus modos de mandona; est sempre a entrar esair do buraquinho, como quem dirige um servio. A outra comcerteza uma simples carregadeira.Havia de ser isso mesmo, porque logo depois chegou umaterceira, muito apressada, que cochichou com a mandona e l se foimais apressada ainda.- Que que disse esta? - perguntou Narizinho.- Disse que haviam descoberto uma bela minhoca perto daporteira, mas que precisavam de ajutrio para conduzi-la.- Emlia, voc esta me bobeando! - exclamou a meninadesconfiada. - Vou ver, e se no for verdade voc me paga. Espere a...E disparou em direo da porteira. Procura que procura, logoachou em certo ponto uma pobre minhocacorcoveando com vriasformiguinhas ferradas no seu lombo.Teve vontade de libertar a prisioneira, mas a curiosidade de vero que aconteceria foi maior - e deixou a triste minhoca entregue aoseu trgico destino.Novas formiguinhas foram chegando, que de um bote - zs!...ferravam a minhoca sem d. No demorou muito e j eram mais devinte. A minhoca bem que espinoteou; por fim, exausta, foi moleandoo corpo at que morreu bem morrida. As formiguinhas entoprincipiaram a arrast-la para o formigueiro.Que custo! A minhoca era das mais gordas, pesando umas setearrobas - arrobinhas de formiga, e alm disso ia enganchando pelocaminho em quanto pedregulho ou capim havia; mas as carregadeirassabiam dar volta a todos os embaraos.Depois de meia hora de trabalheira deram com a minhoca naboca do formigueiro. A, nova atrapalhao. Por mais queexperimentassem, no houve jeito de recolh-la inteira. Nistoapareceu a formiga mandona. Examinou o caso e deu ordem para quea picassem em vrios roletes.Aquilo foi zs-trs! Em trs tempos fez-se o servio e os roletesde carne foram levados para dentro.- Sim, senhora! - exclamou a menina depois de terminada afesta. - o que se pode chamar um trabalho limpo! O demo queira serminhoca neste pomar...- Bem feito! - disse Emlia. - Quem a mandou ser abelhuda?Se estivesse com as outras l dentro da terra, que o lugar dasminhocas, nada lhe aconteceria. Macaco que muito mexe querchumbo, como diz tia Nastcia.Isso, foi de dia. De noite a histria das formigas continuou.Narizinho e Emlia dormiam juntas na mesma cama. A rede armadaentre ps de cadeira fora abandonada desde que a boneca aprendeu afalar. Dormiam juntas para conversar at que o sono viesse.- Mas, Emlia, como que voc entende a linguagem dasformigas? - perguntou Narizinho logo que se deitou.A boneca refletiu um bocado e respondeu:- Entendo porque sou de pano. Narizinho deu uma gargalhada.- Isso no resposta duma senhora inteligente. O meu vestidotambm de pano e no entende coisa nenhuma.A boneca pensou outra vez.- Ento porque sou de macela - disse. Nova risada deNarizinho. - Isso Tambm no resposta. Este travesseiro de macela eentende as formigas tanto quanto eu.- Ento ... ento ... engasgou Emlia, com o dedi-nho na testa.Ento no sei.Era a primeira vez que Emlia se embaraava numa resposta.Primeira e ltima. Nunca mais houve pergunta que a atrapalhasse.- Pois se no sabe, durma - disse a menina, virando-se para aparede.Dormiram ambas.Altas horas, estavam no mais gostoso do sono quando bateram- toc, toc, toc...- Quem ? - perguntou Narizinho sentando-se na cama.- Sou eu, Rabic! - grunhiu o leito entreabrindo a porta como focinho. - Est aqui uma senhora ruiva que quer entrar.- Pois que entre! - ordenou a menina. Rabic escancarou aporta para dar passagem a uma formiga ruiva, de saiote vermelho e avental derenda. Trazia na cabea uma salva de prata, coberta com guardanapo de papel.- Que que deseja? - indagou a menina cheia de curiosidade.- Quero entregar senhora Condessa este presente mandadopela rainha das formigas.- Condessa? - repetiu Narizinho franzindo a testa. - Quecondessa, minha senhora?- Condessa de Trs Estrelinhas - explicou a formiga.- Hum! - fez a menina, lembrando-se de que ela mesmahavia "condessado" a boneca.Voltou-se para Emlia e deu-lhe uma cotovelada.- Acorde, pedra! com Vossa Excelncia o negcio.Emlia sentou-se na cama. Espreguiou-se, tonta de sono. Ejulgando que ainda estivessem a conversar sobre a linguagem dasformigas, disse, num bocejo:- Ento ... porque sou ...- No se trata mais disso, idiota! Est a procura duma talcondessa a criada duma tal rainha. Vamos! Acorde duma vez!S ento Emlia acordou de verdade. Viu a formiga com a salvae espichou os braos para receber o presente. Eram croquetes, lindoscroquetes tostadinhos.A boneca sorriu de gosto e orgulho. A rainha s se lembraradela!- Diga a Sua Majestade que a condessa de Trs Estrelinhasmuito agradece o presente. Diga que os croquetes esto lindos e queela uma grande cozinheira.Narizinho disparou a rir gostosamente.- Que ideia, condessa! Uma rainha l pode ser cozinheira?Caindo em si, Emlia viu que tinha cometido uma coisa muitograve entre as pessoas de alta sociedade, chamada "gafe". Eprocurou corrigir-se.- Isto ... diga que a cozinheira dela muito boa, entendeu? Ediga tambm que os croquetes esto muito gostosos, isto ... devem estar muitogostosos. Pode ir.A criada fez um cumprimento de cabea antes de retirar-se, mas foidetida por um gesto da menina.- No v ainda - disse ela. E voltando-se para a Emlia: -Presente, senhora condessa, paga-se com presente. Mande tal rainhauma perna daquele pernilongo i que queimei com a vela antes de deitar.- verdade! - exclamou a boneca. - No me custa nada e elavai ficar contentssima.E ps-se de gatinhas a procurar o pernilongo assado. Achou-o,tirou-lhe uma perninha, enfeitou-a com um lao de fita e, depois deembrulh-la em papel de seda, olocou-a na salva, com um cartoque dizia assim:"A Sua Majestade a Rainha da Cintura Fina oferece ahumilde criada Condessa de trs estrelinhas lhe oferece este umildepresente."- Leve este presento rainha, sim? E voc, para distrair-sepelo caminho v comendo este mocot de pernilongo - concluiuEmlia, dando criada um cambito de inseto.A mensageira agradeceu, retirando-se muito satisfeita da vida,com a salva na cabea e o mocot no ferro.Emlia fechou a porta e veio examinar os croquetes. Cheirou-os.- Hum! Esto de fazer vir gua boca. Quer provar um,Narizinho?A menina torceu o nariz desdenhosamente.- Deus me livre! Juro que croquete de minhoca. Percebendoque ela falava assim por despeito, a boneca disse, para moe-la:- Quem desdenha quer comprar...- S ? Engraadinha! ... replicou a menina com um grande arde pouco caso. E vendo a boneca morder um dos croquetes, com osmaiores exageros do mundo, como se aquilo fosse um manjar do cu,fez muxxo de nojo.- Est boa mesmo para casar com Rabic! Comer croquete deminhoca!- Que seja de minhoca, que tem isso? - retrucou Emlia.Tanto faz carne de minhoca como de porco, vaca ou frango - tudo carne. E muito me admira que uma senhora que comeu ontem nojantar tripa de porco, mostre essa cara de nojo por causa dum simplescroquete de minhoca.- Alto l, senhora condessa Minhoqueira! Porco porco eminhoca minhoca.- "por isso mesmo" que eu como minhoca e no comoporco! - replicou a boneca vitoriosa. - No sou por-calhona.A discusso foi por a alm. Enquanto isso o senhor Rabic farejouos croquetes, chegou-se de mansinho e, vendo-as distradas com adisputa, comeu-os todos de uma engolida s. Terminada a discusso,quando a menina, espichou o brao a fimde pegar um segundo croquete ...- Que dos croquetes? - gritou ela. Nem sinal! Emliaesperneou de dio, ao passo que Narizinho batia palmas decontentamento.- Bem feito! Estava muito ganjenta, no ? Pois tome!- Quero os meus croquetes! Quero os meus croquetes! -berrava Emlia, batendo o p num grande desespero.- Se quer os seus croquetes, pea contas a quem os tirou.- Quem foi?- Quem mais se no Rabic? Vai ver que est aqui peloquarto, escondido debaixo da cama.Emlia deu busca e logo descobriu o ladro num canto,ressonando de papo cheio.- Espere que te curo! - gritou ela, passando a mo navassoura. E p! p! p!... desceu a lenha no lombo do gatuno,enquanto Narizinho se rebolava na cama de tanto rir, pensandoconsigo: "Se antes de casar assim, imagine-se depois!"Isso porque ela andava alimentando o projeto de casar Emliacom Rabic.Captulo 5PedrinhoChegou afinal o grande dia. Na vspera viera para dona Benta umacarta de Pedrinho que comeava assim:"Sigo para a no dia 6. Mande estao o cavalo pan-gar e no seesquea do chicotinho de cabo de prata quedeixei pendurado atrs da porta do quarto de hspedes. Narizinho sabe.Quero que Narizinho me espere na porteira do pasto, com a Emlia noseu vestido novo e Rabic de lao de fita na cauda. E tia Nastcia queapronte um daqueles cafs com bolinhos de frigideira que s elasabe fazer."Em vista disso Narizinho levantou-se muito cedo para preparar arecepo de acordo com as instrues da carta. Enfiou em Emlia ovestido novo de chita crde--rosa com pintinhas e enfeitou Rabic deduas fitas - uma ao pescoo e outra na ponta da cauda.Pac, pac, pac... Pedrinho apareceu na porteira, trotando nopangar, corado do sol e alegre como umpassarinho.- Viva! - gritou a menina, correndo a lhe segurara rdea. Apeie depressa, senhor doutor, que temos milcoisas a conversar!Pedrinho apeou-se, abraou-a e no resistiu tentao de alimesmo abrir o pacote dos presentes para tiraro dela.- Adivinhe o que trouxe para voc! - disse, escondendo atrsdas costas um embrulho volumoso.- J sei - respondeu a menina incontinnti. Uma boneca quechora e abre e fecha os olhos.Pedrinho ficou desapontado, porque era justamenteo que havia trazido.- Como adivinhou, Narizinho? A menina deu uma risadagostosa.- Grande coisa! Adivinhei porque conheo voc. Fique sabendo,seu bobo, que as meninas so muito maisespertas que os meninos ...- Mas no tm mais muque! - replicou ele com orgulho,fazendo-a apalpar a dureza do seu bceps que a ginstica escolar haviadesenvolvido. E concluiu: Com este muque e a sua esperteza,Narizinho, quero ver quempode com a nossa vida!Os presentes dos demais foram tambm distribudos ali mesmo. Rabicteve uma fita nova, de seda - e osrestos do farnel que Pedrinho trouxera (e foi isso o que ele maisapreciou). Emlia recebeu um servio de cozinha completo -fogozinho de lata, panelas, e at um rolo de folhear massa de pastel.- E para vov que que trouxe? - perguntou Narizinho.- Adivinhe, j que to adivinhadeira - disse ele.- Eu s adivinho quando voc mesmo quem escolhe ospresentes. Mas o presente de vov aposto que no foi voc quemescolheu - foi tia Antonica . . .Pela segunda vez Pedrinho abriu a boca. Aquela prima, apesarde viver na roa, estava se tornando mais esperta do que todas asmeninas da cidade.- Tem razo. isso mesmo. O presente de vov quem oescolheu e comprou foi mame. Voc precisa me ensinar o segredode adivinhar as coisas, Narizinho ...Nesse momento dona Benta apareceu na varanda e Pedrinhocorreu a abra-la.Dali a pouco estavam todos reunidos na sala de jantar, ouvindonotcias e histrias da cidade. Tia Nast-cia trouxe da cozinha agamela de massa, para no perder uma s palavra ao mesmo tempoque ia enrolando os bolinhos. Sbito, uma brisa soprou mais forte eum ringido se fez ouvir - nhem, nhim...Pedrinho interrompeu a conversa, de ouvido atento.- O mastro de So Joo!... - murmurou enlevado. - Quantasvezes no colgio me iludi com os ringidos das portas, imaginandoque era a bandeira do nosso mastro! ... Como vai ele?- J desbotado pelas chuvas e com um rasgo na bandeira bemem cima da cabea do carneirinho - respondeu a menina.O dia de So Joo era o grande dia de festa no Stio do PicapauAmarelo. Reuniam-se l todas as crianas dos arredores, para soltarbombinhas e pistoles e danar em torno da fogueira. Pedrinho jamaisfaltou a essa festa anual, como jamais deixou de queimar o dedo.Um ano em que no queimou o dedo ficou muito admirado.Nos ltimos tempos era Pedrinho quem pintava o mastro,caprichando em formar arabescos de todas as cores, cada ano dumestilo diferente. Tambm era ele quem fornecia a bandeira com oretrato de So Joo menino, de cruz ao ombro e cordeiro no brao.Trazia-a da cidade, depois de percorrer todas as casas de negcio afim de comprar a mais bonita.- Est bem - disse dona Benta logo que soube das principaisnovidades. - Pode ir brincar com Narizinho, que tem um mundo decoisas a contar.Os dois primos dirigiram-se ao pomar aos pinotes. Era l,debaixo das velhas rvores que trocavam confidncias e planejavamas grandes aventuras pelo mundo das maravilhas.O assunto do dia foi o extraordinrio caso da boneca.- Parece incrvel! - dizia Pedrinho. - Quando recebi sua cartacontando que Emlia falava, no quis acreditar. Mas hoje vejo que falae fala muito bem. espantoso !- No comeo - explicou Narizinho - Emlia falava muitoatrapalhado e sem propsito. Agora j est melhor, mas, mesmoassim, quando d para falar asneiras ou teimar, ningum pode com avidinha dela. Sabe que j condessa?- Sim? Condessa de qu?- De Trs Estrelinhas, nome que ela mesma escolheu. Masestou com vontade de mudar. Condessa pouco. Emlia merece sermarquesa.- Marquesa de Santos?- No. Marquesa de Rabic.- verdade!... Podemos fazer de Rabic um marqus e casarEmlia com ele!- Isso mesmo. Tenho pensado muito nesse arranjo e at j opropus Emlia.- E ela aceitou?- Emlia muito vaidosa e cheia de si. Mas eu sei lidar comela. Quando chegar a ocasio darei um jeito.Terminado o assunto Emlia, comeou o assunto Reino dasguas Claras. Narizinho contou a srie inteir daquelas maravilhosas aventuras, despertando em Pedrinho umdesejo louco de tambm conhecer o prnciperei. De nada se admirou, conforme o seu costume. Tanto ele comoNarizinho achavam tudo to natural! S estranhou que o PequenoPolegar tivesse fugido da sua his-torinha.- Isso, sim, no deixa de me intrigar - disse ele. - Se Polegarfugiu que a histria est embolorada. Se a histria est embolorada,temos de bot-la fora e compor outra. H muito tempo que ando comesta ideia- fazer todos os personagens fugirem das velhas histrias para viremaqui combinar conosco outras aventuras. Que lindo, no?- Nem fale, Pedrinho! - exclamou a menina pensativa. - O queeu no daria para brincar neste stio com a menina da CapinhaVermelha ou Branca de Neve ...- Eu s queria pilhar c o Aladino da lmpada maravilhosa,para tirar a prosa dele! - ajuntou Pedrinho que voltara da cidadecom fumaas de valentia.- E eu s queria Capinha. Tenho tanta simpatia por essamenina ... Aqueles bolos que ela costumava levar para a vov que olobo comeu - que vontade de comer um daqueles bolos ...Uma voz conhecida veio interromp-los:- Narizinho! Pedrinho! O caf est na mesa.- Duvido que fossem melhores que os de tia Nast-cia! -disse o menino erguendo-se. E dispararam para casa.Captulo 6 A viagemDeitaram-se bem tarde naquela noite. Tanta coisa tinha omenino a contar, coisas da casa da dona Antoni-ca e da escola, quesomente s onze horas foram para a cama. Que sono regalado! Isto ,regalado at uma certa hora. Da por diante houve coisa grossa.Narizinho estava justamente no meio dum lindo sonho quandodespertou de sobressalto, com umas paneadinhas de chicote na vidraa - pen, pen, pen... E logo em seguidaouviu a voz do marqus de Rabic, que dizia:- O sol no tarda, Narizinho. Pule da cama que so horas departir.Chegando janela, viu o marqus montado num cavalinho depau sua espera.- E a condessa? J est pronta? - perguntou a menina.- A senhora condessa j est l embaixo, eorcoveando nocavalo Pampa.- Pois ento que me selem o pangar. Em trs tempos mevisto.Enquanto por ordem do marqus selavam o cavalo pangar, amenina punha o seu vestido vermelho de bolso. Precisava de bolsopara levar os bolinhos de tia Nas-tcia sobrados da vspera e tambmpara trazer coisas do reino das Abelhas.Porque era para o reino das Abelhas que eles iam, a convite darainha. Reino das Abelhas ou das Vespas? No havia certeza ainda.Na vspera chegara um maribondo mensageiro com um conviteassim:"Sua Majestade a Rainha das... d a honra de convidarvocs todos para uma visita ao seu reino."Como o papelzinho estivesse rasgado num ponto, havia dvidase o convite era da rainha das Vespas ou da rainha das Abelhas.Narizinho respondeu ao convite por meio dum bor-boletograma.No sabem o que ? Inveno da Emlia. Como no houvessetelgrafo para l, a boneca teve a ideia de mandar a resposta escritaem asas de borboleta. Agarrou uma borboleta azul que ia passando erabiscou -lhe na asa, com um espinho, o seguinte:"Narizinho, a Condessa e o Marqus agradecem a honra doconvite e prometem no faltar."- Por que no incluiu o nome de Pedrinho, Emlia?- perguntou a menina.- Porque ele no nobre - nem baro ainda !... Pronto que foi oborboletograma, surgiu uma dificuldade. A quem endere-lo? rainha das Vespas ou das Abelhas?- J resolvo o caso - disse Emlia, e soltou a borboleta comestas palavras: "V direitinha, hein? Nada de distrair-se com florespelo caminho."- Ir para onde? - perguntou a borboleta.- Para a casa de seu sogro, ouviu? Malcriada! Atrever-se afazer perguntas a uma condessa!- Mas... - ia dizendo humildemente a borboleta. Emlia,porm, interrompeu-a com um berro.- Ponha-se daqui para fora! No admito observaes. Conheao seu lugar, ouviu?A borboleta l se foi, amedrontada e desapontads-sima.- Voc parece louca, Emlia! - observou Narzinho. - Comoh de ela saber o endereo se voc no deu endereo algum?- Sabe, sim! - retorquiu a boneca. - So umas sa-bidssimas assenhoras borboletas. Se sabem fabricar p azul para as asas, que coisa dificlima, como no ho de saber o endereo dumborboletograma ?Narizinho fez cara de quem diz: "Ningum pode entender comofunciona a cabea da Emlia! Ora raciocina muito bem, tal qual gente.Outras vezes, assim - to torto que deixa uma pessoaatrapalhada..."O cavalo pangar veio, a menina montou e l partiram todospela estrada afora - pe, pac, pac... Em certo ponto Narizinho disse boneca:- Vamos apostar corrida? Emlia aceitou, muito assanhada.- Pois toque, ento!Emlia - lept, lept! chicoteou o cavalinho pampa, disparandonuma galopada louca. Narizinho, porm, no se moveu do lugar. Oque queria era ficar s com o marqus de Rabic para uma conversareservada - o casamento dele com a condessa.- Mas afinal de contas, marqus, quer ou no quer casar-secom a condessa?- J declarei que sim, isto , que casarei, se o dote for bom. SeSe me derem, por exemplo, dois cargueiros de milho, casarei com quemquiserem - com a cadeira, com o pote d'gua, com a vassoura.Nunca fui exigente em matria matrimonial.- Guloso! Pois olhe que vai fazer um casamento! Emlia feia, no nego, mas muito boa dona de casa. Sabe fazer tudo, at fiosde ovos, que o doce mais difcil. Pena ser to fraquinha ...- Fraca? - exclamou o marqus admirado. - No me parece.To gorda que est ...- Engano seu. Emlia, desde que caiu n'gua e quase seafogou, parece ter ficado desarranjada do fgado. E aquela gordurano banha, no, macela! Emlia o que est estufada. Inda asemana passada tia Nastcia a recheou de mais macela.O marqus pensou l consigo: "Que pena no a ter recheado defub!" mas no teve coragem de o dizer em voz alta, limitando-se aexclamar:- Pois pensei que fosse toucinho e do bom!...- Que esperana! Toucinho do bom est aqui, disse a meninaapalpando-lhe o lombo. - Dos tais que do um torresminho delicioso!- e lambeu os beios, j com gua na boca. Felizmente o dia de AnoBom est prximo !...Dia de Ano Bom era dia de leito assado no stio, mas Rabicno sabia disso.- Dia de Ano Bom? - repetiu ele sem nada compreender.- Que tem isso com o meu toucinho ?- Nada! c uma coisa que sei e no da sua conta -respondeu a menina piscando o olho.E assim, nessa prosa, alcanaram a condessa, que estava ladiante, furiosa com o logro.- No achei graa nenhuma! - foi dizendo Emlia logo que amenina chegou. - Nem parece coisa duma princesa (Emlia s a tratavade princesa nas brigas).- Pois eu, Emlia, estou achando uma graa extraordinria nasua zanguinha! Sua cara est que ver aquele bule velho de ch, comesse bico...Mais zangada ainda, Emlia mostrou-lhe a lngua e dando umachicotada no cavalinho tocou para a frente, resmungando alto:- Princesa! ... Princesa que ainda toma palmadas de dona Bentae leva pitos da negra beiuda! E tira ouro do nariz ... Antipatia!...Calnias puras. Narizinho nem tomava palmadas, nem levavapitos, nem tirava ouro do nariz. Emlia, sim...Captulo 7 O assaltoNisto o mato farfalhou beira da estrada. Os cavalinhos se assustarame empinaram.- A quadrilha Chupa-vo! - gritou Emlia aterrorizada,erguendo os braos como no cinema. Narizinho tambm empalideceue procurou instintivamente agarrar-se ao marqus de Rabic. Mas omarqus j havia pulado no cho e sumido...- A bolsa ou a vida! - intimou o chefe da quadrilhaapontando o trabuco.Narizinho a tremer, olhou para ele e franziu a testa. "Eu conheoesta cara!" - pensou consigo. " Tom Mix, o grande heri docinema!... Mas quem havia de dizer que esse famoso cow-boy tosimptico, havia de acabar assim, feito chefe duma quadrilha delagartos? ..."- A bolsa ou a vida! - repetiu Tom Mix, carrancudo.- Bolsa no temos, senhor Tom Mix - disse a menina - mastenho aqui uns bolinhos muito gostosos. Aceita um?O bandido tomou um bolo e provou.- No gosto de bolo amanhecido! - respondeu cuspindo delado. Quero ouro de verdade!Assim que ele falou em ouro, Narizinho teve uma ideia degnio.- Perfeitamente, senhor Tom Mix. Vou dar-lhe um montinhode ouro puro, do bem amarelo. Mas h de prometer-me uma porode coisas ...- Prometo tudo quanto quiser - retrucou o bandido, j maisamvel com a ideia do montinho de ouro.- Ento passe para c o seu alforje e mais uma tesourinha.Sem nada compreender daquilo, Tom Mix foi dando o que elapedia. Narizinho, ento, chamou Emlia de parte e cochichou-lhe aoouvido qualquer coisa. A boneca no gostou, pois bateu o p,exclamando;- Nunca! Antes morrer!...Tanto Narizinho insistiu, porm, que Emlia acabou cedendo,entre soluos e suspiros de desespero. Depois, erguendo a saia at osjoelhos, espichou uma das pernas sobre o colo da menina. Esta,muito sria, como quem faz operao da mais alta importncia,desfez-lhe a costura da barriga da perna e despejou toda a macela dorecheio no alforje de Tom Mix. Em seguida ergueu-se e disse-lhe:- Aqui tem o seu alforje cheio de ouro-macela!- Muito bem - respondeu o bandido com os olhos afaiscarem de cobia. - A menina est agora livre e tem em mim de hojeem diante o mais dedicado servidor. Nos momentos de perigo bastagritar; "Mix, Mix, Mix!" que aparecerei incontinnti para salv-la.Cumprimentou-a com o chapelo de abas largas e retirou-se,seguido dos seus lagartos.Ao v-los sumirem-se ao longe, Narizinho criou alma nova.- Ufa! - exclamou. - Escapamos de boa! Continuemos a nossaviagem, Emlia - e tratou de montar novamente. Um, dois, trs -upa! Montou. Emlia tambm - um, dois, trs... e nada! Noconseguiu montar.- Ai! - gemeu sacudindo a perninha saqueada. - No possoandar, nem montar com esta perna vazia!...Apesar do triste da situao, Narizinho espremeu uma risadinha.- Malvada! - exclamou Emlia chorosa. - Salvei-a da morte custa da minha pobre perna e em paga voc ri-se de mim ...- Perdoe, Emlia! Reconheo que me salvou, mas se soubessecomo est cmica com essa perna vazia... O melhor vir comigo nagarupa do pangar, bem agarradinha. D c a mo. Upa!Com alguma dificuldade conseguiu acomod-la na garupa docavalinho, recomendando-lhe que se segurasse muito bem, pois tinhade ir a galope.- Sossegue, Narizinho, que daqui nem torqus me arranca! -respondeu Emlia. A menina estalou o chicote e o pangar partiu nagalopada erguendo nuvens de p - p-l-l, p-l-l! De repente:- Que fim levou o marqus? - interrogou Emlia olhandopara trs.Narizinho deteve o cavalo.- verdade!... Aquele poltro comportou-se de talmaneira que a coisa no pode ficar assim. Hei de vingar-me - e j,quer ver?Voltando-se para o mato gritou: "Mix, Mix, Mix!"Imediatamente Tom Mix surgiu diante dela.- Amigo Tom Mix - disse Narizinho - fui covardementetrada pelo senhor marqus de Rabic, um poltro que ao ver-nos emperigo s cuidou de si, fugindoi com quantas pernas tinha. Quero ser vingada sem demora,est entendendo?- Sereis vingada, gentil princesa! - disse TomMix estendendo a mo como quem faz um juramento. - Mas de que formaquereis ser vingada, gentil princesa?Narizinho respondeu depois de pensar alguns instantes :- Minha vingana tem de ser esta: quero amanh ao almoocomer virado de feijo com torresmo, mas torresmo de marqus, est ouvindo?- Vossa vontade ser satisfeita, gentil princesa! - disse obandido, curvando-se com a mo no peito e desaparecendo.- Coitado do Rabic! - exclamou Emlia compungida.- Coitado nada! Rabic precisa levar uma boa esfrega. Dou-lheuma lio que vai servir para toda a vida. Nunca mais cair noutra ...Captulo 8 Tom MixAssim que deixou a menina, Tom Mix voltou ao lugar doassalto, a fim de orientar-se na pista de Rabic. Descobriu logo osrastos dele na terra mida e os foi seguindo at floresta. L se guioupelas ervinhas amassadas e outros sinais que na fuga ele foradeixando. E andou, andou, andou at que de repente ouviu um rudosuspeito.- ele! - pensou Tom Mix agachando-se - e, p ante p,sem fazer o menor barulhinho, aproximou-se do lugar donde partia orudo suspeito. Espiou. La estava o marqus, rom, rom, rom, decabea enfiada dentro duma abbora muito grande, to entretido emdevor-la que no deu pela presena do terrvel vingador.Tom Mix foi chegando, foi chegando e, de repente...- Nhoc! - agarrou o marqus por uma perna.- Com! com! coin! - grunhiu o ilustre fidalgo.- Peo perdo a Vossa Excelncia - disse Tom Mix comironia - mas estou cumprindo ordens da senhora princesa do NarizinhoArrebitado.- Que que Narizinho quer de mim ? - gemeu Rabicdesconfiado.- Pouca coisa - respondeu o vingador. - Apenas unstorresminhos para enfeitar um tutu de feijo amanh...- Com! com! com! - gemeu o marqus compreendendo tudo.E foi com bagas de suor frio no focinho que implorou: "Tenha d demim, senhor bandido! Tenh piedade de mim, que lhe darei esta abbora e ainda outra maiorque escondi l adiante ..."Tom Mix parece que no gostava de abbora. Limitou-se a puxar pela faca e apass-la sobre o couro da bota, como que a afiando. Percebendo que estavaperdido, Rabic teve uma ideia.- Senhor bandido, poder prestar-me um obsquio?- Diga o que - respondeu Tom Mix calmamente, sempre aafiar a faca.- Quero que me conceda cinco minutos de vida. Preciso fazer otestamento o confiar minhas ltimas palavras a essa libelinha que vaipassando.Tom Mix concedeu-lhe os cinco minutos. Rabic chamoua libelinha.- Amiga, darei a voc um lindo lago azul onde possavoar a vida inteira, se me fizer um pequeno favor.- Diga o que - respondeu a libelinha, vindo pousar diantedele.- levar uma carta princesa Narizinho, que deve estar noreino das Abelhas.- Com muito prazer.Rabic fez a carta depressa e entregou-lha. A libelinhatomou-a no ferro e zzzit! l se foi, veloz como o pensamento. Mal aviu partir, deu Rabic um suspiro de alvio, murmurando em voz alta:"Coragem, Rabic, teu dia no chegar to cedo!"- Que que est grunhindo a, senhor marqus? - perguntouo carrasco. Rabic disfarou.- Estou pensando na sua valentia, senhor Tom Mix. Est assimprosa porque deu comigo, que sou um pobre coitadinho. Queria ver a sua cara, seLampio aparecesse por aqui com os seus cinquenta cangaceiros!- L tenho medo de lampies ou lamparinas? O marqus nome conhece. Diga-me: costuma ir ao cinema?- Nunca. Mas sei o que .- Se no conhece o cinema, no pode fazer ideia do meuformidvel herosmo! No h uma s fita emque eu seja derrotado, seja l por quem for. Veno sempre ! Sou umdanado!...Rabic olhou-o com o rabo dos olhos, pensando l consigo:"Grandssimo fiteiro o que voc ." Pensou s, nada disse. Aquelafaca embargava-lhe a voz ...Captulo 8 As muletas do besouroEnquanto Rabic suava o suor da morte nas unhas de Tom Mix,Narizinho e Emlia chegavam ao palcio das Colmeias, donde vrioszangos saram a receb-las com gentis rapaps.- Salve, princesinha do Narizinho Arrebitado! - exclamarameles, curvando-se.- Obrigada! - respondeu a menina, dando-lhes a mo a beijar.Recebi um convite da rainha, mas estou na dvida se foi da rainha dasAbelhas ou da rainha das Vespas. Portei aqui para saber . ..- O convite foi da rainha das Abelhas - declarou um doszangos. Fui eu mesmo quem o redigiu. A rainha das Vespas andafuriosa com a menina por ter matado uma das suas sditas.- V, Emlia, de que escapamos? - cochichou Narizinho. Setivssemos errado o caminho e ido parar na terra das Vespas, comcerteza nas matavam a ferroadas... E voltando-se para os zangos:- Permitam-me, senhores que vos apresente a senhora condessa deTrs Estrelinhas. Esta ilustre dama foi vtima dum desastre nocaminho e no consegue andar sem encosto. Poder algum dossenhores arranjar-lhe um par de muletas?- Podemos, sim, mas antes dever consultar o grande mdicoque por acaso se acha aqui, vindo do reino das guas Claras.- O doutor Caramujo est aqui? - exclamou a menina muitoalegre. - Conheo-o muito! Chamem-no depressa.Os zangos partiram rpidos, regressando instantes depois emcompanhia do doutor Caramujo, o qual, reconhecendo a menina e aboneca, saudou-as respeitosamente.Depois arrumou os culos para examinar a perna de Emlia.- grave! - exclamou. - A senhora condessa est sofrendoduma anemia macelar no pernil barrigide esquerdo. Caso muitosrio.- E que receita, doutor? Plula de sapo outra vez? - indagou amenina.- Esta doena - explicou o grande mdico - s pode sararcom um regime de superalimentao local.- Alimentao macelar, eu sei - disse a menina rindo-se dacincia do doutor. - Tia Nastcia sabe aplicar esse remdio muito bem.Em dois minutos, com um bocado de macela e uma agulha com linhaela cura Emlia para o resto da vida.- Tia Nastcia! - exclamou o mdico escandalizado. - Comcerteza alguma curandeira vulgar! Macela! Alguma mezinha vulgartambm! Oh, santa ignorncia! Admira-me ver uma princesa toilustre desprezar assim a cincia de um verdadeiro discpulo deHipcrates e entregar a condessa aos cuidados duma relescurandeira!...- Reles curandeira? - exclamou a menina indignada. - Chamaento Nastcia de reles curandeira? Se tem algum amor casca,retire-se, senhor cascudo, antes que eu faa o que fiz para a tal donaCarochinha. Reles curandeira! J viu Emlia, um desaforo maior?O doutor Caramujo meteu o rabo entre as pernas e sumiu-se.Narizinho estava ainda a comentar o desaforo quando oszangos que tinham sado em procura das muletas apareceram.- Aqui no palcio no h muletas, senhora princesa, mas a foracostuma andar um besouro manco que possui duas. Quer ir at lconosco ?Narizinho foi. Trs esquinas adiante encontraram o besouromendigo, de chapu na mo espera de esmolas.A menina j lhe ia oferecendo um pedacinho de bolo quando omendigo perguntou:- No me reconhece mais?A menina encarou-o com olhos atentos.- Sim!... Estou reconhecendo!... No foi voc que l na beirado ribeiro esteve passeando pela minha cara e me arrancou umfeixinho de fios da sobrancelha?- Isso mesmo! - confirmou o besouro. - Por sinal que porcausa daquele espirro levei um tombo de mau jeito e fiquei aleijadopara o resto da vida.Pesarosa da sua desgraa, Narizinho p-lo no bolso, dizendo:- Fique quietinho a e divirta-se com esses bolos. Vou lev-lopara o stio de vov, onde poder viver uma vida sossegada sem serpreciso tirar esmolas.Depois, tomando suas muletinhas, deu-as boneca.- Arrume-se nisso depressa, senhora condessa da Perna Vazia,que a hora da audincia est prxima.E, precedidas plos zangos, as duas de novo entraram nopalcio.Captulo 10 SaudadesJ estava cheio o palcio, no s de personagens do reino dasAbelhas como de muitos outros reinos, inclusive o das guas Claras.Narizinho correu os olhos em procura dalgum conhecido. Viu logo oMajor Agarra.- Viva, Major! - exclamou, dirigindo-se a ele alegremente.- Como vo todos por l?Antes de dar notcias, o sapo demonstrou mais uma vez a suagratido pelo que a menina lhe havia feito, desculpando-se tambmde no ter aparecido no stio de dona Benta, como prometera. Depoiscontou que o prncipe andava cada vez mais taciturno.- No se casou ainda?- Em casa. Tem recusado a mo das mais belas princesas doreino. Todos dizem que ele sofre de paixo recolhida. Ama algumque no faz caso dele, isso.O corao da menina palpitou mais apressado.- No dizem por l quem essa que ele ama?- Dona Aranha Costureira sabe quem , mas guarda muitobem guardado o segredo. uma senhora muito discreta.- E o bobinho da corte, aquele tal gigante Fura-Bolos?- Nunca mais foi visto. Com certeza teve o mesmo fim doCarlito Pirulito . ..Narizinho refletiu uns instantes. Depois:- Olhe, no se esquea, quando voltar, de dizer ao prncipeque me viu aqui e que vou bem, obrigada. Diga-lhetambm que qualquer dia receber um convite para vir comtoda a sua corte passar umas horas comigo no stio de vov, sim?