Reinaldo Carvalho Silva, Annik Silva, Ricardo Pinheiro de...

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26 QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 16, NOVEMBRO 2002 Química Analítica e cidadania Recebido em 6/12/01, aceito em 16/6/02 RELATOS DE SALA DE AULA E ste trabalho foca relações entre o conhecimento químico e difi- culdades enfrentadas pelos cida- dãos consumidores quando precisam adquirir no comércio varejista alguns produtos. Sabões em barra, ácido muriático para limpezas difíceis e ca- chaças se apresentam em numerosas marcas, com qualidade e preços varia- dos. Nos rótulos de tais produtos, qua- se nunca se encontram indicações sobre a quantidade relativa do princípio ativo ou de outros componentes, bené- ficos ou prejudiciais à saúde. Diante de tais caixas-pretas, os consumidores comuns, mesmo que queiram, não po- dem fazer uma escolha crítica. Ao com- prar meia dúzia de ovos, o consumidor pode contá-los para ver se o número confere; porém, quando compra ácido muriático, ele não pode contar as molé- culas. Mas um aluno de Química pode, desde que compromissado a colocar seu conhecimento a favor da cida- dania. Essas considerações deram ori- gem aos projetos de ensino de Quími- ca para o nível médio que serão aqui apresentados. Abarcando três projetos de ensino de Química, o trabalho foi desenvolvido em duas etapas: a primeira ao longo do segundo semestre letivo de 1999 (projeto “Eficiência das Soluções Ácidas de Limpeza”) e a se- gunda durante o quar- to bimestre letivo de 2000 (projetos “Efici- ência dos Sabões” e “Cobre na Cachaça”). As avaliações da qua- lidade dos produtos estudados foram rea- lizadas por alunos do Ensino Médio nos la- boratórios da Escola Autonomia e do Centro Federal de Edu- cação Tecnológica de Santa Catarina (ambos situados no centro de Floria- nópolis - SC). A problemática levantada pelos grupos foi: como podem ser acionados os métodos físicos e quí- micos para avaliar a qualidade dos pro- dutos comercializados? Quais são os padrões de produção e consumo na so- ciedade brasileira? Qual é o papel da propaganda nesse cenário? As merca- dorias nas prateleiras das lojas são realmente aquilo que os rótulos prome- tem? Ao conduzir os alunos na busca de respostas a tais questões, os professo- res objetivavam: des- pertar e desenvolver talentos que, futura- mente, poderiam ser conduzidos para os cursos superiores de Química; e desenca- dear nos alunos a dis- ciplina de pesquisa, os processos de constru- ção do conhecimento científico e o trânsito interdisciplinar, inserindo o conhecimen- to químico em um domínio de amplitude histórica, social, política e filosófica. A orientação das atividades ficou a cargo de uma equipe de professores constituída com o propósito de explorar as possibilidades do ensino de Física, Química e Biologia por projetos. Ilustra- se aqui como um serviço prestado aos consumidores comuns pode ser a pon- te de trânsito entre a Química Analítica e a cidadania. A metodologia adotada não meramente possibilita, mas torna oportuna a discussão de conceitos Reinaldo Carvalho Silva, Annik Silva, Ricardo Pinheiro de Lima, Jessee Severo Azevedo Silva e Sandro da Silva Livramento Machado Este artigo é um relato de trabalho didático realizado em uma turma de Ensino Médio, marcando a relevância social da Química Analítica. A orientação das atividades ficou a cargo de uma equipe de professores constituída com o propósito de explorar as possibilidades do ensino de Física, Química e Biologia por projetos. Ilustra-se aqui como um serviço prestado aos consumidores comuns pode ser a ponte de trânsito entre a Química Analítica e a cidadania. Química Analítica, ensino para cidadania, interdisciplinaridade A falta de informações nos rótulos de muitos produtos colocam o consumidor diante de uma caixa-preta. Nesse momento um aluno de Química pode auxiliar para uma escolha crítica, desde que compromissado a colocar seu conhecimen- to em favor da cidadania A seção “Relatos de sala de aula” socializa experiências e construções vivenciadas nas aulas de Química ou a elas relacionadas.

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 16, NOVEMBRO 2002Química Analítica e cidadania

Recebido em 6/12/01, aceito em 16/6/02

RELATOS DE SALA DE AULA

Este trabalho foca relações entreo conhecimento químico e difi-culdades enfrentadas pelos cida-

dãos consumidores quando precisamadquirir no comércio varejista algunsprodutos. Sabões em barra, ácidomuriático para limpezas difíceis e ca-chaças se apresentam em numerosasmarcas, com qualidade e preços varia-dos. Nos rótulos de tais produtos, qua-se nunca se encontram indicaçõessobre a quantidade relativa do princípioativo ou de outros componentes, bené-ficos ou prejudiciais à saúde. Diante detais caixas-pretas, os consumidorescomuns, mesmo que queiram, não po-dem fazer uma escolha crítica. Ao com-prar meia dúzia de ovos, o consumidorpode contá-los para ver se o númeroconfere; porém, quando compra ácidomuriático, ele não pode contar as molé-culas. Mas um aluno de Química pode,desde que compromissado a colocarseu conhecimento a favor da cida-dania. Essas considerações deram ori-gem aos projetos de ensino de Quími-ca para o nível médio que serão aquiapresentados.

Abarcando três projetos de ensinode Química, o trabalho foi desenvolvidoem duas etapas: a primeira ao longo dosegundo semestre letivo de 1999(projeto “Eficiência das Soluções Ácidasde Limpeza”) e a se-gunda durante o quar-to bimestre letivo de2000 (projetos “Efici-ência dos Sabões” e“Cobre na Cachaça”).As avaliações da qua-lidade dos produtosestudados foram rea-lizadas por alunos doEnsino Médio nos la-boratórios da EscolaAutonomia e do Centro Federal de Edu-cação Tecnológica de Santa Catarina(ambos situados no centro de Floria-nópolis - SC). A problemática levantadapelos grupos foi: como podem seracionados os métodos físicos e quí-micos para avaliar a qualidade dos pro-dutos comercializados? Quais são ospadrões de produção e consumo na so-ciedade brasileira? Qual é o papel dapropaganda nesse cenário? As merca-

dorias nas prateleiras das lojas sãorealmente aquilo que os rótulos prome-tem?

Ao conduzir os alunos na busca derespostas a tais questões, os professo-

res objetivavam: des-pertar e desenvolvertalentos que, futura-mente, poderiam serconduzidos para oscursos superiores deQuímica; e desenca-dear nos alunos a dis-ciplina de pesquisa, osprocessos de constru-ção do conhecimentocientífico e o trânsito

interdisciplinar, inserindo o conhecimen-to químico em um domínio de amplitudehistórica, social, política e filosófica.

A orientação das atividades ficou acargo de uma equipe de professoresconstituída com o propósito de exploraras possibilidades do ensino de Física,Química e Biologia por projetos. Ilustra-se aqui como um serviço prestado aosconsumidores comuns pode ser a pon-te de trânsito entre a Química Analíticae a cidadania. A metodologia adotadanão meramente possibilita, mas tornaoportuna a discussão de conceitos

Reinaldo Carvalho Silva, Annik Silva, Ricardo Pinheiro de Lima, Jessee Severo Azevedo Silvae Sandro da Silva Livramento Machado

Este artigo é um relato de trabalho didático realizado em uma turma de Ensino Médio, marcando a relevânciasocial da Química Analítica. A orientação das atividades ficou a cargo de uma equipe de professores constituída como propósito de explorar as possibilidades do ensino de Física, Química e Biologia por projetos. Ilustra-se aqui comoum serviço prestado aos consumidores comuns pode ser a ponte de trânsito entre a Química Analítica e a cidadania.

Química Analítica, ensino para cidadania, interdisciplinaridade

A falta de informações nosrótulos de muitos produtos

colocam o consumidordiante de uma caixa-preta.Nesse momento um alunode Química pode auxiliarpara uma escolha crítica,

desde que compromissadoa colocar seu conhecimen-to em favor da cidadania

A seção “Relatos de sala de aula” socializa experiências e construções vivenciadas nas aulas de Química ou a elasrelacionadas.

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envolvidos nas determinações analíti-cas realizadas, uma das chaves doensino por projetos interdisciplinares.

As atividades foram curriculares,dentro dos limites impostos pela meto-dologia. As discussões conceituais fo-ram travadas nos pequenos grupos en-volvidos e não na totalidade da turmade Ensino Médio. A razão para assimproceder é que um dos princípios maisimportantes do ensino por projetosinterdisciplinares é que teoria e práticadevem andar juntas. Assim, em cadaetapa, tornava-se claro para os alunosa necessidade de avançar nos do-mínios conceituais para que fossepossível dar andamento aos trabalhospráticos e, inversamente, esses cons-tituíram uma poderosa motivação paraas discussões conceituais, semprepresentes nessa metodologia.

Descrição das atividades

Projeto “Eficiência das SoluçõesÁcidas de Limpeza”

Nas lojas de ferragens, é comercia-lizado um tipo de ácido clorídrico debaixa pureza, destinado à limpeza deparedes e pisos após construções ereformas e também àdecapagem de óxi-dos em superfíciesmetálicas. A varie-dade em qualidade epreço é grande, semque haja, nos rótulos,orientação ao consu-midor quanto à con-centração do princípioativo. Ao contrário, são encontradasfrases ilusórias, como “produto 100%puro” quando, tecnicamente, o maispuro possível é o HCl 37% m/m,utilizado em laboratórios de Química.

O grupo dispôs-se a atacar o pro-blema, comprando, como consumi-dores comuns, em lojas de Florianó-polis, as marcas disponíveis do produ-to e analisando em laboratório essesácidos. Cada ácido foi submetido a trêsensaios: titulação por base forte,ataque a argamassa e decapagem deferrugem. O primeiro destes é o maisrigoroso, devido à facilidade decontrolar as variáveis em laboratório.Todavia, como é o mais distante daconcreta situação de uso, foram tam-

bém incluídos os demais ensaios. A ti-tulação consistiu em pesar uma porçãorigorosa do produto, diluí-la em águae determinar o volume de uma soluçãode hidróxido de sódio (com concen-tração rigorosamente conhecida) ne-cessário para consu-mir toda a acidez. Ma-teriais envolvidos nareação da titulação:íons hidroxônio prove-nientes da solução deácido clorídrico e íonshidroxila provenientes da solução dehidróxido de sódio.

O ataque à argamassa foi feitopreparando-se corpos de prova de ar-gamassa com dimensões rigorosa-mente iguais. Esses corpos forampesados, submersos em um volumedefinido (em excesso) de ácido e alideixados por 5 minutos. A reação foiinterrompida por adição de excesso deágua (ao contrário do que ocorre como ácido sulfúrico, aqui não é desenvol-vido calor considerado de risco). Oscorpos de prova foram então secos emestufa e novamente pesados para ava-liar a massa de cimento atacada peloácido. A expressão “ataque” aqui utili-

zada ressalta a idéiade que a argamassafoi corroída ao entrarem contato com o áci-do. Cabe lembrar, po-rém, que se trata deuma reação químicacom mútuo consumodas espécies reagen-tes. Houve uma rea-

ção química entre dois materiais: aargamassa e íons hidroxônio prove-nientes do ácido clorídrico.

A decapagem de metais foi reali-zada pela pesagem de 30 pregosenferrujados, que foram, em seguida,imersos no ácido sob exame, durante5 minutos. A reação foi interrompidapor excesso de água (não há perigo

de desenvolver calor excessivo) e ospregos secos e pesados, avaliando-sea massa de ferrugem atacada peloácido. Para cada ácido, esses testesforam repetidos muitas vezes, até quese obtivessem médias cujos desvios-

padrão caracterizas-sem ausência de errosgrosseiros. Materiaisenvolvidos nessa rea-ção química: óxidosde ferro (ferrugem dospregos) e íons hidro-

xônio provenientes do ácido clorídrico.Cuidados experimentais -Cuidados experimentais -Cuidados experimentais -Cuidados experimentais -Cuidados experimentais - É

importante tomar todos os cuidados aomanusear ácidos fortes concentrados.Considerando que tais soluçõespodem causar queimaduras quandoem contato com o corpo ou lesõesmais graves se em contato com osolhos, não seria despropositado o usode luvas de borracha (tipo cirúrgicas)e óculos de proteção.

Para processar os dados obtidos,o professor desencadeou no grupoenvolvido a construção dos conceitosde solução, concentração e titulação.A Tabela 1 resume os resultados en-contrados na titulação.

A execução dos testes foi revela-dora para os alunos. O ácido mais con-centrado não era o mais caro. O ácidoque apresentou a melhor relação cus-to-benefício não foi o mais concentra-do. O ácido que se anunciava 100%puro, revelou-se não passar de 27%.Um ácido que custava metade do pre-ço de outro era mais concentrado queeste. Um dos ácidos mais baratoscustava metade do mais caro, mas eraquase três vezes menos concentrado.O único ácido que declarava a concen-tração no rótulo aludia a 27% de prin-cípio ativo, mas continha apenas 15%.

Em essência, o padrão de concen-tração obtido na titulação foi acompa-nhado nos demais ensaios, ou seja, asmassas atacadas de argamassa ou de

Tabela 1: Teor de HCl (% m/m) e correspondente relação custo-benefício obtidos por titulação dosdiferentes ácidos de limpeza testados.

Marca do produto Preço por litro (R$) % m/m de HCl Relação custo-benefício (%HCl/R$)

Rodoquímica 1,25 27,1 21,7Lincos 1,75 15,1 8,6Quiminorte 1,95 32,6 16,7Kiácido 2,60 25,5 9,8Quimiobrás 1,30 9,18 7,1

Um dos princípios maisimportantes do ensino porprojetos interdisciplinares éque teoria e prática devem

andar juntas

A execução dos testes foireveladora para os alunos.O ácido mais concentrado

não era o mais caro. Oácido que apresentou amelhor relação custo-

benefício não foi o maisconcentrado

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ferrugem foram aproximadamenteproporcionais às concentraçõesexpressas na Tabela 1.

Até este ponto, muitas etapas dotrabalho investigativo em ciência ha-viam sido claramente ilustradas evivenciadas pelos alunos: a caracteri-zação de um problema; o planejamen-to das ações; a execução rigorosa epaciente de diversas medições; o re-gistro da informação de forma organi-zada; e o processamento dos resulta-dos obtidos à luz das teorias químicas,alcançando uma resposta para a ques-tão inicial. A publicação dos resultados,que deveria ser no sentido de alcançaro consumidor, foi conseguida graçasao interesse de um jornalista, que pu-blicou em jornal diário uma matériaresumindo as análises e seus resulta-dos. A matéria chamou a atenção docoordenador de fiscalização do PRO-CON, que se comprometeu a atuar nosentido de regularizar a comercia-lização dos ácidos muriáticos.

Projeto “Eficiência dos Sabões”Projeto “Eficiência dos Sabões”Projeto “Eficiência dos Sabões”Projeto “Eficiência dos Sabões”Projeto “Eficiência dos Sabões”O caso dos sabões em barra é

semelhante ao dos ácidos de limpeza:muitas marcas, preços, cores, tama-nhos e formatos. Como comparar aqualidade? Pode-se fazer uma compa-ração baseada na capacidade de fazerespuma. Todavia, procurou-se aquiuma medida mais direta da capaci-dade do sabão diminuir a tensãosuperficial da água1. Para realizar talpropósito, adotou-se o método da es-talagmometria, consistindo na conta-gem do número de gotas que um certovolume de solução aquosa produz aoescoar por uma pipeta especial, o esta-lagmômetro. Esse dispositivo foi impro-visado de modo simples: uma buretade 25 mL teve sua ponta lixada até quefosse produzida uma pequena regiãoachatada, para favorecer o crescimen-to das gotas. O fundamento físico-quí-mico é interessante. Uma gota de águaque se forma na ponta de uma buretacresce até que o seu peso seja supe-rior às forças coesivas entre as molé-culas de água, responsáveis pela ade-são da gota à ponta da bureta. Nestemomento, a gota cai. Portanto, quantomaiores forem as forças coesivas en-tre as moléculas de um líquido, maiorserá a massa da gota e menor o núme-

ro de gotas para um dado volume delíquido (ver Figura 1). Quando se adi-ciona uma certa porção de sabão àágua, formam-se as micelas típicas.Nessa nova situação, se admitirmos ainteração micela-água, veremos que asnovas forças atrativas são geradas en-tre uma estrutura apolar (cadeia carbô-nica do sal de ácido graxo) e outrapolar (água) ou entre o íon carboxilatodo sabão e a água. Essas são maisfracas que as do caso água-água (po-lar-polar). O resultado de grande valorprático é que, quanto maior for a efi-ciência de uma solução aquosa de sa-bão, mais reduzida será a tensão su-perficial e, portanto, maior o númerode gotas para um dado volume.

Em uma etapa inicial, foram obtidostextos pertinentes ao projeto: sabão esuas características, seu preparo, seumecanismo de ação e a estrutura mi-celar das soluções aquosas de sabão.

Para que houvesse uma espécie depadrão de sabão, quantidades este-quiométricas de ácido oléico (7,0 g) ehidróxido de sódio (1,0 g) foram mis-turadas, com ligeiro aquecimento. Oproduto obtido foi deixado em estufaa 100 °C por uma noite, para que secompletasse a neutralização. O oleatode sódio foi resfriado, lavado, seco e

reservado para os testes de tensão su-perficial. Foram adquiridas no comér-cio tantas amostras de sabão em barraquantas foram possíveis encontrar.Foram preparadas soluções aquosasde cada um dos sabões de modo aobter a concentração de 1,00 g/L. Car-regou-se o estalagmômetro com cadasolução, secou-se o seu exterior econtou-se o número de gotas para quefossem vertidos 5 mL (3 a 5 s por gota).Esse procedimento foi realizado trêsvezes e calculadas as médias (traba-lhando com cuidado, os desvios-pa-drão são inferiores a 2%). Os resulta-dos encontrados estão registrados naTabela 2. Para a água desmineralisada(tensão superficial γ = 72 mN m-1),obtiveram-se 90 gotas/5 mL (média detrês leituras).

A maioria dos sabões analisadosnão apresentou diferenças considerá-veis em relação ao padrão. Mas algunsprodutos, seja pelo elevado conteúdoem água ou em cargas, mostraram-seinferiores ao padrão. A relação custo-benefício revelou-se um parâmetro criti-camente seletivo, pois alguns produtosde limitado poder de redução na ten-são superficial da água também eramde custo relativamente elevado.

Chamou a atenção dos alunos que,

Figura 1: Esquema ilustrativo da formação de gotas na ponta de uma bureta. A - Soluçãoaquosa de sabão; B - Água sem sabão. Momentos 1 e 2: formação e crescimento dasgotas. Momento 3: a gota de solução de sabão já não consegue mais se manter aderida àponta da bureta; a gota de água sem sabão continua crescendo. Momento 4: Nova gotade solução de sabão está em formação; gota de água sem sabão alcança um peso talque não mais consegue manter-se aderida ao vidro. Dessa maneira, as gotas de águasem sabão são maiores que as gotas de solução de sabão obtidas na mesma bureta e,conseqüentemente, o número de gotas para um determinado volume é maior para umasolução de sabão.

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na formulação de certos sabões, haviadodecilbenzenossulfonato de sódio,um detergente. Discutiu-se se serialegítimo comercializar um produtocomo sabão, quando, na realidadetratava-se de uma mistura com deter-gente. Como o sabão é mais biocom-patível do que os detergentes, seria im-portante que o usuário empenhado emagir de modo ecologicamente corretoestivesse atento para a real composi-ção do produto que estava adquirindo.

Durante esse projeto, nas etapasem que se mostraram necessários, osseguintes conceitos entraram emprocesso de construção (com o grupode alunos envolvidos): solução; con-centração de uma espécie em solução;reação ácido-base; tensão superficial;o processo de formação de gotas; du-reza de águas.

Infelizmente, para o estudo dos sa-bões não foi conseguida uma publica-ção de alcance massivo que teria sidopossível por um jornal diário. Os resul-tados foram publicados em uma feirade ciências aberta ao público.

Projeto “Cobre na Cachaça”Na fabricação da cachaça, usual-

mente são empregados alambiques decobre para destilar o mosto fermen-tado. Daí decorre que íons desse me-tal podem ser transferidos para o pro-duto final como uma impureza, even-tualmente alcançando níveis tóxicospara os consumidores. A legislaçãobrasileira fixa em 5 mg/L o valormáximo tolerado para cobre na cacha-

ça. Novamente, os rótulos das diferen-tes marcas comercializadas não men-cionam o nível de cobre ali presente.O grupo envolvido neste projeto dirigiusuas ações no sentido de determinaro teor de cobre em diferentes marcasde cachaça disponíveis no comérciovarejista. Utilizou-se uma simplificaçãodo método de titulação potenciomé-trica desenvolvido por Küchler e Silva(1999). Os íons Cu2+ foram tituladospor solução de ácido etilenodiami-

notetraacético (EDTA) 1,00 mmol L-1. Aindicação de ponto final foi feita pelomonitoramento do potencial redoxdesenvolvido entre um eletrodo de fiode cobre e um de referência de prata/cloreto de prata. Materiais envolvidosnesta reação: íons cobre(II) da soluçãode cachaça e íons etilenodiaminotetra-acetato da solução de EDTA. A Figura2 ilustra a aparelhagem utilizada.

Ao béquer de titulação foram adi-cionados 50 mL da cachaça mais

Tabela 2: Dados relacionados ao abaixamento da tensão superficial da água causado pelos diferentes sabões testados e correspondentes relaçõescusto-benefício.

Marca Preço por Número de gotas γsabão Abaixamento Eficiência percentual Relação custo-benefício(cor, tipo) 200 g (R$) por 5 mL (mN/m)* percentual da γágua** relativa ao padrão*** (% eficiência/centavo de real)

Brilhante (azul, barra) 0,50 232 27,9 61,2 93,4 1,87Minuano Limão (verde, barra) 0,38 221 29,3 59,3 90,5 2,38MinervaSuper (amarelo, barra) 0,50 228 28,4 60,5 92,4 1,85Principal (amarelo, pasta) 0,80 144 45,0 37,5 57,2 0,715Lavarte (branco, barra) 0,35 236 27,4 61,9 94,5 2,70RomoCoco (branco, pó) 1,80 200 32,4 55,0 84,0 0,467Brilhante (amarelo, barra) 0,58 234 27,6 61,7 94,2 1,62MinervaSuper (verde, barra) 0,50 232 27,9 61,2 93,4 1,87LevLav (branco, barra) 0,34 238 27,2 62,2 95,0 2,79Razzo (amarelo, barra) 0,38 240 27,0 62,5 95,4 2,51CocoUFE (branco, barra) 0,72 205 31,6 56,1 85,6 1,19Padrão (oleato de sódio) - 261 24,8 65,5 100 -

*Tensão superficial da solução de sabão = (nº gotas de água / nº de gotas da solução de sabão) x 72 mN m-1.**[ (γágua - γsabão)/γágua ] x 100.***(% abaixamentosabão / % abaixamentopadrão) x 100.

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Figura 2: Esquema representando a titulação potenciométrica de cobre em cachaça: 1 -bureta contendo solução padrão de EDTA; 2 - solução de cachaça; 3 - eletrodo de referênciade Ag/AgCl; 4 - eletrodo indicador de fio de cobre; 5 - agitador magnético; 6 - medidor depH operando no modo potenciométrico (em mV).

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50 mL de água desmineralizada e 1 mLde solução aquosa de nitrato de potás-sio 1 mol L-1. Titulou-se com soluçãode EDTA 1,00 mmol L-1 adicionando-se o titulante em incrementos de trêsgotas. A cada incremento eram ano-tados os valores de volume (em mL) ede diferença de potencial (em mV). Taisvalores foram registrados em umatabela e, com auxílio de microcompu-tador, foram traçadas as curvas de ∆Evs. volume. Nessas curvas foram loca-lizados os pontos de inflexão e, comos valores de volume correspondentesa estes (volumes de equivalência), fo-ram calculadas as concentrações deCu2+ nas amostras de cachaça (rela-ção estequiométrica: 1 mol de EDTA :1 mol de Cu2+). A Figura 3 mostra umacurva de titulação típica. A Tabela 3registra os resultados encontradospara as diferentes marcas.

Os resultados revelaram que uma

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das marcas (dentre as de menor preço)continha teor de Cu acima do permi-tido pela legislação brasileira. Discutiu-se, neste ponto, a relação tão predo-minante: “quem pode pagar maisobtém mais qualidade”. Os alunosnotaram que pessoas de baixa condi-ção sócioeconômica, que quase sem-pre recorrem às marcas mais baratas,além de estarem sujeitas aos malefí-cios do consumo excessivo de álcool,por si já bastante danosos, estariamsujeitas a uma intoxicação por cobre(caso agudo: vômitos, hipotensão,dores abdominais, diarréia e colapso;caso crônico: perda de apetite, dispep-sia, dores abdominais, acessos de vô-mito e diarréia, neurite periférica).

Este projeto oportunizou (no grupode alunos envolvidos) iniciar o proces-so de construção de alguns conceitosda Química: concentração de uma es-pécie em solução, titulação e seus cál-culos e medição de potenciais redox.A divulgação foi feita em uma feira deciências aberta ao público.

Considerações finaisA Química Analítica, por seu poder

de revelar grandezas ocultas, mais queuma ferramenta fundamental, é uma ar-ma. A relação entre produtores econsumidores mostrou-se e mostra-se,em muitas sociedades, como uma ge-nuína luta. Nesta, a Química Analítica,se for tornada arma disponível, podeser usada de muitas maneiras em fa-vor da sociedade, como foi aqui exem-plificado pelo esclarecimento aos ci-dadãos consumidores sobre o real

significado da qualidade de algunsprodutos de uso comum. Esse trânsitointerdisciplinar entre Química e cidada-nia é de suma importância para a so-ciedade no momento histórico atual eextremamente poderoso quando ex-plorado no ensino.

Aceitamos a perspectiva de inter-disciplinaridade de Etges (1995): oprincípio de busca do equilíbrio pelatensão, viva e profícua, entre a parte eo todo, o geral e o particular, o saberespecializado das ciências empíricase o saber filosófico. A relevância peda-gógica de tal princípio é também trazi-da à tona por esse autor, ao consideraro ato de ensinar como transposição dosaber posto para estruturas: “O mundodo vivido, do analógico, do imediato,são contextos que a atividade interdis-ciplinar precisa atingir, para dissolvê-los e transformá-los em estruturas depensamento, de ciência, de conheci-mento”. O trabalho descrito sobre osprojetos de ácidos, sabões e cacha-ças impôs a intervenção de métodosda Química Analítica. Mas o foco doproblema situa-se em outro contexto:a desigual relação entre industriaisinescrupulosos e consumidores deso-rientados, estimulada pela ineficiênciado poder público. Os alunos preci-saram meditar sobre essas relações.Engajaram-se com empenho, entu-siasmo e compromisso, no trânsitointerdisciplinar.

Nota1. Para saber mais sobre tensão su-

perficial, consulte o artigo “A químicado corpo humano: tensão superficialnos pulmões”, na p. 3 deste número.

Reinaldo Carvalho Silva ([email protected]. br),licenciado em Química pela UERJ e doutor emQuímica Analítica pela UFSC, é docente no Centro Fe-deral de Educação Tecnológica de Santa Catarina(CEFET–SC). Annik Silva, técnica em Mecânica peloCEFET-SC e engenheira agrônoma pela UFSC, éprofessora de Ciências no Ensino Fundamental eMédio na Escola Autonomia, em Florianópolis - SC.Ricardo Pinheiro de Lima, biólogo pela USP, é profes-sor de Biologia no Ensino Médio na Escola Autonomia.Jessee Severo Azevedo Silva, técnica química peloCEFETEQ-RJ e licencianda em Química pela UFSC,é tutora de Metodologia do Ensino de Química adistância na UFSC. Sandro da Silva LivramentoMachado, técnico em Mecânica pelo CEFET-SC,licenciado e bacharel em Física pela UFSC, émestrando em Física Teórica na UFSC e professor deFísica do Colégio Estadual Padre José de Anchieta,em Florianópolis - SC.Figura 3. Curva de titulação potenciométrica para Cu em cachaça.

Tabela 3: Teores de Cu em cachaças.

Marca Preço Teor de Cupor litro (R$) (mg L-1)

Jamel 2,89 1,83Tonturinha 1,50 2,94Bambuzinho 1,50 5,77Famosa 1,67 0,81Pirassununga 51 2,90 1,96Popular 2,10 3,30Velho Barreiro 3,40 2,63Pingo de Ouro 2,20 4,83Ciumeira 2,66 2,433 Pipas 1,22 <0,64

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Referências bibliográficasETGES, N.J. Ciência, interdisciplina-

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Para saber mais

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Química Analítica e cidadania

Abstract: Analytical Chemistry and Citizenship in the Interdisciplinary Transit - This paper is a report of a didactic work carried out in a high-school class, marking the social relevance of analyticalchemistry. The supervising of the activities was carried out by a team of teachers formed with the goal of exploring the possibilities of education in physics, chemistry and biology through projects. How aservice provided to common consumers can be a transit bridge between analytical chemistry and citizenship is here illustrated.Keywords: analytical chemistry, education for citizenship, interdisciplinarity

Nota

Educação Química na Internet

Boletim Informativo da IUPAC

Desde 2000, o Comitê sobre Ensinode Química da IUPAC (União Interna-cional de Química Pura e Aplicada)vem divulgando eletronicamente oboletim informativo Chemistry Educa-tion International - CEI (http://www.iupac.org/publications/cei/index.html),que anteriormente era publicado empapel (com o nome de InternationalNewsletter on Chemical Education) edistribuído para assinantes. O boletimestá dirigido a professores de Química(níveis médio e superior) e todosaqueles interessados em EducaçãoQuímica.

O CEI publica relatórios sobre asatividades do Comitê, notícias e rela-tórios sobre eventos promovidos ouapoiados pela IUPAC, notícias e rela-tórios sobre Educação Química nos

países membros da IUPAC de inter-esse internacional e artigos geraissobre Educação Química escritos ourecomendados por membro do Comitêcomo de interesse internacional dosleitores, bem como fatos, dados eopiniões. Duas entrevistas com laurea-dos com o Prêmio Nobel de Químicajá foram publicadas.

Atualmente existem três númerosdo CEI disponibilizados em seu sítio.Dos 12 editores do boletim, dois sãoiberoamericanos: M. Elisa M. Pestana(Universidade de Lisboa, Portugal) eLydia E. Cascarini de Torre (Instituto deInvestigaciones Fisicoquímicas Teóri-cas y Aplicas, La Plata, Argentina). Orepresentante nacional do Brasil noComitê é Álvaro Chrispino (Centro Fe-deral de Educação Tecnológica, Rio deJaneiro; [email protected]).

Revista de Educação Química japonesaAtualmente sob a responsabilidade

de uma divisão da Sociedade deQuímica Computacional (http://

cssjweb.chem.eng.himeji-tech.ac.jp/Welcome.html), do Japão, a revistaChemical Education Journal já tem deznúmeros divulgados no seu sítio (http://www.juen.ac.jp/scien/cssj/cejrnlE.html). Esta revista publica dois tipos decontribuições: artigos de pesquisa emateriais de ensino, sobre educaçãoQuímica e atividades educacionais, eminglês ou japonês.

Educación Química

O conteúdo da revista mexicanaEducación Química, que publica arti-gos em espanhol e português, está dis-ponibilizado, com um certo atraso emrelação à sua publicação em papel, nosítio http://www.fquim.unam.mx/eq.

No momento, o número mais recen-te disponível é o n. 4, do v. 12, de outu-bro-dezembro de 2001.