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121 Não pensa muito que dói – um palimpsesto sobre Teoria na Arqueologia Brasileira 1 José Alberione dos Reis 2 Como diz o romancista Júlio Cor- tázar para o jazz, o que vale como te- souro são os takes, produzidos nos estúdios de gravação e lá guardados como documentos a serem esclareci- dos no post mortem de seus autores. Os takes são únicos e não se repe- tem. Portanto, exclusivos e testemu- nhos de raros momentos de criações ímpares. Assim, o que vai por aqui escrito é do campo do indeciso, do sendo construído, desconstruído, fei- to, refeito e seguindo diferentes tra- jetórias e questionamentos. Neste tex- to apresento um resumo da tese pro- duzida e defendida. Hoje estou cada vez mais conven- cido de que as fronteiras entre ciência e poesia, entre ciência e arte e entre o dionisíaco e o apolíneo, dentro do dito mundo acadêmico, confundem-se, fun- dem-se, imbricam-se. O que afirmo aqui é minha convicção de que as fron- teiras até agora tão substancialmente rígidas e pretensamente marcadas en- tre e diante dos mais variados campos do conhecimento, estão, felizmente, sofrendo abalos, diluições e soluções de continuidade que apontam para tro- cas transdisciplinares e solidariedade de entrecruzamentos teóricos e meto- dológicos. Assim posto, vou ao desvendar do palimpsesto. O que é passível de elucidação sobre a existência de teoria na Arqueologia bra- sileira? Quais teorias estão fundamen- tadas nas pesquisas no Brasil? Este tra- balho foi elaborado na tentativa de res- ponder a estes questionamentos, moti- vado pela constatação de que, no Brasil, na maioria dos resultados das pesqui- sas em arqueologia, permanece ainda uma resistência à teoria. Os textos pu- blicados sugerem como se fosse mesmo desnecessário marcar teorias ou elas estão veladas, ocultadas em um propo- sital mascaramento de inexistência. Tais constatações apontam para um equivo- cado entendimento do rigor científico da pesquisa arqueológica no Brasil como prescindindo de postulados teóricos. Sugerindo respostas às questões, posso caracterizar não tanto oposição, mas aderência velada a correntes teóricas. As questões acima, no que apontam para a Arqueologia brasileira, são oriun- das do que vem sendo constatado como um lugar de falta, de ocultamento ou de descaso. Partindo deste campo do co- nhecimento, as respostas poderão ser encontradas em vários caminhos ou fun- damentações advindas da Filosofia da Ciência, da Epistemologia, da Análise do Discurso. São questões básicas, portan- to, que subjazem em qualquer preten- são de um fazer científico. Não há tra- balho científico sem base teórica. Neste sentido, assinalo uma incon- gruência que transparece na produção acadêmica da Arqueologia brasileira, qual seja, um pretenso fortalecimento e co- nhecimento de métodos em detrimen- tos de explicitação em termos teóricos. Dito de outro modo, vem salientado o que pretensamente se sabe muito, so- bre métodos e técnicas de pesquisas, porém, separado de seus discursos teó- ricos explícitos correspondentes. Pelo exposto, fica claro que o que ocorre nesta 1 Tese apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientação do prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari, março de 2004. 2 Universidade de Caxias do Sul/Depto. de História [email protected] Dissertação e Tese Revista de Arqueologia, 17: 121-124, 2004

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Não pensa muito quedói – um palimpsestosobre Teoria naArqueologia Brasileira1

José Alberione dos Reis2

Como diz o romancista Júlio Cor-tázar para o jazz, o que vale como te-souro são os takes, produzidos nosestúdios de gravação e lá guardadoscomo documentos a serem esclareci-dos no post mortem de seus autores.Os takes são únicos e não se repe-tem. Portanto, exclusivos e testemu-nhos de raros momentos de criaçõesímpares. Assim, o que vai por aquiescrito é do campo do indeciso, dosendo construído, desconstruído, fei-to, refeito e seguindo diferentes tra-jetórias e questionamentos. Neste tex-to apresento um resumo da tese pro-duzida e defendida.

Hoje estou cada vez mais conven-cido de que as fronteiras entre ciênciae poesia, entre ciência e arte e entre odionisíaco e o apolíneo, dentro do ditomundo acadêmico, confundem-se, fun-dem-se, imbricam-se. O que afirmoaqui é minha convicção de que as fron-teiras até agora tão substancialmenterígidas e pretensamente marcadas en-tre e diante dos mais variados camposdo conhecimento, estão, felizmente,sofrendo abalos, diluições e soluçõesde continuidade que apontam para tro-cas transdisciplinares e solidariedadede entrecruzamentos teóricos e meto-dológicos.

Assim posto, vou ao desvendar dopalimpsesto.

O que é passível de elucidação sobrea existência de teoria na Arqueologia bra-sileira? Quais teorias estão fundamen-tadas nas pesquisas no Brasil? Este tra-balho foi elaborado na tentativa de res-ponder a estes questionamentos, moti-vado pela constatação de que, no Brasil,na maioria dos resultados das pesqui-sas em arqueologia, permanece aindauma resistência à teoria. Os textos pu-blicados sugerem como se fosse mesmodesnecessário marcar teorias ou elasestão veladas, ocultadas em um propo-sital mascaramento de inexistência. Taisconstatações apontam para um equivo-cado entendimento do rigor científico dapesquisa arqueológica no Brasil comoprescindindo de postulados teóricos.Sugerindo respostas às questões, possocaracterizar não tanto oposição, masaderência velada a correntes teóricas.

As questões acima, no que apontampara a Arqueologia brasileira, são oriun-das do que vem sendo constatado comoum lugar de falta, de ocultamento ou dedescaso. Partindo deste campo do co-nhecimento, as respostas poderão serencontradas em vários caminhos ou fun-damentações advindas da Filosofia daCiência, da Epistemologia, da Análise doDiscurso. São questões básicas, portan-to, que subjazem em qualquer preten-são de um fazer científico. Não há tra-balho científico sem base teórica.

Neste sentido, assinalo uma incon-gruência que transparece na produçãoacadêmica da Arqueologia brasileira, qualseja, um pretenso fortalecimento e co-nhecimento de métodos em detrimen-tos de explicitação em termos teóricos.Dito de outro modo, vem salientado oque pretensamente se sabe muito, so-bre métodos e técnicas de pesquisas,porém, separado de seus discursos teó-ricos explícitos correspondentes. Peloexposto, fica claro que o que ocorre nesta

1 Tese apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas daUniversidade Estadual de Campinas sob a orientação do prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari, marçode 2004.2 Universidade de Caxias do Sul/Depto. de História [email protected]

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arqueologia pode ser um proposital ve-lamento, reforçador de descritivismos ede dados empíricos, em detrimento deum assumir teórico e conceitualmenteexplícito. Não há falta de teoria na lite-ratura publicada sobre a Arqueologiabrasileira. Existe, só que tal literaturareferida traz marcadamente o que sepode denominar de conceitos no vazio,isto é, embora presentes não são expli-citados.

Para que esta arqueologia, que nãoestá isolada do resto das ciências, ad-quira maturidade e cresça enquanto ci-ência social, deve cumprir a exigênciade explicitar os princípios e conceitosteóricos que subjazem aos procedimen-tos técnicos empregados na obtenção ena pretensa interpretação e/ou explica-ção dos dados construídos. Esclarecer aexistência, o uso e a aplicação de teoriana Arqueologia é hoje quase um desta-que anacrônico diante da importância jásedimentada das questões teóricas nasciências humanas. Desta forma, nãoparece ser mais passível de descaso ouignorância o que diz respeito ao presen-te ideológico do arqueólogo ao interpre-tar o passado. Esta interpretação não éapenas a construção de um passado, quesempre é feita pelo arqueólogo e finali-zada num texto, mas também a cons-trução deste passado a partir do con-texto teórico, político, social, econômicoe ideológico do arqueólogo enquantoagente construtor de conhecimento.

A proposta desta tese ancora-se emum levantamento, o mais exaustivo pos-sível, das teses e dissertações produzi-das em três centros formadores de pro-fissionais em nível de pós-graduação noâmbito da arqueologia. Estão localiza-dos na Pontifícia Universidade Católicado Rio Grande do Sul (PUC/RS), Museude Arqueologia e Etnologia (MAE/USP) ena Universidade Federal de Pernambuco(UFPE). Também analisei os programasdas disciplinas focadas em teoria e mi-nistradas nos cursos de pós-graduaçãodas instituições mencionadas. Da mes-

ma forma, trabalhei com os programasde algumas disciplinas que foram minis-tradas no extinto curso de Graduação emArqueologia da Universidade Estácio deSá (UNESA/RJ/Brasil) e com os artigospublicados – entre 1981/1999 – nosanais das Reuniões Científicas da Socie-dade de Arqueologia Brasileira (SAB) quetrataram explicitamente de questões te-óricas. Num levantamento geral, que nãotem a pretensão de ser completo e to-tal, localizei 225 textos que englobam oconjunto das produções acadêmicas dastrês instituições, num período compre-endido entre 1970 e 2001. A partir des-tes 225 textos e através de vários crité-rios, compus a amostragem final da pes-quisa que abrange 71 textos.

O levantamento geral demonstrouuma ampla gama de diversidades temá-ticas, de orientadores e de locais de pro-dução das teses e dissertações. Esta si-tuação levou-me por escolhas subjeti-vas de critérios definidores da amostra-gem que redundou em 71 textos. Sele-cionado e definido o universo empírico,parti para uma segunda etapa da pes-quisa. Efetuei a leitura de cada um dos71 textos. Visava duas direções. De uma,a extração de dados que dariam contados itens elaborados nas fichas específi-cas para o universo empírico. De outra,a busca de respostas advindas de diver-sas questões direcionadas a esse: quaisteorias arqueológicas estavam sendoaplicadas?; estavam explicitadas ou seapresentavam de forma implícita?; deque modo eram tratados os conceitosbásicos em cada texto?; quais referen-ciais teóricos arqueológicos e não arque-ológicos estavam sendo utilizados?

Nesta etapa da pesquisa e tentandoencontrar um suporte para responder asquestões acima apresentadas, busqueiuma possível sustentação dentro de umametodologia hermenêutica aplicada comoheurística sobre as teses/dissertações,visando a elucidação do lugar e da exis-tência da teoria arqueológica nestes tex-tos científicos. Um trabalho de interpre-

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tação que, através da hermenêutica,atuou a partir do dito e do escrito ao nãodito e ao não escrito, mas pensado.

Diante deste conjunto de leituras,sempre como uma sombra fantasmáti-ca a me instigar, a pergunta: de quallugar teórico vou trabalhar para a eluci-dação de minha problemática? Depois demadrugadas e de chimarrões, fiz a se-guinte escolha: um lugar teórico assen-tado na Arqueologia Pós-Processual.

É possível, portanto, pelo que aquiescrevi, perguntar e investigar sobre olugar da teoria na Arqueologia brasilei-ra. Sua existência é inconteste. Preciseifazer um desvelamento que explicitasseo que já existe implícito ou oculto. Fun-damentei um esclarecimento sobre queteorias estão sendo aplicadas e usadasnas pesquisas arqueológicas. Confirmeique é possível a elucidação sobre a exis-tência e uso de um corpus teórico naArqueologia brasileira, posto que frag-mentado, disperso ou oculto nos textospublicados.

Algumas palavras finais em defesa dateoria na pesquisa acadêmica. Digo de-fesa, pois no meu entendimento a pre-sença explícita da teoria é fundamental,especialmente na pesquisa realizada pelaArqueologia brasileira. Talvez esta defe-sa seja hoje considerada uma posiçãofora das modas, retrógrada ou desne-cessária. Em seu lugar estaria sendo re-colocado algo como uma reação empiri-cista.

Este trabalho vai abrindo caminho porentre as sendas aonde vem se assen-tando teoria nas discursividades da Ar-queologia brasileira. Abrir caminho emveredas desconhecidas é ritmo de pro-cesso, de vir a ser. Daí que entendo,nesta situação, ser bastante difícil jáconcluir, fechando, encerrando. Não con-cluir como somando tomadas, ensaios,indecisões. Trabalhando por entre cons-truir/desconstruir visando não o defini-tivo, mas o que é processo. A velha his-tória! Saímos pelo mundo buscando res-

postas para perguntas. Enquanto cami-nhamos, de repente, algumas respostassão encontradas. Porém, ocorre tambémque, no andar, já mudaram as pergun-tas. Não concluindo, transito pelo queacredito ser esta movimentação de fron-teiras dos mais variados campos produ-tores de conhecimento. Um movimentoque volta a convergir arte com ciência.A Arqueologia como fértil e instigadorcampo para tal, com sua provocadoratransdisciplinaridade. Afinal, entendo quedevemos mesmo ser artesãos na pro-dução científica do conhecimento, semtemores do que venha ser arte nestaartesania, do que seja expor a subjetivi-dade de quem pesquisa. Nisto tudo, ten-do sempre em vista que trabalhamoscom teorias e métodos ao produzir o queainda chamamos de ciência, no meuentender, com consciência.

Pelo que pesquisei, o lugar da teoriana Arqueologia brasileira está assenta-do em aderências, colagens, simbiosesveladas e ocultadoras no que concerneao uso de teorias. Pode ser um proposi-tal velamento, reforçador de descritivis-mos e de dados empíricos, em detrimen-to de um assumir teórico e conceitual-mente explícitos. Ainda que tenha se ins-talado um jogo entre implícito/explícitoem termos de assumir e usar teorias nadiscursividade da Arqueologia brasileira,a teoria lá está.

A hipótese da tese: é possível a elu-cidação sobre a existência e uso de umcorpus teórico na Arqueologia brasilei-ra, em grande parte fragmentado, dis-perso ou oculto nos textos publicados.Bem, quanto ao possível digo que sim,pelos resultados obtidos na pesquisa. Talcorpus teórico está representado, de umlado, pelo emprego das quatro posiçõesteóricas arqueológicas - Arqueologia His-tórico-Cultural, Processual, Pós-Proces-sual e Escola Francesa. De outro, pelouso de referenciais teóricos advindos devariados campos do conhecimento, prin-cipalmente da Antropologia e da Histó-ria.

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Enfim, toda a problemática trabalha-da pode ser reduzida a uma única e fun-damental questão que tentei responderna tese: existe teoria na Arqueologiabrasileira? Sim, existe. A ArqueologiaProcessual - implícita e explicitamente- é a posição teórica mais destacada eo autor mais citado é Binford. Seguem-se, respectivamente, as posições teóri-cas da Arqueologia Pós-Processual, daEscola Francesa e da Histórico-Culturale com, também respectivamente, osautores mais citados: Hodder, Leroi-Gourhan e Meggers. Dentre os arqueó-logos brasileiros, o mais citado é Funa-

ri, vinculado à posição teórica pós-pro-cessual.

É possível separar uma prática des-tituída de reflexão? Existe prática sempensamento? Teoria é para quem pensae prática é para quem faz? Que Arqueo-logia prática é essa, se dizendo sem te-oria? Volto aqui à minha escolha, do lu-gar situado no âmbito da ArqueologiaPós-Processual. Veio afirmar pela teoriacomo fundamento de se pensar, se in-terpretar qualquer prática arqueológica.Trazer teoria, trabalhar com teoria, apli-car teoria nos fazeres arqueológicos sãodesafios. Escavar cansa. Interpretar dói.

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